SOCIEDADE COMERCIAL
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Sumário


I - Para efectivar a responsabilidade do administrador para com a sociedade existem vários tipos de acções sociais: a acção sub-rogatória dos credores sociais, em que estes se substituem à sociedade para exigirem dos administradores a indemnização que a este compete (art. 78.º, n.º 2, do CSC); a acção social ut universi, proposta pela própria sociedade para obter o ressarcimento dos danos causados à sociedade com fundamento na responsabilidade civil dos administradores (art. 75.º do CSC); a acção social ut singuli, em que os sócios que representem 5% do capital social pedem a condenação dos administradores na indemnização pelos prejuízos causados à sociedade e não directamente a eles próprios (art. 77.º do CSC).
II - A responsabilidade civil dos gerentes para com a sociedade relativamente a danos causados a esta por factos próprios e violadores de deveres legais e/ou contratuais, prevista no art. 72.º, n.ºs 1 e 2, do CSC, constitui uma situação da responsabilidade obrigacional, quer porque se considera que os administradores são mandatários, quer porque negando-lhes essa qualidade, se reconhece como fonte directa das obrigações dos administradores o acto negocial da nomeação.
III - A causa de exclusão da sua responsabilidade prevista no n.º 4 do art. 72.º não exclui a responsabilidade por actuação ilícita nos termos do art. 483.º do CC, verificados os pressupostos da responsabilidade civil dos gerentes.
IV - Estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, na vertente do abuso da responsabilidade limitada (que não se confunde com a do abuso da personalidade), podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando, de entre elas: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal.
V - Para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente, assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa.
VI - A aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem carácter subsidiário, pois só deverá ser invocada quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.
VII - O instituto não deve ser aplicado caso seja possível concluir que a responsabilidade dos gerentes não se mostra excluída, nos termos do n.º 4 do art. 72.º do CSC.
VIII - Assim acontece quando seja de extrair do facto de a venda do prédio da sociedade de que os Réus eram gerentes ter sido efectuada por 20.000.000$00 - quantia muito inferior à do seu real valor - a uma outra sociedade a que um dos gerentes estava ligado, e ainda da circunstância de este ter intervindo na venda sucessiva do mesmo prédio pelo valor de 160.000.000$00, que o negócio teve carácter ilícito e que existiu negligência grosseira ou dolo dos Réus.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. AA, intentou na 1.ª Vara da Comarca de Setúbal acção declarativa de condenação, sob a forma comum, com processo ordinário (n.º 87/97) contra BB e mulher, CC, e DD, pedindo que os mesmos sejam condenados a pagar solidariamente à sociedade EE a quantia de 215.000.000$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a citação.

Para tanto alegou, em síntese:

A EE – Combustíveis de Setúbal, L.da foi fundada em 1948 por GG, pai dos RR. CC e DD;
Uma das quotas da EE, no valor de 100.000$00 está em nome de JFF, já falecido e pai do autor e, outra, de igual valor, em nome de herdeiros do fundador GG, um deles, o dito FF; Os herdeiros deste nomearam o autor para o exercício da função de representante comum da quota do de cujus;
O 1.º R. BB e o 2.º R. DD são gerentes da EE;
A dita sociedade era dona de certo prédio, sendo que os sócios da EE decidiram aliená-lo pelo melhor preço possível, tendo encarregado os gerentes ora RR. de tal tarefa;
Os RR. venderam esse prédio pelo preço de 20.000.000$00 a uma sociedade com sede em Gibraltar e que a eles está ligada;
Posteriormente, essa sociedade revendeu o mesmo prédio por 160.000.000$00;
Antes da venda, os RR. fizeram diligências no sentido da urbanização da parcela, sendo do seu conhecimento a possibilidade de urbanizar o dito terreno e que o preço da primeira transacção era muito inferior ao seu valor real; Causaram assim um prejuízo à EE no valor de 140.000.000$00;
Acresce ainda que a referida sociedade tem por objecto principal o comércio de combustíveis e lubrificantes e foi concessionária da área de serviço de Palmela;
Durante anos esteve envolvida num conflito judicial com a Petrogal, conflito que veio a terminar em 1995, com um acordo entre as partes, tendo a Petrogal pago à EE a quantia de, pelo menos, 100.000.000$00, da qual apenas entrou nos cofres o valor de 25.000.000$00.

As quantias assim obtidas pelo 1.º R. foram utilizadas em proveito comum do casal.

Regularmente citados contestaram os Réus, excepcionando a ilegitimidade do A. e impugnando os factos invocados na petição inicial.

Houve réplica.

Na audiência preliminar, decidiu-se, além do mais, interpretar a petição inicial no sentido de a acção estar instaurada pela Herança de FF, pai de quem figura como autor e relegando para momento posterior o conhecimento da questão de saber se a herança estava ou não devidamente representada.

Dessa decisão foi interposto pelos RR. recurso de agravo, com subida diferida.

Foi também interposto recurso de agravo, com subida diferida, relativamente à decisão aí proferida que considerou ter a herança legitimidade activa.

Objecto de recurso de apelação foi o decidido quanto à excepção peremptória invocada na contestação.

Foi seleccionada a matéria assente e organizou-se a base instrutória.

No decurso da audiência preliminar foi ainda determinada a apensação da acção com processo ordinário n.º 127/98, que o A. havia proposto contra os 1.ºs RR. e ainda contra JJ, passando a tramitação das mesmas a ser processada em conjunto.

Instruído o processo com a prova requerida pelas partes, procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.

Após o que foi proferida sentença, em 25.10.2002, decidindo julgar o A, parte ilegítima na presente acção, absolvendo os RR. da instância, enquanto que na acção n.º 127/98, se decidiu julgar o respectivo pedido improcedente, com absolvição do mesmo.

Da referida sentença, interpôs a A. recurso de apelação. Porém, não produziu as respectivas alegações e desistiu do mesmo, o que foi admitido.

Mas requereu, nos termos do art. 269.º do CPCivil, a intervenção principal provocada, como associada da A., de EE – Combustíveis de Setúbal, L.da.

O referido pedido foi inicialmente indeferido, mas por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.10.2003, foi decidido que o mesmo era tempestivo e ordenada a substituição do despacho por outro que se pronunciasse sobre a sua admissão, tendo sido deferida a requerida intervenção principal provocada, mas nomeando representante especial à sociedade, visto que o 1.º R. é o único gerente da EE. Desse despacho agravaram os RR., recurso que foi admitido com efeito não suspensivo.

Citada a EE, esta nada disse.

A final veio a ser proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando os RR. BB e DD, a pagarem, solidariamente, à sociedade EE – Combustíveis de Setúbal, Lda., a quantia de 185.000.000$00 = € 922.776,11, acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas a que se refere o art. 559.º n.º 1 do CCivil, desde a citação e até integral pagamento e absolvendo a Ré CC, do pedido.

Inconformados, com esta sentença, apelaram os RR. condenados, recurso que foi admitido.

Por acórdão da Relação de Lisboa foi decidido:
“a) julgar improcedente a apelação quanto ao fundamento da falta de especificação de receitas;
b) mandar baixar os autos ao tribunal da 1.ª instância para que seja suprida a irregularidade da fundamentação das respostas aos quesitos 16º a 19º, 21º, 22º e 24º a 39º, pelo mesmo juiz que proferiu a decisão recorrida, mediante a especificação dos documentos constantes das pastas acima referidas que foram decisivos para cada uma dessas respostas;
c) não tomar, por ora, conhecimento das demais questões postas.
Com custas a final.”

Por ao tempo ainda não ter sido admitido o recurso de agravo interposto pela autora, o STJ por acórdão de fls. 1804 a 1807 v. decidiu:

“a) revogar o acórdão na parte em que julgou improcedente a apelação quanto ao fundamento da falta de especificação das receitas; e
b) determinar que na 1.ª instância se despache o requerimento de interposição do recurso de fls. 426, prosseguindo-se os posteriores termos legais.”

Voltando os autos à 1.ª instância, foi o dito recurso de agravo admitido, mas a Relação negou-lhe provimento, acórdão este que o STJ confirmou, como já aqui se referiu supra.

E, por o acórdão do STJ de fls. 1804 a 1807 v supra referido ter revogado a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente a apelação quanto ao fundamento da falta de especificação de receitas, decidiu que o processo baixasse à 1.ª instância para ser suprida a irregularidade da fundamentação das respostas a alguns quesitos, para depois o processo regressar à Relação para apreciar a apelação e pronunciar-se sobre as demais questões suscitadas, conforme foi decidido no supra referido acórdão da Relação.

Voltando de novo os autos à 1.ª instância, esta procedeu à fundamentação que consta do despacho de fls. 2032 a 2033 e, na sequência deste despacho, o processo regressou de novo à Relação, pelas razões supra expostas.

A Relação veio a julgar parcialmente procedente a apelação interposta pelos legais sucessores da autora habilitados, e, consequentemente, alterar a decisão sobre a matéria de facto quantos aos quesitos 42º, 43º e 48º, mas, no mais, confirmando a sentença recorrida.

Desta decisão recorre o R. s AA., de revista, para este STJ, recurso que foi admitido.

O R. conclui as suas alegações do seguinte modo:

1.ª A acção objecto do presente recurso é uma típica acção de responsabilização de gerentes como se prova pelo facto de a indemnização ter sido arbitrada a favor da sociedade EE de que o recorrente era, à data, gerente.
2.ª Nessa acção AA sempre figurou como Autor até ao infeliz despacho de 12 de Janeiro, altura em que, por iniciativa do Ex.mo Juiz do processo, foi substituído pela herança indivisa por óbito de FF.
3.ª Não é difícil de perceber que esta substituição teve unicamente em vista assegurar a legitimidade activa, uma vez que este tipo de acções só pode legalmente ser proposta por sócio que detenha, pelo menos, 5 % do capital social, condição que o AA nunca preencheu, mas que a herança indivisa satisfazia.
4.ª Procurou o douto Acórdão recorrido justificar a substituição a coberto de mera interpretação da petição inicial, interpretação que, todavia, é claramente desmentida por todo o processado anterior, designadamente: requerimento de arresto prévio, despacho que decretou a providência, mandato judicial conferido ao Ex.mo mandatário do autor, pedido de apoio judiciário, referências feitas na petição inicial à família do autor (art.s 1º e 3º), situação de desemprego do autor, doenças e profissão do autor (art. 43º), apoios recebidos pelo autor da mãe e irmãos (art 44º), o que demonstra à saciedade, que o autor seria a pessoa singular concretamente definida no cabeçalho da petição inicial e não uma entidade abstracta como é o caso da herança indivisa.
Assim,
5.ª Não só a substituição é legalmente inaceitável, por ofensiva do princípio da estabilidade da instância, como camuflou uma evidente ilegitimidade activa que não pode agora deixar de ser apreciada.
Por outro lado,
6.ª A intervenção da EE foi admitida depois de ter sido notificada, e de ter transitado em julgado, a decisão final proferida em primeira instância, uma vez mais com o exclusivo propósito de impedir outra ilegitimidade activa, nas circunstâncias com manifesto prejuízo do princípio basilar em processo civil segundo o qual, salvo raras excepções que ao caso não interessam, o poder jurisdicional do juiz se esgota com a prolação da sentença.
7.ª Encontra-se provado nos autos que a venda do “Casal ...” foi decidida em assembleia geral da EE, circunstância que impede, em qualquer caso, a responsabilização dos gerentes por prejuízos emergentes da venda como resulta do nº 4 do art. 72º do CSC, disposição que o douto Acórdão recorrido claramente não respeitou.
8.ª O douto Acórdão recorrido violou, entre outras, as seguintes disposições legais:
Art 268º, 269º, 481º e 666º CPC;
Art. 72º, 77º e 246º CSC.

A A. apresentou contralegações, na qual defende a improcedência do recurso.

I. Fundamentação

De Facto

II.A. São os seguintes os factos dados como provados, face ao oportunamente especificado e ao resultado do julgamento:

II.A.1 – Factos Assentes:
A – Encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Setúbal a constituição de uma sociedade com o nome “EE – Combustíveis de Setúbal, Lda., com o objecto do comércio de combustíveis e lubrificantes;
B – De acordo com o mesmo registo, o capital social da dita sociedade é de 400.000$00, dividido em quatro partes iguais, estando uma quota de 100.000$00 registada a favor de FF e outra de 100.000$00 registada a favor deGG;
C – Por escritura pública, habilitaram-se como herdeiros de FF, as seguintes pessoas: AA, GG, FF, e HH;
D – Pelo documento de fls. 31 da providência cautelar, GG , AA, HH e II, na qualidade alegada de herdeiros de FF, declararam designar para representante comum da quota na sociedade EE, o herdeiro AA;
E – O 1.º R. marido e o 2.º R. são gerentes da sociedade EE, em exercício efectivo de funções;
F – A EE era dona e legítima possuidora de um prédio misto denominado “Casal da ...”, sito no Grelhal, freguesia da Anunciada, concelho de Setúbal;
G – O Município de Setúbal enviou à EE o ofício junto a fls. 32 da providência cautelar, o qual chegou ao conhecimento dos RR.;
H – O 1.º R. marido e o 2.º R., como gerentes da EE, outorgaram a escritura de fls. 36 e sgts. da providência cautelar com a sociedade “LL Trading Limited”;
I – Em 22.06.1996, a “LL Trading Limited” e “V.M.S. – Gestão Imobiliária, Lda.” outorgaram a escritura junta a fls. 43 e sgts. da providência cautelar;
J – A EE era ainda concessionária da chamada “área de serviço de Palmela”, sita na Auto-Estrada do Sul;
L – Durante anos esteve envolvida num conflito judicial com a Petrogal;
M – Esse litígio veio a terminar por composição entre as partes, tendo a EE recebido a quantia de 100.000.000$00 dos quais, pelo menos, 25.000.000$00 deram entrada na respectiva contabilidade;
N – Por deliberação da Assembleia-Geral da EE, em que estavam presentes ou representadas todas as quotas, foi decidido mandatar os gerentes ora RR. para procederem às negociações e outorga da escritura de venda do prédio “Casal da ...”, para pagamento urgente de dívidas da sociedade.

II.A.2 – Respostas aos quesitos:
1.º – Os sócios da EE decidiram vender a parcela de terreno pertença desta sociedade, sita no Casal da ... – Grelhal, tendo encarregado os gerentes ora RR. de tal tarefa;
2.º – A Câmara Municipal de Setúbal viabilizou a urbanização da parcela em termos de permitir a divisão do prédio “Casal ...” em número de lotes variável entre 19 e 25 e com uma área mínima de 400m2;
3.º – A cada um desses lotes corresponde o valor médio de 10.000.000$00;
4.º – Os réus conheciam o teor de fls. 32 da providência cautelar;
5.º – Omitindo tais informações aos demais sócios;
6.º e 7.º – O R. BB estava relacionado com a LL Trading e associavam o seu nome à venda da parcela de terreno feita por essa empresa;
8.º – Os RR. sabiam que o valor da parcela em causa era superior àquele porque a mesma foi vendida à LL Trading;
10.º e 24.º – A parcela de terreno valia pelo menos 130.000.000$00, por ser viável a sua urbanização;
12.º – Os RR., se não conhecessem esse valor, poderiam ter obtido tal informação junto de pessoas ligadas a essa área;
13.º – Os RR. não entregaram nos cofres da EE, até à propositura da presente acção, a quantia de 75.000.000$00 recebida da Petrogal;
14.º – Tendo utilizado tal dinheiro para outros fins;
17.º – O processo de loteamento do prédio encontra-se suspenso, por a Câmara Municipal de Setúbal autorizar menos construção do que a referida na al. G);
18.º – Para determinar o valor do terreno antes do loteamento, é necessário ter em conta as despesas relativas a estudos e projectos, licenciamento, obras de urbanização, arruamento, infra-estruturas de água, electricidade, esgotos, arranjos exteriores e outros gastos;
19.º – A venda feita para “LL Trading Limited” foi apressada, por estarem eminentes penhoras que vieram a ser registadas três dias depois do registo daquela.

II.B. De Direito

II.B.1. Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (art.º 684.º, n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Civil, doravante CPC), importando ainda decidir as questões nela colocadas e bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.º 660.º, n.º 2, também do CPC.

São apenas suscitadas as seguintes questões suscitadas no recurso de revista do Réu:

– Questão da substituição processual do A. AA pela Herança de FF;
– Questão da violação do caso julgado;
– Questão da responsabilização dos gerentes.

II.B.1.
A primeira questão não é de conhecer no presente recurso, uma vez que foi suscitada num agravo e a decisão da 1.ª instância foi confirmada na Relação.

A possibilidade de reapreciar no recurso de revista questões suscitadas em recurso de agravo resulta do disposto no artigo 722.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se diz:

“Sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação de lei substantiva, a violação de lei de processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754.º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso.”

Ora, tomando como premissa o facto de ao caso em apreço ser aplicável o artigo 754.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao DL 375-A/99 (ex vi do disposto no artigo 8.º, n.º 2, deste diploma) ter-se-á de tomar em consideração o que dispunha tal normativo no seu n.º 2:

“Não é admitido recurso do acórdão da Relação que confirme, ainda que por diverso fundamento, sem voto de vencido, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, jurisprudência com ele conforme.”

Só assim não seria quando se estivesse perante alguma das excepções previstas no n.º 3 da referida norma.

No caso em apreço o acórdão da Relação é confirmatório da decisão da 1.ª instância e não se verificam quaisquer das excepções previstas na lei processual civil.

Como o agravo de 2.ª instância não seria admissível, também o recurso de revista nesta parte não é admissível, ex vi do disposto no supra citado n.º 1 do artigo 722.º do Código de Processo Civil.

Termos em que não se conhecerá da mesma.

II.B.2. Pelas mesmas razões se não devia conhecer da 2.ª questão suscitada, uma vez que apenas se discute a violação do artigo 666.º do Código de Processo Civil e o facto de a questão ter sido suscitada de novo no recurso de apelação não nos remete para a impugnação da decisão final onde nada se controverteu quanto à mesma.

Mas, apenas cautelarmente, admitindo-se como invocada a excepção do caso julgado, se conhecerá.

Na primeira instância sustentou-se que já sentença anterior, proferida no processo n.º 87/97, se não conhecera do pedido.

E justificou-se tal afirmação com o argumento de que então, verificada “a existência de uma excepção dilatória de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário activo”, se absolveu os RR. “tão só da instância, e não do pedido”.

E, continuou a argumentar-se que, “por tal decisão ter recaído unicamente sobre a relação processual, não seria apta a constituir caso julgado material sobre o pedido formulado, mas tão só caso julgado formal, nos termos limitados previstos no art. 672.º do CPCivil.”

Foi entendido que, dessa forma se abriu a possibilidade de propositura de uma nova acção, com a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, envolvendo agora as pessoas cuja falta conduziu à absolvição da instância. Ou, em alternativa, a renovação da instância, nos termos previstos no art. 269.º n.º 2, 2.ª parte, do CPCivil.

Tendo a A. utilizado a 2.ª alternativa, tudo estaria bem, tendo a instância sido renovada.

A Relação veio a considerar este entendimento isento de reparos e o R. recorrente continua inconformado, invocando expressamente a violação do artigo 666.º do Código de Processo Civil.

Sem razão, porém.

Não há, como se salientou nas duas decisões um caso julgado material, formado, sobre o mérito da causa mas mero caso julgado formal.

Tendo a absolvição da instância assentado na ilegitimidade, por falta do litisconsórcio necessário activo, a lei processual consente as duas formas já referidas de permitir à parte atingir os objectivos visados com a acção.

Seria, a solução oposta profundamente injusta e sem fundamento sério.

Ora como sustenta CARLOS LOPES DO REGO (Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol. I, p. 257:
“I – Como decorrência da consagração da regra da ampla sanabilidade da falta de pressupostos processuais, com vista a potenciar a efectiva apreciação do mérito da causa, ampliou-se o regime de sanação da preterição de litisconsórcio necessário.

Assim, estabelece-se que tal sanação pode ocorrer até à prolação – n.º 1 – ou na sequência – nº 2 – de qualquer decisão judicial que verifique ter ocorrido preterição de litisconsórcio necessário, incluída a sentença final – e não apenas na sequência de tal verificação no despacho saneador, como sucedia face ao nº 1 do preceito correspondente do Código de Processo Civil, na versão anteriormente vigente.

Torna-se, pois, possível a sanação de uma situação de litisconsórcio necessário preterido, apesar de apenas ter sido detectada e declarada na sentença ou acórdão que, com esse fundamento pôs termo à causa.”

Logo, por tal decisão da 1ª instância ter formado caso julgado meramente formal, como se disse, não existe qualquer obstáculo a que o mesmo julgador verificada a sanação do vício, profira decisão de sentido oposto à primeira.

Não há nada a acrescentar aos argumentos utilizados, sendo certo que sendo a ilegitimidade, por regra, insanável, há casos em que a sanação é possível. Nestes casos a lei consente a renovação da instância, o que implica o conhecimento, pela instância onde a ilegitimidade foi declarada, da sanação do vício e a determinação do prosseguimento dos respectivos termos.

Logo, não há reparos a fazer à decisão relativa à admissão da intervenção provocada.

II.B.3. A autora instaurou a presente acção com vista a efectivar a responsabilidade social dos réus, como gerentes da EE, reclamando o pagamento de uma indemnização a favor da sociedade, ao abrigo do disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC)

Resulta da lei das sociedades comerciais que sobre os respectivos gerentes recaem deveres legais e contratuais, tendo como fonte o contrato social ou as deliberações da assembleia-geral e de outros órgãos sociais — deveres que existem para com a sociedade, sócios e terceiros (credores, trabalhadores, fisco, etc.).

Alguns desses deveres para com a pessoa colectiva, como os deveres de diligência (BRITO CORREIA, Os Administradores das Sociedades Anónimas) situam-se no âmbito das relações internas. Por outro lado, como órgãos da pessoa colectiva, os gerentes praticam actos jurídicos com terceiros e em sua representação. Os artigos 408.º e 409.º do CSC estabelecem um regime no qual os terceiros sabem que, ao contratar com os administradores, estão a contratar com a sociedade. E os poderes de representação não se confinam aqui aos actos de administração ordinária, gozando duma maior autonomia (BRITO CORREIA, ob. cit., pp. 546 e 551).

É discutível a natureza da relação do administrador com a sociedade, havendo a tese contratualista (TERESA VAZ, ROA n.º 128, p. 333 e LOBO XAVIER, Anulação da Deliberação Social e Deliberações Conexas, p. 102, nota 7 e Ac. STJ de 19.11.1987, BMJ n.º 371, p. 473) e quem considere o conselho de administração como um membro dum órgão da sociedade ligados a ela por um contrato de emprego de direito comum e não de mandato (SOVERAL MARTINS, Os Poderes de Representação dos Administradores de Sociedades Anónimas, p. 59).

Entende-se, tal como as instâncias, que a teoria que melhor traduz a relação dos administradores com a sociedade é a contratualista, agindo os administradores nas relações externas como mandatários da representada, sem prejuízo de a administração funcionar como órgão da sociedade na deliberação e gestão dos actos a praticar.

Como é bom de ver, o dever de administrar configura-se como o primeiro dos deveres, que decorre naturalmente do cargo para que se foi eleito ou nomeado – dever que se coloca num plano lógico antecedente, distinto dos outros deveres do administrador (SOARES MACHADO, "Recusa de Assinatura do Relatório Anual das Sociedades Anónimas", ROA n.º 54, p. 948), ou, então, ao nível de outros deveres específicos (ILÍDIO DUARTE RODRIGUES, A Administração das Sociedades Por Quotas e Anónimas, Lisboa, Petrony, 1990, p. 173).

Entre os outros deveres dos administradores se conta o previsto no art. 64.º do CSC (na redacção, vigente à data, do Dec.-Lei n.º 262/86 de 2 de Setembro) que dispunha que “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência dum gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores” e o "dever de relatar a gestão e apresentar contas" (artigo 65.º).

O entendimento de alguma doutrina sobre o preceito do artigo 64.º do CSC é o de que se trata duma norma “genérica e imprecisa, mais retórica do que realista destinada a definir o grau de diligência exigível dos responsáveis pela gestão da sociedade, capaz de interessar ao requisito da culpa…para que, como mandatários da sociedade ou equiparados, respondam civilmente perante ela pelos danos provenientes dos seus actos”(A. VARELA, RLJ 126º, p. 315). No mesmo sentido SOARES MACHADO (estudo citado, ROA, n.º 54, p. 948).

De qualquer forma o sentido a extrair do citado normativo é o de que, na sua actuação, o gerente ou o administrador tem de agir com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores. Trata-se, em suma, «do interesse colectivo ou comum dos sócios, quer no interesse dos sócios como sócios, quer o resultado da solidariedade de quaisquer interesses individuais dos sócios» – RAUL VENTURA e BRITO CORREIA, “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas, Suplemento aos BMJ n.os 192.º a 195.º, p. 101.

Ou seja, e, como se diz no acórdão recorrido:

«Do artigo 64.º do CSC resulta que o mandato concedido aos administradores tem como fim primeiro a representação da sociedade (“no interesse da sociedade”) e como referência o interesse dos sócios e dos trabalhadores. Ou seja: o fim social e comum da sociedade. Não se trata dum dever para com os sócios ou trabalhadores, autonomizado, mas para com a sociedade como mandante.

Este dever de diligência deve ser apreciado em cada caso concreto e situa-se acima da exigência prevista para o bonus pater familiae, critério que tem a sua importância para averiguação da responsabilidade civil.

Desta forma o que está em causa neste artigo é o cumprimento do dever de actuar perante a sociedade e no seu interesse, com os reflexos (“tendo em conta”) que daí resultam para os sócios e os trabalhadores.

Nos sistemas de maior desenvolvimento económico e organização societária, tal princípio, longe de ser uma norma programática, pode funcionar e funciona como meio de controle dos investidores organizados sobre a forma de gestão das sociedades e de que são exemplo as corporate governance (ver SOARES DA SILVA, ROA n.º 57, p. 617). E também entre nós se pode dizer que, com o DL 82/98 de 2 de Abril, o fim de fiscalização da administração não é uma hipótese remota. Nos termos do art. 1.º se diz que se consideram “sociedades gestoras de empresas (SGE) as sociedades que tenham por objecto exclusivo a avaliação e a gestão de empresas, com vista à sua revitalização e modernização”, com a possibilidade de indicar “de entre os seus sócios, uma ou mais pessoas singulares que sejam designadas gerentes, administradoras ou directoras de outra sociedade comercial (art. 5.º, n.º 1)

Entendemos que esta norma, visa salvaguardar o bom funcionamento da sociedade e não defender os sócios contra actos ilegais que especificamente e de forma individualizada os atinjam. A relação nela contemplada não visa salvaguardar o interesse individual do sócio perante a sociedade, mas o dever do administrador para com a sociedade e a defesa do interesse social que a sua função determina.»

Para efectivar essa responsabilidade, existem vários tipos de acções sociais [ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades Comerciais, 3.ª ed., pp. 169 e ss.]:

acção sub-rogatória dos credores sociais: acção em que os credores se substituem à sociedade para exigirem dos administradores a indemnização que compete à sociedade (art.º 78.º n.º 2, do CSC);
acção social ut universi: proposta pela própria sociedade, sendo o procedimento natural para obter o ressarcimento dos danos causados à sociedade, verificados os pressupostos da responsabilidade civil dos administradores (artº 75.º do CSC), depende de deliberação prévia dos sócios tomada por simples maioria em assembleia geral e tem de ser proposta no prazo de seis meses a contar da deliberação;
acção social ut singuli: acção subsidiária em que os sócios que representem 5% do capital social) pedem a condenação dos administradores na indemnização pelos prejuízos causados à sociedade e não directamente a eles próprios (art.º 77.º do CSC).

A acção social uti singuli é subsidiária da anterior, uma vez que só pode ser proposta nos termos do art. 77.º n.º 1, quando a acção não tenha sido proposta pela sociedade ou por a respectiva assembleia geral não ter deliberado nesse sentido, ou por ter deixado correr o prazo de seis meses sobre a deliberação sem propor a acção.

Como diz PEREIRA DE ALMEIDA, (ob. cit., p. 133), trata-se de uma acção social e não de uma acção pessoal, porque os sócios vão pedir a condenação dos gerentes ou administradores na indemnização dos prejuízos causados à sociedade e não directamente a eles próprios. É uma acção social, da iniciativa de algum ou alguns dos sócios, que aproveita directamente à sociedade e por via disso, indirectamente a todos os sócios e não apenas àqueles que a propuseram. Nesta acção e uma vez que é proposta no interesse da sociedade, a lei exige a intervenção desta na acção (art. 77.º, n.º 4 do CSComerciais). Pois o sócio ou sócios que propõem a acção, fazem-no como meros substitutos processuais. Mas trata-se de uma substituição imprópria, em que se exige a presença simultânea do substituto processual e da parte substituída – ac. do STJ de 03.05.2000, na CJSTJ, tomo II, p. 41.

É uma acção social da iniciativa de algum ou alguns dos sócios que aproveita directamente à sociedade e por via disso, indirectamente a todos os sócios e não apenas àqueles que a propuseram.

A lei concede aos sócios que reúnam as condições referidas no n.º 1 do art.º 77.º legitimidade para instaurarem a acção uti singuli, não só no interesse da sociedade, como no seu próprio interesse, na medida em que este ficaria indirectamente lesado por a sociedade não intentar a acção social ut universi.

A indemnização que por este meio seja obtida ingressará no património da sociedade, pois, como expressamente refere o art.º 77.º, n.º 1, a acção tem em vista a “reparação, a favor da sociedade, do prejuízo que esta tenha sofrido” (COUTINHO DE ABREU e ELIZABETE RAMOS, Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores, p. 17).

O facto de a indemnização dever ser entregue à sociedade justifica-se apenas como modo de garantir por igual o interesse de todos os accionistas e de evitar uma multiplicação de acções ut singuli e a utilização destas como meio de antecipar a entrega de valores patrimoniais a que os accionistas só têm direito como quota de liquidação (RAUL VENTURA e BRITO CORREIA, estudo e suplemento citados, p. 429).

Na acção uti singuli, os sócios não actuam como representantes legais da sociedade: os sócios exercem em nome próprio um direito de outrem (da sociedade) para garantir o conteúdo do seu direito de participação social. Por isso, a lei exige a presença da sociedade na acção, através dos seus representantes legais, para que esta possa ser ouvida.

Como explicam RAUL VENTURA e BRITO CORREIA (idem, p. 435), para “a acção social ut singuli poder ser considerada procedente é necessário que o autor alegue e prove que o administrador é responsável para com a sociedade, mas a acção deve basear-se em qualquer dos factos constitutivos dessa responsabilidade: acto ou omissão, acto próprio ou acto de outrem, doloso ou negligente, ilegal ou antiestatutário, etc.

O administrador pode opôr ao accionista as mesmas excepções que poderia invocar contra a sociedade, inclusivamente o cumprimento de uma deliberação da assembleia geral e os factos extintivos da responsabilidade (renúncia, transacção, aprovação da gestão).”

Na situação vertente o Réu recorrente invoca ter, conjuntamente com o co-réu BB, alienado o prédio “Casal ...”, sob mandato da assembleia-geral, pelo que, em hipótese alguma, podem ser responsabilizados.

Nos termos do art.º 72.º, n.º 1, do CSC, “[o]s gerentes, administradores ou directores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.”

De tal normativo resulta, portanto, que os gerentes respondem civilmente para com a sociedade relativamente a danos causados a esta por factos próprios e violadores de deveres legais ou contratuais, a não ser que demonstrem ter agido sem culpa.

Sobre a responsabilidade civil dos gerentes se pronunciaram, a propósito do disposto no n.º 2 do art. 17.º do Decreto-Lei Lei n.º 49381, de 13 de Novembro de 1969 – cuja redacção corresponde ao disposto no n.º 1 do art. 72.º do CSC, e daí a sua pertinência –, RAUL VENTURA e BRITO CORREIA (Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas, citado, p. 412), nos seguintes termos:

“O n.º 2 do artigo 17.º, ao admitir, na parte final, que os administradores deixem de responder para com a sociedade «...se provarem que procederam sem culpa», constitui base segura para a qualificação dessa responsabilidade como responsabilidade subjectiva. A lei tem certamente em vista a responsabilidade por acto próprio, não fazendo qualquer referência a factos doutrem, ...”.

A avaliação da conduta dos gerentes, passível de integrar responsabilidade destes para com a sociedade, deve ter sempre em conta o dever geral de diligência contido no art. 64.º do CSC, segundo o qual aqueles “...devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.

Segundo RAUL VENTURA (Sociedades por Quotas, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. III, Coimbra, Almedina, 1991, p. 148 e 149) essa diligência “é um critério vinculativo para a apreciação da conduta do gerente no cumprimento de todos os seus deveres e “…não é apreciada como a culpa em concreto, em função do comportamento normal do próprio gerente. Há um padrão objectivo, que não é o do simples bom pai de família mas sim de um gestor dotado de certas qualidades. …”.

Daqui resulta, portanto, que os gerentes respondem civilmente para com a sociedade relativamente a danos causados a esta por factos próprios e violadores de deveres legais e/ou contratuais, a menos que demonstrem ter agido sem culpa.

Afigura-se-nos estarmos perante situações de responsabilidade obrigacional, como é defendido por grande parte da doutrina (Vide, entre outros, RAUL VENTURA, Dissolução, II, pp. 211 e ss., PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades Comerciais, pp. 109-111 e MENEZES CORDEIRO, Da Responsabilidade dos Administradores das Sociedades Comerciais, p. 493 e ss., embora este admita a hipótese de cumulação das duas responsabilidades), quer porque se considera que os administradores são mandatários (CUNHA GONÇALVES, Comentário, Vol I, pp 427 e s.), quer porque negando-lhes essa qualidade, se reconhece como fonte directa das obrigações dos administradores o acto negocial da nomeação (RAUL VENTURA, Dissolução II, sendo que esta obra e a anterior são referidas no estudo de RAUL VENTURA e BRITO CORREIA, várias vezes citado, a p. 120).

Ora, face ao disposto no citado art. 72.º, n.os 1 e 2 do CSC, e como já se deixou referido supra, a responsabilidade aí prevista é uma responsabilidade subjectiva, havendo que extrair daí as devidas consequências, pois, como afirmam R. VENTURA e BRITO CORREIA (op. cit. p. 414), “…[d]ecorre da parte final do n.º 2 deste artigo que a responsabilidade dos administradores é subjectiva, quer dizer assenta na culpa destes. Simplesmente recai sobre o próprio administrador, autor do acto, o ónus da prova de que não procedeu com culpa. Esta era já a regra do direito civil português no campo da responsabilidade obrigacional. …”.

Aliás, de forma esclarecedora, a propósito de tal tipo de responsabilidade, afirma MARIA ELISABETE G. RAMOS (ALEXANDRE SOVERAL MARTINS e OUTROS, Problemas do Direito das Sociedades, IDET, Almedina, 2003, p. 77) que “…o art. 72.º, n.º 1, patenteia um propósito de individualização da responsabilidade – responsáveis são os titulares do órgão administrativo e não o próprio órgão. Desde logo, o teor literal da norma é revelador deste intuito. Começa este preceito por identificar os sujeitos responsáveis dizendo que «os gerentes, administradores ou directores respondem para com a sociedade …» (art. 72.º, n.º 1). Ao que acresce que os gerentes, administradores ou directores são responsáveis por factos próprios. Aspecto que assume particular importância no contexto das sociedades que têm um órgão de administração de composição pluripessoal, porque revela que a mera circunstância de uma pessoa pertencer ao órgão de administração não é suficiente para a sua responsabilização. Manifestação deste intuito individualizador é, em minha opinião, o facto de o ordenamento jurídico ter optado claramente por fundar este tipo de responsabilidade da administração perante a sociedade na culpa dos Organträger e ter rejeitado imputações objectivas. …”.

A responsabilidade dos gerentes não terá, no entanto, lugar, nos termos do n.º 4 do citado artigo 72.º, quando o acto ou omissão assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável.

Relativamente a esta causa de exclusão da responsabilidade, já decidiu este Tribunal que “[a] regra que o n.º 4 do art.º 72.º do CSC estabelece, contém uma causa de justificação do acto praticado pelos gerentes em cumprimento de um dever imposto por uma deliberação anulável, mas já não de deliberação nula” e que [e]ssa regra não exclui a responsabilidade por actuação ilícita, nos termos do art.º 483.º do CC, por violação do interesse social na execução da deliberação que mandatou os gerentes para proceder à venda do bem da sociedade”. (Ac. de 10.1.2002, Agravo de n.º 3623/01-7.ª in Sumários 1/2002).

É incontroverso resultar da matéria de facto fixada que os sócios da EE decidiram vender a parcela de terreno pertença desta sociedade, sita no Casal ... – Grelhal, e que por deliberação da Assembleia Geral da mesma, em que estavam presentes ou representadas todas as quotas, foi decidido mandatar os gerentes. para procederem às negociações e outorga da escritura de venda do prédio “Casal ...”, para pagamento urgente de dívidas da sociedade.

Tal deliberação por si só nunca podia obstar à responsabilidade dos gerentes nos termos do art.º 72.º, n.º 4, do CSC, desde que provados os pressupostos da responsabilidade civil destes, como sucedeu.

Está igualmente dado como provado que os RR., ao concretizarem tal venda, não procuraram, por modo algum, realizar os interesses da sociedade, mas os seus próprios interesses, na medida em que bem sabiam que o prédio não tinha o valor de 20.000.000$00 – preço pelo qual foi realizada a escritura de venda à LL Trading, com a qual o R. BB estava relacionado, associando o seu nome à revenda feita por essa empresa à V.M.S. – Gestão Imobiliária, L.da, em escritura na qual está exarado o preço de 160.000.000$00.

Entenderam as instâncias que, no caso em apreço a intervenção da LL Trading, nos termos da matéria dada como provada, visou evitar a entrada nos cofres da EE do montante devido pelo justo valor da propriedade vendida, que era de, pelo menos, 130.000.000$00, o que os RR bem sabiam.

A este propósito, invocou-se a desconsideração da personalidade jurídica.

Fala-se em desconsideração da personalidade jurídica,“[q]uando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva” – Cf. MENEZES CORDEIRO, O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial, Almedina, 2000, p. 122 e ss; PEDRO CORDEIRO, A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, p. 77.

“Em tese geral, pode dizer-se que a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva, imposta pelos ditames da boa fé, se traduz no desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros”.

Nos casos de desconsideração, a própria sociedade (pessoa colectiva) desvia-se da rota traçada pelo ordenamento jurídico, optando por um comportamento abusivo e fraudulento que não pode ser tolerado na utilização funcional da sociedade ou de que aquela conduta não é substancialmente da sociedade mas do ou dos seus sócios (ou ao invés).
A sociedade é, assim, utilizada para mascarar uma situação; ela serve de véu para encobrir uma realidade – Cf. PEDRO CORDEIRO, ob. cit., p. 73, nota 75.

A desconsideração da personalidade jurídica engloba o abuso da personalidade e o abuso da responsabilidade limitada.

Tradicionalmente a desconsideração da pessoa colectiva é construída como técnica que permite subtrair o património (pessoal ou social) dos sócios ao benefício da responsabilidade limitada – v. RICARDO COSTA, Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 30, p. 10 e ss.

É neste domínio do abuso da responsabilidade limitada que o instituto da desconsideração da personalidade adquire toda a sua dimensão.

Hoje, estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, nessa vertente, podem conduzir à aplicação do referido instituto.
De entre elas, avultam: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal – v. RICARDO COSTA, loc. cit., pp. 13/14 e MENEZES CORDEIRO, Manual do Direito das Sociedades, I, p. 364.

Mas, também na vertente do abuso da personalidade se podem perfilar algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. Nessas hipóteses, desde que seja patente um comportamento abusivo e fraudulento por parte de determinado sócio, em prejuízo de terceiros, supera-se a capa da sociedade e passa a ver-se esse sócio, que responderá individualmente perante o lesado, após ser chamado a juízo – v. MENEZES CORDEIRO, Manual, p.369.

A desconsideração da personalidade jurídica só deverá, porém, ser invocada quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar. Por isso se diz que a aplicação desse instituto tem carácter subsidiário – v. AMILCAR FERNANDES, “Responsabilidade dos Sócios por Actos da Sociedade”, Textos do CEJ Sociedades Comerciais, 1994/1995, p. 65.

Para além disso, é ainda necessário determinar se existe e com que potencialidade uma actuação em fraude à lei.

E esta verificar-se-á aquando da existência de um efeito prejudicial a terceiros – Cf. acórdão da Relação do Porto de 24 de Janeiro de 2005, Processo n.º 0411080, in www.dgsi.pt.

Cremos que, quer pelos termos em que a acção foi proposta, quer pela natureza subsidiária do instituto, quer pela falta de prova dos respectivos pressupostos o instituto não tem de ser aqui utilizado.

No fundo o que as instâncias fizeram foi extrair do facto de a venda do prédio por uma quantia muito inferior à do seu real valor a uma sociedade a que um dos gerentes estava ligado, e ainda da circunstância de este ter intervindo na venda sucessiva do mesmo prédio pelo valor de 160.000.000$00, uma ilação do carácter ilícito do negócio e da negligência grosseira ou dolo dos RR.

Ou seja, e como se diz no acórdão recorrido de tais factos se extrai uma ilação que permite “afirmar que a venda realizada, por apenas 20.000.000$00 e muito abaixo do valor real da propriedade, não estava seguramente autorizada pelos sócios, nesses moldes, ao abrigo da deliberação social referida” e que se “evidencia manifestamente violação grosseira dos (…) deveres de gerentes”, por parte dos RR.

Não há, pois, censura a exercer sobre o decidido, na medida em que se considerou que a responsabilidade dos RR. gerentes não se mostra excluída, nos termos do art. 72.º, n.º 4 do CSC, com a consequência daí decorrente, da procedência do pedido.

III. Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.

Nas custas, vai condenado o recorrente.




Lisboa, 03 de Fevereiro de 2009

Paulo Sá (Relator)
Mário Cruz
Garcia Calejo