ARRENDAMENTO RURAL
PENHORA
Sumário

I - A penhora só faz sentido – só realiza a sua função – se incidir em bens susceptíveis de serem objecto de subsequente alienação, pelo que a apreensão dos bens para serem vendidos ou adjudicados não pode recair sobre bens ou direitos cuja transmissão está vedada em absoluto ou dependa de condições que não se verifiquem de momento.
II – Assim, não podendo o arrendatário ceder a outrem o seu direito, ocorre uma limitação objectiva ao mesmo que consiste precisamente no facto do direito do arrendatário no contrato de arrendamento rural não poder ser transmitido livremente, pelo que insusceptível é de ser apreendido.

Texto Integral

- ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES-

I. Relatório
Insolventes - António M e Maria A, com domicílio Rua M, Lote 3 Caldas das Taipas 4805-078 Guimarães
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Após declarada a insolvência dos devedores, em 12 de Março de 2014, o Sr. administrador da insolvência apreendeu bens para a massa insolvente, entre eles se contando, sob a Verba n.º 3, o "direito ao contrato de arrendamento rural dos prédios rústicos que compõem a Quinta do Pombal de Baixo e a Quinta do Pombal de Cima".
Em 16 de Maio de 2015, os recorrentes pediram, atentos os fundamentos invocados, que fosse determinada a exclusão da verba n.º 3, dos bens/direitos apreendidos para a massa insolvente.
O tribunal recorrido indeferiu o requerido considerando que:
-"Contrariamente ao sustentado pelos Devedores, o direito ao arrendamento é penhorável, apreensível e liquidável, por se tratar de penhora da posição contratual que o arrendatário possui no contrato de arrendamento (cfr. Ac. ST.J. de 19.05.2015, Ac. S. T.J. de 13-11-2007, Ac. GMR de 19-04-2007, Ac. T.R.L. de 16.1o.200B).
A venda de tal posição contratual gera produto, gera valor, passível de distribuição pelos credores e satisfação dos seus créditos.
O regime jurídico do arrendamento rural não colide com o vindo de expor, pois apenas proíbe a transmissão do direito nos casos de não haver anuência do senhorio.
Por conseguinte, deve manter-se a apreensão do direito ao arrendamento ido sob a verba n.º 3.
[Sem prejuízo, aos critérios previsto no regime jurídico do arrendamento rural contrapõe-se, nos processos de insolvência, norma específica para a denúncia do contrato e, desse modo, extinção da posição contratual de arrendatário – 108.º, do CIRE.
Por conseguinte, cabe ao Sr. AI optar pela hipótese que entenda melhor satisfazer os interesses dos credores: manter o direito ao arrendamento e oportunamente vendê-lo ou cessar, denunciando, o direito ao arrendamento e demais consequências previstas no art. 108.º, do CIRE - opção esta sugerida pelo credor C}."
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II-Objecto do recurso
Não se conformando com essa decisão, os recorrentes vieram interpor o presente recurso, entendendo que a mesma não faz a melhor interpretação e aplicação do disposto no artigo 10.º, do Novo Regime do Arrendamento Rural (NRAR), artigo 108.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE). artigos 773.º e seguintes do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 17.º, do CIRE, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1.º Em face do disposto no n.º 1, do artigo 10.º, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro, segundo o qual é proibida a cedência a terceiros da posição contratual do arrendatário, salvo se existir acordo expresso com o senhorio para o efeito, não pode a posição jurídica de arrendatário rural ser judicialmente apreendida sem que nisso concorde o senhorio;
2.ª Não havendo notícia da concordância do senhorio na apreensão da posição jurídica de arrendatário rural, não pode essa posição ser judicialmente apreendida, designadamente no âmbito de um processo de insolvência e com abrigo no artigo 108.º do CIRE, pois que nele não se estabelece essa possibilidade de apreensão para venda sem concordância do senhorio;
3.ª A decisão recorrida violou ou não fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 10.º, do Novo Regime do Arrendamento Rural, artigo 108.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, e artigos 773.º e seguintes do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 17.º, do CIRE.
Pedem, assim, a final, que seja dado provimento ao recurso, e, em consequência, seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a exclusão da verba n.º 3, dos bens/direitos apreendidos para a massa insolvente.
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III. Fundamentação
Os factos e trâmites processuais relevantes para a decisão das questões colocadas são os resultantes do relatório antecedente, que aqui se dão como reproduzidos.

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Foram colhidos os vistos legais.

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IV-O Direito
Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, nº. 2, ex vi do artº. 663.º, n.º 2, 635.º, nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre decidir se o direito ao arrendamento rural é passível de ser apreendido:
Para o efeito importa, ainda que sumariamente, definir esse direito.
Ora, o novo regime do arrendamento rural, aplicável aos contratos de arrendamento celebrados depois de 11 de Janeiro de 2010 e bem assim aos contratos que se renovem a partir dessa data, define arrendamento rural, no artigo 2.º do Decreto-lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro, como a “locação, total ou parcial, de prédios rústicos para fins agrícolas, florestais, ou outras actividades de produção de bens ou serviços associadas à agricultura, à pecuária ou à floresta”.
À semelhança do que sucedia no regime anterior, também agora o arrendamento rural abrange o terreno, as águas e a vegetação.
No anterior regime, o contrato de arrendamento rural tinha uma duração mínima de dez anos, salvo tratando-se de agricultor autónomo, caso em que a duração mínima era de sete anos. Terminados estes prazos, admitia-se a renovação por períodos sucessivos de cinco anos. No domínio do novo regime, verifica-se a redução da duração mínima do arrendamento agrícola e florestal para sete anos, o qual é igualmente o prazo supletivo aplicável caso as partes não o tenham definido. Também diferentemente do que sucede no regime anterior, a renovação dos contratos de arrendamento rural opera-se por prazo de sete anos, embora não de forma automática, a menos que as partes assim o acordem.
Nos termos do art. 6.º, do citado diploma, os arrendamentos rurais são obrigatoriamente reduzidos a escrito e a renda é anual, sendo previamente estipulada e correspondente a uma prestação pecuniária (cfr, art. 11.º, n.º 1, desse mesmo diploma).
É, assim, um direito de gozo, de proporcionar ao locatário um direito de desfrute sobre a coisa, embora temporário, daí ser transitório, mas também é oneroso e sinalagmático.
Mas, não se pode deixar de ter em consideração de que se trata de um gozo de bens alheios.
Quanto à querela de se saber se é um direito real ou obrigacional, como se decidiu no Ac.STJ, de 27.11.2003, publicado no site da dgsi com o n.º convencional 03B3610, ‘o direito do arrendatário é um direito pessoal de gozo, isto é, um direito obrigacional, por oposição a direito real, não obstante apresentar algumas das características próprias dos direitos desta última categoria, como é o caso, p. ex., da possibilidade de ser defendido pelos meios possessórios (1037º, 2, CC).
A arrumação do contrato de arrendamento dentro do Livro II, (Direito das Obrigações) do Código Civil, e o destaque que, no art.º 1022.º (noção) é dado à obrigação do senhorio de proporcionar o gozo da coisa locada, acentuando o carácter relativo dos direitos envolvidos, são, entre outros, argumentos que têm convencido grande parte da doutrina e toda a jurisprudência da natureza eminentemente pessoal ou obrigacional do direito do arrendatário’.
Assim definido esse direito, importa, então, apurar se é susceptível de apreensão.
Por via da acção executiva visa-se assegurar ao credor a satisfação da prestação não cumprida pelo devedor, em que são penhorados e excutidos os bens do executado que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda.
A acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação que o devedor não cumpriu voluntariamente, seja através do produto da venda executiva de bens ou direitos patrimoniais daquele devedor ou da realização, por terceiro devedor, em favor da execução, da prestação (artºs 10.º, nº 3, do CPC e 817.º do Código Civil).
Com esse objectivo e dado que o património do executado constitui a garantia geral das suas obrigações, procede-se à apreensão de bens ou direitos patrimoniais do executado ou à colocação à ordem da execução dos créditos daquele sobre terceiros, de modo a que se proceda, ulteriormente, à venda executiva daqueles bens e direitos patrimoniais ou à realização, a favor da execução, das prestações de que são devedores aqueles terceiros (artºs 601 do Código Civil e 821 nº 1 do CPC).
Distingue-se a execução singular do processo de insolvência com base no facto desta ser uma execução colectiva ou universal (art.º 1 do CIRE), tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (art.ºs 1.º, 47.º, n.ºs 1 a 3, 128.º, n.ºs 1 e 3 e 149.º, nºs 1 e 2 do CIRE, aprovado pelo DL nº 53/04, de 18 de Março), aí se estipulando, no seu art.º 17.º, que o processo de insolvência se rege pelo código de processo civil em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE.
Em sede executiva, o devedor não cumpriu e o credor vai-se satisfazer através do seu património, tout court, enquanto que na insolvência o devedor não cumpriu e o credor tem elementos que lhe permitem fazer crer que a situação patrimonial daquele não lhe permite satisfazer a generalidade das suas obrigações, impondo-se então a adopção de outro tipo de medidas mais drásticas, vg, a declaração de insolvência.
Esteja em causa a garantia comum dos credores, a garantia pessoal de um terceiro ou especial constituída sobre bens determinados, a satisfação forçada do credor de obrigação pecuniária é conseguida pela realização do valor do bem apreendido, mediante um acto de alienação para terceiro ou para o próprio credor e, conforme o caso, a subsequente atribuição a este do produto da venda ou a compensação do seu crédito com a dívida do preço da aquisição própria.
Assim, a penhora só faz sentido – só realiza a sua função – se incidir em bens susceptíveis de serem objecto de subsequente alienação.
A apreensão dos bens para serem vendidos ou adjudicados não pode recair sobre bens ou direitos cuja transmissão está vedada em absoluto ou dependa de condições que não se verifiquem de momento – neste sentido A. dos Reis, Processo de execução, I, pg. 345-346.
Assente que a primeira condição para a penhorabilidade dum bem do património do devedor é a alienabilidade do direito que sobre ele incide há que começar por verificar perante as normas do direito substantivo, em que medida é disponível o direito que o devedor sobre ele tem.
De acordo com o princípio geral da autonomia da vontade, a regra é que os bens do domínio privado são livremente alienáveis, pelo que há apenas que verificar se se verifica alguma excepção a essa regra.
As excepções possíveis são:
- as que geram – ou podem gerar – a indisponibilidade objectiva do direito, por sua própria natureza, imposição de lei ou limitação administrativa;
- as que geram – ou podem gerar – a sua indisponibilidade subjectiva, por via da eliminação ou restrição dos poderes de disposição do sujeito sobre bens próprios.
Estas traduzem-se, por ex., na atribuição do poder de disposição a não titulares do direito ou em simples limitação ao poder de disposição do titular do direito que para dispor terá de obter uma autorização ou consentimento alheio.
Assim, nem tudo o que gera valor é susceptível de apreensão judicial como resulta do disposto nos artigos 736.º a 739.º, do Código de Processo Civil, em que se estabelecem impenhorabilidades absolutas, relativas e parciais.
Ora, relativamente ao contrato em causa e direito constituído a favor do arrendatário, há que ter em conta o disposto no artigo 10.º, do NRAR, que estabelece que é proibida a cedência a terceiros da posição contratual do arrendatário, salvo se existir acordo expresso com o senhorio para o efeito.
Já o art. 108.º, do CIRE, respeitante à locação em que o locatário é o insolvente, estabelece o destino que terá a locação em que o insolvente é o locatário, começando por dizer que a declaração da insolvência não o suspende, estabelecendo um conjunto de regras sobre a sua denúncia, obrigação do pagamento das rendas, e nenhuma sobre a possibilidade de o administrador ceder a posição de locatário.
Como tal, nesse preceito apenas se consagrando a possibilidade de se manter ou não a posição do locatário insolvente, não se pode daí inferir sobre a sua transmissibilidade ou penhorabilidade.
Assim, tendo em conta as características do direito em causa, concretamente que o arrendatário não pode ceder a outrem o seu direito (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1980, II, pg. 355-356), ocorre uma limitação objectiva ao mesmo e que consiste precisamente no facto do direito do arrendatário no contrato de arrendamento rural não poder ser transmitido (salvo se existir acordo expresso com o senhorio para o efeito).
Acresce, por outro lado, que não se pode esquecer, como se começou por referir, que se trata de um direito de gozo temporário, transitório, de bens alheios e que, como tal, termina decorrido o seu termo, a não ser que se renove se e quando assim previsto e acordado, o que obsta à sua transferência para esfera alheia, por não depender da vontade do locatário e, assim, do administrador de insolvência.
Ora, tendo em conta que a apreensão só faz sentido, por só assim realizar a sua função, se incidir em bens susceptíveis de ser objecto de subsequente alienação, não podendo o direito ao arrendamento rural ser alienado, por depender de condições que no momento da sua apreensão não se verificam, nenhum sentido faz a sua manutenção.
Entendemos que o que é penhorável é o rendimento ou qualquer outro valor pecuniário, de crédito, obtido com a actividade de produção de bens ou serviços com o exercício desse direito, e, susceptível de criar valor, o activo que o administrador venha a obter com a manutenção da exploração dos prédios rústicos objecto do contrato de arrendamento rural, não o direito ao arrendamento.
Consequentemente, deve ser excluída a verba n.º 3, do auto de apreensão, por impenhorável.

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V – DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando, em consequência, o despacho recorrido e determinando a exclusão da verba n.º 3, dos bens/direitos apreendidos para a massa insolvente.
Custas pela massa insolvente.
Notifique.
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TRG, 15.12.2016
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)
Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida