HOMICÍDIO QUALIFICADO
FRIEZA DE ÂNIMO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
LEGÍTIMA DEFESA
ANIMUS DEFENDENDI
IDADE
ATENUANTE
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário


I - A qualificativa (exemplo padrão) prevista na al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP – que, na redacção da Lei 59/2007, passou a integrar a al. j), mantendo-se, contudo, o seu elemento gramatical – menciona o que agiu com frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados ou persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas, decompondo-se, assim, em três segmentos, com campos de incidência bem clarificados.

II - Não se mostra factualmente demonstrada a reflexão sobre os meios empregues – significando um amadurecimento temporal sobre o modo de praticar o crime, a congeminação serena e perdurante, no campo da consciência, da ideação da matar e dos meios a usar – se apenas se provou que, no dia dos factos, o arguido, seguindo no mesmo sentido, passou à frente da vítima e, depois, por meio inapurado, a encaminhou para um terreno marginal à estrada municipal por onde caminhavam, povoado de oliveiras e onde crescia erva de pequeno porte, lhe espetou uma forquilha com 5 bicos (dentes) em ferro, no pescoço, face e coxa, pelo menos duas vezes e, depois, com um pau de oliveira, que lhe servia habitualmente de arrimo, lhe vibrou pancadas, em número indeterminado, na cabeça, face e nuca, causando-lhe ferimentos corporais, deles advindo a morte por efeito directo e necessário.

III - Falha, ante a parcimónia factual, a comprovação plena de um prévio tempo de preparação do homicídio, uma tenacidade no animus necandi, o pressuposto de que ele se deixou motivar então pela intenção criminosa, meditou nos instrumentos a empregar, tanto mais que um era de uso habitual e o outro, nos meios rurais, empregue nos trabalhos agrícolas, bem como a escolha pré-ordenada do local à consumação do delito.

IV - Tendo em consideração que:
- a vítima tinha 76 anos de idade na data dos factos, sofrendo de problemas de visão, que o obrigavam a ter óculos com lentes muito graduadas, e caminhava com dificuldade devido às artroses e varizes que tinha nas pernas (logo, mais vulnerável);
- foi atraída pelo arguido para um terreno marginal à estrada por onde ambos seguiam a pé, e ali foi alvo da sua fúria – depois de o espetar, provocando-lhe três feridas contusas na face anterior do pescoço e ainda três feridas circulares na face externa do terço médio da coxa direita com um instrumento muito perigoso, a forquilha, o arguido continuou a agressão à paulada, na região da cabeça, nuca e face, até lhe causar a morte; o uso da forquilha, a persistência na consumação da morte da vítima, pela agressão plúrima em zonas vitais, com o pau, a inconsideração da extrema fragilidade física daquela e da sua idade também já avançada (embora menos que a do arguido), e o local escolhido, manifestam uma atitude interna, um estado de espírito, de franca e evidente insensibilidade e desprezo, indiferença para com o valor jurídico da vida, uma deficiência de carácter, que, por isso, refrange qualidades desvaliosas ao nível da personalidade e, deste modo, não pode deixar de se considerar que agiu com frieza de ânimo.

V - A legítima defesa, causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 32.º do CP, não abdica de um especial circunstancialismo factual e de um elenco de pressupostos ao nível do direito, não sindicando o STJ aquele, enquanto tribunal de revista, reponderando, no entanto, o direito aplicável.

VI - A legítima defesa pressupõe que o facto é praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores; não pré-ordenada, ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime; actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação; e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado, menos gravoso ou prejudicial – por a todo o direito corresponderem “limites imanentes” –, a sustar o resultado iminente – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 45 e 59.

VII - Mesmo quando é enormíssima, mediante o recurso a um só meio, a desproporção entre o dano causado por esse meio e o interesse por ele defendido, tem de entender-se que a agressão é legítima, suportando aquela causa de exclusão de ilicitude.

VIII - Taipa de Carvalho, alargando o conceito de actualidade, recondu-la também àqueles casos em que a agressão não seja, em si mesma, ainda idónea a lesar o bem jurídico e nem sequer constitua um começo de lesão, mas seja, contudo, de esperar, segundo a experiência normal, que tal conduta se sucederá – cf. A Legítima Defesa, Coimbra Editora, pág. 272.

IX - A legítima defesa não dispensa, ainda, a verificação do pressuposto de impossibilidade de recurso à autoridade pública, atenta a natureza subsidiária da defesa face à actuada pelos órgãos do Estado, requisito não enunciado no CP82, em contrário da versão de 1886, mas que a jurisprudência destaca.

X - Essencial à legítima defesa é o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque, se suspender uma agressão ilegítima actual. Essa intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem.

XI - Segundo a jurisprudência deste STJ, o agente há-de ter consciência da legítima defesa, enquanto elemento subjectivo da acção de legítima defesa, de afirmação de um seu direito, de realização, no conflito de valores e interesses jurídicos, de um interesse mais valioso, pese embora com aquela vontade ou intenção de legítima defesa possam concorrer outros motivos, como o ódio, a vingança ou a indignação.

XII - As legislações de pretérito dedicaram um peso atenuativo à avançada idade, que, se não justifica a acção, pode, contudo, explicar o impulso criminoso, ajudando ao alimentar de suposições erradas, por vezes, e a um menor discernimento.

XIII - O CP actual é omisso quanto a esse ponto, diversamente do que sucede com os jovens de idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, em que a idade funciona como atenuante em nome de uma desejável e expectável ressocialização e prevenção da reincidência, mas esse objectivo não se descortina numa fase crepuscular da vida, que já não postula essa especial feição ressocializadora: o trajecto vital, com o seu conteúdo substancialmente positivo ou negativo, está ultimado, não comportando motivo para grande ou excessiva preocupação.

XIV - Já se entendeu neste STJ (Ac. de 07-10-1999, in BMJ 490.º/48) que o significado da prevenção especial se vai esbatendo com a idade; a necessidade de pena reduz-se, pois o idoso não tem dilatado espaço vital para delinquir e a pena a aplicar pode traduzir uma reacção sem pragmatismo à vista, do ponto de vista da prevenção especial, mas sem que se possa abdicar do fim público da pena, no aspecto da afirmação da validade e eficácia da norma violada, do reforço do sistema punitivo.

XV - Embora longe de se erigir em princípio regra a consideração de que o idoso, só por o ser, beneficia automaticamente de uma redução da pena, tem de atender-se a certas particularidades do caso.

XVI - Tendo em consideração que:
- o arguido agiu com forte vontade criminosa, sobressaindo a extrema gravidade do facto, em função da supressão do valor fundamental do direito à vida, avultando um dolo muito intenso e uma ilicitude em grau muito elevado, a inferir dos meios usados na agressão, particularmente pelo uso da forquilha e do pau até à destruição do crânio da vítima – achando-se esta em condições de inferioridade física – e pelo local escolhido;
- ao nível da prevenção geral não concorre qualquer circunstância a proclamar a redução da pena, considerando a reiteração de crimes contra a vida das pessoas, não tolerando o sentimento comunitário abrandamento punitivo, e muito embora a avançada idade do arguido comporte, ainda, algum sentido de favor;
a prática voluntária do homicídio, de forma totalmente consciente e livre, com conhecimento perfeito da contrariedade à lei do acto e seus efeitos, num evidente contexto de brutalidade e crueldade, não legitima uma perda de eficácia punitiva que desça do limiar mínimo dos 12 anos de prisão fixados em 2.ª instância, ponto óptimo da medida da pena, justa e sem reparo.

Texto Integral


Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em P:º comum com intervenção do tribunal colectivo sob o n.º 389/06.8GAACN , do Tribunal Judicial de Alcanena , foi submetido a julgamento AA , vindo , a final , a ser condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado , p . e p . pelos art.º s 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 al.i) , do CP , na pena de 14 anos de prisão , bem como ao pagamento da indemnização à viúva da vítima , BB, seus filhos e netos , em representação de uma filha préfalecida , de 50.000€ , pela perda do direito à vida , 10.000 € pelo sofrimento da vítima antes da sua morte , 52.500€ pelo sofrimento da viúva , filhos e netos e 1147€ , pelo custo do funeral , tudo num total de 113.647 € .

I . O arguido interpôs recurso para a Relação , que reduzindo a pena de prisão para 12 anos , manteve, no mais, o decidido .

II . Ainda irresignado interpõe recurso para este STJ apresentando na motivação as seguintes conclusões :

Actuou num impulso de legítima defesa da sua integridade física contra a iminência de agressão com um guarda-chuva com bicos de metal , devendo subsumir-se o crime ao tipo legal previsto no art. º 131.º , do CP .

Agiu em excesso de legítima defesa assim que perdeu os óculos .

O comportamento em julgamento deve ser relevado , nomeadamente a deslocação à casa da viúva para lhe demonstrar o seu arrependimento.

Ficou em pânico quando perdeu os óculos , levando a que , num estado psicótico , reagisse violentamente .

Não utilizou uma forquilha , mas um pequeno pau existente no local .

O arguido está muito debilitado , tanto pela idade , como pelo suplício passado depois dos factos .

Passou uma vida de 84 anos sem mácula , mas vê-se agora numa situação deprimente e de que se penitencia .

Deverá efectuar-se um novo relatório social uma vez que já passou muito tempo sobre os factos e a sua situação já se alterou significativamente .

Deve , pois , o crime de homicídio qualificado por que foi julgado ser especialmente atenuado nos termos dos art.ºs 32.º , 33.º , 72.º e 73.º , do CP, pois agiu em legítima defesa e em consequência de ter 88 anos de idade ser-lhe dada a possibilidade de viver os últimos dias junto dos seus familiares , que bastante o tem ajudado.

Deve , pois , a pena ser suspensa na sua execução ou , em alternatividade , ser o arguido internado em instituição da especialidade .

III . Colhidos os legais vistos , após parecer da Exm.ª Procuradora Geral -Adjunta, cumpre decidir , considerando o seguinte factualismo provado em julgamento :

O arguido e o BB eram vizinhos e há pelo menos 10 anos que mantinham uma relação de quezília motivada pela disputa de uma serventia confinante às suas propriedades .

O BB nasceu em 2 de Junho de 1930 e sofria de problemas de visão o que o obrigava a ter óculos com lentes muito graduadas e caminhava com dificuldade devido às artroses e varizes que tinha nas pernas .

No dia 29 de Setembro de 2006 , depois do almoço ,o BB deslocou-se a pé até aos Bombeiros Voluntários de Alcanena para tomar um café , o que fazia diariamente , levando consigo um chapéu de chuva .

Eram cerca das 15 horas quando o BB , dirigindo-se para sua casa pela Estrada Municipal n.º ... -... , no sentido Alcanena –Bugalhos , cruzou-se com o arguido , que , caminhando no mesmo sentido , passou por ele .

Por meios não concretamente apurados, junto do lugar denominado Casal da Arranjela , o arguido encaminhou o Rogério da Silva para um terreno composto por diversas oliveiras e erva de pena altura , confinante com a Estrada Municipal n.º ...-..., e cujo acesso se fazia a partir daquela estrada através de uma pequena rampa em terra .

Aí , a cerca de 25 metros de distância da Estrada Municipal , o arguido com uma forquilha de cabo em madeira e cinco bicos em ferro , espetou os bicos da mesma no corpo do BB , atingindo-o na coxa da perna direita e na zona do pescoço e da face .

O arguido também agarrou num pau de madeira com cerca de 92, 5 cm de comprimento , que costumava usar e com o mesmo desferiu por número indeterminado de vezes pancadas que atingiram a zona da cabeça , da face e da nuca do BB.

Em consequência das pancadas sofridas o BB caiu no chão de costas , com os pés voltados para a estrada , ficando a perna esquerda semi-flectida e os braços ao longo do corpo .

O arguido atingiu o BB na cabeça e na face provocando-lhe:

-ferida contusa na região frontal direita horizontal, com 6 cm de comprimento e 1 cm de largura ;

-ferida contusa na região frontal mediana com 10 cm de comprimento e 3 cm de largura;

-ferida contusa na região frontal esquerda com 4 cm de comprimento e 1, 5 cm de largura ;

-ferida contusa na região parietal esquerda com 3 cm de comprimento e 1 cm de largura ;

-duas feridas contusas na região parietal direita, uma com 4 cm de comprimento e 1 cm de largura e outra com 4 cm de comprimento e 0,5 cm de largura ;

-ferida contusa na região parietal occipital direita com 2 cm de comprimento e 1 cm de largura ;

-ferida contusa na porção média da orelha direita , com 2 cm de comprimento 0, 5 cm de largura ;

-ferida contusa na porção superior do nariz com 2 cm de comprimento e 0,5 cm de largura ;

-ferida contusa na região supraciliar direita , com 3 cm de comprimento e 0, 2 cm de largura ;

-ferida contusa circular na região mentoniana do lado esquerdo com o,5 cm de diâmetro ;

-ferida contusa circular no ângulo do maxilar inferior esquerdo com 0, 5 cm de diâmetro ;

-na abóbada : fractura cominutiva do frontal , parietal e occipital ;

-na face : fractura dos ossos do nariz e dos malares direito e esquerdo ;

-nas meninges : hematoma subdural ;

-no encéfalo : hemisférios simétricos , sem sinais de amolecimento, com focos hemorrágicos a nível cortical e subaracnóide , ventrículos laterais não dilatados , sem colecção sanguínea , vasos arteriais sem placas de ateroma no polígno de Willis ;

-nas cavidades orbitais e globos oculares : fractura de toda a arcada orbital direita .

Atingiu –o no pescoço , provocando-lhe três feridas contusas circulares com 0, 2 cm de diâmetro na face anterior do pescoço e ainda três feridas circulares com 0, 2 cm de diâmetro na face externa do terço médio da coxa direita .

As lesões traumáticas crânio –meningo-encefálicas que resultaram para o BB foram causa directa e necessária da sua morte .

Quando se apercebeu que o BB já se não mexia , o arguido abandonou o local e dirigiu-se ao Posto da GNR de Alcanena , onde se entregou .

A forquilha utilizada tinha cerca de 97 cm de cabo em madeira e 27 cm de comprimento cada bico , veio a ser localizada a cerca de 8 metros do lado esquerdo do corpo do BB e junto a uns arbustos .

O pau de madeira foi encontrado a cerca de 35 metros de distância do corpo do BB , na berma da Estrada Municipal e do lado oposto ao terreno .

O BB apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,76 g/l .

O arguido agiu de modo livre , voluntário e consciente , com a intenção de tirar a vida ao BB , com perfeito conhecimento de que nas zonas do corpo do BB que quis atingir e atingiu se alojam órgãos essenciais à vida.

O arguido actuou consciente da natureza e características do pau e da forquilha que utilizou e das lesões mortais que com eles podia causar nessas zonas do corpo .

Sabia que a sua conduta era proibida por lei .

Mais se provou que o arguido recebe de reforma 350€ por mês .

Vive na companhia da mulher .

Tem cinco filhos todos a viverem em economias independentes .

Deu casa aos filhos .

O arguido nunca frequentou a escolaridade não sabendo ler nem escrever no entanto este facto não impediu o arguido de se integrar profissional e socialmente , apresentando um percurso de estabilidade laboral como operário em fábricas de curtumes ; paralelamente à actividade profissional referida manteve sempre ocupação em trabalhos rurais de autosubsistência .

Apresenta-se como uma pessoa idosa , com bastantes fragilidades físicas e emocionais .È uma pessoa integrada no meio onde reside, sendo tida como pessoa trabalhadora e apontados como os únicos problemas de relacionamento os mantidos com a vítima BB .

O arguido parece viver uma grande perturbação emocional , com forte ansiedade e sintomas depressivos , sem que contudo apresente uma perda da noção da realidade .

Apesar de apresentar recursos afectivos , trata-se de uma pessoa que apresenta alguma vulnerabilidade face a situações de maior stress e principalmente ao nível das relações interpessoais , onde pode tornar -se uma pessoa menos tolerante , com dificuldade de resistência à frustração .

Em situações do quotidiano é uma pessoa adaptada e que consegue estabelecer relações afáveis e adequadas , oscilando entre comportamentos mais passivos e até de alguma dependência e comportamentos de alguma inflexibilidade que podem sugerir algum autoritarismo .

Na história do arguido são de realçar factores como a origem num meio familiar numeroso , uma infância marcada por algumas dificuldades económicas , ausência de escolarização e iniciação precoce no mundo do trabalho .

O arguido apresenta uma organização de personalidade caracterizada por um funcionamento simplista e com algumas perturbações na análise da realidade . Consegue manter um controle razoável na maioria das situações de vida , mas quando confrontado com experiências com maior impacto emocional pode manifestar alguma impulsividade e dificuldade de controle .

O arguido apresenta actualmente sinais de fragilidade emocional com algumas perturbações ao nível da ansiedade e humor depressivo , decorrente de toda a situação que envolve o processo judicial , mas também pelo afastamento do seu meio de residência e pela debilidade da sua saúde em geral .

Do RC do arguido nada consta .

As pancadas sofridas pela vítima BB foram muito violentas e o seu sofrimento foi muito elevado .

Como consequência do acto praticado pelo arguido a demandante civil M... de L... perdeu o seu marido , A... M... S... S... , A... M... da S... , P... M... S... da S... M... , M... R... S... da S... e M... G... S... D... , perderam o seu pai e L... M... da S... B... , P... J... da S... B... e S... S... dos C... perderam o seu avô .

Todos sofreram com a morte do Rogério .

Havia unidade e sentimentos de amizade e solidariedade entre os demandantes civis e a vítima .

A vítima tinha uma vivência calma e feliz .

A morte do BB deixou nos demandantes civis uma sensação de solidão pelo inesperado do sucedido e pela falta de justificação para o mesmo .

A viúva Maria de Lourdes pagou pelo funeral do seu marido 1147€ .

IV. O arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado , p. e p . pelo art.º 132.º n.ºs 1 e 2 al.i) , na redacção do preceito antes da alteração introduzida pela Lei n.º 59/07 , de 4/9 , onde figura na al.) j) , qualificativa que , na modelação legal se inscreve e associa , como as demais exemplificativamente previstas no n.º 2 , num tipo de culpa agravado descrito mediante recurso a conceitos indeterminados , mas reveladores de um aumento essencial de culpa e ou de ilicitude , de especial censurabilidade e perversidade , na conexão com o n.º 1 , de que aquelas agravantes não podem abstrair .

Como escreve Teresa Serra , in Homicídio Qualificado ,Tipo de Culpa e Medida da Pena pág.s 63 e 64v , a especial censurabilidade aponta para a prática do ilícito em circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada da normal determinação de acordo com os valores dominantes ; na especial perversidade impera uma atitude má , eticamente falando , de crasso e puro egoísmo do agente , indiciando sentimentos e motivos inteiramente de rejeitar .

A especial censurabilidade , documenta no facto , referentemente ao agente , uma forma da respectiva realização especialmente desvaliosa ; a especial perversidade evidencia que o agente na materialização do facto é portador de qualidades altamente desvaliosas ao nível da personalidade , merecedor de um juízo de culpa agravado , neste sentido cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal , Prof. Figueiredo Dias , I, pág. 29)

E são aquelas circunstâncias e sentimentos que , permitindo estabelecer uma diferença essencial de grau com o homicídio simples , após ponderação global do facto desencadeiam os exemplos-padrão .

A sua verificação não faz funcionar automaticamente o tipo de culpa agravado a que respeitam ; a sua ausência , por seu turno , não postula necessariamente a não configuração do crime qualificado , desde que se detecte especial censurabilidade e perversidade do agente , embora a não verificação de qualquer dos exemplos –padrão constitua forte indício do crime de homicídio simples .

Motivo de controvérsia é , contudo , a inferência do chamado homicídio atípico , ou seja quando , sem registo de qualquer dos exemplos –padrão , a agravação ainda funciona , reconduzindo-se à figura do homicídio qualificado . Decisivo parece ser o critério proposto por Wessels , ou seja a constatação de aumento de culpa e de ilicitude , e ainda a idoneidade qualitativa das circunstâncias, conquanto permitam formar “ grupos valorativos concordantes com o “ leitbild “ dos exemplos padrão , havendo quem contraponha a ideia “ de um tipo expressivo “ , recolhida de Engish , sugerida por Fernanda Palma –cfr. , ainda ,Teresa Serra,op. cit . , pág. 71 .

E a qualificativa em causa , o exemplo –padrão , é a que aponta na acção homicida o previsto na al.i) do n.º 2 , do art.º 132.º , do CP , que na redacção da Lei n.º 59/07 , passou a integrar a al. j) , mantendo-se , contudo , o seu elemento gramatical , mencionando o que age com frieza de ânimo , reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas , decompondo-se , assim , em três segmentos , com campo de incidência bem clarificados .

A formação do propósito homicida por mais de 24 horas é de excluir , por não provada ; a reflexão sobre os meios empregues significando um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar , a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação da matar e dos meios a usar , não se mostra factualmente demonstrada porque apenas se provou que , no dia dos factos , o arguido , seguindo no mesmo sentido , passou à frente da vítima e , depois , por meio inapurado , encaminhou –a para um terreno marginal à estada municipal por onde caminhavam , povoado de oliveiras e onde crescia erva de pequeno porte , espetou-lhe uma forquilha com 5 bicos ( dentes ) em ferro , no pescoço , face e coxa , pelo menos duas vezes e , depois , com um pau de oliveira , que lhe servia , habitualmente , de arrimo , vibrou-lhe pancadas em número indeterminado na cabeça , face e nuca , causando-lhe ferimentos corporais , deles advindo a morte por efeito directo e necessário.

O agente , em tal caso , dispôs de tempo para se deixar penetrar por contramotivos ético-sociais mas , porque a paixão criminosa lhe endureceu totalmente a sensibilidade , bem podendo desistir do crime , porque a intensidade criminosa é de tal modo forte , não hesitou em o praticar , que surge como inevitável “ déclancher “de uma intenção criminosa iniciada num passado mais ou menos longínquo , nada de mais esclarecedor do que ensina o Prof. Eduardo Correia , in Direito Criminal , II , 301-303 .

V. O arguido mantinha uma relação de inimizade com a vítima, com génese numa questão relacionada com o uso de uma servidão; no dia relatado nos autos cruza-se com a vítima , e ultrapassa-a , encaminha-a para um terreno adjacente à estrada que ambos utilizavam e , depois , agride-o com a forquilha e com o pau .

Falha, assim, ante a parcimónia factual , a comprovação plena de um prévio tempo de preparação do homicídio , uma tenacidade no “ animus necandi “ , o pressuposto de que ele se deixou motivar então pela intenção criminosa , meditou nos instrumentos a empregar , tanto mais que um era de uso habitual e o outro , nos meios rurais , empregue nos trabalhos agrícolas , bem como a escolha pré- ordenada do local à consumação do delito .

De atentar , no entanto , que a vítima tinha 76 anos de idade na data dos factos , sofrendo de problemas de visão , que o obrigavam a ter óculos com lentes muito graduadas e caminhava com dificuldade devido às artroses e varizes que tinha nas pernas , logo mais vulnerável , e que foi atraído pelo arguido para um terreno marginal à estrada por onde ambos circulavam a pé , e ali foi alvo da sua fúria , que depois de o espetar , provocando-lhe três feridas contusas na face anterior do pescoço e ainda três feridas circulares na face externa do terço médio da coxa direita com um instrumento muito perigoso, como é uma forquilha , gesto da maior reprovabilidade , considerando a sua natureza repugnante ao comum das pessoas , porém o arguido não conteve por aí a sua fúria contra a vítima e contra ele e à paulada continuou a agressão na região da cabeça , nuca e face , até lhe causar a morte .

O uso da forquilha , a persistência na consumação da morte da vítima , pela agressão plúrima em zonas vitais , com o pau , a inconsideração da extrema fragilidade física da vítima e da sua idade também já avançada, embora menos que a do arguido e o local escolhido, manifestam uma atitude interna , um estado de espírito , de franca e evidente insensibilidade e desprezo , indiferença para com o valor jurídico da vida , uma deficiência de carácter , que por isso refrange qualidades desvaliosas ao nível da personalidade e , deste modo , não pode deixar de se considerar que é com frieza de ânimo que comete o crime – cfr. , neste sentido , Ac. do STJ , de 15.10.2003 , Rec.º n.º 2024 /03 -3 .ª Sec.

E assim concorre a qualificativa em apreço , como as instâncias consideraram .O próprio arguido não refuta a prática de homicídio simples , retirando-lhe o cometimento com a forquilha , desqualificando-o e cingindo o pau a um mero instrumento existente no local , invocando o cometimento do homicídio em legítima defesa .

VI . Mas esta causa de exclusão de ilicitude , prevista no art.º 32.º , do CP , não abdica de um especial circunstancialismo factual e um elenco de pressupostos ao nível do direito , não sindicando o STJ aquele ( circunstancialismo ), enquanto tribunal de revista, reponderando , no entanto , o pertinente direito aplicável .

A legítima defesa não se propõe , apenas , a defesa dos bens jurídicos do ofendido , mas também a ordem jurídica e pressupõe que o facto é praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica , enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores , não préordenada , ou seja com o fito de , sob o manto da tutela do direito , obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime, actual , no sentido de tendo-se iniciado a execução , não se verificou , ainda , a consumação , e necessária ou seja quando o agente , nas circunstâncias do caso , se limite a usar o meio de defesa adequado , menos gravoso, prejudicial , por a todo o direito corresponderem “ limites imanentes “ , a sustar o resultado iminente –Cfr. Eduardo Correia , Direito Criminal , II , págs. 45 e 59 .

Mesmo quando é enormíssima , mediante o recurso a um só meio , a desproporção entre o dano causado por esse meio e o interesse por ele defendido , tem de entender-se que a agressão é legítima, suportando aquela causa de exclusão de ilicitude .

Taipa de Carvalho , alargando o conceito de actualidade, recondu-la , também , àqueles casos em que ela não seja , em si mesmo, ainda , idónea a lesar o bem jurídico e nem sequer constitua um começo de lesão , mas , contudo , é de esperar , segundo a experiência normal , que tal conduta se sucederá –cfr. A Legítima Defesa , Coimbra Ed. , pág. , 272 .

Estaremos , então , em face de uma legítima defesa preventiva , reputada inadmissível por Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário ao Código Penal , pág. 146 .

Sem previsão na lei , a legítima defesa não dispensa , ainda , a verificação do pressuposto de impossibilidade de recurso à autoridade pública, atenta a natureza subsidiária da defesa face à defesa actuada pelos órgãos do Estado , requisito não enunciado no CP de 82 , em contrário da versão de 1886 , mas de que a jurisprudência destaca .

Essencial, pressuposto estrutural à legítima defesa, é , mesmo , o “ animus defendendi” , a intenção de , pelo contra -ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima; o facto típico levado a cabo pelo defendente há-de destinar-se a prevenir uma agressão ilícita actual .

A intenção de defesa correspondendo a um estádio de espírito , inapreensível sensorialmente , que há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem .

O agente , segundo a jurisprudência deste STJ , há-de ter consciência da legítima defesa , enquanto elemento subjectivo da acção de legítima defesa , de afirmação de um seu direito , de realização , no conflito de valores e interesses jurídicos, de um interesse mais valioso , pese embora com aquela vontade ou intenção de defesa legítima possam concorrer outros motivos como o ódio , vingança ou indignação .

VII . Em suma : O arguido esforça-se por invocar acção em legítima defesa mas não pode deixar de ter presente que não se provaram factos que a façam funcionar ou suscitem fundadas dúvidas sobre ela e que , em nome do princípio “ in dubio pro reo, que lhes é extensivo , reverteriam em favor do arguido , como se não se provou o clima de pânico quando perdeu os óculos , levando a que , num estado psicótico , reagisse violentamente .

Por isso a qualificação jurídico-penal adoptada pelas instâncias não merece reparo .

VIII . A medida da pena :

Ao arguido foi aplicada a pena de 12 anos de prisão , que se situa no limite mínimo da moldura abstracta do crime de homicídio qualificado , nos termos do art.º 132.º , do CP , peticionando aquele deste STJ a sua atenuação especial , a sua suspensão e a manutenção num condicionalismo que lhe permita viver com os seus familiares os últimos dias da sua vida .

O arguido confessou a agressão com o pau , mas não com a forquilha e , a inferir do contexto factual provado , mostra-se uma pessoa integrada sócio –familiar e profissionalmente e afora a quezília que nutria de há anos com a vítima não se lhe conhece qualquer comportamento associal ao longo dos seus 87 anos tantos quantos conta actualmente pois nasceu a 21.6.1921.

O homicídio veio , assim , macular a sua vida aos 85 anos .

Requer o arguido que se proceda a novo relatório social pois já passou muito tempo e os factos alteraram-se significativamente , estando longe de corresponder à realidade o decurso daquele longo lapso de tempo , tão pouco este STJ , por não ser vocacionado para tal diligência , que se prende com a matéria de facto , tal poder ordenar, como tribunal de revista que é –art.º 433.º , do CPP-, cabendo mais especificamente na esfera de competência da 1.ª instância , nos termos dos art.ºs 1º. g) e 370.º , do CPP ,por respeitar à correcta sanção a aplicar , pela componente factual que aduz , sendo visível que não são alegados factos daquela alteração significativa ou sem o ser .

De acentuar que o arguido apresenta actual , e compreensivelmente , sinais de fragilidade emocional com algumas perturbações ao nível da ansiedade e humor depressivo , decorrente de toda a situação que envolve o processo judicial mas também pelo afastamento do seu meio de residência e pela debilidade da sua saúde em geral , mas na data dos factos agiu voluntária e conscientemente , sem qualquer alteração ao nível das funções cognitivas e volitivas , com plena capacidade de autodeterminação e de juízo crítico .

IX . Merece , no entanto , algum espaço de reflexão a circunstância de o arguido ter 85 anos na data dos factos , em 29.9.2006 .

As legislações de pretérito dedicaram um peso atenuativo à avançada idade , que se não justifica a acção , pode , contudo , explicar o impulso criminoso , ajudando ao alimentar de suposições erradas , por vezes , e a um menor discernimento .

Não é por acaso que no CP de 1886 , no art.º 39.º , n.º 3 , a idade de mais de 70 anos funcionava como atenuante ; diplomas de amnistia consagravam , igualmente , uma visão atenuativa da pena , particularmente o art.º 10.º, da Lei n.º 15/94 , de 11/5, substituindo a pena de prisão até 3 anos por multa na parte não perdoada .

Compreende-se que uma idade avançada fazendo “ voltar a uma segunda infância produza sobre a imputabilidade consequências importantes “ , havendo , ainda , também que respeitar os velhos , consigna o Prof. Eduardo Correia , Direito Criminal , II , pág , 382/383 .

Dos 21 aos 70 anos vigorava no CP de 1886 , uma plena imputabilidade , comentava Luís Osório , in Notas ao Código Penal , I , pág. 161 .

O CP actual é omisso quanto a esse ponto , diversamente do que sucede com os jovens de idade compreendida entre 16 e 21 anos , em que a idade funciona como atenuante em nome de uma desejável e expectável ressocialização e prevenção da reincidência , mas esse objectivo não se descortina numa fase crepuscular da vida , que já não postula essa especial feição ressocializadora ; o trajecto vital , com o seu conteúdo substancialmente positivo ou negativo ,está ultimado, não comportando motivo para grande ou excessiva preocupação .

Já se viu significar neste STJ , no seu AC. de 7.10.99 , BMJ 490, pág. 48 , que o significado da prevenção especial se vai esbatendo com a idade; a necessidade de pena reduz-se pois o idoso não tem dilatado espaço vital para delinquir e a pena a aplicar pode traduzir uma reacção sem pragmatismo à vista , do ponto de vista da prevenção especial , mas sem que se possa abdicar do fim público da pena , no aspecto da afirmação da validade e eficácia da norma violada , do reforço do sistema punitivo .

Não será em nome , pois , da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída , que é de reduzir a pena ; não se trata de rotular o idoso como um subcidadão , de segunda classe , diminuído necessariamente física , psicológica e psiquiatricamente , a quem tudo é consentido só por o ser , em nome de uma imputabilidade diminuída , passando ao limbo do esquecimento o seu crime , o que poderia ser grave , pondo em risco a ordem jurídica , a segurança e a protecção jurídica dos cidadãos pela quase justificação do delito .

Longe , pois , de se erigir em princípio regra como se acentuou naquele Ac. deste STJ , a consideração de que o idoso só por isso , só por o ser , beneficia automaticamente de uma redução da pena , sem embargo de ter de atender-se a certas particularidades do caso , como propôs Gordon Ashton , in Elderly , People and Law , pág.53 .

De ter bem presente que o arguido agiu com forte vontade criminosa e ao nível do facto sobressai a sua extrema gravidade, em função da supressão do valor fundamental do direito à vida , avultando um dolo muito intenso e uma ilicitude , enquanto violação de lei , em grau muito elevado , a inferir dos meios usados na agressão , particularmente pelo uso da forquilha e do pau até à destruição do crâneo da vítima , achando-se em condições de inferioridade física e o local escolhido.

Ao nível da prevenção geral não concorre qualquer circunstância a proclamar a redução da pena , considerando a reiteração de crimes contra a vida das pessoas , não tolerando o sentimento comunitário abrandamento punitivo e muito embora a avançada idade do arguido comporte , ainda , algum sentido de favor , a prática voluntária do homicídio , de forma totalmente consciente e livre , com conhecimento perfeito da contrariedade à lei do acto e seus efeitos, num evidente contexto de brutalidade e crueldade , não legitima uma perda de eficácia punitiva que desça abaixo do limiar mínimo dos 12 anos de prisão fixados em 2 .ª instância , ponto óptimo da medida da pena , justa e sem reparo .

X. Nestes termos se nega provimento ao recurso , mantendo-se o acórdão recorrido .

Taxa de Justiça : 10Uc,s . Procuradoria : 1/3 .

Lisboa, 14 de Maio de 2009

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral