SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
JUÍZO DE PROGNOSE
Sumário

I - Aplicando-se uma pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, há-de o tribunal suspender a execução da pena – como se estatui no art. 50.º do CP –, se “…atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

II - Conforme vem decidindo o STJ, “… não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligada à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas” – Ac. de 10-11-1999, Proc. n.º 823/99 - 3.ª.

III - O que se consagra naquele texto legal é nem mais nem menos do que “… um meio em si mesmo autónomo de reacção jurídica criminal, configurado como pena de substituição, que se baseia em juízo de prognose favorável ao condenado desde que não fiquem prejudicadas as finalidades da punição” – Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Iuris, 2008, pág. 179.

IV - «Nos crimes de tráfico de estupefacientes, as razões de prevenção geral só excepcionalmente se satisfazem com uma pena de substituição. Os efeitos nocivos para a saúde resultantes do tráfico, especialmente quando (como no caso) se trata de drogas duras, e as situações em que os actos de venda se prolongam no tempo e/ou atingem um elevado número de pessoas despertam “um sentimento de reprovação social do crime”, para usar as palavras do Prof. Beleza dos Santos, que impedem a aplicação da suspensão da execução da pena, sob pena de “… ser posta em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 243). Por isso, razões de prevenção geral afastam a aplicabilidade deste instituto, por mais favorável que pudesse ser o juízo de prognose a formular acerca do arguido» – Ac. de 02-10-2008, Proc. n.º 589/08.

Texto Integral




AA, nascido em 29/07/1953, em Matosinhos, foi condenado, no domínio do processo n.º 721/04.0 PAOVR __ pela prática, desde data não apurada de 2002 até, pelo menos, Maio de 2005, de um crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo art.º 21.º n.º1 do decreto-lei n.º 15/93, de 22/01 __ , consoante acórdão de 20/06/2007 do Círculo Judicial de Santa Maria da Feira, na pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão; sanção confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, mediante acórdão proferido a 11/06/2008, negando provimento a recurso interposto pelo arguido, incidente, para além da própria impugnação da decisão da matéria de facto, sobre alegadas violações do art.º 127.º do C.P.P., do princípio “in dubio pro reo”, sobre o enquadramento legal dos factos (reportando-se ao propósito de ver aplicado ao caso o disposto no art.º 25.º do citado dec-lei), sobre a medida da pena ( pretendendo que se procedesse à atenuação especial da mesma) e , finalmente, sobre a natureza da mesma (visando a adopção da suspensão da execução, configurada como pena de substituição).

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Eis a resenha factual (provada e não provada) pertinente ao conhecimento do objecto do recurso:

Provada

a) O arguido dedicou-se, desde data não concretamente apurada do ano de 2002, mas posterior a Outubro de 2002, depois da prisão do seu irmão BB pelo crime de tráfico de droga, à venda de heroína a consumidores e toxicodependentes, com o intuito, concretizado, de retirar compensação económica que, conjuntamente com os demais rendimentos de que dispunha (na ordem dos € 515,00 mensais), lhe permitia sustentar o seu agregado familiar, composto por cerca de oito pessoas, que se encontravam a seu cargo.
b) Com efeito, o arguido abasteceu regularmente de heroína, quer pessoalmente, quer através de CC, designadamente:
- o referenciado CC, conhecido também por “Mário Pintelha”, que lhe adquiria “meias” de heroína (ou seja, meio grama de heroína), pelo preço de € 20,00, pelo menos duas vezes por semana;
- DD, que lhe adquiria “meias” de heroína, normalmente duas vezes por semana e durante cerca de um ano;
- EE, FF e GG, que lhe adquiriam heroína ao preço de € 20, pelo menos uma vez por dia e, por vezes, duas vezes ao dia, através de “Mário Pintelhas” ou de outra pessoa da confiança do arguido a quem todos entregavam o dinheiro respectivo e que recebia do arguido, a troco do dinheiro referido, o produto estupefaciente previamente encomendado através dos telemóveis do arguido, com os números 96... e 91....
c) Consequentemente, estava o arguido referenciado como vendedor de estupefacientes pelas autoridades policiais, que assim lhe moveram vigilância, no decurso da qual, em 31/3/2005 e 1/4/2005, na Rua da Chavinha e na Rua de Assões, respectivamente, nesta cidade e comarca, detectaram o arguido, fazendo-se transportar num ciclomotor azul e branco, de marca “Yamaha”, a vender doses de heroína ao consumidor DD.
d) E quando, em 23/11/2005, as autoridades policiais cumpriram os mandados de busca à residência do arguido, que haviam sido ordenados, mau grado não lograssem descobrir, na ocasião, qualquer tipo ou quantidade de substância estupefaciente, conseguiram encontrar na posse do arguido os seguintes objectos e dinheiro, este no total de € 2.825,00, relacionados com o tráfico de tal substância, atentas as respectivas quantidades e características, que apreenderam:
- a quantia de € 375,00, que o arguido guardava na carteira que utilizava, constituída por 11 notas de 20 €, 11 notas de 10 € e 9 notas de 5 €;
- a quantia de € 2.450,00, que o arguido guardava em casa, no seu quarto, em cima do roupeiro, no interior de uma luva de material sintético, constituída por 84 notas de € 20 e 77 notas de € 10;
- dois moinhos de café, um deles da marca Krups 75 e o outro da marca Moulinex;
- um telemóvel Motorola, IMEI ..., cinzento;
- um telemóvel Alcatel, IMEI ..., cinzento;
- um telemóvel Alcatel, IMEI ..., cinzento;
- um telemóvel Siemens, IMEI ., cinzento;
- três porta cartões de telemóvel, com a indicação dos números 91..., 91... e 91...;
- três cartões próprios para telemóvel, dois da Vodafone e um da TMN;
- um ciclomotor “Yamaha”, azul e branco, de matrícula 3-...-33-86 e respectivo livrete.
e) Para além dos objectos atrás descritos, procedeu-se ainda à apreensão de uma luva em material sintético e de uma faca de cozinha.
f) O arguido procedia à venda de heroína a quem o procurasse, bem sabendo que a detenção, o transporte e a venda daquela substância, cujas características estupefacientes bem conhecia, lhe não era permitida.
g) Não obstante, determinou-se, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de obter para si o maior ganho que conseguisse, bem sabendo que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis.
h) O arguido é de modesta condição social, sendo de etnia cigana.
i) O arguido é analfabeto e estimado no seu meio social, sendo considerado pessoa pacífica, ordeira e respeitadora por quem com ele convive.
j) Actualmente não desempenha qualquer actividade profissional remunerada e, sendo casado segundo os costumes da etnia cigana, reside com a mulher nuns anexos de tipologia T3.
k) Beneficia do rendimento social de inserção atribuído ao casal, no valor de € 350,00.
l) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.

“Não provada”:

1) “Que o arguido, para além de heroína, vendia cocaína e haxixe a toxicodependentes e consumidores.
2) Que, com a venda da referida substância, o arguido retirava compensação económica que lhe permitia viver desafogadamente e construir habitação própria.
3) Que, no dia 4 de Agosto de 2005, na Rua de Assões, o arguido vendeu heroína a consumidores conhecidos por H... e R..., o que foi detectado em vigilância policial.
4) Que o arguido exerça a actividade de vendedor ambulante de louças e cestos de verga, auferindo nesta actividade o rendimento mensal de € 400,00. ”

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Novamente inconformado, restringe agora o recorrente a sua censura à denominada postergação do poder-dever de suspensão da execução da pena, procedendo à mera remissão para o teor dos “factos provados” h), i), k) e l) e “não provados” 1 e 2, tal como antecedentemente enunciados, concluindo nos seguintes termos, exactamente:
“I - O Acórdão recorrido violou o artigo 50.º do Código Penal, já que deveria ter suspendido a execução da pena de quatro anos e oito meses em que o arguido foi condenado, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida e a sua conduta anterior e posterior à prática do crime, bem como às circunstâncias deste. Com efeito tal permite concluir que a ameaça de prisão e censura do facto realizaram de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
II – Merece o arguido um verdadeiro juízo de prognose favorável.”

Entende o Ministério Público, no S.T.J., não merecer o acórdão recorrido qualquer reparo, observando, em especial, que “… na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve atender-se a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade(…), contexto em que só em casos ou situações especiais, em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e o sentimento de reprovação social se mostre esbatido, será admissível o uso do instituto da suspensão da execução da pena de prisão”.

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Vejamos, então, como o tribunal de 2.ª instância analisou a subsistente reserva:

“E esta pena deve ser efectiva ou, ao invés, deve ser suspensa na sua execução?
«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» - art. 50º, nº 1, do Código Penal.
Como dissemos, as finalidades da punição são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Então, esta pena de substituição não pode fazer perigar aqueles objectivos.
Mas além disso também é preciso que o tribunal se convença, face ao facto e ao agente, que a simples ameaça da pena é suficiente ao caso. E a este juízo de prognose é essencial a consideração da personalidade do agente, das suas condições de vida, da conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias do crime.

Sabemos que a preferência clara do legislador recai sobre as penas não detentivas.
Por outro lado, também é verdade que a medida de suspensão da execução da pena tem um elevado conteúdo reeducativo e pedagógico, uma vez que permite manter as condições de sociabilidade, como factores de inclusão, e evita os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental, como factores de exclusão (acórdão do S.T.J. de 1-3-2007, processo 07P254).
No entanto, só deve ser decretada quando o tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e de outras circunstâncias disponíveis, que ela é adequada ao caso.
Não são considerações de culpa que devem ser atendidas, mas juízos sobre o modo como o arguido se irá comportar em liberdade, considerando a sua personalidade, as suas condições de vida, o seu comportamento e as demais circunstâncias do caso, tudo determinando que o juízo de prognose do julgador seja favorável à suspensão, por esta se revelar adequada e suficiente.
É certo que o tribunal corre um risco, porque a decisão de suspender não assenta em certezas, mas trata-se de um risco calculado, prudente, porque a perspectiva no momento da decisão é, tem que ser, positiva.
De positivo a considerar em relação ao arguido temos, apenas, a ausência de antecedentes criminais.
Sendo um dado importante, também é manifestamente insuficiente à formulação do juízo de prognose favorável com vista à suspensão da execução da pena.
Aquilo que se espera de qualquer cidadão integrado, respeitador, não o cidadão exemplar mas o cidadão normal, é que não cometa crimes, que reja a sua vida de acordo com as normas sociais e legais vigentes. Assim, sendo certo que a condição de primário é, como dissemos, importante, a verdade é que no caso não assume um relevo decisivo de molde a exigir, ou sequer a permitir, a suspensão da execução da pena aplicada.”
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Cremos que de outra maneira não seria razoável decidir.

É que, aplicando-se uma pena de prisão não superior a 5 anos, há-de o tribunal suspender a execução da pena, como se estatui no art.º 50.º do C.P., versão actual, se “…atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Trata-se, aqui, de um (novo) regime de suspensão da execução da pena que se analisa, agora, em um verdadeiro poder vinculado do julgador Conforme vem o S.T.J. decidindo, “…não são considerações de culpa que, o qual, pois, deverá decretá-la sempre que se encontrem reunidos tais pressupostos interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas” (Acórdão do 10-11-1999 – Proc.823/99, relatado pelo Cons. Armando Leandro). Efectivamente, o que se consagra naquele texto legal é nem mais nem menos do que “…um meio em si mesmo autónomo de reacção jurídica criminal, configurado como pena de substituição, que se baseia em juízo de prognose favorável ao condenado desde que não fiquem prejudicadas as finalidades da punição” ( Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal (Anotado e Comentado), Quid Juris, 2008, 179).
Ora, como se vem ajuizando uniformemente no STJ e segundo o que , para situação idêntica, se consignou no Ac. de 02/10/08, Rec. n.º 589/08 (relatado pelo Cons. Arménio Sottomayor e também subscrito pelo actual relator) , “”…nos crimes de tráfico de estupefacientes, as razões de prevenção geral só excepcionalmente se satisfazem com uma pena de substituição. Os efeitos nocivos para a saúde resultantes do tráfico, especialmente quando (como no caso) se trata de drogas duras, e as situações em que os actos de venda se prolongam no tempo e/ou atingem um elevado número de pessoas despertam “um sentimento de reprovação social do crime”, para usar as palavras do Prof. Beleza dos Santos, que impedem a aplicação da suspensão da execução da pena, sob pena de “…ser posta em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais” (Figueiredo Dias, op. cit, pag. 243). Por isso, razões de prevenção geral afastam a aplicabilidade deste instituto, por mais favorável que pudesse ser o juízo de prognose a formular acerca do arguido””.
Não há, visivelmente, qualquer elemento de facto sério que garanta, sem notado risco de se cair em danoso equívoco, a formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do cinquentenário recorrente. Como apostar, pois, no caso concreto, centrados agora também em matéria de prevenção especial, perante tamanho vazio, numa reinserção social do agente, mantendo-se ele em liberdade? Sem antecedentes criminais conhecidos e estimado por quem com ele convive? É muito pouco…, sendo só isso, todavia, o que lhe poderia aproveitar, se englobado em circunstancialismo favorável bem mais expressivo.
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Pelo exposto, acordando na improcedência da argumentação do recorrente, terá ele de cumprir a aplicada pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses em prisão efectiva.
Pagará custas, com fixação da taxa de justiça em 8 (oito)UC.


Lisboa, 18 de Dezembro de 2008

Soares Ramos (Relator)
Simas Santos