SEGURANÇA PRIVADA
Sumário

I- Na vigência da lei 38/08, a atividade de segurança privada, voluntária ou por imposição legal, está condicionada à obtenção de uma autorização prévia, sendo punível como crime quer a falta do alvará ou licença, quer a falta do respetivo cartão profissional.
II- Enquadra-se no conceito de segurança privada a atividade do arguido que “franqueava a porta sempre que um cliente chegava, entregava e recebia os cartões referentes ao consumo dos clientes e controlava a entrada e saída dos mesmos”.

Texto Integral

Proc. nº 26/08.6PEVRL.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 26/08.6PEVRL, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, foram os arguidos B… e C…, julgados e condenados nos seguintes termos:
- «Face ao exposto, julga-se a acusação inteiramente procedente, por provada e, em consequência, condena-se, como autor material:
a) O arguido B…, pela prática de um crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada, p. e p. pelo art. 32º-A nºs 1 e 2 do D. L. nº 35/2004 de 21/02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 38/2008 de 08/08, na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de € 5;
b) O arguido C…, pela prática de um crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada, p. e p. pelo art. 32º-A nº 1 do D. L. nº 35/2004 de 21/02, com as alterações introduzidas pela Lei nº 38/2008 de 08/08, na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de € 5.
c) No pagamento das custas que se fixam em 2UC e demais encargos.»
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Inconformados com a decisão, vieram os arguidos B… e C…, apresentar o recurso conjunto de fls. 269 a 280, tendo apresentado as seguintes conclusões:
«1. A sentença recorrida não valorou e interpretou devidamente a prova produzida em audiência de julgamento e não fez o correcto enquadramento jurídico dos factos dados como provados, não tendo feito, por isso, a melhor apreciação do direito aplicável ao caso, designadamente ao integrar a conduta do arguido C… como actividade de vigilância tal como a mesma vem configurada no referido DL 35/2004 de 21/02, com as alterações introduzidas pela Lei nº 38/2008.
2. Retira-se que o Tribunal Recorrido partiu do pressuposto de que as funções relatadas na acusação como exercidas pelo arguido C… se traduziram em funções de vigilância e que o arguido B… não só sabia que o arguido C… exercia tais serviços de vigilância no estabelecimento por si explorado, como ainda que não os podia utilizar.
3. Ao contrário do doutamente decidido, constituí elemento do crime de exercício ilícito de segurança privada estar a entidade ou espaço obrigada a adoptar sistema de segurança privada, tal como o mesmo vem regulamentado no citado n° 3 do art. 4°, do D. L. 35/2004 de 21/02, com as alterações introduzidas pela Lei n° 38/2008 de 08.08.
4. O Tribunal Recorrido (cfr. fls. 260 da sentença condenatória) considerou não se ter apurado a obrigatoriedade do referido estabelecimento ter um serviço de segurança.
5. A ser assim e sem necessidade de mais considerações deveria a Mmª Juiz a quo ter decidido pela absolvição dos arguidos.
6. Sem prescindir, entendeu ainda o Tribunal Recorrido que as funções exercidas pelo arguido C… – “que franqueava aporta sempre que um cliente chegava junto da mesma, entregando e recebendo os cartões referentes ao consumo dos clientes, controlando a entrada e saída dos mesmos” (cfr. factos dados como provados) - traduziam-se em funções de vigilância.
7. As funções de vigilância descritas no n° 1, al. a) do art. 2º do invocado diploma legal, vêm descritas de uma forma cumulativa no sentido de abranger actos ou tarefas de guarda de bens móveis e imóveis, controlo de entrada, presença e saída de pessoas, de prevenção de entrada de armas e objectos susceptíveis de violência no interior de edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público.
8. Ainda que partindo dos factos dados como provados pela Mmª Juiz a quo, franquear a entrada de clientes, entregar e receber cartões de consumo dos clientes e controlar a entrada e saída dos mesmos, parece-nos, salvo melhor entendimento, que tais actos não integram a prática de serviços de segurança privada previstos no invocado preceito legal.
9. Não tendo ficado demonstrado que competia ao arguido a vigilância de bens móveis e imóveis, o controlo da presença de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou susceptíveis de provocar actos de violência, dúvidas não restam que não podia a Mmª Juiz a quo dar como certo que os serviços prestados pelo arguido se tratavam de serviços de vigilância.
10. Além de que, não ficou demonstrado nos autos que o local em questão “D…” se tratava de um espaço ou estabelecimento de acesso vedado ou condicionado ao público, pelo que, devia a Mmª Juiz a quo ter feito constar não se ter apurado que as funções exercidas pelo arguido C… eram funções de vigilância e, em consequência absolver o citado arguido.
11. De salientar ainda que e sempre com o merecido respeito, o arguido B… não aceita a condenação de que foi alvo através da douta sentença recorrida, em razão de terem sido dados como provados factos em relação aos quais nenhuma prova produzida.
12. Bem ao invés, foi produzida prova no sentido diametralmente oposto, designadamente que na altura dos factos não era o arguido B… quem explorava directamente o estabelecimento comercial, mas a testemunha da acusação E…, não tendo sido do conhecimento do arguido a solicitação que este fez ao arguido C…. 13. Assim, não se verificou qualquer prova no tocante ao conhecimento dos arguidos da necessidade de se encontrarem habilitados para o exercício da actividade de vigilância privada, muito menos que o arguido C… exercesse tal actividade com carácter regular, já que foi só naquela noite que se encontrou a entregar e a receber cartões de consumo, sendo que relativamente ao arguido B… nenhum meio de prova foi produzido quanto ao conhecimento ou consciência da obrigatoriedade de dispor de serviços de vigilância prestados por pessoa habilitada para o efeito.
14. Em consequência, os referidos factos deviam ter sido dados como não provados pela Mmª Juiz a quo, bem assim, devia ser dado como não provado que o arguido B… sabia que tal utilização era proibida e punida por lei, o mesmo acontecendo relativamente ao arguido C…, já que o mesmo não sabia que as tarefas por si prestadas naquela noite integravam funções de vigilância e que para tal teria que estar legalmente habilitado.
15. Assim não tendo decidido, violou a douta decisão em crise, entre outras, as disposições conjugadas dos artigos dos arts. 2° e 4° do DL, 35/2004 de 21/02, com as alterações introduzidas pela Lei n° 38/2008 de 08.08 e ainda dos arts. 71° n° 1, 137° nº 1 do cód. penal e arts. 28° e 32° da CRP.
Terminam pelo provimento do presente recurso e em consequência ser revogada a sentença recorrida, absolvendo-se os arguidos pela prática dos crimes exercício ilícito de actividade de segurança privada em que foram condenados, assim se fazendo melhor e acostumada Justiça.»
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O Ministério Público respondeu nos termos de fls. 301 a 309, defendendo a improcedência do recurso e articulando as seguintes conclusões:
1. Atento aos factos dados como provados pelo tribunal a quo, não restam dúvidas que a conduta do arguido/recorrente B… é subsumível no artº 32°-A n° 1 e 2 do D. L. n° 35/2004 de 21/02 e o comportamento do arguido/recorrente C… pelo tipo legal previsto no n° 1 do citado preceito legal.
2. Não sendo, por isso de subscrever o invocado pelos recorrentes, quando defendem que o regulado no artigo 4° n° 3 do DL 35/2004 de 21/02 é elemento do tipo regulado no artigo 32°-A, do diploma em apreciação.
3. E bem assim, quando consideram que o tribunal a quo ao dar como assente que, “No interior do dito estabelecimento, junto à porta encontrava-se o arguido C…, que franqueava a porta sempre que um cliente chegava junto da mesma, entregando e recebendo os cartões referentes ao consumo dos clientes, controlando a entrada e saída dos mesmos” – tal conduta não é enquadrável no artigo 2°, n° 1, alínea a) do DL 35/2004 de 21/02.
4. Acresce ainda, que não assiste razão aos recorrentes quando dizem que desconheciam que havia necessidade do segurança do retendo estabelecimento comercial se encontrar habilitado para o exercício da actividade de segurança. Pois a prova produzida em julgamento infirma de forma peremptória tais argumentos.
5. Desta forma, concluímos que foi feita uma correcta interpretação do diploma legal em crime, e que não foi violado, designadamente, o disposto nos artigos 28° e 32°, ambos da CRP.
6. Assim sendo, bem andou o tribunal a quo quando condenou os arguidos/recorrentes.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, assim se fazendo Justiça».
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Neste Tribunal, o Exº Procurador-Geral Adjunto, emitiu o douto parecer de fls. 319, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
Conforme jurisprudência pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) todos do cód. procº penal)[1].
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Objecto do recurso
Considerando as conclusões apresentadas importa apreciar e decidir a seguinte questão suscitada:
- Erro na valoração da prova;
- Qualificação jurídica dos factos.
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FACTOS PROVADOS
Foram dados como provados os seguintes factos:
No dia 5 de Outubro de 2008, pela 01h15, dois agentes da PSP de …, no âmbito de uma acção de fiscalização que incidia sobre segurança privada, procederam à fiscalização do bar denominado “D…”, sito na …, em …, o qual é gerido de facto e explorado pelo arguido B….
No interior do dito estabelecimento, junto à porta encontrava-se o arguido C…, que franqueava a porta sempre que um cliente chegava junto da mesma, entregando e recebendo os cartões referentes ao consumo dos clientes, controlando a entrada e saída dos mesmos.
O arguido C… não se encontrava devidamente credenciado e habilitado para o exercício de tal actividade, não sendo titular de cartão profissional, não obstante saber que tal era necessário.
O arguido B… sabia que não podia utilizar os serviços do arguido C…, porquanto era do seu conhecimento que o mesmo prestava tal serviço de vigilância, sem estar credenciado e habilitado para o exercício de tal actividade, sem ser titular de cartão profissional, tanto assim, que no âmbito de fiscalização anterior foi o arguido informado pelos agentes de autoridade que os serviços de segurança e vigilância tinham que ser prestados por pessoa habilitada para o efeito.
O arguido C… agiu ciente de que não se encontrava habilitado para o exercício das funções de vigilância e, apesar disso, exerceu tal actividade.
O arguido B… ao actuar da forma descrita, sabia que a utilização dos serviços de vigilância por parte do arguido C… era proibida e punida por lei, dada a falta de habilitação para o seu exercício.
Ao agirem da forma descrita, os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O arguido B… é divorciado, explora o estabelecimento de sua propriedade “D…”, auferindo mensalmente quantia não inferior a €470.
Tem de habilitações literárias o bacharelato em Relações Públicas.
O arguido C… é solteiro e vive com os pais.
Exerce a actividade profissional de canalizador, pela qual aufere cerca € 600 mensais.
Paga a quantia mensal de € 250,00 a título de empréstimo ao consumo.
Tem de habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.
O arguido B… foi condenado pela prática de um crime de desobediência, por sentença de 22/02/2002, transitada em julgado, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6; de um crime de falsificação de documento, por sentença de 20/03/2002, transitada em julgado, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5; de um crime de desobediência, por sentença de 11/07/2007, transitada em julgado, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de € 7.
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“Motivação – Tribunal “a quo”
O Tribunal teve em conta os princípios e regras legais sobre os meios de prova, sua obtenção e força probatória atribuída por lei, tendo em consideração, em especial o preceituado no artº 127º do cód. procº penal, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Foi com base neste princípio, conjugado com a análise crítica das provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento que o Tribunal alicerçou a sua convicção, nomeadamente:
Nas declarações dos arguidos, que pese embora não terem confessado os factos que lhes são imputados, deixaram antever a função que foi desempenhada pelo arguido C… nas circunstâncias de tempo e lugar referenciadas, nas quais se incluía a entrega e recolha de cartões de consumo, distribuídos a todos os clientes à entrada do estabelecimento bar, como forma de controlo do seu pagamento. Foram ainda atendidas as suas declarações quanto à sua situação pessoal e familiar, que foram valoradas positivamente.
No depoimento dos agentes da PSP, F… e G…, os quais foram peremptórios em descrever as funções desempenhadas pelo arguido C… no referido estabelecimento, ambos dando conta que o mesmo se encontrava posicionado de pé junto à porta, no interior do bar, franqueando-a aos clientes que pretendiam entrar e sair do mesmo, controlando a entrega e recolha de cartões de todos os clientes. Acrescentou a testemunha F…, que já em Fevereiro de 2008, o primeiro arguido fora informado da necessidade de habilitação para o exercício das funções de segurança ou de vigilância do bar, que levou ao levantamento de um auto decorrente da inexistência da mesma por parte de quem, à data, as desempenhava.
Nos doc. de fls. 6, 103 e 129 e no c.r.c. de fls. 243/246”.
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DIREITO – Do mérito do recurso
Os recorrentes alicerçam a sua discordância quanto à sentença recorrida, tanto na matéria de facto dada como provada, como na qualificação jurídica dos factos. Todavia, no tocante à pretensa impugnação da matéria de facto dada como provada, com o fundamento de que o tribunal terá ajuizado erradamente as provas produzidas e que alguns dos factos assentes não têm suporte probatório, cumpre esclarecer alguns aspectos cruciais.
Alegam os recorrentes nas conclusões de recurso, que “não tendo ficado demonstrado que competia ao arguido a vigilância de bens móveis e imóveis, o controlo da presença de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou susceptíveis de provocar actos de violência, dúvidas não restam que não podia a Mmª Juiz a quo dar como certo que os serviços prestados pelo arguido se tratavam de serviços de vigilância.
(…)
- O arguido B… não aceita a condenação de que foi alvo através da douta sentença recorrida, em razão de terem sido dados como provados factos em relação aos quais nenhuma prova produzida.
- Bem ao invés, foi produzida prova no sentido diametralmente oposto, designadamente que na altura dos factos não era o arguido B… quem explorava directamente o estabelecimento comercial, mas a testemunha da acusação E…, não tendo sido do conhecimento do arguido a solicitação que este fez ao arguido C….
- Assim, não se verificou qualquer prova no tocante ao conhecimento dos arguidos da necessidade de se encontrarem habilitados para o exercício da actividade de vigilância privada, muito menos que o arguido C… exercesse tal actividade com carácter regular, (…)”.
Perante estas conclusões, (e também da própria motivação) não podemos considerar, que os recorrentes tivessem dado cabal cumprimento ao disposto no artº 412º nº 3 do cód. procº penal, quanto à impugnação da matéria de facto que exige expressamente:
- «Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas».
Uma vez que as Relações conhecem de facto e de direito (artº 428º do cód. procº penal), o recurso pode ter como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, todavia, impõe-se que os recorrentes dêem cumprimento à norma acima referida, sob pena de não se conhecer do recurso nessa parte. E, sendo utilizada tal forma de pôr em crise a matéria de facto, o Tribunal poderá modificar a decisão sobre a matéria de facto nos termos do artº 431º, al. b), do cód. procº penal.
Significa isto que o tribunal, reapreciando a prova produzida, na parte concretamente indicada pelo recorrente (als. a) e b) do nº 3 do artº 412º do cód. procº penal), e sem prejuízo de poder ouvir ou visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do cód. procº penal), ou renovando a prova, se tal lhe for requerido (artº 412º, nº 3, al. c) e 431º, al. c), do cód. procº penal), vai averiguar se perante a prova produzida, o tribunal procedeu adequadamente ao fixar a matéria de facto provada e não provada.
A outra forma de colocar em crise a decisão sobre a matéria de facto é invocando qualquer dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do cód. procº penal, sem prejuízo de os mesmos deverem ser conhecidos, mesmo que não tenham sido invocados. Todavia, nestes casos, o que está em causa é a apreciação da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como expressamente se prevê no indicado nº 2 do artº 410º do cód. procº penal.
Não tendo os recorrentes dado cumprimento ao disposto no artº 412º nº 3, do cód. procº penal, indicando com rigor quais os pontos da matéria de facto que consideravam incorrectamente julgados, (apenas genericamente o fizeram), nem indicado as provas que em concreto imporiam decisão diversa, não há que conhecer do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto propriamente dita.
O recurso em matéria de facto não constitui um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância como se o julgamento ali realizado não existisse, mas sim um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros[2].
Do que se trata, neste caso, é apenas de analisar a decisão recorrida e a respectiva qualificação jurídica dos factos, já que da pretensa impugnação da matéria de facto o tribunal não pode conhecer pelas razões que referimos.
Para a apreciação dos eventuais vícios do artº 410º nº 2 do cód. procº penal, o tribunal deverá ter em conta apenas a decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência comum, e não tecer considerações acerca da eventual modificação da matéria de facto provada/não provada, tendo em conta a prova produzida.
Analisada a matéria de facto provada e a respectiva motivação, não obstante a mesma se mostrar sintética, afigura-se-nos suficiente em termos da exigência legal mínima de fundamentação. Tanto mais, que os factos em si, também são de alguma simplicidade e as testemunhas inquiridas F… e G…, (da PSP) tiveram conhecimento ocular, presencial e directo dos factos.
Não se vislumbra qualquer insuficiência da mesma para se concluir de direito como se concluiu, e, por outro lado, não se vê que o tribunal recorrido de forma notória, ostensiva, tenha errado na apreciação da prova, dando como provado qualquer facto que manifestamente não poderia ter ocorrido, sendo certo que a valoração feita pelo tribunal “a quo”, se situa dentro chamado princípio da livre apreciação da prova, (cfr. artº 127º do cód. procº penal), feita segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Essa convicção, ”não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas (…) parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva”[3].
Como se refere no Ac. do S.T.J. de 4/11/98, C.J., III, 209, o princípio da livre apreciação da prova “não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determinar uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável”.
Concluímos assim, inexistir qualquer vício dos previstos no artº 410º nº 2 do artº 410º do cód. procº penal.
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Quanto à segunda parte do recurso e que no fundo nos parece ser a questão fundamental a ter em conta, importa analisar a qualificação jurídica dos factos, mormente se os mesmos são suficientes e de molde a integrar os crimes pelos quais foram condenados os arguidos.
Conforme decorre das conclusões da motivação, os recorrentes entendem que os factos não preenchem o tipo legal de crime pelo qual foram condenados, por um lado, porque não se provou que o D… estivesse obrigado a ter segurança privada (considerando a previsão do artº 4º nº 3 do DL 35/2004 elemento do crime) e por outro, defendem que os requisitos do artº 2º nº 1 al. a) do mesmo diploma são cumulativos e nem todos se verificam.
Vejamos.
Antes de mais importa saber se os factos dados como provados podem ou não integrar o conceito de segurança privada legalmente exigido e preencherem assim o tipo legal de crime.
Com efeito, prevê-se no artº 2º nº 1 al. a) do D. L. 35/2004:
«1 — A actividade de segurança privada compreende os seguintes serviços:
- a) A vigilância de bens móveis e imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou susceptíveis de provocar actos de violência no interior de edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público, designadamente estabelecimentos, certames, espectáculos e convenções”.
Por sua vez, no artº 4º prevêm-se os casos em que a segurança privada é obrigatória. Para compreender a ratio dos diplomas implementados sobre segurança privada e vigilância, bem como a posterior alteração convém ter que conta que foi devido à importância que a actividade de segurança privada vinha assumindo em Portugal, quer na protecção de pessoas e bens quer na prevenção e dissuasão da prática de actos ilícitos e a necessidade de adaptação da legislação ao direito comunitário, que, na sequência da Lei de autorização legislativa 29/2003 de 22/08, se aprovou o regime jurídico do exercício da actividade de segurança privada através do D. L. nº 35/2004 de 21/02, o qual manteve sem alteração os princípios definidores do exercício desta actividade, concretamente a prossecução do interesse público, a complementaridade e a subsidiariedade face às competências desempenhadas pelas forças e serviços de segurança. Foi todavia clara a evolução do regime ora aprovado face ao Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho.
Através da Lei 38/08 de 8 de Agosto, o legislador procedeu à alteração do regime jurídico do exercício da actividade de segurança privada que havia sido fixado anteriormente no diploma citado (D.L. 35/2004, de 21/02) e uma dessas alterações consistiu na criminalização do exercício da actividade de segurança privada ilegal a qual passou a ser considerada crime.
Para o efeito, foi aditado ao referido Dec. Lei o artº 32º-A, o qual veio estabelecer que:
- «1. Quem prestar serviços de segurança sem o necessário alvará ou licença ou exercer funções de vigilância não sendo titular do cartão profissional é punido com, (…).
- 2. Na mesma pena incorre quem utilizar os serviços da pessoa referida no número anterior, sabendo que a prestação de serviços de segurança se realiza sem o necessário alvará ou licença ou que as funções de vigilância não são exercidas por titular de cartão profissional».
A partir desta alteração, a actividade de segurança privada passou a ficar condicionada à obtenção de uma autorização prévia, punindo-se como crime, quer a falta do alvará ou licença quer a falta do respectivo cartão profissional.
A questão prévia que se coloca é a de saber se os factos provados são suficientes para integrar o conceito de “segurança privada” e para tal, há que ter em conta que se provou:
- “No interior do dito estabelecimento, junto à porta encontrava-se o arguido C…, que franqueava a porta sempre que um cliente chegava junto da mesma, entregando e recebendo os cartões referentes ao consumo dos clientes, controlando a entrada e saída dos mesmos”.
(…)
- O arguido C… agiu ciente de que não se encontrava habilitado para o exercício das funções de vigilância e, (…).
- O arguido B… ao actuar da forma descrita, sabia que a utilização dos serviços de vigilância por parte do arguido C… era proibida e punida por lei, (…)
Perante esta factualidade e a norma citada, aceitamos que a matéria de facto não é abundante e que bem se poderiam ter apurado mais factos relacionados com o tipo de estabelecimento e funções do arguido C…. Todavia, ainda assim, os mesmos são suficientes para integrar o conceito de segurança privada, independentemente de se apurar se a mesma era ou não obrigatória naquele estabelecimento. Ao contrário do que defendem os recorrentes, a exigência não é só aplicável a estabelecimentos para os quais a lei a exige, mas ao simples exercício da mesma; e, o que está em causa é o exercício não autorizado dessa actividade, independentemente do proprietário a ter, voluntariamente ou por imposição legal; a partir do momento em que recorre a tais serviços, eles têm de ser levados a cabo por quem esteja devidamente autorizado. Poder-se-ia questionar este entendimento antes da alteração introduzida pela Lei 38/08, todavia, a partir dela passou a ser exigido o alvará, licença e cartão profissional para o exercício da actividade que o arguido C… não possuía.
A matéria de facto diz-nos apenas que se tratava de um D… em que o arguido “franqueava a porta sempre que um cliente chegava, entregava e recebia os cartões referentes ao consumo dos clientes e controlava a entrada e saída dos mesmos”. Em face destes factos objectivos e perante as regras de experiência comum, é manifesto que as funções do arguido C… se destinavam manter a segurança e controlo do estabelecimento, fosse para seleccionar as pessoas ou para controlar os consumos. Isto enquadra-se quanto a nós no conceito de segurança privada, tendo em conta o disposto no nº 1 al. a) do artº 2º do D.L. 35/2004.
O elemento subjectivo, também questionado, resulta claramente demonstrado, tanto mais que os arguidos já tinham antes sido avisados pela polícia da necessidade de autorização para o exercício da actividade em causa.
Quanto à questão suscitada sobre a natureza dos requisitos, se são cumulativos ou não, (artº 2º nº 1 al. a) do D.L. 35/2004 de 21/02), é manifesto que da própria redacção da norma referida resulta que não são cumulativos, nem outro podia ser o entendimento face à descrição de situações e à parte final que evidencia a forma exemplificativa do tipo de estabelecimentos, “(…) designadamente estabelecimentos, certames, espectáculos e convenções”.

Por consequência quem for encontrado, como foi o caso do arguido C… a exercer tais funções sem estar legalmente habilitado para o seu exercício e quem, como no caso do arguido B…, utilizar os serviços de quem não está habilitado para o efeito, infringem a norma citada, sendo punidos nos termos do referido preceito legal.
Perante a matéria de facto provada, que consideramos definitivamente assente, dado não se ter apurado a existência de qualquer um dos vícios previstos no artº 410º nº 2 cód. procº penal, dúvidas não existem de que a conduta de ambos os arguidos preenchem o referido tipo legal de crime.
Com efeito, o arguido C…, com conhecimento do arguido B…, foi encontrado pelos próprios agentes policiais a exercer funções de porteiro e vigilante do aludido bar, a quem foi incumbida a entrega e recolha dos cartões referentes aos consumos dos clientes, sem estar habilitado ao exercício das funções de vigilância no referido estabelecimento.
E contrariando o que referem os recorrentes, quanto ao alegado desconhecimento do carácter proibitivo das condutas, fazemos notar que ficou provado, que “(…) que no âmbito de fiscalização anterior foi o arguido informado pelos agentes de autoridade que os serviços de segurança e vigilância tinham que ser prestados por pessoa habilitada para o efeito”.
Daí que, invocar o desconhecimento das exigências ou requisitos legais para o exercício da actividade, consubstanciadas na falta de consciência da ilicitude não merece acolhimento.
E, ao contrário do que vem defendido pelos recorrentes, também o facto, de não se ter apurado a obrigatoriedade do referido estabelecimento ter um serviço de segurança, não afasta a punibilidade dos arguidos, porquanto não constitui elemento do crime, que o estabelecimento, para o qual prestou serviços o arguido C…, estivesse obrigado a ter tal serviço de segurança ou de vigilância, nem tão pouco, para efeitos de punibilidade, é necessário apurar a relação laboral existente entre o referido bar e o arguido C…, designadamente a onerosidade ou gratuitidade das funções por si exercidas, para efeitos de punibilidade.
Sobre esta temática e no mesmo sentido, se pronunciou já o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 17/03/2010[4]:
- “Não constitui elemento do crime de exercício ilícito de segurança privada p. e p. pelo artº 32º-A, nº 1, do Dec. Lei 35/04, de 21/2, com as alterações introduzidas pela Lei 38/08, de 8/8 que a entidade para a qual o agente presta o serviço tenha que estar obrigada a ter um serviço de segurança; por outro lado, a verificação do ilícito não impõe que se apure o tipo de relação jurídica existente entre o agente prestador do serviço de segurança ou vigilância e a entidade beneficiária dessa actividade”.
Questão relevante, é o facto do arguido C… não estar habilitado a exercer as funções de vigilância no referido D… (facto para o qual fora já previamente alertado) e o B… utilizar esses serviços, apesar de saber que o mesmo não podia exercer tal actividade naquelas condições.
A factualidade provada preenche objectiva e subjectivamente todos os elementos típicos do crime por que foram condenados os arguidos.
O recurso é assim de improceder.
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DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em não conhecer do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, julgar no mais, improcedente o recurso interposto e confirmar a sentença recorrida.
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• Custas a cargo dos recorrentes, que se fixam em 5 UC, (seis unidades de conta), cada um.
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Porto 16 de Novembro de 2011
Américo Augusto Lourenço [5]
Maria Deolinda Dionísio
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[1] - Cfr. ainda acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
[2] - Cfr. Ac. do S.T.J. de 4/1/07, proc. 4093/06, www.dgsi.pt;
[3] - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n° 198/2004 (DR, II Série, de 2 de Junho de 2004.
[4] - Relatado por Esteves Marques e disponível em www.dgsi.pt.
[5] - Elaborado e revisto pelo relator.