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OMISSÃO DE PRONÚNCIA
OBJECTO DO PROCESSO
NULIDADE DE SENTENÇA
ABUSO DE CONFIANÇA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ABSOLVIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
INTERDIÇÃO
TUTELA
CERTIFICADOS DE AFORRO
ILICITUDE
INTERESSES LEGALMENTE TUTELADOS
INTERESSES REFLEXOS
Sumário
I - A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. II - As matérias que são submetidas ao tribunal constituem o thema decidendum, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se, e devem constituir questões específicas que o tribunal deve, como tal, abordar e resolver, e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respectivas posições (cf., v.g., os Acs. do STJ de 30-11-2005, Proc. n.º 2237/05, de 21-12-2005, Proc. n.º 4642/02, e de 27-04-2006, Proc. n.º 1287/06). III - A “pronúncia” cuja “omissão” determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou às razões alegadas. IV - Tendo em conta que a questão proposta ao tribunal em sede de recurso era a da existência, ou não, dos elementos constitutivos do tipo legal de crime de abuso de confiança e, em função de tal comprovação, a condenação indemnizatória em sede de responsabilidade civil extracontratual, e que o tribunal recorrido se pronunciou expressamente sobre essa matéria, afirmando que, inexistindo vícios a minarem a decisão recorrida, era a mesma confirmada com a sequente absolvição em relação ao pedido cível formulado, não existiu qualquer omissão de pronúncia. V - Tendo resultado provado que «a arguida, ao levantar as importâncias relativas aos certificados de aforro, nos quais beneficiava da cláusula de movimentação, procedeu de acordo com as indicações do Padre António que lhe disse várias vezes – em datas não apuradas mas anteriores a 16 de Outubro de 1997 – que se lhe acontecesse alguma coisa, a arguida deveria levantar o dinheiro correspondente aos certificados de aforro, pois era seu, considerando tal como uma forma de pagamento pelos anos de trabalho» e que «durante os 28 anos em que desempenhou a sua actividade profissional a arguida nunca recebeu qualquer salário do Padre António», a pretensão indemnizatória do recorrente tem um objectivo diametralmente oposto daquilo que foi a vontade do interdito, violando a sua vontade, carecendo de razão no plano ético. VI - Essa alegação – de que o tribunal recorrido se deveria ter pronunciado sobre a responsabilidade civil extracontratual derivada dos institutos da interdição, tutela e regime dos títulos levantados, porquanto a mesma subsistiria como génese da pretensão indemnizatória, mesmo depois de afastada a responsabilidade criminal – carece também de razão no plano jurídico. VII - É que a responsabilidade civil por factos ilícitos pressupõe a existência de um acto ilícito consubstanciado na violação de um direito de outrem ou na infracção de norma destinada a proteger direitos alheios (art. 483.º do CC). VIII - Os interesses legalmente tutelados que, não constituindo direitos subjectivos, podem dar lugar a responsabilidade civil, são interesses comuns a um círculo limitado de pessoas e é à protecção desses interesses que as normas em causa se destinam, o que permite afirmar que o art. 483.º do CC não quis reportar-se à lesão de interesses que só reflexamente beneficiam da protecção legal: só a lesão de interesses legítimos, e não de interesses reflexos, pode dar origem a responsabilidade civil. IX - E do regime dos institutos a tutela, da interdição ou do levantamento dos títulos (certificados de aforro) não é possível inferir uma finalidade de protecção de um direito que se inscreva no património do recorrente: sendo certo que se demonstrou que a arguida tinha uma justificação juridicamente relevante para a sua actuação, igualmente é exacto que o regime de levantamento de certificados de aforro nada tem a ver com a pretensa tutela que assume aquele que se julga com direito ao montante por eles titulado; e o recorrente encontra-se fora do círculo de interesses e finalidades teleologicamente ligados às normas relativas aos institutos da tutela ou da interdição.
Texto Integral
Acordam no SupremoTribunal deJustiça
AA veio interpor recurso da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto que confirmou a decisão proferida em primeira instância absolvendo a arguida BB dos crimes que lhe eram imputados bem como afirma a inexistência de uma obrigação de indemnizar derivada da responsabilidade criminal.
As razões de discordância do recorrente, restrito á matéria cível, encontram-se consubstanciadas nas respectivas conclusões da motivação de recurso e onde se refere que: 1 O presente recurso vem interposto da parte do acórdão que decidiu (não decidindo) o recurso interposto para a Relação do Porto quanto à matéria cível, porquanto a Relação tinha o dever, aliás, oficioso, de retirar da absolvição criminal as consequências que daí adviessem para o litígio cível, o que não aconteceu, apesar de todas as condições estarem reunidas para que tal acontecesse. 2 No recurso interposto para a Relação, o recorrente impugnou não só a matéria criminal, mas também a matéria cível, pedindo a final que a recorrida fosse condenada pelo crime de que vinha acusada e também no pedido de indemnização civil deduzido. 3 De facto, o assistente motivou a sua discordância com a sentença proferida, entendendo que a mesma enfermava de erro notório na apreciação da prova, bem como, em sede civil, violava várias disposições legais atinentes ao instituto da interdição e da tutela (cfr. os art.os 139°, 142°, 145°, 1878°, 1881° e 1935° n.o 1 do Código Civil) e das normas referentes ao Regime Jurídico dos Certificados de Aforro (cfr. arte 5° nº 2 do Decreto -Lei 172-B/86 de 30 de Junho) devendo, assim, a demandada indemnizar o lesado no montante do dano (cfr. o art.o 483° nº 1 do Código Civil). 4 Apesar disso, o acórdão recorrido conheceu da matéria atinente à parte criminal, constatando-se que, amiúde, o mesmo aflora a vertente civil do recurso, sem contudo a decidir, confinando-se a decisão à vertente criminal do recurso interposto. E esta afirmação toma-se patente em diversos passos do acórdão que se passam a enumerar: - " ... pois que pode ocorrer que, muito embora essa relevância ocorra, se limite à mera vertente civil, não configurando ilícito criminal. " - cfr. acórdão, fIs. 1325. - " ... independentemente da análise do regime jurídico dos institutos da interdição e da tutela e bem assim dos certificados de aforro. Nesta fase criminal tais regimes não são relevantes, ainda que o possam ser noutra sede" - cfr. acórdão, fIs. 1328. - "Não se mostrando violadas as normas legais que o recorrente refere, pelo menos na abordagem que delas importa fazer meramente criminal - devemos concluir que a sua pretensão deve improceder, sob essa perspectiva; inexistindo crime, inexiste obrigação de indemnizar dela derivada. " - cfr. o acórdão fIs. 1336. 5 Ao decidir como decidiu a Relação olvidou por completo a matéria do recurso na vertente cível, eximindo-se de a julgar como era seu dever, porquanto nos termos do disposto no art. 377 nº1 do Código de Processo Penal "A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado “ 6 Ora, apenas quando se considerasse que se estava perante um caso de responsabilidade contratual é que ao Tribunal estaria vedada a condenação no correspondente pedido de indemnização civil, atenta a doutrina fixada no Assento nº 7/99, in DR, 1ª série 3.9.99, mas o acórdão recorrido nem sequer se debruçou sobre a índole de uma eventual responsabilidade da demandada, limitando-se a dizer que o que o recorrente alegava poderia ter algum amparo se de responsabilidade civil se tratasse. 7 O acórdão recorrido omitiu por completo a pronuncia sobre a responsabilidade civil da demandada, com base na qual esta deveria ser condenada, mesmo que absolvida do crime pelo qual veio acusada, porquanto a mesma violou disposições legais do instituto da interdição e da tutela e do Regime Jurídico dos Certificados de Aforro. 8 Ao omitir a pronúncia sobre a matéria do pedido de indemnização civil, incorreu o acórdão recorrido em omissão de pronuncia, ferindo-o de nulidade, nos termos dos art. 425 nº4 e 379.°, nº 1, als. a) e c) por referência ao art° 374° nº3 al. b) do Código de Processo Penal (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, pago 944 supra transcrito). 9 Com efeito, seguindo de perto o acórdão da Relação Porto de 19 de Novembro de 1997, in CJ, XXII, tomo 5, pago 227, o juiz apesar de absolver o arguido da acusação contra ele deduzida, deve condená-lo na indemnização civil, desde que, obviamente, o respectivo pedido, formulado com base nos factos da acusação, seja fundado e, assim, procedente. Essa condenação deve o juiz proferi-la, quer a obrigação derive de facto ilícito extra contratual, quer se funde no risco, quer tenha por fonte violação de um qualquer direito subjectivo, seja ele pessoal, seja antes um direito de crédito. 10 E seguindo o acórdão deste mesmo Tribunal, proferido em 28 de Maio de 2008, relatado por Raul Borges e disponível em www.dgsi.pt:No plano do art. 377 nº 1, do CPP, «pedido fundado» significará pedido que tem a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que constituem também pressuposto da responsabilidade criminal. 11 - A solução do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/99 (in DR I, de 03-08-1999) [Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377. nº 1, do CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliniana, com exclusão da responsabilidade civil contratual, assentou na dicotomia responsabilidade extracontratual e contratual, por estar em equação crime de emissão de cheque sem provisão, em que ocorrendo absolvição pelo crime subsiste a relação causal, pois na génese de um título de crédito está sempre um negócio subjacente, causal, a relação jurídica fundamental, que determina a emissão do cheque, seja compra e venda, mútuo, arrendamento, transporte, etc., tendo na sua base uma relação contratual. Apenas estas hipóteses ficaram arredadas e não também os casos de responsabilidade objectiva. IV- Tendo em consideração que: - o art. 403nº 3, do CPP estabelece que «a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida»; - os factos imputados ao arguido, mesmo que na óptica de simples demandado, configuram ilícito civil, violador de direitos da demandante e causador de prejuízos à mesma, estando-se manifestamente fora do campo da responsabilidade contratual; - o acórdão recorrido tinha o dever de retirar da procedência do recurso, ou seja, da absolvição criminal, as consequências que daí adviriam para a parte cível; ao limitar-se a revogar a decisão recorrida, absolvendo o arguido do crime de abuso de confiança pelo qual havia sido condenado, nada dizendo sobre o pedido cível, o acórdão da Relação não cumpriu a injunção legal, tendo incorrido em omissão de pronúncia. V - A omissão de pronúncia fere o acórdão de nulidade, nos termos do art. 379.nº 1, al. c), do CPP, a qual, como resulta do nº 2 do mesmo preceito, é de conhecimento oficioso. 11 Assim, não tendo o acórdão julgado a matéria cível do recurso interposto e que subjaz a todas as conclusões do recurso e, designadamente, às conclusões la, 2a, 3a, 4a, 5a, 6a, 7°, 10a, lIa, 12°, 13a, 14a, 15a, 16a, 17a, 18a , 19a e 20a, o acórdão deve ser julgado nulo, nos termos supra indicados e ser ordenada a baixa dos autos para conhecimento do recurso. 12 O acórdão recorrido violou ou fez errada aplicação do disposto nos artigos art.os 77° nº1, 377 nº1, 374° nº3 al. b), 379° nº1 als. a) e c) e 425° nº4 do Código de Processo Penal e dos art°s 139°, 142°, 145°, 1878°, 1881 ° e 1935° nº 1 do Código Civil, das normas referentes ao Regime Jurídico dos Certificados de Aforro (cfr. art. 5° n.o 2 do Decreto -Lei 172-B/86 de 30 de Junho) e do artigo 483° do Código Civil, não podendo, pois, manter-se. O Ministério Público respondeu, advogando a manutenção da decisão recorrida.
O ExºMº Sr. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se pela forma constante dos autos igualmente concluindo pela improcedência do recurso.
Os mesmos autos foram objecto dos vistos legais.
*
Cumpre decidir.
Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:
Durante cerca de 28 anos, a arguida desempenhou a actividade de empregada doméstica do Padre CC, residindo ambos no lugar do Seixo, em Canedo de Basto, Celorico de Basto.
No decurso do período de tempo referido em 1.1., a arguida desenvolveu uma profunda relação de amizade e confiança com o Padre CC.
No período de tempo referido em 1.1., a arguida realizou compras em nome do Padre CC e chegou a receber rendas para o seu patrão.
Em 16 de Outubro de 1997, o Padre CC sofreu um acidente vascular cerebral.
Por despacho proferido em 3 de Julho de 1998, exarado nos autos de Acção Especial de Interdição por Anomalia Psíquica n.º 138/98, do Tribunal Judicial de Celorico de Basto, em que é Requerente DD e Requerido CC, foi nomeado tutor, a título provisório, AA, tendo este prestado juramento em 10 de Julho de 1998.
Por despacho proferido em 13 de Julho de 1998, nos autos identificados em 1.5., foi concedido ao tutor AA autorização para a administração dos bens pessoais de CC, designadamente, guarda e preservação do seu veículo automóvel, cobrança de rendas e arrendamento dos prédios devolutos e eventual reparação destes prédios com vista a dotá-los de condições de habitação, compra de produtos agrícolas com venda dos existentes nas adegas e informação sobre os saldos bancários do interditando e movimentação das contas bancárias do mesmo, na medida das suas necessidades alimentares, médicas e medicamentosas.
Por sentença proferida em 8 de Maio de 2000, nos autos identificados em 1.5., foi decretada a interdição do Padre CC por anomalia psíquica – com início da incapacidade fixado em 16 de Outubro de 1997, sendo o seu irmão AA nomeado tutor, e EE nomeado protutor.
Em face das funções que lhe tinham sido confiadas pelos despachos referidos em 1.5. e 1.6., AA enviou à arguida uma carta datada de 30 de Julho de 1998, na qual consta: “Envio-lhe fotocópia duma certidão do Tribunal conferindo-me poderes para a representação legal nos assuntos respeitantes ao meu irmão Padre. Sempre que sobre qualquer questão pretenda falar comigo, deve telefonar-me, na véspera à noite, para marcar o encontro.”
Nos dias 3 e 4 de Agosto de 1998, a arguida procedeu ao levantamento das importâncias dos certificados de aforro, nos quais beneficiava da cláusula de movimentação, no valor total de € 46.320,69.
Desde a data em que o Padre CC sofreu um acidente vascular cerebral 16 de Outubro de 1997 e até Julho de 1998, a arguida recebeu rendas de casa de sete inquilinos, de valor não apurado, os vales da pensão de reforma do Padre CC, de valor não apurado, e a quantia de € 500,00 com a venda de uma pipa de vinho.
A arguida, ao levantar as importâncias relativas aos certificados de aforro, nos quais beneficiava da cláusula de movimentação, procedeu de acordo com as indicações do Padre CC que lhe disse várias vezes em datas não apuradas mas anteriores a 16 de Outubro de 1997 que se lhe acontecesse alguma coisa, a arguida deveria levantar o dinheiro correspondente aos certificados de aforro, pois era seu, considerando tal como uma forma de pagamento pelos anos de trabalho.
Durante os 28 anos em que desempenhou a sua actividade profissional a arguida nunca recebeu qualquer salário do Padre CC.
As quantias que a arguida recebeu de rendas e da venda do vinho, afectou-as ao pagamento de várias despesas da casa, da quinta e de outros encargos da responsabilidade do Padre CC, designadamente:
várias despesas hospitalares com a permanência do Padre CC no Hospital da Prelada e no Hospital S. Oliveira, em Guimarães, estas no valor de € 1.672,47.
despesas com a compra de vários pijamas para o Padre CC.
pagamento da contribuição autárquica referente ao ano de 1997, no valor de € 420,02.
pagamento do seguro relativo a acidentes de trabalho do Padre CC, no valor de € 88,67.
pagamento dos descontos para a Segurança Social, no valor de € 49,88.
despesas de reparação do veículo Peugeot, modelo 205, no valor de € 315,99.
despesas de reparação de um roçadeira, de um motor de água, da canalização, de uma bomba de vinho, reparação das instalações sanitárias, obras de vedação, propriedade do Padre CC, nos valores, respectivamente de € 349,16, € 150,57, € 104,19, € 59,86, € 57,86, € 54,12, € 772,00, € 511,57 e € 68,59.
despesas do seguro automóvel e imposto de selo, no valor de € 289,30 e € 26,44.
1.13.9.
despesas com luz e telefone, no valor de € 448,92.
despesas de reparação de uma arca frigorífica, no valor de € 127,70.
despesas de conservação e manutenção da vinha e limpeza dos prédios.
despesas com as visitas ao Padre CC, a fim de lhe prestar todo o auxílio e assistência necessários.
Os vales das pensões de reforma e respectivos subsídios foram doados a FF, pelo Padre CC, antes de sofrer o acidente vascular cerebral, com o intuito de o ajudar a custear os estudos, sendo que a arguida recebeu-os durante cerca de nove meses depois do AVC do Sr. Padre, mas entregou-os a GG, mãe do FF.
Mais se provou que:
A arguida é solteira, sabe ler e escrever e reside na casa do Padre CC.
A arguida é uma pessoa trabalhadora, humilde e respeitada no meio social em que está inserida.
A arguida não tem antecedentes criminais.
. Factos não provados
Não se provaram, na audiência de discussão e julgamento, quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente:
Que a arguida depositou os montantes dos certificados, das rendas, da pensão e da venda dos vinhos, numa conta bancária de que era a única titular, não lhes dando o destino devido, antes se apropriando deles, gastando-os em seu proveito, como era seu propósito, embora estivesse ciente que deveria entregá-los ao tutor dos bens pertencentes ao Padre CC.
Que ao proceder desta forma, a arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de reter e integrar no seu património todas as quantias recebidas, apesar de saber que as mesmas não lhe pertenciam e que lhe tinham sido confiadas a título precário, com obrigação de as entregar ao tutor dos bens.
Que a arguida actuou com o propósito de se apropriar dos referidos montantes e de os fazer seus contra a vontade e sem autorização do respectivo proprietário, com vista a torná-los parte do seu património e actuando como se os tivesse na sua inteira disponibilidade, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que lhe tinham sido entregues a título temporário, com a obrigação de restituição.
Que sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei.
Que foi o próprio AA quem deu o vinho à arguida e a autorizou a receber as rendas.
*
I
Invoca o recorrente que existiu omissão de pronuncia por parte do tribunal recorrido uma vez que este não apreciou a responsabilidade civil da arguida numa perspectiva de responsabilidade civil extracontratual a qual, na sua perspectiva, se fundamentaria nas disposições legais inerentes ao instututo da interdição e tutela, bem como o regime jurídico dos certificados de aforro.
Como se refere em Acordão deste Supremo Tribunal de 16 de Setembro de 2008 Relator Juiz Conselheiro Henriques Gaspar a omissão de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste numa incompletude [ou num excesso] da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas e da formulação do objecto da decisão e das respostas que a decisão fornece.
Quando se configura a existência de omissão está subjacente uma omissão do tribunal em relação a questões que lhe são propostas. Admitindo que a decisão se consubstancia num silogismo assente na conclusão inferida de duas premissas a omissão de pronuncia implica que uma daquelas premissas está incompleta– artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.
A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões juiz deve apreciar são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (artigo 660, nº 2 do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Retomando ao Acórdão citado as questões que são submetidas ao tribunal constituem o thema decidendum, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se. Os problemas concretos que integram o thema decidendum sobre os quais o tribunal deve pronunciar-se e decidir, devem constituir questões específicas que o tribunal deve, como tal, abordar e resolver, e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respectivas posições (cfr., v. g., os acórdãos do Supremo Tribunal, de 30/11/05, proc. 2237/05; de 21/12/05, proc. 4642/02 e de 27/04/06, proc. 1287/06).
A “pronúncia” cuja “omissão” determina a consequência prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c) CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido á cognição do tribunal e não aos motivos ou as razões alegadas.
Retomando o caso concreto importa referir que a questão que era proposta ao tribunal em sede de recurso era a da existência, ou não, dos elementos constitutivos do tipo legal de crime de abuso de confiança e, em função de tal comprovação, a condenação indemnizatória em sede de responsabilidade civil extracontratual (confrontar pontos 10, 19 e parte final das conclusões apresentadas no recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto).
O tribunal recorrido pronunciou-se expressamente sobre a questão que lhe era proposta, objecto de recurso, afirmando que inexistindo vícios a minarem a decisão recorrida era a mesma confirmada com a sequente absolvição em relação ao pedido cível formulado.
Não existiu, assim, qualquer omissão de pronúncia pois que as questões propostas foram decididas.
II
A motivação de recurso tem subjacente o entendimento do recorrente de que o tribunal recorrido se deveria ter pronunciado sobre a responsabilidade civil extracontratual derivada dos institutos que refere –interdição, tutela e regime dos títulos levantados- porquanto a mesma subsistiria como génese da pretensão indemnizatória, mesmo depois de afastada a responsabilidade criminal.
Entendemos que o recorrente não tem razão quer no plano ético quer no plano jurídico. No primeiro porquanto tem conhecimento de que ficou provado que A arguida, ao levantar as importâncias relativas aos certificados de aforro, nos quais beneficiava da cláusula de movimentação, procedeu de acordo com as indicações do Padre CC que lhe disse várias vezes em datas não apuradas mas anteriores a 16 de Outubro de 1997 que se lhe acontecesse alguma coisa, a arguida deveria levantar o dinheiro correspondente aos certificados de aforro, pois era seu, considerando tal como uma forma de pagamento pelos anos de trabalho. Durante os 28 anos em que desempenhou a sua actividade profissional a arguida nunca recebeu qualquer salário do Padre CC
A pretensão indemnizatória do recorrente tem um objectivo diametralmente oposto daquilo que foi a vontade do interdito, violando a sua vontade. Esta vontade correspondia á compensação adequada pelos anos de trabalho gratuito.
Porém para além da questão ética, ou de valores, importa analisar pretensão do recorrente numa perspectiva jurídica e, também aí, carece o mesmo de razão.
Na verdade, a responsabilidade civil por factos ilícitos pressupões a existência de um acto ilícito consubstanciado na violação de um dever.
A tal ilicitude se refere o art. 483º do Cód. Civil a ilicitude referindo que a mesma ilicitude se pode traduzir na violação de direito de outrem ou na infracção de norma destinada a proteger interesses alheios.
A violação de deveres jurídicos, que envolvam lesão de direitos subjectivos, é susceptível de gerar responsabilidade civil e os mesmos podem ter a sua génese na lei ou em negócio jurídico. Na verdade, em vários preceitos se fala de deveres impostos por lei ou negócio (artº 486.°, 491.°, 492", nº 2 do Código Civil): se no primeiro caso os deveres podem não corresponder a direitos subjectivos, no segundo necessariamente correspondem, por se tratar de obrigações stricto sensu.
No caso concreto tudo se resume, assim, a saber se existe, por parte da arguida, uma conduta ilícita que infringe uma norma que, directamente, tutela o direito do recorrente. Tal norma reconduz-se, no entender do recorrente, aos institutos citados-tutela, interdição e regime de levantamento.
Na sequência do exposto importa saber o que se deve entender por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, violação que, nos termos do artigo 483:, sendo ilícita e praticada com dolo ou culpa, constitui o agente na obrigação de indemnizar os prejuízos dela resultantes.
Trata-se, portanto, da violação de um dever imposto por lei, a qual se destina a proteger interesses alheios. Como refere Pessoa Jorge Ensaio sobre os pressupostos de responsabilidade civil pag 298 se a alteridade é nota essencial do direito e se, por conseguinte, a imposição de um dever jurídico visa sempre a protecção de interesses de outrem, parece que a fórmula usada no artigo 483 leva à conclusão de que a violação de qualquer disposição da lei acarreta necessariamente a obrigação de indemnizar as pessoas prejudicadas com essa violação. Não é, todavia, assim. Se tivesse sido intenção do artigo 483 cominar responsabilidade civil para a violação de quaisquer normas jurídicas, tinha de se concluir que a expressão usada naquele preceito era pleonástica, uma vez que todas as normas, por definição, protegem interesses que são alheios em relação ao destinatário do dever. Ora, mandam as regras de interpretação que se presuma não ter o legislador usado expressões inúteis e haver consagrado as soluções mais acertadas (art. 9°, 3, do Cód. Civ.), pelo que nos parece que a intenção do artigo 483°, ao acrescentar as palavras «destinada a proteger interesses alheios», foi restringir a menção feita a «qualquer disposição legal». Se as disposições legais a que o artigo 483.° se refere não se destinam, portanto, a proteger os interesses gerais, isso significa que só visam tutelar os interesses de algumas pessoas, embora delimitadas em termos abstractos, ou seja, por categorias. Na verdade, se a tutela jurídica se reporta aos interesses de pessoas concretamente determinadas, estaríamos perante direitos subjectivos ainda que transitoriamente se ignore quem é o verdadeiro titular, como sucede nas hipóteses previstas nos artigos 2182.°, 2 e 3, e 2225.° do Código Civil A disposição legal, cuja violação é contemplada no artigo 483.°, tem de se reportar, pois, à protecção dos interesses de uma categoria de pessoas: o círculo dos interessados deve ser definido em termos abstractos. Mas, para dar a esta delimitação conteúdo real e não aparente, é necessário que a nota, com referência à qual se define a categoria, não seja adequável a qualquer cidadão.
Os interesses legalmente tutelados que, não constituindo direitos subjectivos, podem dar lugar a responsabilidade civil, são interesses comuns a um círculo limitado de pessoas e é à protecção desses interesses que as normas em causa se destinam. Esta ideia de a norma se destinar a proteger os interesses permite afirmar que o artigo 483 não quis reportar-se a lesão de interesses que só reflexamente beneficiam da protecção legal.
Só quando o fim da lei é proteger directamente os interesses de certa categoria de cidadãos é que se integra a previsão do artigo 483:, nº1 pois que não pode afirmar-se que se destine a proteger os interesses de um círculo de pessoas a lei que foi criada para outras finalidades, embora indirecta, ou reflexamente, as vá beneficiar. Deste modo, só a lesão de interesses legítimos, e não de interesses reflexos, pode dar origem a responsabilidade civil.
Como refere Pessoa Jorge se não puder inferir-se da própria lei o fim principal que a motivou, deve presumir-se ter ela visado interesses gerais e não a tutela de categorias limitadas de cidadãos. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela o nº1 do normativo em causa prevê, ao lado, da violação de direitos, a violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, mas das quais não nasce nenhum direito subjectivo para os titulares dos interesses violados. Como exemplos citados podem referir-se a violação e uma lei aduaneira destinada a proteger o interesse nacional, violação de uma lei destinada a proteger o interesse nacional etc
Então, a questão que nos é proposta é tão só a de saber se é possível inferir do regime do instituto da tutela; da interdição ou do levantamento dos títulos (Certificados de Aforro)uma finalidade de protecção de um direito que se inscreve no património do recorrente.
A resposta é manifestamente negativa e, sendo certo que se demonstrou que a arguida tinha uma justificação juridicamente relevante para a sua actuação, igualmente é exacto que o regime de levantamento de certificados de aforro nada tem a ver com a pretensa tutela que assume aquele que se julga como direito ao montante titulado nos mesmos certificados. Por igual forma se dirá em relação aos institutos da tutela ou da interdição se é certo pois que o recorrente se encontra fora desse círculo de interesses e finalidades teleologicamente ligados ás mesmas normas as quais nem directa nem directamente respeitam a qualquer interesse próprio do mesmo.
Termos em que se conclui que não só não existe qualquer omissão de pronuncia num plano formal como também que a pretensão indemnizatória deduzida não tem qualquer tipo de justificação.
Neste termos julga-se improcedente o recurso interposto.
Custas pelo recorrente
Taxa de Justiça 10 U.C.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Janeiro de 2009