CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRAS DE CONSERVAÇÃO
SENHORIO
RENDA
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I- Constitui manifesto abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) o pedido de condenação do senhorio, que aufere em 2003 uma renda mensal de 39,99€, a realizar obras cujo montante se cifra em 54.342,42€ em prazo a fixar e sujeitando-se ainda a uma sanção pecuniária compulsória de 100€/dia de atraso.
II- A circunstância de o senhorio não ter realizado as obras a que foi intimado pela câmara municipal e de não ter realizado obras de conservação no passado, tal circunstância só por si não é obstativa do reconhecimento do abuso do direito, a não ser que se demonstre que o valor das rendas e o custos das obras confrontados entre si não eram ao tempo desproporcionados; nesse caso, deve efectivamente considerar-se a omissão do senhorio ilícita e, portanto, ininvocável o abuso do direito conquanto resultem os custos actuais elevados da degradação causada pela falta de obras de conservação.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA, BB e CC intentaram acção declarativa com processo ordinário contra DD e EE (acção que veio a prosseguir apenas contra a primeira) pedindo a condenação dos RR a realizarem no locado e no prazo que o tribunal entender por conveniente todas as obras constantes do auto de vistoria realizado pela Câmara Municipal do Montijo em 10-7-2001 descritas no artigo 13.º da petição; e ainda sua condenação no pagamento aos AA de todos os prejuízos que lhes advenha desta situação de mora dos senhorios na realização das obras a liquidar em execução de sentença em virtude de não ser previsível o tempo que durará a presente acção; serem condenados a pagar uma sanção pecuniária compulsória no montante de 100 euros por cada dia de atraso na realização das obras determinadas ou em alternativa serem condenados a pagar aos AA a quantia de 54.333,42 euros acrescida de juros de mora à taxa de 7% desde a citação até integral pagamento.

2. Alegaram os AA que são arrendatários de estabelecimento comercial destinado a tipografia desde 1-12-1976 sendo a renda inicial de 3.000$00 ( 14,96€) e a actual (à data de 6-2-2003) de 8.017$00 (39,99€).

3. A câmara municipal do Montijo em 1991 efectuou uma vistoria ao local e, na sequência da vistoria, deliberou determinar a execução de obras no prazo de 30 dias a contar da notificação.

4. Na sequência de nova vistoria realizada no ano de 2001 os senhorios foram notificados para realizarem obras no prazo de 60 dias.

5. Por sua vez foi comunicado aos senhorios por carta de 29-5-2001 que, na sequência de fiscalização técnica à tipografia, foi ordenada a realização de obras no locado sob pena de encerramento de actividade.

6. O custo máximo das obras constantes do auto de vistoria de 10-7-2001 foi fixado em 54.332,42€ acrescido de IVA, conforme deliberação de 19-6-1992 homologada, o que foi comunicado à arrendatária.

7. Face à não realização pelos senhorios de quaisquer obras de conservação de 8 em 8 anos e à interpelação que lhes foi feita, atentos os prejuízos que da situação decorrem para os AA arrendatários, concluem os AA que se justifica a condenação da Ré nos termos pedidos.

8. Alegou a ré que a consequência da não realização de obras pelo senhorio é a da sua realização pela câmara municipal, podendo o arrendatário, nos termos do artigo 16.º do R.A.U, executar ele próprio as obras que serão reembolsadas por dedução de 70% do valor da renda.

9. Procedeu-se a julgamento e a ré foi absolvida do pedido, considerando o tribunal que as obras em causa devem ser qualificadas legalmente como obras de conservação extraordinária que estão a cargo do senhorio por ter sido notificado pela câmara municipal para as realizar, traduzindo-se as obras em causa numa verdadeira reconstrução parcial do imóvel, constituindo abuso do direito exigir-se obras no valor de 54.332,42€ quando o rendimento líquido anual do prédio é de 478,98€.

10. O Tribunal da Relação, ponderando que desde a celebração do contrato de arrendamento não foram realizadas quaisquer obras, apesar das insistências da inquilina e das notificações camarárias, considerou evidente que, não fora essa atitude do senhorio, as obras não teriam hoje o custo que foi orçamentado.

11. Por isso, deixando o senhorio, intencional ou negligentemente, degradar o local arrendado, não pode considerar-se abusivo e contrário à boa fé exigir-lhe a realização de obras cujo custo exceda largamente , no ano da sua realização, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano.

12. Foi, assim , revogada a decisão recorrida a proferida condenação da ré nos seguintes termos:

- Realização, no prazo de 60 dias, das obras constantes do auto de vistoria realizado pela Câmara Municipal do Montijo em 10-7-2001.

- Pagamento pela ré aos AA dos prejuízos que advenham da mora na realização das obras, a liquidar posteriormente.

- Condenação da ré no montante de 25€ por cada dia de atraso na realização das obras determinadas, a título de sanção pecuniária compulsória.

13. Nas suas alegações de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, os recorrentes, porque nem a câmara nem o inquilino usaram da faculdade de procederem eles próprios às obras, sustentam que respondem pela dívida apenas as rendas nos termos do artigo 17.º/3 do R.A.U.

14. Se os RR procedessem a obras, prosseguem os recorrentes, à luz do R.A.U., considerado que o aumento de renda poderia ir até 402,20€/mês, ainda assim demorariam 135 meses a recuperar sem juros o investimento feito no locado; de acordo com o N.R.A.U., para o valor patrimonial de 35.700 euros, a renda mensal a obter cifra-se em 119,00 €, o que equivale a 456 meses para recuperação do investimento.

15. Por isso, é claramente ofensivo da boa fé, conforme jurisprudência indicadas, impor aos senhorios a realização de obras de tão elevado e desproporcionado montante face à renda mensal suportada pelos inquilinos.

16. Exigir obras no montante de 50.000 euros para beneficiar um prédio cuja renda é de 39,99€ mensais está para além de todos os limites do sacrifício.

Factos provados:

1- Por escritura de trespasse e arrendamento lavrada em 21 de Dezembro de 1976 no cartório notarial do Montijo, exarada a fls. 88-v.º a fls. 90-v.º do Livro B-74, FF e mulher GG trespassaram a HH, BB, CC, AA, II e JJ o estabelecimento de oficina de tipografia instalado no R/C com o n.º ... para a Av. ... e com os nºs ... e ... da freguesia do mesmo nome no Montijo, inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia e concelho do Montijo sob o artigo 2345 e no R/C destinado a armazém com saída para o Beco particular da Travessa ... no Montijo o qual por sua vez está inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia do Montijo sob o artigo 1076º (A).

2- Na mencionada escritura o então proprietário do prédio, LL, arrendou aos então trespassários os locais onde está instalada a oficina trespassada, pelo prazo de um ano, com início em 1-12-1976 (B).

3- Pela renda de 3.000$00 que actualmente é de 8.017$00 (39,99€) paga adiantadamente no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que a renda disser respeito em casa do senhorio ou de quem o representar no Montijo (C).

4- Os locais arrendados destinam-se a oficina de tipografia (D).

5- É senhoria do locado a ora ré DD (E).

6- E no mesmo labora a tipografia G... (F).

7- Apesar de à data da celebração do contrato se encontrar o locado em bom estado de conservação, o então senhorio e os ora RR não procederam de 8 em 8 anos a obras de conservação no prédio, aliás, desde a celebração do contrato de arrendamento que jamais foram efectuadas, pelo senhorio, no locado objecto dos presentes autos, quaisquer obras de conservação (G).

8- Com efeito, já em 1991, a câmara municipal do Montijo efectuou uma vistoria ao edifício onde está o locado e verificou que “ o edifício necessitava das seguintes reparações: reparação geral da cobertura com substituição do madeiramento e telhas que se encontravam deterioradas, tendo determinado que não estavam assegurados os requisitos mínimos de segurança e salubridade nos termos do artigo 10.º do R.G.E.U.(doc. de fls. 16 dos autos) (H).

9- A Câmara notificou os senhorios para efectuarem as ditas obras constantes do auto de vistoria mas os mesmos nada fizeram (I)

10- Em 2001 foi requerida uma nova vistoria à câmara municipal do Montijo e na mesma foi concluído que o prédio onde se situa o locado necessita das seguintes reparações:

- Apeamento de parte da varanda do 1º andar de elementos construtivos em risco de ruir e reconstrução dos mesmos incluindo pintura

- Reparação geral da cobertura do edifício e anexo, com substituição de madeiramento e telhas que se encontram deterioradas, incluindo isolamento de guarda fogos e caleiras de algeroz

- Reparação geral de tectos do R/C do edifício e anexo com substituição do barrotamento deteriorado e ferro, incluindo pintura

- Reparação geral dos pavimentos do R/C do edifício e anexo com substituição do material deteriorado

- Reparação geral da instalação eléctrica do R/C do edifício e anexo

- Reparação geral das paredes interiores do R/C do edifício e anexo, incluindo pintura

- Reparação geral das paredes exteriores do edifício e anexo com refrechamento de fissuras, reposição de rebocos e pintura

- Reparação geral de carpintarias do R/C do edifício e anexo, de janelas e portas exteriores, com substituição de peças deterioradas, incluindo aros, ferragens, vidros e pintura (doc. de fls. 176 dos autos) (J)

11- Dado o descrito supra, a Câmara concluiu que não estavam assegurados os requisitos mínimos de salubridade, solidez ou segurança contra o risco de incêndio ao abrigo do disposto no artigo 10.º do R.G.E.U. (L).

12- Os senhorios foram novamente notificados para realizarem obras no prazo de 60 dias (M).

13- A tipografia em Janeiro de 2001 foi também alvo duma fiscalização técnica realizada pela Direcção Regional de Lisboa e Vale do Tejo do Ministério da Economia às instalações - locado - e na sequência da mesma foi-lhe ordenado a realização de obras no locado, no prazo de 180 dias, sob pena de encerramento da actividade (doc. de fls. 18 dos autos).

14- Tal facto foi comunicado aos senhorios dos AA por carta registada com aviso de recepção de 29-5-2001 (cf. doc. de fls. 19 dos autos).

15- Na referida carta foi solicitada a realização de obras constantes dos pontos 1, 2 e 3 da carta da Direcção Regional no prazo de 60 dias (P).

16- Apesar das duas notificações para a realização de obras que a Câmara efectuou aos senhorios, bem como a carta mencionada em O, jamais foram efectuadas no locado objecto dos presentes autos quaisquer obras (Q).

17- A câmara municipal do Montijo homologou em 19-6-2002 o custo máximo das obras constantes do auto de vistoria que realizou em 10-7-2001 que fixou em 54.332,42 euros (doc. de fls. 22 dos autos) (R).

18- Nos últimos anos o estado de degradação do locado agravou-se, nomeadamente porque o primeiro andar que está por cima está devoluto há muitos anos e em completo estado de abandono (1).

19- Na situação actual é muito difícil no locado exercer qualquer actividade profissional dada a gravidade do estado de degradação do imóvel (2).

20- Em virtude da não realização de obras , os AA têm vindo a ter avarias em várias máquinas causadas pela entrada de água proveniente da chuva que se infiltra no locado (4).

21- Os AA estão na contingência de lhes ser encerrada a oficina pela Direcção Regional do Ministério da Economia em virtude de não terem sido realizadas as obras (6).

Apreciando:

17. A questão em causa nestes autos consiste em saber se incorre em abuso do direito o inquilino que, pagando uma renda mensal de 39,99€ em 2003 ( a acção foi instaurada no dia 6-2-2003), exige a condenação dos senhorios a realizar obras, que estes nunca realizaram desde o arrendamento iniciado em 1976, no montante máximo que foi fixado em 54.322,42€ ao qual acresce IVA à taxa legal em vigor ( ver doc. de fls. 13 e 22, factos supra 10 e 17 e orçamento de fls. 161/163).

18. Os autos evidenciam esta realidade: o arrendamento iniciou-se em 1-12-1976 pela renda de 3.0000$00 (14,96€); em 1991, na sequência de vistoria, verificou-se que o edifício carecia de reparação geral da cobertura com substituição de madeiramento e telhas que se encontram deterioradas e notificou-se o senhorio para proceder a tais obras em 30 dias ( ver 8 e 9); em 2001 a vistoria realizada ao abrigo do artigo 10.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de Agosto de 1951) considerou que o imóvel carecia das reparações indicadas em 10 supra; o senhorio foi notificado com a advertência de que , em caso de inobservância, a câmara municipal poderia ocupar o prédio para o efeito de mandar proceder à execução imediata das obras (artigo 166.º do R.G.E.U.).

19. De outros factos os autos dão notícia, por via da junção do processo camarário NH-13-2001, a saber que a Câmara Municipal do Montijo, na sequência de auto de vistoria de 10-7-2001 homologado em 12-9-2001 (ver doc. de fls. 188), “ dada a perigosidade da situação, com risco de desmoronamento de elementos construtivos para a via pública” tomou posse administrativa do imóvel no dia 15-9-2003 e realizou obras no montante de 3.173,55€, suportando o senhorio, porque a renda era de 33,59€, 70% desse valor em conformidade com o disposto no artigo 15.º/3 do R.A.U. O pagamento da dívida estará concluído em 179 meses em conformidade com o plano de amortização junto aos autos de fls. 121/124.

20. Pretendia o inquilino que as obras a realizar pela entidade camarária fossem todas as que constam do aludido auto de vistoria de 10-7-2001 ( ver carta de 17-9-2003 junta a fls. 140), pois as obras que a Câmara Municipal executou (reparação da varanda com apeamento e reconstrução de elementos e reparação da parede exterior da Av. ... e varanda do alçado lateral direito, na travessa ...: ver pág. 143 dos autos) visaram apenas reparar os elementos em risco de ruir para a via pública ( ver informação nº 462/03 junta a fls. 138 dos autos), constando do processo camarário o despacho de 20-10-2003 onde se declara que a autarquia não tem, nesta fase, condições para executar quaisquer outras obras.

21. Em processo camarário anterior (S/N 89 junto a fls. 202 e seguintes) verifica-se que o auto de vistoria levado a efeito em 12-3-1990 (fls. 256) foi homologado em 26-11-1990; em reunião de 27-11-1996 foi deliberado homologar a actualização do custo máximo das obras no montante de 3.439.000$00, sem inclusão de IVA ( ver fls. 216); anteriormente em reunião de 27-11-1991 tinha sido deliberado homologar o custo máximo das obras constantes do mandado de notificação de 18-5-1990 no quantitativo de 2.510.000$00 (ver fls. 233).

22. Todos estes elementos, que estão provados por documento (processos camarários), devem considerar-se provados, adquiridos nos autos e integrando a matéria de facto (artigos 515.º e 659.º/3 do C.P.C.).

23. E na parte em que deles resultem factos supervenientes, designadamente o facto de a Câmara Municipal ter procedido, já depois de proposta a presente acção, a obras no montante de 3.173,55€, suportando o senhorio, porque a renda era de 33,59€, 70% desse valor em conformidade com o disposto no artigo 15.º/3 do R.A.U., pagamento a realizar escalonadamente ao longo de 179 meses, o Tribunal não pode deixar de atender aos referidos factos, atento o disposto no artigo 663.º do C.P.C.

24. Do exposto resulta, em síntese, que o local arrendado foi objecto de duas vistorias, uma em 1990 e a outra em 2001 na sequência das quais foi o senhorio notificado para realizar obras cujo montante máximo foi fixado nas seguintes quantias:

Vistoria de 1990:

a) 12.519,83€/2.510.000$00 (s/IVA), valor fixado em 27-11-1991

b) 17.153,66€/3.439.000$00 (s/IVA), valor fixado em 27-11-1996

Vistoria de 2001

a) 54.332,42€/ 10.892.672$00 (s/IVA), valor fixado em 19-6-2002

b) 3.173,55€/636.240$00, valor de obras executadas pela Câmara, parte das comprovadas nesta vistoria de 2001.

25. O regime legal que nos importa aqui é o que resulta do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, pois está em causa a realização de obras ordenadas pela câmara municipal em 2001 com o valor de 54.332,42€ que foi determinado na base de pedido do inquilino dirigida nos termos do artigo 16.º do R.A.U. , preceito este que faculta ao arrendatário, quando a câmara municipal não inicie as obras de conservação ou de beneficiação que o senhorio deixou de realizar, realizar ele próprio as obras , devendo obter previamente , junto da câmara municipal, um orçamento do respectivo custo, a comunicar ao senhorio por escrito, e que representa o valor máximo por que este é responsável.

26. Se o arrendatário executar as obras, o que no caso vertente não sucedeu, e enquanto não estiver integralmente reembolsado das despesas efectuadas e respectivos juros, acrescidos de 10% destinadas a despesas da administração, apenas é obrigado a pagar ao senhorio 30% da renda vigente à data da notificação municipal ao senhorio pela execução das referidas obras.

27. O regime legal que consta dos artigos 12.º e seguintes do R.A.U., posto que considere o senhorio obrigado à realização de obras de conservação extraordinária e de beneficiação, admite que a câmara municipal se lhe substitua, executando as obras em vez dele, responsabilizando-o pelo valor das obras orçamentadas cujo custo previamente é comunicado ao senhorio.

28. Compreende-se este regime visto que em muitos casos a não realização de obras com a consequente degradação do imóvel podem levá-lo à ruína e assim, para além do interesse particular envolvido, há igualmente um interesse, de ordem pública, que é o de se evitar que prédios degradados possam ruir causando dano às pessoas e coisas.

29. No caso vertente, a câmara municipal do Montijo entendeu, relativamente a parte das obras tidas por necessárias, realizá-las em execução administrativa sendo o seu valor um valor relativamente elevado - 3.173,55€/636.240$00 - que o senhorio tem de pagar à Câmara.

30. No entanto, a lei, reconhecendo que seria iníquo impor o pagamento nestas circunstâncias da totalidade da quantia pelas forças do património do senhorio à cabeça do qual avultaria como bem penhorável o imóvel beneficiado, prescreveu que o pagamento das obras executadas pela câmara municipal deve ser feito através do recebimento de rendas até ao limite de 70% e de igual modo, se for o arrendatário a executar as obras, não pode ressarcir-se para além dos 70% de renda paga.

31. É que a não realização de obras resulta quase sempre da circunstância os senhorios estarem impedidos por lei de estipular livremente a renda com a faculdade de livre denúncia do contrato no termo do respectivo prazo se não houver acordo e, por isso, não seria justo que os senhorios tivessem de suportar um elevado valor de obras sem simultaneamente se lhes permitir rentabilizar o seu património.

32. Ora se este é o regime que a lei prescreve, quando, em caso de incumprimento do senhorio da obrigação de efectuar as obras para que foi notificado, a câmara municipal ou o inquilino se lhe substituam, admitir-se que o inquilino possa judicialmente impor, com sanção pecuniária compulsória, a efectivação de obras nesse montante sem limitações, isso significa que se introduzia uma distinção consoante as obras resultassem ou não de imposição administrativa.

33. Por isso, impondo-se aos senhorios a realização de obras, como pretendem os AA, sem qualquer restrição, então conseguiriam os inquilinos pela via judicial o que não podiam alcançar pela via estabelecida no R.A.U.,verificando-se que, no caso vertente, não foi do seu interesse realizarem as obras que a câmara municipal não quis realizar.

34. Seria uma quase inutilidade recorrer à intervenção administrativa quando mais facilmente se alcançaria o objectivo pretendido por não se imporem restrições ao reembolso no caso de incumprimento e beneficiando-se ainda da sanção pecuniária compulsória.

35. A decisão do círculo judicial do Barreiro qualificou as obras como obras de conservação extraordinária ponderando que, ultrapassando no ano em que se tornem necessárias , dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano, não sendo imputadas a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio pois “nada se provou sobre a existência de um nexo de causalidade entre a não realização das obras ao longo do tempo e o avultado valor que as mesmas agora demandam”.

36. O Tribunal da Relação, depois de descrever as obras que as vistorias de 1990 e 2001 tinham por necessárias, considerou que tais obras são de conservação ordinária.

37. Estará porventura subjacente a este entendimento a ideia de que a necessidade de realização de obras tão vultuosas se deveu a “ acção ou omissão ilícita perpetrada pelo senhorio” (artigo 11.º/3 do R.A.U.) visto que, de acordo com este preceito, “ são obras de conservação extraordinária […] em geral, as que não sendo imputadas a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio, ultrapassem, no ano em que se tornem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano”.

38. No caso, a omissão ilícita teria resultado quer da omissão de realização das obras ordenadas na sequência das vistorias de 1990 e de 2001 ( ver 9 e 12) quer da realização de oito em oito anos de obras de conservação ( ver artigo 9.º do R.G.E.U.).

39. Ora, existindo uma omissão ilícita, o inquilino não se poderia aproveitar do regime legal atinente às obras de conservação extraordinária ou de beneficiação, o que relevaria para efeito de não actualização de rendas, mas não relevando a distinção entre estas obras e as obras de conservação ordinária, em sede de execução administrativa (artigo 15.º do R.A.U.); de facto, não se vê que a lei distinga as obras de conservação ordinária das obras de conservação extraordinária, estendendo-se a providência “ quer às obras de conservação, quer às chamadas obras de beneficiação e, naturalmente, sem discriminação entre a conservação ordinária e a conservação extraordinária, como aliás já se depreendia das disposições anteriores pelos termos em que definem as diversas categorias de obras” (Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol II, 4ª edição, pág. 517).

40. Assim sendo, e pensando já em sede de abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), a omissão ilícita do senhorio relevaria em dois planos: por um lado, qualificando de obras de conservação ordinária aquelas que, não fora a omissão, por ultrapassarem dois terços do rendimento líquido do ano em que se tornam necessárias, seriam qualificáveis de obras de conservação extraordinária; por outro, impedindo a invocação bem sucedida do abuso do direito por se entender que o senhorio se está a aproveitar de uma situação que ele mesmo desencadeou, permanecendo inactivo, omitindo a realização de obras de conservação que deveria ter realizado no período de 8 anos e muito em particular na sequência de notificação camarária.

41. A entender-se que o senhorio, omitindo a realização de obras de conservação, não pode fundadamente invocar o abuso do direito com base na desproporção entre o custo das obras e a renda auferida, fácil é constatar que esta consideração culposa, considerada a partir de um incumprimento objectivamente constatado, levaria a que os senhorios que não realizaram obras de conservação não pudessem prevalecer-se do abuso do direito pois sempre lhes seria atribuível a responsabilidade pelo estado de maior degradação do imóvel e, por conseguinte, do custo mais avultado das obras.

42. E, no entanto, o que comummente se verifica é que, quase sempre, as obras de conservação não são realizadas pela pura e simples razão de que o seu custo é desproporcionado face ao rendimento auferido, não observando o senhorio as disposições que lhe impõem obras regulares de conservação porque o seu cumprimento está para além do limite exigível de sacrifício, consideração que vale para os arrendamentos vinculísticos, ou seja, aqueles em que o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do arrendamento, estando, portanto, inviabilizada negociação para aumento de renda ou para estipulação que tenha em conta e procure resolver com equidade certas situações particulares como, por exemplo, a necessidade de obras vultuosas.

43. Por isso, afigura-se-nos que da mera constatação da inobservância por parte do senhorio em realizar obras de conservação, ordinária ou extraordinária, não resulta a imperativa ininvocabilidade do abuso do direito salvo se for demonstrado que o senhorio podia realizar as obras e não as quis realizar, demonstração fácil de fazer a partir do confronto dos montantes de renda auferidos com o custo das obras.

44. Em muitos casos, a prova não passará da constatação do elevado custo actual da obra contraposto ao valor reduzido da renda.

45. Suscitar-se-á por vezes a questão de saber, precisamente porque houve omissão de obras de conservação no passado, se o custo actual elevado das obras resultou dessa omissão, pressupondo-se que, se tivessem sido realizadas no período que a lei prevê, já não ocorreria tamanha desproporção.

46. O abuso do direito, posto que oficiosamente cognoscível, constitui matéria de excepção e há-de resultar de factos que permitam declará-lo, importando ao interessado no seu reconhecimento o ónus da prova (artigo 342.º/2 do Código Civil).

47. Atente-se, porém, que o abuso do direito, constatada a desproporção actual entre renda e custo de obras, deve em princípio ser reconhecido a não ser que seja atribuível à omissão do senhorio o actual agravamento de custos que seriam bem menores no passado e comportáveis com o valor da renda, não se justificando, por isso, que o senhorio oportunamente se tivesse subtraído a realizar as obras de conservação. Não se afigura, porém, que se deva presumir uma tal omissão, importando, por isso, em sede de contra- -excepção, alegar os factos pertinentes. Por outras palavras: o senhorio que não realizou obras que podia e devia ter realizado não pode prevalecer-se do elevado custo actual das obras ditadas por um agravamento do estado do prédio que é da sua responsabilidade; nada se alegando ou provando a este respeito, não se vê que o senhorio não possa invocar fundadamente o abuso do direito se lhe forem exigidas obras a custos actuais desproporcionadas à renda auferida, sacrifício que está para além do que é razoável, encontrando-se o senhorio manietado por um arrendamento vinculístico.

48. No caso em apreço, atentos os documentos juntos, verifica-se que logo em 1991 o custo da obra era de 12.519,83€, valor já ao tempo manifestamente desproporcionado pois a renda paga não excedia 33€.

49. Já então a exigência de obras com o referido custo seria manifestamente abusiva (artigo 334.º do Código Civil).

50. O aumento do custo dessa mesma obra de 1991 (12.519,83€) para 1996 (17.153,66€) reflecte o aumento do custo dos serviços no ramo da construção civil e não teve qualquer correspondência no aumento de renda.

51. As próprias obras realizadas pela câmara, de natureza urgente, ultrapassam em muito os 2/3 do rendimento líquido auferido pelo senhorio nesse mesmo ano.

52. O locador, preso a uma renda irrisória, não podia suportar com aqueles rendimentos as obras de conservação ordinária e muito menos as obras de conservação extraordinária.

53. Poderia ainda argumentar-se com o facto de não se compreender, considerada a renda fixada em 1976 de 3.000$00, tão gritante diferença. Dir-se-ia que a renda foi ab initio fixada num valor baixo e, a ser assim, seria então da responsabilidade do locador não auferir rendimentos passados poucos anos suficientes para o pagamento das obras de conservação.

54. Importa não esquecer que de 1976 a 1991 o país atravessou o período de maior inflação dos últimos 50 anos.

55. Repare-se que, caso a renda fosse actualizada apenas com base na taxa de inflação, o que não significa que deixasse de se manter desproporcionada face ao aumento muitíssimo maior do custo das obras pois este agravou-se a uma taxa superior, a renda devia ser em 1991 no montante de 36.609$00/182,60€, o que representaria um rendimento ilíquido anual de 439.308$00/2191,26€, muito longe ainda dos 2.510.000$00/12.519,83€ necessários para a reparação pretendida.

56. Em 2003, quando a presente acção foi proposta, o senhorio auferia uma renda de 39,99€, muitíssimo inferior àquela que deveria receber em 1991 se tivesse sido actualizada com base na taxa de inflação.

57. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a reconhecer o abuso do direito em situações similares à presente: vejam-se o Ac. do S.T.J. de 24-5-2007 (Fonseca Ramos), rec. n.º 1060/07, Ac. do S.T.J. de 31-1-2007 (João Camilo). rev. n.º 4404/06, Ac. do S. T.J. de 14-11-2006 (Fernandes Magalhães), rev. n.º 3579/06, Ac. do S.T.J. de 8-6-2006 (Oliveira Barros), rev. n.º 1103/06, Ac. do S.T.J. de 16-12-2004 (Oliveira Barros), rev. n.º 3903/04,Ac. do S.T.J. de 28-11-2002 (Eduardo Baptista), rev. n.º 3436/02 todos em www.dgsi.pt

Concluindo:

I- Constitui manifesto abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) o pedido de condenação do senhorio, que aufere em 2003 uma renda mensal de 39,99€, a realizar obras cujo montante se cifra em 54.342,42€ em prazo a fixar e sujeitando-se ainda a uma sanção pecuniária compulsória de 100€/dia de atraso.
II- A circunstância de o senhorio não ter realizado as obras a que foi intimado pela câmara municipal e de não ter realizado obras de conservação no passado, tal circunstância só por si não é obstativa do reconhecimento do abuso do direito, a não ser que se demonstre que o valor das rendas e o custos das obras confrontados entre si não eram ao tempo desproporcionados; nesse caso, deve efectivamente considerar-se a omissão do senhorio ilícita e, portanto, ininvocável o abuso do direito conquanto resultem os custos actuais elevados da degradação causada pela falta de obras de conservação.

Decisão: concede-se provimento ao recurso e, consequentemente, subsiste a decisão que absolveu a ré do pedido.

Custas pelos AA

Lisboa, 20 de Janeiro de 2009

Salazar Casanova (Relator)

Azevedo Ramos

Silva Salazar