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RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME
SEGURO OBRIGATÓRIO
ACIDENTE DE VIAÇÃO DOLOSAMENTE PROVOCADO
INDEMNIZAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
Sumário
I - A referência à não exclusão do âmbito da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel dos danos resultantes de «acidentes de viação dolosamente provocados» está inscrita desde o diploma que primeiramente instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (DL 408/79, de 25-09) – e já também em diploma de 1975 (DL 165/75, de 28-03) que, por circunstâncias do seu tempo histórico, nunca chegou a entrar em vigor. II - E mantém-se, sempre em formulação verbal constante, no regime actualmente vigente, aprovado pelo DL 291/2007, de 21-08, justificado pela transposição da Directiva 2005/14/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11-05 – 5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel, que procedeu à «actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes e viação» baseado no seguro obrigatório, «seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis», como se refere no art. 1.º («Objecto») do diploma. III - No que respeita à definição das garantias, o art. 15.º, n.º 2, retomando ipsis verbis a redacção do art. 8.º, n.º 2, do DL 522/85, de 31-12, dispõe que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados (…)». IV - Em tais casos, e como nos anteriores diplomas, «satisfeita a indemnização», a «empresa de seguros» tem direito de regresso «contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente» (art. 27.º, n.º 1, al. a)). V - A interpretação do art. 8.º, n.º 2, 2.ª parte, do DL 522/85, de 31-12, tem obtido no Supremo Tribunal decisões (na aparência) não coincidentes, embora construídas metodologicamente através de uma diferente perspectiva sobre a interpretação e a qualificação da base factual sobre que recaíram. VI - Com efeito, enquanto que nos Acs. de 01-04-1993 e de 18-12-1996 (in BMJ 426.º/132 e 462.º/223, respectivamente) foi decidido que os factos sobre que incidiram, dolosamente provocados, constituíam «acidente de viação», como «fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo», e como tal abrangidos pelo âmbito e garantias da obrigação de indemnização através do seguro obrigatório, o acórdão de 13-03-2007 (in CJSTJ, tomo 1, pág. 108) decidiu, perante os factos que estavam em causa, que «não se encontra[va] caracterizado um acidente de viação», consequentemente, por isso, fora do âmbito da garantia do seguro obrigatório. VII - Na proposição teleológica do regime do seguro obrigatório a perspectiva está centrada na garantia dos lesados, terceiros estranhos à utilização ou condução do veículo causador de danos, ou, em sucessivos afinamentos do conteúdo da garantia, mesmo qualquer ocupante do veículo que não seja o condutor (cf., v.g., várias implicações do direito comunitário no âmbito da garantia analisadas nos Acs. de 16-01-2007, Proc. n.º 2892/06, e de 22-04-2008, Proc. n.º 742/08), e por isso, quando utilizadas as expressões «sinistro» ou «acidente», o plano de apreensão tem de ser considerado primeiramente do ponto de vista do lesado, e não tanto facto-centrado, no plano puro, e de certo modo neutro, do acontecimento. VIII - Para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita. IX - Deste ponto de vista, de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em circunstâncias aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado». X - Não pode, por outro lado, nesta matéria, ser desconsiderado o saliente argumento de ordem sistemática já referido no aludido Ac. do STJ de 01-04-1993, retirado do regime jurídico de protecção de vítimas de crimes violentos, constante do DL 423/91, de 30-10: a exclusão pelo art. 5.º, n.º 1, da aplicabilidade do regime aos «danos causados por um veículo terrestre a motor», só pode ter sentido se o dano «dolosamente» causado por um veículo terrestre a motor estiver contemplado em outra previsão. XI - Pode referir-se também, em perspectiva idêntica, o Ac. do STJ de 17-10-2007, Proc. n.º 3395/07, sobre o direito do lesado por acidente provocado com dolo a demandar o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do art. 24.º, n.º 2, do DL 522/85, de 31-12. XII - A interpretação do art. 8.º, n.º 2, 2.ª parte, do DL 522/85, de 31-12, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida» (cf. Moitinho de Almeida, Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, pág. 14, disponível em www.stj.pt). XIII - Há, nesta matéria, que ter presentes os direitos e as garantias da pessoa lesada, e o princípio de que a garantia do seguro obrigatório não significa, em certos casos, sempre transferência de responsabilidade, nem exonera a pessoa responsável pelo acidente. XIV - No caso de «acidentes dolosamente provocados» existe o direito de regresso da seguradora contra o causador do acidente, como dispunha, ao tempo dos factos, o art. 19.º, al. a), do DL 522/85, de 31-12, e actualmente o art. 27.º, n.º 1, al. a), do DL 291/2007, de 21-08.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
1. No processo comum singular nº 1470/03.0TABRG do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, a arguida AA foi condenada, por sentença de 1 de Abril de 2008, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 132º n.ºs 1 e 2, alínea g), 143º n.º 1 e 146º n.ºs 1 e 2, ambos do Código Penal, em 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 3,00 (três euros), que perfaz a multa global de € 1.050 (mil e cinquenta euros), e nos termos do disposto no artigo 69º n.º 1, alínea b), do Código Penal na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 (sete) meses,
A demandada “Companhia de Seguros BB, S.A.” foi condenada a pagar ao demandante e assistente, CC, “a quantia global de € 73.119,53 (setenta e três mil cento e dezanove euros e cinquenta e três cêntimos), sendo € 45.619,53 (quarenta e cinco mil seiscentos e dezanove euros e cinquenta e três cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, com juros de mora à taxa legal de 4% desde a notificação até efectivo e integral pagamento, e € 27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização de danos não patrimoniais, com juros de mora, à referida taxa, desde a data da decisão até integral pagamento.
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2. Não conformada com a decisão, a demandada “Companhia de Seguros BB, S.A. interpôs recurso para o tribunal da Relação, que, todavia, manteve integralmente a decisão recorrida.
3. Não se conformando, a Companhia de Seguros BB recorre para o Supremo Tribunal com os fundamentos constantes da motivação que apresenta e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
I) A apelante não se conforma com a sentença que a condenou em indemnização
a favor do ofendido.
II) A sentença proferida julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido contra a recorrente, seguradora BB, S. A., por considerar que o acidente em causa, não obstante criminalmente doloso, se encontra abrangido pelas garantias do apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
III) Perante a factualidade dado como provada, o tribunal condenou a arguida pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas doas artºs. 132º, nºs. 1 e 2, al. g), 143º, nº 1 e 146º, nºs. 1 e 2 do CPenal.
IV) Assim, crê-se ser de dar total acolhimento à tese já expendida pela recorrente na sua contestação, no sentido de que, por estarmos perante uma actuação criminosa, em nada acidental, não pode o evento dos autos qualificar-se como acidente de viação, não podendo, por isso, ficar a coberto das garantias que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel confere. Está-se, isso sim, perante a prática de um crime no qual um veículo automóvel foi usado como instrumento letal, assim como poderiam ter sido utilizados uma faca ou uma pedra.
V) Na verdade, é inequívoco que a condutora do veículo OJ agiu com dolo directo, ou seja, com intenção de atingir a integridade físico do ofendido, aqui recorrido, provocando-lhe as lesões de que o mesmo veio a padecer.
VI) Não estamos, por isso, perante a ocorrência de qualquer facto que consubstancie a existência ou verificação de um risco, entendendo-se este como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro - é que a condutora do veículo OJ quis praticar tal facto, ou seja, o mesmo nada teve de incerto.
VII) Aceitar o contrário implicaria que se desconsidere o risco como elemento essencial do contrato de seguro, contra o que ensinam toda a doutrina e jurisprudência e, sobretudo, a violação do disposto no artº. 437º do Cód. Comercial, nos termos de cujo parágrafo terceiro, "O seguro fica sem efeito se o sinistro tiver sido causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável" .
VIII) Assim sendo, porque o acidente dos autos não corresponde, de forma alguma, à verificação aleatória de um risco, não pode considerar-se como válida e operante a garantia contratada pelo seguro por força da qual a demandante é chamada e que cobria os riscos de circulação do OJ.
IX) Entendimento que não é afastado pelo n° 2 do artº. 8° do Dec.-Lei 522/85 de 31 de Dezembro, desde logo pela mera consideração do art°. 1° do mesmo diploma ao consagrar que existe obrigação de segurar os veículos terrestres a motor, seus reboques ou semi-reboques para que estes veículos possam circular.
X) Ou seja, deste preceito resulta inequivocamente que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel existe unicamente para cobrir os riscos próprios da circulação dos veículos automóveis, seus reboques e semi-reboques.
XI) Ora, utilizar um veículo como arma de crime, usando-o para agredir alguém, seja com o mesmo em andamento ou com o mesmo desligado e imobilizado, nada tem a ver com os riscos de circulação que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pretende cobrir.
XII) O n° 2 do artº. 8° do Dec.-Lei 522/85 deve interpretar-se como referindo-se apenas ao dolo eventual, ou seja, ao dolo existente nas situações em que o agente previu a hipótese de ocorrer o resultado (no caso, o acidente) como consequência possível da sua conduta, não se abstendo porém de a empreender e conformando-se com a produção desse resultado – cfr. artº, 16° nº 3 Cód. Penal.
XIII) Mas, por outro lado, e esta ressalva é absolutamente essencial pois que decorre da própria letra do preceito em análise, para que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel actue é necessário que, independentemente do grau de culpa do condutor do veículo (da mera negligência inconsciente ao dolo eventual) se esteja perante um acidente.
XIV) A lei usa expressamente o substantivo "acidente", o qual, como ensina qualquer dicionário, tem o sentido inequívoco de acaso repentino e casual, fortuito, contingência. (v.g.. dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).
XV) Se o legislador quisesse abranger situações como a dos autos jamais poderia utilizar o termo acidente: é que em tais situações o evento danoso tem tudo menos carácter acidental - trata-se de um acto que foi querido, que foi propositadamente praticado, ou seja, não se trata, de modo algum, de um acaso repentino e pontual, meramente fortuito ou contingencial.
XVII) E, ainda que assim não fosse, sempre tal interpretação estaria vedada pelo próprio espírito do ordenamento jurídico português: é que aceitar que os seguros obrigatórios de responsabilidade civil automóvel cobrem os danos resultantes de todos e quaisquer actos criminosos, por mais torpes e dolosos, tudo desde que na sua prática sejam utilizados, por qualquer forma, veículos automóveis, seria aceitar a celebração de negócios ostensivamente contrários à ordem pública e aos bons costumes, o que levaria à sua nulidade, nos termos do n° 2 do artº. 280° do Cód. Civil.
XIX) Assim sendo, ao decidir como decidiu, julgando que o evento a que se referem os autos se encontra coberto pelas garantias do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel por força da qual é a Apelante demandada a Mma. Juiz “a quo” interpretou erradamente e com isso violou os artºs. 437º do Cód. Comercial, assim como os arts.1 ° e 8° n° 2 do DL 522/85 de 31 de Dezembro e os artºs 9º nº 2 e 3 e 280º do Cód. Civil.
XX) Aliás, a doutrina vai neste mesmo sentido. Na verdade, na linha de pensamento de Dário Martins (in Manual de Acidentes de Viação, pág. 317), o dano indemnizável será aquele que estiver em "conexão causal" com o risco.
XXI) O dano liga-se por um nexo causal ao facto material em que se configura o risco, não sendo todavia necessário um "contacto material" entre o veículo e o sinistrado ou entre as duas viaturas. No entanto, o dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo "indirecta" com o facto em que se materializa o risco.
XXII) Refere, por sua vez, Antunes Varela, in "Das Obrigações em geral", 3ª ed., vol. I, pág. 556, que fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam: os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais; os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.
XXIII) Razão por que deve a sentença proferida ser substituída por outra na qual se declare que o evento a que se referem os autos não se encontra coberto pelas garantias do aludido contrato, assim se absolvendo a recorrente.
XXIV) Tudo de acordo como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão proferido em 13/03/2007, no processo n° 197/07-1 (in CJST J, Vol. I, pág. 108 e ss.).
XXV) A sentença em crise violou, entre outras disposições, os artigos 9°, 280°, n° 2 e 483° e ss, do Código Civil, 437° do Cód. Comercial, artºs. 1º e 8° do DL 522/85, de 31de Dezembro.
Termina pedindo o provimento do recurso, com a absolvição da recorrente do pedido de indemnização cível contra si deduzido.
O demandante cível respondeu à motivação, formulando as seguintes conclusões:
1.ª No despacho de fls. 246 na 249 supra transcrito, o Tribunal apreciou já a mesma questão que a Recorrente pretende que seja analisada em sede deste recurso, tendo decisão transitado em julgado, uma vez não ter sido objecto de recurso de agravo por nenhuma das partes, tendo-se formado aqui caso julgado formal, nos termos do disposto no artigo 672º do Código de Processo Civil.
2.ª Aquele despacho, já transitado em julgado, apreciou, de forma definitiva que apenas e só a demandada Companhia de Seguros BB, S.A tinha legitimidade para ser demandada civilmente nos autos, por tal resultar expressamente do disposto nos artigos 8º, nº 2 e 19º, nº1, alínea a) do D.L. nº 522/85 de 31 de Dezembro, o mesmo não acontecendo com a arguida AA, considerada parte ilegítima, dado que os danos causados pelo acidente de viação dolosamente provocado se conterem dentro dos limites do seguro mínimo obrigatório.
3.ª A obrigação de indemnizar foi validamente transferida para a Recorrente em virtude do acidente dolosamente provocado pela arguida, podendo exercer o direito de regresso contra esta, conforme resulta linearmente do disposto nos citados artigos 8º, nº2 e 19º, nº1, alínea a) do D.L. nº 522/85, de 31 de Dezembro.
Conclui no sentido da improcedência do recurso.
4. Colhidos os vistos, o processo foi á conferência, cumprindo decidir.
5. As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
a) No dia 18 de Junho de 2003, pelas 11h30m, na Rua ..., [na] cidade de Braga, a arguida e o ofendido CC, envolveram-se em discussão por razões não concretamente apuradas mas que se prendiam com questões de negócios pendentes entre ambos;
b) O ofendido estacionara o veículo automóvel que tripulava, da marca BMW, de matrícula 00-00-GN, na margem direita da aludida rua, no sentido nascente-poente, alguns metros à frente do estabelecimento do marido da arguida sito no n.º 69 da aludida Rua;
c) Por seu turno, a arguida parara o veículo automóvel que conduzia, de marca Mercedes, com a matrícula 00-00-OJ, em segunda fila, na mesma rua e sentido, junto da porta do referido estabelecimento;
d) Na impossibilidade de chegarem a consenso, a arguida entrou no seu veículo e iniciou a marcha do mesmo, enquanto o ofendido se deslocava em direcção ao seu próprio automóvel;
e) Quando o ofendido CC já se encontrava junto à porta do lado do condutor, a arguida guinou com a frente lateral direita do seu veículo na sua direcção, entalando-o contra o referido automóvel;
f) Seguidamente, a arguida abandonou o local, deixando o lesado caído no solo, sem lhe prestar qualquer tipo de auxílio;
g) Em consequência da conduta supra descrita, sofreu o ofendido CC traumatismo da coxa e do joelho direitos, lesões que lhe determinaram directa e necessariamente 600 (seiscentos) dias de doença com afectação da capacidade de trabalho profissional por igual período;
h) Do evento resultaram para o ofendido consequências permanentes, que se traduzem em cicatriz hipercrómica de 3X3 cm na face interna do joelho e indicação para utilização de meio de contenção com “meia de contenção elástica grau II até à raiz da coxa e venotrópico”;
i) Também em decorrência da compressão do corpo do ofendido contra o seu veículo, determinada pelo comportamento da arguida, ficou a viatura com uma amolgadela de cerca de 50 cm de diâmetro na porta de trás do lado direito e outra de cerca de 90 cm na porta da frente do mesmo lado;
j) A reparação dessas amolgadelas importou na quantia de € 1188.66 que o ofendido CC suportou;
l) Ao actuar da forma descrita, a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar a vítima no seu corpo e saúde e de lhe causar as lesões verificadas, utilizando, com esse intuito, um veículo automóvel, que, pela sua dimensão, peso e mobilidade constitui um mecanismo que dificulta sensivelmente a possibilidade de defesa da vítima;
m) A arguida bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;
n) É divorciada e tem 2 filhos de 8 e 11 anos de idade que vivem com e a cargo da avó paterna;
o) Está desempregada, vivendo com a mãe que a sustenta, e tem alguns problemas de origem psicológica (depressão);
p) É primária e não tem qualquer averbamento no Registo Individual de Condutora (RIC);
q) Após o embate, o ofendido foi transportado de ambulância para o Hospital de S. Marcos, onde recebeu tratamento, voltando para casa, no mesmo dia, com indicação de repouso;
r) No dia 30/6/2003, o ofendido, sentindo-se cada vez pior, foi ao médico, no Centro de Saúde do Carandá, em Braga, continuando a apresentar, nessa data, lesões traumáticas extensas na perna direita, nomeadamente na parte interior do joelho que não conseguia cicatrizar;
s) Devido à infecção que o ofendido apresentava, a médica de família remeteu tratamento para o Centro de Enfermagem, onde foram realizados diversos lancetamentos e tratamentos da ferida existente na parte interior do joelho, remoção de tecido necrosado e drenagem dos líquidos, ficando, na altura, com um buraco na zona interna do joelho de cerca de 5 cm de diâmetro;
t) Tais tratamentos ocorreram entre 30/6/2003 e 16/7/2003 e, de seguida, submeteu-se a tratamentos idênticos no Hospital de S. Marcos, tendo a ferida cicatrizado cerca de 4 meses após a sua produção;
u) Durante todo o tempo de recuperação e cicatrização o ofendido necessitou do auxílio de muletas para se deslocar;
v) Não podia conduzir, necessitando do auxílio de terceiros, nomeadamente da esposa e amigos para se deslocar aos tratamentos;
x) Em data não apurada de inícios do ano de 2004, sofreu uma trombo flebite na perna direita;
z) Consultou um médico no Hospital Narciso Ferreira, de Riba D´Ave, tendo-lhe sido receitadas meias novas e pomada à base de cortisona;
aa) Em Setembro de 2004, sofreu nova trombo flebite na perna direita, tendo sido assistido numa clínica de Famalicão, fazendo tratamentos diários durante 15 dias, após o que passou a fazer tratamento semanal;
bb) Fez pressoterapia para evitar o inchaço da perna e para fazer fluir o sangue;
cc) Sofreu incapacidade temporária geral total (ITA) de 1 (um) dia e incapacidade temporária geral parcial (ITP) de 599 (quinhentos e noventa e nove dias);
dd) Como sequela do embate ficou com incapacidade permanente parcial (IPP) de 10%, representando a supra referida cicatriz, na parte interna do joelho direito, um dano estético de grau 1 em 7 possíveis, tudo determinando um prejuízo para a sua afirmação pessoal de grau 2 em 5 possíveis;
ee) O ofendido CC, durante o período de tratamento, suportou ainda dores fixáveis no grau 3 de 7;
ff) Suportou o pagamento de consultas médicas e tratamentos no valor de € 866,97 (oitocentos e sessenta e seis euros e noventa e sete cêntimos);
gg) O ofendido CC era um serralheiro com larga experiência e reconhecido como profissional muito competente;
hh) Trabalhou na sua arte desde 1986, inicialmente como trabalhador dependente, na serralharia “O Setenta”, nesta cidade de Braga e, posteriormente, em 1995, por conta própria, na indústria de montagem de tectos falsos, serralharia e divisórias de gesso cartonado, tendo contratado 3 empregados quando a clientela cresceu;
ii) Á data da agressão auferia rendimentos mensais de valor não concretamente apurado mas nunca inferiores ao do salário mínimo nacional (SMN);
jj) Tinha 32 anos, já que nasceu a 8 de Agosto de 1970;
ll) Cessou a actividade da sua empresa em Setembro de 2004, por razões não completamente esclarecidas, mas para a qual terá contribuído a sua impossibilidade de trabalhar;
mm) Antes da agressão o ofendido CC contraíra empréstimos bancários com vista à aquisição de casa e carro próprios e fazia face às despesas de vida normal;
nn) A esposa não trabalhava e o casal tinha, na altura, uma filha menor;
oo) Posteriormente à referida agressão da arguida ao ofendido, em data não apurada, mas posterior a Junho de 2003, a esposa deste teve que começar a trabalhar e, durante período de tempo não concretamente apurado, daí resultou o único rendimento do agregado, entretanto, aumentado com o nascimento de mais um filho;
pp) O ofendido não consegue dobrar completamente o joelho direito (- 20º relativamente ao joelho esquerdo), nem pode fazer muito esforço ou carregar peso;
qq) Ainda hoje sofre algumas dores e inchaço na perna direita, nomeadamente em situações de esforço físico ou maior andamento, não aguentando grandes passeios nem brincar muito tempo com os filhos;
rr) As sequelas mencionadas são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual mas implicam um esforço acrescido;
ss) Actualmente, o ofendido CC, dedica-se à venda de produtos químicos, a recibo verde, auferindo proventos, conforme o volume de vendas que realiza, valor não apurado;
tt) Antes do embate era homem forte e saudável, alegre e com grande ânimo e força vital;
uu) Jogava futebol;
vv) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 00000000, válida à data da ocorrência, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo tripulado pela arguida, com a matrícula 00-00-OJ, fora transferida para a companhia de seguros “BB”, até ao montante de € 600.000,00 (seiscentos mil euros).«Por insuficiência e contradição de prova, deram-se como não assentes os seguintes factos:
- Que nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em a) a arguida saiu do seu estabelecimento comercial para retirar o seu veículo automóvel de matrícula 00-00-OJ;
- Que à porta do referido estabelecimento encontrava-se o ofendido CC, esperando para falar com ela, a fim da mesma lhe pagar uma dívida superior a cinco mil euros, referentes a duas obras por aquele realizadas;
- Que, neste contexto, a arguida dirigiu-se ao CC, entregando-lhe um montante irrisório do valor em dívida, dizendo que não lhe pagava mais qualquer quantia;
- Que a arguida embateu com a frente lateral direita da sua viatura no automóvel do ofendido, daí resultando as amolgadelas;
- Que as lesões sofridas pelo ofendido apenas determinaram 196 dias para a consolidação médico-legal, ou seja para a cura, e igual tempo de incapacidade para o trabalho;
- Que a arguida também tinha consciência que estava obrigada a prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo para a integridade física do ofendido, numa situação de grave necessidade por aquela criada;
- Que na sua actuação a arguida representou ainda a possibilidade de danificar o automóvel do ofendido e mesmo assim não se coibiu de a praticar;
- Que no dia 18/6/2003, no Hospital de S. Marcos, foi indicada ao ofendido uma semana para repouso e recuperação;
- Que os tratamentos no Centro de Enfermagem para onde a médica de família remeteu o ofendido duraram cerca de 7 meses só então ocorrendo a cicatrização da ferida;
- Que a primeira trombo flebite (trombose, no dizer do ofendido) na perna direita do CC ocorreu em Julho de 2004, apresentando-se no Hospital de S. Marcos, cheio de dores, com a perna muito inchada e cheia de sangue pisado, nada lhe sendo feito;
- Que o ofendido consultou um médico particular numa clínica privada em Riba D´Ave;
- Que em Junho de 2005, começou a sentir os sintomas de uma nova trombose na perna direita, sendo novamente assistido no Hospital de S. Marcos, sendo submetido a intervenção médica para drenagem de líquidos e sangue, que consistiu num golpe ao longo de toda a virilha direita;
- Que em consequência de tal intervenção, o ofendido teve que fazer mudança de penso e desinfecções diárias, durante uma semana, no Centro de Saúde do Carandá;
- Que o montante suportado pelas consultas médicas e tratamentos a que o ofendido foi submetido ascendeu a € 3.500,00;
- Que o ofendido, à data dos factos, auferia remuneração líquida mensal de cerca de € 1.250,00;
- Que andava animado com a sua empresa e começava a ter clientela fiel, devido à satisfação mostrada nos produtos fabricados e serviços prestados;
- Que com o desenvolvimento normal do seu negócio e profissão o ofendido ia naturalmente passar a obter crescentes rendimentos que facilmente atingiriam mais de € 28.000,00 líquidos por ano;
- Que o ofendido vive hoje com sérias dificuldades dispondo o agregado apenas do salário auferido pela sua esposa;
- Que o ofendido não pode fazer o mesmo trabalho que fazia antes da ocorrência, tendo ficado com uma incapacidade total para a sua profissão bem como para a maioria das outras actividades profissionais;
- Que não consegue correr, ajoelhar-se ou manter o joelho direito dobrado, coxeia e faz muito esforço para andar, e não pode estar muito tempo de pé, nem muito tempo sentado;
- Que se tornou uma pessoa triste e desanimada perante a vida, em consequência das sequelas do acidente;
- Que antes da ocorrência praticava natação duas vezes por semana sendo também essa a frequência com que jogava futebol;
- Que ficou impossibilitado de praticar desportos físicos, não pode apanhar sol ou ir à praia;
- Que a vida íntima com a mulher alterou-se, havendo problemas conjugais e familiares, bem como a forma de dormir, tendo deixado de sair de casa, de ter vida social e de estar com os amigos.
6. (i) Uma nota prévia:
Em maior rigor processual haveria motivo para rejeição do recurso.
Com efeito, sendo o recurso interposto do acórdão da Relação, a discordância tem de ser manifestada e a motivação referida a esta decisão. Mesmo sendo no mesmo sentido que a decisão da 1ª instância, tem conteúdo próprio, que deve constituir o motivo da discordância que integre o objecto de recurso, mesmo obviamente com a necessidade de repetição de argumentos não acolhidos.
A motivação do recurso apresentada pela recorrente, no entanto, mais não é do que a reprodução ipsis verbis da motivação apresentada no recurso da 1ª instância - fls 794-807, integralmente repetidas a fls 912-925, até com idêntica falta das conclusões XVI e XVIII.
Porém, considerando que, não obstante, pode interpretar-se o objecto do recurso, conhecer-se-á por respeito do primado da substância sobre a forma.
(ii) Delimitado o objecto do recurso nas (22) conclusões da motivação, a recorrente submete à cognição do tribunal superior apenas uma questão relativa ao âmbito de garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que consiste em saber se o segura abrange os casos em que os danos são dolosamente provocados, com a utilização do veículo automóvel como instrumento para a prática de um crime, que remete, no essencial, para a interpretação do disposto no artigo 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, aplicável ao contrato de seguro celebrado com a recorrente.
A recorrente retoma também no objecto do recurso os motivos já invocados no recurso para a relação – violação do artigo 437º, § 3º do Código Comercial, por o seguro ficar «sem efeito se o sinistro tiver sido causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável», e nulidade do contrato, por ofensa do artigo 280º, nº 2 do Código Civil, se interpretado no sento de cobrir «os danos resultantes de todos e quaisquer actos criminosos, por mais torpes e dolosos, tudo desde que na sua prática sejam utilizados, por qualquer forma, veículos automóveis», como enuncia na conclusões VII e XVII.
Enquanto base factual da decisão na parte delimitada e relevante, os factos provados estão descritos sob os pontos c), d), e), f) e vv) das matéria de facto:
«c) Por seu turno, a arguida, parara o veículo automóvel que conduzia, de marca Mercedes, com a matrícula 00-00-OJ, em segunda fila, na mesma rua e sentido, junto da porta do referido estabelecimento;
d) Na impossibilidade de chegarem a consenso, a arguida entrou no seu veículo e iniciou a marcha do mesmo, enquanto o ofendido se deslocava em direcção ao seu próprio automóvel;
e) Quando o ofendido CC já se encontrava junto à porta do lado do condutor, a arguida guinou com a frente lateral direita do seu veículo na sua direcção, entalando-o contra o referido automóvel;
f) Seguidamente, a arguida abandonou o local, deixando o lesado caído no solo, sem lhe prestar qualquer tipo de auxílio»;
«vv) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 00000000, válida à data da ocorrência, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo tripulado pela arguida, com a matrícula 00-00-OJ, fora transferida para a companhia de seguros “BB”, até ao montante de € 600.000,00 (seiscentos mil euros)».
De modo concordante, as instâncias, na interpretação das normas pertinentes do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que consideraram aplicáveis (o regime constante do artigo 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro), decidiram que a circunstância de os danos terem sido dolosamente provocados pela condutora do veículo a que se referia o contrato de seguro não excluía a obrigação de indemnizar a cargo da seguradora-recorrente.
7. Não vêm discutidos os pressupostos da responsabilidade civil da autora dos factos provados: facto ilícito; dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano (artigo 483º do Código Civil), e os danos estão demonstrados, não constituindo objecto do recurso.
O objecto do recurso está, assim, restrito à determinação da relação entre o facto gerador da responsabilidade e da obrigação de indemnizar e os limites e o âmbito do contrato de seguro celebrado com a Companhia de Seguros recorrente.
O contrato de seguro «titulado pela apólice n.º 00000000, válida à data da ocorrência», transferia para a Companhia recorrente «a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo tripulado pela arguida, com a matrícula 00-00-OJ» - ponto vv) da matéria de facto.
O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o respectivo regime constava, ao tempo dos factos, do Decreto-Lei nº 422/85, de 31 de Dezembro.
Reconhecendo que «a institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel [pelo Decreto-Lei nº 408/9, de 25 de Setembro] revelou-se uma medida de alcance social inquestionável», o diploma assume no preâmbulo que «o decurso do tempo» impunha «reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados por acidentes de viação».
Os objectivos de «reforço» e «aperfeiçoamento» enunciados no preâmbulo consistiram, no essencial, na alteração dos limites máximos das indemnizações devidas por acidentes quando não haja culpa dos responsáveis, e a adaptação exigida pelo cumprimento dos princípios contidos na 2ª Directiva do Conselho de 30 de Dezembro de 1983 (84/5/CEE) em consequência da adesão de Portugal às Comunidades Europeias (alargamento da cobertura do seguro obrigatório aos passageiros transportados gratuitamente, mesmo que se encontrem ligados ao tomador do seguro ou ao condutor por laços de parentesco), dando «passos firmes» «no sentido da harmonização da legislação [nacional] do seguro obrigatório automóvel ao direito derivado comunitário».
O diploma estabeleceu no artigo 1º a «obrigação de segurar»- seguro obrigatório.
Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, deve, para que o veículo possa circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade – artigo 1º, nº 1, impondo mínimos de capital obrigatoriamente seguro para cumprimento da obrigação de indemnizar – artigos 5º e 6º, nºs 1 e 2.
O seguro, obrigatório para que um veículo possa circular, deve, assim, garantir até determinado montante, a obrigação de indemnizar por que seja civilmente responsável a pessoa cuja responsabilidade é garantida, em consequência de danos patrimoniais ou não patrimoniais causados a terceiros com um veículo terrestre a motor, e que não estejam legalmente excluídos da garantia do seguro nos termos do artigo 7º do diploma.
O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 2º e dos legítimos detentores e condutores do veículo – artigo 8º, nº 1.
E o nº 2 do artigo 8º - norma em causa no objecto do recurso – dispõe que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados […]».
Nestes casos, porém, como dispõe o artigo 19º, alíneas a) e b), «satisfeita a indemnização», a seguradora tem direito de regresso «contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente» e «contra os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente».
A chave da solução está, pois, na interpretação do segmento da norma do artigo 8º, nº 2, 2ª parte, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, que determina que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas» a terceiros por «acidentes de viação dolosamente provocados».
8. A instituição na lei nacional do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, de projecto e intenção já distantes e atravessando momentos conjunturais que se não revelaram propícios ao acabamento das iniciativas (ou tentativas) variadas (cfr., as referências históricas do preâmbulo do diploma), foi objecto do Decreto-Lei nº 408/79 de 25 de Setembro.
O diploma instituiu, ao tempo, o regime possível, expressamente assumido como «sistema» e «disciplina» de «transição», prevendo-se «que [viessem] a ser substituídos em prazo não muito distante».
A matéria relativa ao seguro obrigatório e as discussões teóricas, jurídicas, de política jurídica, económicas e sociais, estavam, ao tempo, na preocupação de estudos sobre a experiência de outros modelos, desde a substituição da responsabilidade pelo seguro em vários campos de actividades (acidentes de trabalho; acidentes de viação; produtos; acidentes escolares), até à instituição de regimes mistos de responsabilidade e seguro (cfr., v. g., o estudo de Jorge Sinde Monteiro, “Responsabilidade por culpa; responsabilidade objectiva; seguro de acidentes”, publicado em 1983 na Revista de Direito e Economia).
Neste diploma de 1979 estabelecia-se no artigo 1º o âmbito da obrigação de segurar relativamente aos proprietários de veículos terrestres a motor, que só poderiam «circular na via pública, ou em locais públicos ou privados abertos ao público ou a certo número de pessoas com o direito de os utilizar, desde que nos termos do […] diploma [fosse] efectuado, em empresa ou sociedade legalmente autorizada, seguro da responsabilidade civil que [pudesse] resultar da sua utilização».
O seguro obrigatório tinha limites mínimos da garantia da obrigação de indemnizar, a obrigação de segurar não era «extensiva à responsabilidade relativa às pessoas ou bens transportados» - artigo 1º, nº 2, mas, no artigo 6º o diploma dispunha que «o seguro garantirá igualmente os danos provenientes de acidentes de viação dolosamente provocados», salvo («o seguro não garante») a responsabilidade dos autores, cúmplices ou encobridores de roubo, furto ou furto de uso, ou de acidentes de viação dolosamente provocados, para com o proprietário, usufrutuário ou adquirente com reserva de propriedade – artigo 5º, nº 2.
A referência à não exclusão do âmbito da garantia do seguro dos danos resultantes de «acidentes de viação dolosamente provocados» está, pois, inscrita desde o diploma que primeiramente instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – e já também em diploma de 1975 (Decreto-Lei nº 165/75, de 28 de Março), que por circunstância do seu tempo histórico nunca chegou a entrar em vigor.
E mantém-se, sempre em formulação verbal constante, no regime actualmente vigente, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, justificado pela transposição da Directiva nº 2005/14/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11 de Maio – 5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel, e que procedeu à «actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes e viação» baseado no seguro obrigatório - «seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis», como se refere no artigo 1º («Objecto») do diploma.
No que respeita à definição das garantias, o artigo 15º, nº 2, retomando ipsis verbis a redacção do artigo 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, dispõe que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados […]».
Em tais casos, e como nos anteriores diplomas, «satisfeita a indemnização», a «empresa se seguros» tem direito de regresso «contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente» (artigo 27º, nº 1, alínea a)).
9. A questão objecto do recurso – no rigor, a interpretação do artigo 8º, nº 2, 2ª parte do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro – tem obtido no Supremo Tribunal decisões (na aparência) não coincidentes, embora construídas metodologicamente através de uma diferente perspectiva sobre a interpretação e a qualificação da base factual sobre que recaíram.
Com efeito, enquanto que nos acórdãos de 1/4/93 e de 18/12/96 (publicados no BMJ, nº 426, p. 132 e nº 462, p. 223, respectivamente) foi decidido que os factos sobre que incidiram, dolosamente provocados, constituíam «acidente de viação», como «fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo», e como tal abrangidos pelo âmbito e garantias da obrigação de indemnização através do seguro obrigatório, o acórdão de 13/3/2007 (publicado na CJ (STJ), I, p. 108) decidiu, perante os factos que estavam em causa, que «não se encontra[va] caracterizado um acidente de viação», consequentemente, por isso, fora do âmbito da garantia do seguro obrigatório.
No acórdão de 1/4/93, seguido pelo acórdão de 18/12/96, argumentou-se que em face da evolução normativa que culminou no artigo 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, «não pode duvidar-se e de que o legislador quis salvaguardar os interesses dos lesados, mesmo nos casos em que os danos advêm de acidente dolosamente provocados. É certo que a expressão “acidente dolosamente provocado”, para quem veja o acidente apenas na acepção tradicional de “acontecimento casual e fortuito”, será contraditória consigo própria. Simplesmente, e como decorre do pensamento do legislador espelhado nas normas […], a expressão acidente não está utilizada naquele sentido tradicional (o próprio legislador terá sentido a dificuldade e previsto a objecção ao empregar no Decreto-Lei n. 165/75 a expressão acto doloso), mas apenas no sentido mais geral de fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo. E nesta acepção cabe o acidente dolosamente provocado, tendo sobretudo em vista o relevo dado ao interesse do lesado e ao ponto de vista deste. Deste ponto de vista prevalente tanto é acidente o acontecimento estradal fortuito e casual como o dolosamente provocado; num caso ou noutro é idêntico o interesse do lesado em ser indemnizado dos danos sofridos; e é esse interesse que a lei quer proteger».
Por sua vez, o acórdão de 13/3/2007, partiu da noção de “dano indemnizável”, que seria «sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta com o facto em que se materializa o risco», e no caso, «não decorr[ia] dos factos provados que o acidente [tivesse] ocorrido devido aos riscos decorrentes da circulação do veiculo, nomeadamente do seu despiste ou colisão ou de qualquer razão que tenha a ver com o funcionamento do dito veiculo, mas sim perante a manifesta intenção de o condutor […] pretender ofender corporalmente o recorrido, utilizando o seu veículo, assim como poderia ter utilizado qualquer outro objecto móvel contundente». No caso não se estaria «perante um acidente, já que as lesões sofridas pelo recorrido ficaram a dever-se não a um acidente de viação, em que se funda o seguro obrigatório de responsabilidade civil, mas a uma conduta dolosa do seu condutor que utilizou a viatura para ofender corporalmente a vítima como poderia ter utilizado qualquer outro tipo de instrumento adequado a provocar lesões de contornos contundentes». «Assim, estas lesões originadas não pela normal circulação da viatura em causa, mas pela sua utilização desviada do fim a que se destinava, como utensílio ou arma, idónea a desferir lesões corporais, encontram-se fora dos riscos que a recorrente considerou quando da celebração do contrato de seguro».
10. O fundo hermenêutico de afastamento presente nas situações referidas não está, pois, tanto na norma e na determinação do sentido que emana da respectiva formulação, mas na pré-compreensão de um conceito (“acidente de viação”) que, no contexto, é simultaneamente de facto e normativo.
O pensamento jurídico raramente reconhece soluções de continuidade.
A evolução do moderno direito da responsabilidade civil, especialmente no que respeita à reparação dos danos provocados em determinados espaços da actividade humana em sociedades de risco, vai no sentido de se referir menos ao lesante e sua conduta, incidindo em maior medida na cobertura dos danos e na situação das vítimas (cfr. o estudo citado de Sinde Monteiro, p. 55 e ss.). A evolução corresponde a linhas de força objectivas, de aproximação e convergência como fundamento de protecção dos lesados, numa certa perspectiva de seguro social ou de socialização dos riscos em sociedades com ritmos intensos e, consequentemente, como maior risco e acrescidas potencialidades para provocar vítimas e danos; corresponderá não a um voluntarismo, mas, perante determinadas actividades muito sujeitas à ocorrência de danos, mais a uma ideia de responsabilidade e reparação do que a uma noção, estrita e central, de culpa.
O sistema de seguro obrigatório, como é o caso mais saliente do seguro de responsabilidade civil automóvel, caminha neste sentido: um sistema misto de seguro, de garantia geral pela obrigatoriedade, mas em que não existe substituição total da responsabilidade pelo seguro, e que constitui um ponto de equilíbrio, sem soluções de continuidade no sistema jurídico entre categorias tradicionais e exigências novas perante novos problemas.
O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel constitui uma garantia essencial dos lesados por danos resultantes de acidentes de viação, e uma solução e obrigação (ou modelo) instrumental da própria circulação de pessoas – a garantia protege em melhores condições a livre circulação de pessoas e bens, que constitui uma das liberdades fundadoras da Comunidade Europeia, hoje da União (cfr., sobre liberdade de circulação, v. g., João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, “Manual de Direito Comunitário”, 5ª ed. 2007, p. 553).
O direito comunitário derivado ocupa-se, por isso, do regime do seguro obrigatório, através de normas que constituem a base para a harmonização legislativa na matéria nos Estados Membros.
Várias Directivas, desde a designada 1ª Directiva (72/166/CEE), de 24 de Abril de 1972, têm estabelecido regras para a harmonização legislativa dos Estados Membros quanto ao regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, tanto na perspectiva e na base jurídica da competência para a realização do direito à livre prestação de serviços, como enquanto instrumento de segurança e garantia determinante da efectiva possibilidade de livre circulação intracomunitária de mercadorias e pessoas.
Com efeito, como se refere nos “Considerandos” justificativos da 1ª Directiva, as disparidades existentes nos Estados Membros no regime do seguro de responsabilidade civil decorrente de danos causados pela circulação automóvel podem dificultar a livre circulação de veículos, instrumental em primeira linha da circulação de pessoas, devendo todo o veículo automóvel encontrar-se coberto pelo seguro como garantia essencial para a efectiva liberdade de circulação.
A intenção harmonizadora prosseguiu com a 2ª Directiva (84/5/CEE), de 30 de Dezembro de 1983, fundamentada no reconhecimento da existência de «importantes divergências» quanto às modalidades e à extensão do seguro decorrentes da natureza dos danos cobertos. A Directiva prevê o alargamento da obrigação de segurar quanto à responsabilidade decorrente de danos materiais, estabeleceu montantes mínimos para a garantia obrigatória do seguro, dispôs sobre a obrigação de existência, a nível nacional, de um organismo de garantia das indemnizações nos casos de acidentes causados por veículos sem seguro e fixou o princípio da não exclusão da garantia do seguro relativamente aos membros da família do tomador do seguro ou do condutor transportados no veículo.
A 3ª Directiva (90/232/CEE), de 14 de Maio de 1990, considerando que as vítimas de acidentes de circulação devem ter tratamento idêntico independentemente dos locais onde ocorram os acidentes, e reconhecendo a existência de lacunas na cobertura pelo seguro dos passageiros dos veículos automóveis, determina que os danos pessoais de todos os passageiros de um veículo devem estar cobertos pelo seguro obrigatório.
A 4ª Directiva (2000/26/CE), de 16 de Maio de 2000, teve como objecto sobretudo disposições com implicações processuais – direitos das pessoas lesadas por sinistros ocorridos num Estado-Membro que não o seu Estado de residência, e o direito de acção directamente contra a seguradora que cubra a responsabilidade civil.
A 5ª Directiva (2005/14/CE), de 11 de Maio de 2005, acrescenta outras exigências de garantia do seguro obrigatório: protecção dos tomadores de seguro vítimas do acidente; garantia de indemnização das vítimas de sinistros ocorridos no mesmo Estado Membro em que o veículo tem o seu estacionamento habitual; cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos pelos peões e ciclistas e outros utilizadores não motorizados em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo com motor e que tenham direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional.
11. O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem, assim, um regime comunitário construído através dos vários instrumentos de direito derivado, que se fundamenta na exigência de harmonização dos direitos e dos regimes nacionais, na medida dos limites e do âmbito impostos pela realização da efectividade da liberdade de circulação de pessoas e mercadorias.
As Directivas constituem, como resulta do artigo 249º do Tratado CE, instrumentos de direito derivado, vinculativos mas não directamente aplicáveis, exigindo intervenção nacional de transposição. Estabelecem objectivos e obrigações de resultado, mas deixando aos sistemas internos a escolha dos modos e das formas normativas para obter a finalidade e o resultado a que se destinam. Porém, na prossecução e realização da harmonização legislativa, quando seja a finalidade das Directivas, as disposições nacionais de transposição e os regimes nacionais pertinentes devem ser interpretados em conformidade com as disposições de direito comunitário (cfr., João Mota de Campos, cit. P. 323 ss.).
Pronunciando-se sobre questões prejudiciais formuladas por instâncias judiciais nacionais, a propósito da interpretação das Directivas sobre seguro obrigatório, o Tribunal de Justiça tem afirmado, como princípio, que «decorre do objecto das Directivas 72/166, 84/5 e 90/232, relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, bem como do teor das suas disposições, que as mesmas não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-Membros e que, no estado actual do direito comunitário, os Estados-Membros continuam livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos e, designadamente, as condições da limitação do direito a uma indemnização coberta pelo seguro automóvel», «mas são obrigados a garantir que a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme às disposições das Directivas 72/166, 84/5 e 90/232, relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis» - cfr., v. g., acórdãos Katja Candolin (Primeira Secção), de 30 de Junho de 2005 (proc. C-537/03), Colectânea de Jurisprudência 2005, I-05745; Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira (Quinta Secção), de 14 de Setembro de 2000, proc. C-348/98, Colectânea de Jurisprudência, 2000, p. I-06711, e Ruiz Bernáldez (Quinta Secção), de 28 de Março de 1996, proc. C-129/94, Colectânea de Jurisprudência, 1996, p. I-01829.
12. O regime europeu de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, construído sucessivamente como modelo para harmonização legislativa, antes de definir quadros de garantia dos lesados, e pressupondo que os regimes de responsabilidade civil restam no domínio das legislações nacionais, parte de um pressuposto de aplicabilidade traduzido em noções, simultaneamente materiais e normativas, que enquadram todo o regime, mas que nem sempre coincidem nas respectivas formulações literais.
A noção central remete para a «circulação de veículos terrestres com motor» e, consequentemente, para os danos causados a terceiros que resultem da circulação de veículos desta natureza – artigo 2º da 1ª Directiva, artigo 1º da 3ª Directiva e Considerando da 5ª Directiva.
Mas outras formulações são utilizadas, sem constância literal. No artigo 2º da 2ª Directiva refere-se a «utilização de veículo» e a «condução de veículos», e no artigo 5º da 3ª Directiva utiliza-se a expressão «acidente de circulação rodoviária».
Na 4ª Directiva, o artigo 1º recorre à formulação «danos sofridos em resultado de sinistros causados pela circulação de veículos», e a 5ª Directiva utiliza no artigo 4º a expressão «acidente».
No contexto normativo em que são utilizadas, as diferentes formulações literais não podem significar realidades materiais diversas. O fundamento e a finalidade do regime jurídico de um modelo de garantia constituído pelo seguro obrigatório pressupõem que as diferentes expressões traduzam uma mesma realidade, que tenha por factor externo de identificação um facto produtor de danos, decorrente da circulação, da colocação em circulação ou em condições de circular, de um veículo com motor e da condução do veículo em espaço público ou em circunstâncias assimiláveis de utilização comum - na via pública, ou em locais públicos ou privados abertos ao público ou a certo número de pessoas com o direito de os utilizar.
A pluralidade de expressões remete sempre, por identificação material e teleológica, para uma mesma realidade – a circulação automóvel, a condução de um veículo com motor, a utilização de um veículo nas condições em que os veículos circulam em vias abertas à circulação pública ou com semelhantes condições de utilização, e os danos que tal actividade provoque. E, do ponto de vista dos utilizadores das vias estranhos ao veículo, os danos decorrentes da circulação, sem distinção, quer seja por circunstâncias do funcionamento do veículo ou de deficiências da própria via, quer por causa fortuita ou por acto do próprio condutor, que se não desligue de uma qualquer imputação subjectiva, seja no domínio da falta de cuidado ou de impreparação (quer negligência simples quer grosseira), seja mesmo por acto voluntário.
É que na proposição teleológica do regime do seguro obrigatório – como o acórdão recorrido refere, remetendo para as considerações da sentença da 1ª instância, e já resultava da argumentação aos acórdãos do SJT de 1993 e 1996, citados – a perspectiva está centrada na garantia dos lesados, terceiros estranhos à utilização ou condução do veículo do veículo causador de danos, ou, em sucessivos afinamentos do conteúdo da garantia, mesmo qualquer ocupante do veículo que não seja o condutor (cfr, v. g., várias implicações do direito comunitário no âmbito da garantia analisadas nos acórdãos de 16/01/2007, proc. Nº 2892/06, e de 22/04/2008, proc. nº 742/08), e por isso, quando utilizadas as expressões «sinistro» ou «acidente», o plano de apreensão tem de ser considerado primeiramente do ponto de vista do lesado, e não tanto, facto-centrado, no plano puro e de certo modo neutro do acontecimento.
Daqui a (aparente) aporia que se presente na pré-compreensão de algumas interpretações, que partem de uma natureza auto-referida do acontecimento, e não, como a teleologia do regime impõe, da centralidade do lesado, que deva ser indemnizado segundo o direito interno pelos danos pessoais e materiais sofridos.
Na noção de “acidente de viação”, quando visto a acontecimento por si, como facto da dinâmica ou na interpretação do sentido comum, como acontecimento casual, fortuito, do qual resulta prejuízo para as pessoas ou para as coisas – uma noção, dir-se-ia dicionarizada – o centro de referência está no facto em si, independentemente dos pólos genético e consequencial; a construção da noção apresenta independência e não comprometimento, no domínio dos factos físicos, com os factores pessoais enquanto causa ou com os efeitos para as pessoas e coisas enquanto consequência.
Mas esta noção de “acidente”, que se encontra por vezes reflectida na consideração dinâmica das ocorrências na circulação automóvel, só valeria, no rigor das coisas, para as ocorrência fortuitas ou de força maior, às quais seja estranha um factor humano desencadeante qualificável como uma qualquer forma de culpa – mesmo a simples negligência.
Nestas, diversamente, a noção de “acidente” já participa de elementos centrados na qualificação de acções humanas, alargando-se, consequentemente, o sentido de acontecimento casual e fortuito.
Há, assim, diversas possibilidades de enquadramento da noção de “acidente”, conforme o plano de apreciação que esteja em causa ou do qual se deva partir.
Pela parte do lesado, um facto exterior do qual resultem consequências lesivas constitui um acidente, no sentido de acontecimento que involuntariamente suporta, que lhe é estranho, que não prevê, que não condiciona e que escapa à sua capacidade de influência ou domínio.
A noção de “acidente” ou “sinistro”, no sentido pressuposto pelo regime do seguro obrigatório do direito comunitário – e do direito nacional que assume o regime – tem, pois, de ser considerada e integrada pelo ponto de vista e pela posição do lesado – a «protecção», na expressão da intencionalidade legislativa, «dos legítimos interesses dos lesados».
Com efeito, para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita.
Deste ponto de vista, que é a perspectiva de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em condições aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado».
Não pode, por outro lado, nesta matéria, ser desconsiderado o saliente argumento de ordem sistemática já referido no acórdão do STJ, cit., de 1/4/93, retirado do regime jurídico de protecção de vítimas de crimes violentos, constante do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro. A exclusão pelo artigo 5º, nº 1 da aplicabilidade do regime aos «danos causados por um veículo terrestre a motor», só pode ter sentido se o dano «dolosamente» causado por um veículo terrestre a motor estiver contemplado em outra previsão.
Pode referir-se, também, em perspectiva idêntica, o acórdão do STJ, de 17/10/2007, proc. 3395/07, sobre o direito do lesado por acidente provocado com dolo a demandar o Fundo de garantia Automóvel, nos termos do artigo 24º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
13. Esta interpretação permite a congruência, sem soluções de continuidade, entre o regime europeu e a disciplina normativa nacional.
A interpretação do artigo 8º, nº 2, 2ª parte, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida» (cfr. Moitinho de Almeida, “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, p. 14, disponível em www.stj.pt).
Há, nesta matéria, que ter ser presentes os direitos e as garantias da pessoa lesada, e o princípio de que a garantia do seguro obrigatório não significa, em certos casos, sempre transferência de responsabilidade, nem exonera a pessoa responsável pelo acidente.
No caso de «acidentes dolosamente provocados, existe o direito de regresso da seguradora contra a causador do acidente, como dispunha, ao tempo dos factos, o artigo 19, alínea a) do decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, e actualmente o artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto.
14. As restantes questões suscitadas foram abordadas e decididas pelo acórdão recorrido de modo desenvolvido, nada havendo que acrescentar para fundamentar a improcedência manifesta dos motivos invocados pela recorrente.
15. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.