Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
AMEAÇA
ELEMENTOS DO TIPO
Sumário
Para quem não aufere outros rendimentos, configura uma “ameaça com mal importante” [art. 154.º, n.º 1, do CP] a privação, ainda que temporária, de quantias indispensáveis à satisfação de necessidades básicas, como é o caso de uma pensão de viuvez, no valor de € 145 e de um abono de família, no montante de € 54.
Texto Integral
Proc. nº154/10.8GCOAZ.P1
Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – B… veio interpor recurso da douta sentença do 2ª Juízo Criminal de Oliveira de Azeméis que o condenou, pela prática de um crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelo artigo 154º, nº 1 e 2, 22º, nº 1 e 2. e 73º, nº 1, a) e b), do Código Penal, na pena de cento e dez dias de multa, à taxa diária de 7,50 euros.
Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«1. O Meritíssimo Juiz a quo considerou que o arguido, mediante a ameaça de um mal importante, constrangeu a ofendida a praticar um tipo de acção.
2. Ora, in casu, não se afigura que o arguido tenha ameaçado a ofendida com um mal importante.
3. «Mal importante, para os fins do preceito incriminador, não é aos olhos do legislador um qualquer mal, mas um mal com acentuado relevo, um mal a que comunitariamente se é sensível, censurado pelo dano relevante ao nível físico ou psíquico a que a coacção conduz». Ac. do STJ, de 25.10.2006
4. In casu, existem vários aspectos relacionados com o comportamento da ofendida, da interpretação dos quais resulta que o aludido conceito de mal importante não se encontra preenchido.
Vejamos,
5. Em primeiro lugar, foi a própria ofendida quem, por sua iniciativa e vontade, abandonou o locado, o qual era a sua residência, sem previamente diligenciar pela alteração da sua correspondência. Se os cheques da viuvez e do abono, no valor total de €199,00, eram tão importantes para si porque razão ela própria não acautelou o seu envio para a nova morada, como aliás era sua obrigação?
6. Em segundo lugar, repare-se que a arguida admitiu em Juízo ter conhecimento que os aludidos cheques não eram endossáveis e que só poderiam ser levantados pela pessoa à ordem da qual se encontravam emitidos. Tais factos resultam, aliás, das regras da experiência comum e são factos notórios, os quais devem ser apreciados pelo Tribunal.
7. A ofendida sabia, pois, que o arguido jamais se poderia apropriar do valor titulado pelos cheques, reconhecendo, como tal, que esse prejuízo não lhe seria causado.
8. Em terceiro lugar, repare-se que a ofendida admitiu em Juízo que as cartas correspondentes aos cheques foram devolvidas ao remetente pelos serviços dos CTT e que lhe foram reenviadas cerca de três meses depois.
9. Ora, da conjugação dos supra aludidos factos, não se afigura, pois, que o comportamento do arguido tenha constituído a ameaça de um mal importante.
10. Nem a sociedade interpreta o comportamento do arguido comosendo um crime, nem a ofendida ficou atemorizada com a condutado arguido, pois bem sabia de antemão que os cheques jamais poderiam ser por este levantados e que indo à Segurança Social facilmente resolveria o problema do seu cancelamento e/ou emissão de segundas vias.
11. As palavras proferidas pelo arguido, as quais foram subsumidas pelo Meritíssimo Juiz a quo no conceito de mal importante, na verdade não forem susceptíveis a causar na ofendida uma qualquer limitação na sua vontade ou auto determinação, tanto que esta, (conforme admitiu em Juízo) não liquidou na altura a conta da luz respeitante ao locado e mantém-se até à presente data nesse propósito.
12. A conduta do arguido não preenche, pois, o tipo legal do crime de coação, previsto e punido no art. 154º do CP e, como tal, impunha-se a sua absolvição.
13. Ainda assim, a entender-se que se encontram preenchidos os elementos objectivos do crime de coação, o que só por mera cautela e dever de patrocínio de equaciona, certo é que culpa do arguido é diminuta e o grau da ilicitude dos factos é reduzido.
14. O arguido não teve intenção de obter um qualquer benefício ilegítimo nem de prejudicar a ofendida. Aliás, na realidade, as cartas referentes aos aludidos cheques nem sequer passaram pelas suas mãos; as mesmas foram devolvidas ao remetente pelos serviços dos CTT, facto expressamente declarado pela ofendida e sua filha, testemunha, em Juízo.
15. O arguido visava apenas que a ofendida cumprisse com o seu dever moral e contratual de liquidar a conta de electricidade. Foi esta quem gastou, cabia a esta pagar.
16. A medida concreta da pena aplicada ao arguido (pena de multa de €825,00) é desajustada face á sua culpa e ao grau de ilicitude dos factos.
17. Acresce que, in casu o arguido foi condenado por um crime de coação na forma tentada. Assim, além das atenuantes acima enunciadas, as quais, por si só, propugnavam por uma pena concreta mais reduzida, a mesma estava ainda sujeita aos critérios previstos para a punibilidade da tentativa fixados no 73º do CP, os quais não foram respeitados pelo Tribunal a quo.
18. Ora, considerando outras várias decisões do mesmo Tribunal recorrido, ainda que a propósito de outros crimes e consumados, verifica-se que a pena concreta aplicada ao caso sub judice é extremamente exagerada e desproporcional, situação corroborada face aos factos referentes á situação pessoal e económica do arguido constantes da matéria provada.
19. A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 154º, 71º e 73º do CP.»
Da resposta a tal motivação apresentada pelo Ministério Público constam as seguintes conclusões:
«A) A conduta pela qual o arguido foi condenado preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de coacção na forma tentada, nomeadamente o de ameaça com mal importante.
B) A pena concreta aplicada é justa e adequada.»
O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnado pelo provimento parcial do recurso, mantendo-se a condenação do arguido e recorrente pela prática de crime de coacção na forma tentada, e sendo reduzida a medida da pena (atendendo à ausência de antecedentes criminais) com a mesma taxa diária.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, por um lado, a de saber se a conduta do arguido, tal decorre da factualidade provada (que não é impugnada) configura “ameaça com mal importante” enquanto pressuposto do crime de coacção, e, por outro lado, a de saber se a pena em que o arguido foi condenado é excessivamente gravosa face aos critérios legais.
III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«Factos provados:
1 - O arguido foi durante cerca de dois anos senhorio da ofendida C….
2 – Entre meados de Maio e o início do mês de Junho de 2010, a ofendida informou o arguido de que nesse mês de Junho iria desocupar a casa, tendo ficado acordado entre ambos que a ofendida pagaria a conta da luz, referente ao último período em que viveu na casa propriedade do arguido, no fim do mês de Junho de 2010, atentas as dificuldades económicas da ofendida, tendo a filha da ofendida entregue as chaves que possuía da casa em momento anterior a 15.06.2010.
3 - No dia 15.06.2010, em casa do arguido, sita na Rua …, …, Oliveira de Azeméis, este, dirigindo-se à ofendida disse-lhe que tinha em seu poder os cheques referentes à pensão por viuvez e ao abono de família, no valor de € 145,00 e € 54,00, respectivamente, os quais pertenciam à ofendida, e que só lhos dava quando ela lhe pagasse a conta da luz, no valor de cerca de € 70,00, ao que a ofendida não acedeu.
4 - Com a conduta descrita, agiu o arguido de forma livre, com o propósito não concretizado de coagir a ofendida a entregar-lhe uma quantia em dinheiro, bem sabendo que agia contra a sua vontade e que lhe causava um prejuízo patrimonial, porquanto a ofendida dependia da sua pensão por viuvez e do abono de família, para fazer face às suas despesas mais elementares, tendo recebido os montantes em causa apenas três meses mais tarde.
5 - O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida pela lei penal.
6 – O arguido é gerente da empresa D…, Lda., retirando dessa actividade pelo menos o montante de 550,00€ mensais.
7 – A esposa do arguido trabalha também nesta empresa auferindo 550,00€ mensais.
8 – O arguido vive em casa própria, que adquiriu com recurso a empréstimo bancário, suportando o pagamento de uma prestação de 300,00€ mensais.
9 – Tem uma filha com 7 anos de idade.
15 – O arguido não tem antecedentes criminais ou processos-crime pendentes. Factos não provados:
De resto não se provaram outros factos, designadamente que:
a) A ofendida tenha entregue as chaves da casa ao arguido no dia em que lhe comunicou que ia deixar de habitar a casa.
b) O valor da conta da luz fosse de 71,12 €. Motivação:
A convicção do tribunal, relativamente aos factos provados resultou da análise critica de todas as provas atendíveis tais como os depoimentos das testemunhas C… e E… prestados em audiência de julgamento, analisadas entre si e conjugadas com as regras da experiência comum.
O arguido usou o direito ao silêncio apenas prestando declarações quanto às suas condições sociais e económicas.
A ofendida C… e a testemunha E…, sua filha, prestaram declarações que nos mereceram credibilidade.
De forma clara e coerente relataram as circunstâncias em que habitaram a casa do arguido e a posição deste, quando lhe pediram as entrega dos cheques relativos à pensão e abono de família. A testemunha C… esclareceu ter acordado com o arguido quando lhe comunicou que iria sair que a conta da luz seria paga no final do mês, na medida em que nessa altura o seu filho receberia o vencimento e disporia de dinheiro para o efeito. Referiu ainda as diligências que efectuou junto do Centro Nacional de Pensões e da Segurança Social, tendo destes obtido informação de que os cheques haviam sido enviados e posteriormente devolvidos.
A testemunha E… referiu o teor da conversa tida com o arguido, em que este lhe confirmou ter consigo os cheques relativos à pensão de viuvez da sua mãe e ao abono de família, esclarecendo que este lhe havia referido que apenas os entregaria à ofendida.
Esclareceu que então foi buscar a sua mãe, e que este se recusou a entregar-lhe os cheques enquanto esta não pagasse a conta da luz ainda em débito.
A ofendida havia prestado depoimento nesse mesmo sentido, igualmente de forma clara e credível.
Aliás a testemunha E… esclareceu não saber se a sua mãe havia já entregue ou não as suas chaves ao arguido mas que ela própria já o havia feito, razão pela qual não se dirigiu à casa e abordou o arguido referindo que este lhe confirmou ter com ele os cheques em causa.
Ambas as testemunhas depuseram no sentido de que os sobrescritos contendo a pensão e o abono eram colocados por baixo da porta. Esclareceram ainda que o montante da pensão e do abono apenas foi recebido passados três meses, o que acarretou dificuldades para a ofendida que desses montantes dependia para o seu dia-a-dia.
Tendo em conta estes depoimentos aparentemente sérios o Tribunal convenceu-se que os factos decorreram da forma descrita na factualidade provada.
Os factos não provados resultaram do facto de as testemunhas apenas conseguirem avançar com um montante que rondava os 70,00€ relativos à conta da luz, não tendo conseguido precisar o exacto montante e ainda porque a testemunha C… referiu que apenas no dia em que pediu a entrega dos cheques ao senhorio lhe entregou as suas chaves. Direito:
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
Nos termos do art. 154º nº 1 do Código Penal é punida com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa a conduta de quem por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade.
No nº 2 do art. 154º do Código Penal vem consagrada a punição da tentativa.
O crime de coacção é um crime de resultado, cujo bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção. O seu tipo objectivo de ilícito consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento, como seja praticar uma acção ou omissão de conduta. A conduta coagida pode ser uma qualquer, independentemente da sua relevância jurídica ou até social.
Conforme se escreve no Comentário Conimbricense, T. I, p. 354, A ameaça com mal importante que o crime pressupõe pode respeitar a "acções que apenas restringem a liberdade de (decisão e de) acção – as acções de constrangimento em sentido estrito, ou seja a tradicional vis compulsiva –, mas também as acções que eliminam, em absoluto, a possibilidade de resistência a chamada vis absoluta – bem como as acções que afectam os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, isto é, a própria capacidade para decidir – como são as hipóteses de coacção mediante hipnose ou intoxicação".
Por outro lado, o crime de coacção, diferentemente do crime de extorsão (relativamente ao qual se encontra numa relação de concurso aparente a resolver pela regra da especialidade a favor do segundo) na medida em que neste se pressupõe uma disposição patrimonial que implique um enriquecimento ilegítimo.
O tipo subjectivo de ilícito pode preencher-se com qualquer umas das modalidades de dolo, previstas n o art. 14º do Código Penal.
Sendo um crime de resultado, a sua consumação pressupõe, pelo menos, o início de execução da conduta coagida. Se o objecto da coacção for a prática de uma acção, a coacção consuma-se, quando o coagido iniciar esta acção. Se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou de reagir.
Nos termos do artigo 22º nº1 do CP há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, sendo actos de execução, nomeadamente, os que preenchem um elemento constitutivo do tipo e os que forem idóneos a produzir o resultado.
Ora, como resulta dos factos provados, a coacção exercida pelo arguido destinava-se a lograr junto da ofendida que esta lhe pagasse a conta da luz que estava em débito.
Com efeito, não se tendo verificado o resultado exigido pela norma tipificadora do crime de coacção e que consistia naquele desiderato que era imposto à ofendida, mas tratando-se de ameaça de mal importante, na medida em que efectivamente através da retenção dos cheques o arguido visava compelir e restringir a actuação da ofendida causando-lhe o temor pela ocorrência de um facto futuro nocivo - o arguido sabia que agia contra a vontade da ofendida e que a aludida retenção lhe causava um prejuízo patrimonial, porquanto a ofendida dependia da sua pensão por viuvez e do abono de família, para fazer face às suas despesas mais elementares - e assim visando restringir a sua liberdade de decisão, e que o resultado pretendido apenas não se veio a ocorrer por circunstâncias estranhas à actuação deste, cai a situação presente no âmbito da tentativa, já que a actuação do arguido, tendo incluído actos de execução do crime de coacção arrastou consigo o perigo concreto e real de violação do bem jurídico, concluindo-se assim, que o crime de coacção existiu, mas cometido sob a forma de tentativa, punível, nos termos dos arts: 154°, nº 1 e 2, 22°, nºs 1 e 2 e 23°, nºs 1 e 2, todos do Código Penal. Da escolha e medida da pena:
Para o tipo de crime em causa estabelece a lei penal a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias, sendo que face à qualificação jurídica acima operada haverá que considerar o disposto no nº 2 do art. 23º do Código Penal e art. 73º do mesmo diploma legal, passando a moldura penal da pena de multa a ser de 10 a 240 dias e a pena de prisão até 2 anos. Quanto à natureza da pena:
O critério de escolha da pena encontra-se previsto no art. 70º do Código Penal.
Resulta desta disposição legal que "se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição", as quais consistem na protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, n.º 1 do Código Penal).
Considerada a ausência de antecedentes criminais do arguido e que este se encontra socialmente integrado, a reafirmação das expectativas comunitárias será atingida sem necessidade de aplicação de uma pena de prisão. Sendo além do mais além do mais, a pena de multa que, face ao quadro traçado, do ponto de vista das exigências da prevenção especial, mais adequadamente satisfaz as finalidades da punição. Vejamos então qual o seu quantum:
Resulta do art. 71º, n.º 1 do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos referidos preceitos legais, far-se-á em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial do agente, determinando o n.º 2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor da arguida, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio "ne bis in idem", uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstracta).
Para o efeito, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos – dentro do que é considerado pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
As exigências de prevenção geral mostram-se, “in casu”, acentuadas, pois a comunidade tem necessidade de sentir que apesar de violadas as normas que protegem a liberdade de acção e decisão de outra pessoa se mantêm em vigor. As exigências de prevenção especial são baixas.
O dolo foi intenso porque directo.
A ilicitude dos factos foi mediana, tendo em conta a concreta actuação do arguido.
Existiram consequências dos seus actos, na medida em que a ofendida apenas três meses mais tarde recebeu os montantes em causa que lhe eram necessários à satisfação das suas necessidades elementares.
O arguido não tem antecedentes criminais e está integrado familiar e socialmente, já que é gerente de uma sociedade que se dedica ao fabrico de sapatos e vive com a esposa e uma filha menor de idade, desconhecendo-se ainda qualquer comportamento anterior ou posterior merecedor de censura.
Pelo exposto, considerando a gravidade sugerida pelos factos em apreciação, e os factores acima expostos entendo adequado fixar a pena de multa em 110 dias.
Na fixação do montante diário da multa a aplicar terá que considerar-se que esta enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento. (cfr. Américo Taipa de Carvalho, in As Penas no Direito Penal Português após a revisão de 1995, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Vol. II, pág. 24. E também que, como se refere no AC do STJ de 02.10.97 in C.J., STJ, T. V, pág. 183, que “o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar”. No mesmo sentido, pode ainda, ver-se o Ac. R.C. de 17.04.2002, in C. J., Ano XVII, T. II, pág. 58.
Neste e particular apurou-se que o arguido é gerente de uma sociedade comercial auferindo pelo menos 550,00€ mensais. A sua esposa trabalha na mesma empresa auferindo idêntica quantia. Vive em casa própria pagando 300,00€ mensais de prestação relativa a um empréstimo contraído para aquisição da mesma.
Assim, tudo ponderado, entendo adequado fixar o montante diário em €7,50€.»
IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a sua conduta, tal como decorre da factualidade provada (que não é impugnada nos termos do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal) não configura “ameaça com mal importante” enquanto pressuposto do crime de coacção.
Nos termos do artigo 154º, nº 1, do Código Penal, é punível a conduta de quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade.
Resulta dos factos considerados provados na douta sentença recorrida que o arguido e recorrente, na ocasião e local mencionados, se dirigiu a uma sua antiga inquilina, dizendo-lhe que tinha em seu poder os cheques referentes à pensão por viuvez e ao abono de família, no valor de 145 euros e 54 euros, respectivamente, os quais a ela pertenciam; e que só lhos dava quando ela lhe pagasse a conta da luz relativa à casa que lhe tinha arrendado, no valor de cerca de 70 euros; ao que ela não acedeu Resulta também que a pessoa em causa dependia dessa pensão e desse abono de família para fazer face às suas despesas mais elementares, tendo ela recebido os montantes em causa apenas três meses mais tarde.
Alega o arguido e recorrente que a sua conduta não configura uma “ameaça com mal importante” porque a ofendida poderia ter diligenciado pela alteração da sua morada constante dos serviços da Segurança Social, e assim ter evitado que os cheques não fossem por ele recebidos; que a ofendida sabia que ele jamais se poderia apropriar do valor titulado pelos cheques; que as cartas referentes aos cheques foram devolvidas ao remetente e cerca de três meses depois foram reenviadas; que ela poderia ter resolvido o problema solicitando junto dos serviços de segurança social o cancelamento dos cheques e emissão de segundas vias dos mesmos; que, por isso, ela não ficou atemorizada, tanto que não pagou a conta da luz em causa; e que a sociedade não interpreta o seu comportamento como sendo um crime.
Parece claro que ao recorrente não assiste razão.
O facto de a ofendida poder ter evitado que o arguido se tivesse apoderado dos cheques em questão em nada invalida o facto de a conduta deste configurar uma ameaça com mal importante. Não é por ser evitável que essa conduta deixa de configurar uma ameaça com mal importante.
O facto de o arguido não se ter apropriado do valor titulado pelos cheques (nem tal ser possível) também não invalida o facto de a sua conduta configurar uma ameaça com mal importante. Esse mal não reside nessa apropriação, mas no facto de a ofendida se ver privada desse valor. E essa privação pode ser temporária. Uma vez que a pensão e abono em causa se destinam à satisfação de necessidades básicas, e a ofendida não aufere outros rendimentos, essa privação não deixa de ser um mal importante pelo facto de ser temporária, ou pelo facto de ela ter acesso mais tarde (no caso em apreço, tal veio a verificar-se efectivamente três meses mais tarde) aos valores em causa. Também a circunstância de o problema se poder resolver através do cancelamento do cheque e emissão de segundas vias, o que implicará sempre algum atraso, não invalida que essa privação temporária se traduza num mal importante.
De resto, a conduta do arguido só se compreende precisamente porque está em causa um mal importante. Na lógica da sua actuação, só a ameaça de um mal importante levaria a ofendida a pagar a quantia que a ele era devida, o que ele pretendia. Se não estivesse em causa um mal importante (porque a ofendida sempre teria acesso à quantia em causa mais tarde), é óbvio que tal desiderato nunca seria obtido e não se compreenderia, racionalmente, a conduta do arguido.
Também não pode dizer-se que não está em causa a ameaça de um mal importante porque a ofendida não chegou a pagar a dívida em causa e, por isso, a conduta do arguido não a atemorizou. A ofendida não chegou a pagar tal dívida, o que o arguido pretendia com o seu comportamento. Por isso, o crime de coacção não se consumou. Mas está em causa uma tentativa, que é punível (nº 2 do citado artigo 154ª). E dessa não consumação não pode retirar-se que não se verificava a ameaça com um mal importante. O que com toda a probabilidade se terá verificado foi que a ofendida não tenha tido meios de pagar essa dívida, mesmo sob ameaça desse mal. Mas também não é o facto de não se ceder a uma ameaça, seja quais forem os motivos, que permite concluir que não se verifica a ameaça, ou que o mal ameaçado não é importante (se assim fosse, não se justificaria a punição da tentativa).
É óbvio que, no plano da interpretação legal e dos critérios ético-sociais prevalentes na sociedade, configura um mal importante, para quem não aufere outros rendimentos, a privação, ainda que temporária, de quantias indispensáveis à satisfação de necessidades básicas, mais concretamente de uma pensão de viuvez no valor de 145 euros e de um abono de família de 54 euros
Assim, o recurso em apreço não merece provimento quanto a este aspecto.
IV 2. – Vem o arguido e recorrente alegar que a pena de multa em que foi condenado é excessivamente severa, pois agiu com intenção de obter o pagamento de uma quantia que lhe era devida e não teve intenção de obter um beneficio ilegítimo ou prejudicar a ofendida, sendo diminutos o seu grau de culpa e o grau de ilicitude da sua conduta; que deverá partir-se da a moldura de pena correspondente à tentativa; e que não se verifica adequação à sua situação económica.
Vejamos.
O crime em questão, praticado sob a forma tentada, é punível com pena de multa de 10 a 240 dias ou de prisão de 30 dias a 2 anos (artigos 154º, nº 1; 23º, nº 2, e 73º, nº 1, do Código Penal).
Na escolha das penas em questão e na determinação das respectivas medidas concretas, há que considerar as seguintes disposições do Código Penal.
De acordo com o artigo 40º, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (nº 1), sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2).
Nos termos do artigo 70º, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Nos termos do nº 1 do artigo 71º, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. E, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, nessa determinação o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (alínea a)); a intensidade do dolo ou da negligência (alínea b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (alínea c)); as condições pessoais do agente e a sua situação económica (alínea d)); a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (alínea e)); a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (alínea f)).
Agrava de modo particular a conduta do arguido o facto de ela ter tido como consequência que a ofendida se tenha visto privada durante três meses de uma quantia indispensável à satisfação das suas necessidades básicas. O arguido tinha consciência deste prejuízo e quis provocá-lo. Esta circunstância, por si só, impede que se afirme que são reduzidas a ilicitude dessa conduta ou a culpa do arguido.
A circunstância de o arguido pretender com a sua conduta o pagamento de uma quantia que lhe era devida não pode deixar de ser considerada. Mas estamos, claramente, perante uma situação em que o fim legítimo não justifica o meio ilícito (ver, sobre a questão a propósito do crime de coacção, Américo Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, anotação ao artigo 154º, pgs. 362 e 363.). E verifica-se uma acentuada desproporção entre o prejuízo que para o arguido decorria da falta de pagamento da dívida em causa (de cerca de 70 euros) e as consequências que para a ofendida, que não aufere outros rendimentos, decorriam da privação (que veio a ocorrer durante três meses) de uma pensão de viuvez e de um abono de família indispensáveis à satisfação das suas necessidades básicas.
Também deve ser tido em conta, como circunstância atenuante, que o arguido não tem antecedentes criminais.
A esta luz, não se afigura desajustada a pena de cento e dez dias de multa em que o arguido foi condenado, pena situada a meio da moldura da pena de multa correspondente ao crime de coacção p. e p. pelo artigo 154º, nº 1, do Código Penal, tendo em conta a atenuação especial decorrente das disposições combinadas dos artigos 23º, nº 2, e 73º, nº 1, do Código Penal.
Quanto à taxa diária correspondente a essa multa, também não se afigura que seja desajustada à situação económica do arguido, pois que tal taxa não se afasta muito do mínimo legal (7,50 euros, quando tal mínimo é de 5 euros, nos termos do artigo do Código Penal) e o arguido é gerente de uma empresa industrial de calçado.
Impõe-se, pois, a improcedência total do presente recurso.
O arguido e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais)
V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a douta sentença recorrida.
Condenam o arguido e recorrente em 4 U.C.s de taxa de justiça.
Notifique.
Porto, 16/11/2011
processado em computador e revisto pelo signatário
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
Eduarda Maria de Pinto e Lobo