I- Os herdeiros podem reclamar o crédito correspondente aos levantamentos efectuados ainda em vida da pessoa titular de conta bancária.
II- O Tribunal, uma vez não ilidida a presunção de solidariedade constante do artigo 516.º do Código Civil, pode condenar os co-titulares que procederam aos levantamentos dos depósitos a restituir metade desses valores, não importando atender ao valor do saldo no momento de cada levantamento.
III- No que respeita às quantias entregues para depósito bancário, não são elas usucapíveis pelo co-titular porque se trata de depósito de dinheiro e portanto de direito de crédito relativo a uma coisa fungível, isto é, de prestação que tem por objecto uma coisa fungível, não podendo falar-se de propriedade ou de direito real sobre a coisa depositada, não podendo conceber-se o direito real, quando a prestação tem por objecto coisas indeterminadas de certa espécie ou qualidade, senão depois de feita a determinação ou a escolha.
1. AA [...] e BB […], herdeiros de CC […] , falecida no dia 24-12-2001, demandaram em acção declarativa com processo ordinário DD […] e EE […] e FF […] e GG […] contra os quais deduziram os seguintes pedidos:
- Que sejam os réus condenados a restituir aos AA , em partes iguais, os 1ºs RR a quantia de Esc. 23.806.517$00 (118.746,40€) e os 2ºs RR a quantia de 14.273.000$00 (71.193,42€) tudo acrescido de juros de mora a contar da citação
- A não se entender assim, que seja cada um dos RR condenado a restituir aos AA, metade a cada um, metade dos valores referidos no pedido anterior, pedido alterado na réplica nestes termos:
- Que sejam os 1ºs réus DD e mulher condenados a pagar aos AA a quantia de 59.373,20€ correspondente à quota-parte da falecida CC […] nos saldos dos depósitos do BES e BPA
- Que sejam os 2ºs réus , FF e mulher, condenados a pagar aos AA a quantia de 35.596,70€, correspondente à quota-parte da falecida nos saldos dos depósitos do BPI.
Subsidiariamente, ainda, e caso se entenda que tais importâncias integram a herança de CC […], serem os réus condenados a entregar à herança desta os valores anteriormente referidos.
2. O 1º réu estava autorizado a movimentar contas conjuntas que detinha com a falecida CC no BES,BPA/BPI (actual Millenium), agências […]
3. O 2º réu estava autorizado a movimentar conta conjunta que detinha com a falecida Joaquina no BBI/BPI, agência […]
4. Foram efectuados os seguintes levantamentos.
- Pelo 1º réu:
a) 15-4-1996 - 8.360.517$00 (BPA)
b) 7-2-1997 - 4.500.000$00 (BES)
c) 8-5-1997 - 14.436.613$00 (BES)
Nessa conta possuía este réu 3.490.000$00, pertencendo o sobrante exclusivamente à referida Joaquina
Valor apropriado pelo réu: 23.806.517$00
Pelo 2º réu:
a) 21-8-1997 - 8.073.000$00 (BPI)
b) 15-12-1997 - 6.200.000$00 (BPI)
Valor apropriado pelo réu: 14.273.000$00
Os valores integraram-se no património dos réus.
5. Na contestação, os 1ºs réus demandados referiram que o montante depositado no BPA resultou de depósitos efectuados com dinheiro seu, procedendo ao levantamento total em 15-4-1996. Quanto às contas do BES, para além do levantamento dos 3.490.000$00 em Maio de 1996, os levantamentos ulteriores correspondiam a dinheiro reconhecido pela Joaquina como sendo do réu.
Em reconvenção, porque sempre consideraram seu o dinheiro depositado no BPA e também como seu, a partir de Maio de 1996, o dinheiro depositado no BES, pediram que fossem os AA condenados a reconhecer que os réus reconvintes adquiriram, por usucapião, a importância de 23.806.517$00 (118.746,41)
6. Na contestação, os 2ºs réus demandados, para além de excepções dilatórias invocadas e da impugnação deduzida, deduziram reconvenção pedindo, a título subsidiário, que os AA sejam condenados a reconhecer que aqueles adquiriram, por usucapião, a quantia de 71.193,42€ que levantaram da conta do BPI.
7. O Tribunal admitiu o pedido reconvencional; nada ordenou quanto à alteração do pedido e causa de pedir por entender que , no articulado inicial, os AA tinham já deduzido, para além do pedido principal, um pedido subsidiário; julgou improcedente a excepção de ineptidão visto que a formulação do pedido de reconhecimento de propriedade sobre as aludidas quantias está formulado implicitamente; quanto à legitimidade dos AA, reconheceu-a, improcedendo a excepção, porque os AA são os únicos e universais herdeiros da falecida Joaquina a qual outorgou testamento a seu favor, não havendo, assim, qualquer necessidade de ser a herança a demandar os réus; julgou-se procedente a excepção de caso julgado quanto ao pedido principal, não quanto ao pedido subsidiário porque neste o fundamento é o de que as quantias monetárias são pertença dos réus na proporção de metade para eles e de metade para a falecida Joaquina
8. Após julgamento, foi proferida sentença onde se considerou que, uma vez não ilidida a presunção de que o dinheiro do depósito pertence em partes iguais a cada um dos titulares (salvo no que respeita aos 3.490.000$00 da conta do BES) foram os réus DD […] e EE […] condenados a restituírem aos AA , metade a cada um deles, a quantia de 59.373,20€ com juros de mora à taxa de 4% desde a citação; e foram os réus FF […] e GG […] condenados a restituírem aos AA, metade a cada um deles, a quantia de 35.596,71€, acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a citação.
Foram os AA absolvidos do pedido reconvencional dadas as respostas negativas aos factos susceptíveis de permitir fundar a usucapião sustentando-se que, com a apresentação da queixa-crime (5º dia: artigo 323.º/2 do Código Civil) em 1999 se interrompeu o prazo prescricional iniciado com os levantamentos de 1996 e 1997, inutilizando-se o período anterior, reiniciando-se o prazo da usucapião depois do trânsito em julgado do acórdão proferido no processo-crime, ou seja, pelo menos em 16-5-2003 (data de prolação do acórdão), interrompendo-se novamente com a citação dos réus para a presente acção em 8-1-2004, antes, portanto, do prazo de 6 anos a que alude o artigo 1299.º do Código Civil; sempre o pedido cível de indemnização deduzido em processo- crime em Fevereiro de 2002 ( a não relevar a queixa-crime) valeria como facto interruptivo do decurso do prazo da usucapião, pois o 1º levantamento foi de 15-4-1996.
9. Do acórdão da Relação que negou provimento às apelações, foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal formulando os réus FF […] e mulher as conclusões que a seguir se transcrevem cujo sentido é acompanhado pelas conclusões dos recorrentes DD […] e mulher:
1- Nos termos do disposto nos artigos 2024.º e 2032.º do Código Civil, aberta a sucessão, os herdeiros são chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do falecido.
2- As normas jurídicas aplicáveis e subsumíveis ao caso seriam, assim, os artigos 342.º e seguintes do Código Civil em conjugação com o artigo 516.º do mesmo Código, nos termos dos quais ‘aos autores cabia apenas a alegação e a prova de que a D. CC de quem são herdeiros era co-titular, à data da sua morte, de uma ou mais contas solidárias com os réus’.
3- Acontece que aos factos (concernentes ao ora recorrente) que resultaram provados não é possível esta subsunção jurídica, pois não ficou provado que à data da sua morte, em 24-12-2001, a D. CC fosse titular da indicada conta do BPI com o ora réu.
4- Bem pelo contrário, dos elementos constantes dos autos, nomeadamente da informação bancária de fls. 237, resulta que a conta de que a falecida tinha sido titular com o ora recorrente já não existia à data do seu decesso e da matéria provada em 13 resulta que os levantamentos em causa ocorreram pouco tempo depois da abertura da conta e muito antes do falecimento.
5- Cometeu, pelo exposto, a Relação manifesto erro na subsunção dos factos ao direito, pois não está provado nos autos que à data da morte da Joaquina, 24-12-2001, data em que os AA ingressaram na titularidade das relações jurídicas patrimoniais daquela, existisse a conta do BPI, aberta em 15-7-1997, em regime de solidariedade pela Joaquina e ora recorrente.
6- Daí que o pedido, quanto ao recorrente, tenha necessária e forçosamente que ser julgado improcedente por falta de prova do facto ( que foi erradamente pressuposto) em que assentava a subsunção jurídica feita.
Não se encontra provado o facto constitutivo do direito dos AA em que estes fundaram o pedido de restituição da quantia de 35.596,71€, como herdeiros daquela Joaquina.
7- A decisão recorrida violou o disposto no artigo 2024º e 2032º do Código Civil.
8- Os AA, enquanto herdeiros da falecida D. CC, apenas ingressaram nas relações jurídicas patrimoniais do falecido existentes à data do óbito - ora se naquela data a conta bancária em causa ( no BPI) nem sequer existia, como consta dos autos, é manifesto que não herdaram direito algum sobre a mesma.
9- Violou ainda o arresto em crise os artigos 516º e 533.º do Código Civil.
10- Para a correcta aplicação da presunção de solidariedade desse crédito (leia-se, saldo bancário) prevista no artigo 516º do Código Civil e porque se não apurou em que medida é que cada co-titular solidário (D. CC e ora recorrente) contribuiu para o saldo daquela conta, importava saber os respectivos saldos, no momento de cada levantamento.
11- Pois, para aplicar o disposto no artigo 533.º do Código Civil tinha necessariamente que se apurar em que medida é que o crédito dos réus ‘ foi satisfeito para além da parte que lhes competia na relação interna entre os credores’.
12- Para o efeito, haveria que se apurar qual o saldo total da conta do BPI na data de cada um dos dois levantamentos, para depois poder aferir se a recorrente levantou a sua ( presumida) quota-parte (metade) se levantou mais ou levantou menos, e tudo, em que medida.
13- A presunção prevista no artigo 516º do Código Civil existe apenas quanto aos saldos credores. Não existe quanto a levantamentos, como erradamente considerou o acórdão recorrido.
14- Mal andou, pelo exposto, a Relação, confirmando a decisão do tribunal de 1ª instância que se limitou a presumir, sem mais, que metade do valor levantado pertencia à outra contitular, pois não é isso o resultante do regime de solidariedade da conta bancária.
15- O que, diversamente, resulta do regime jurídico da solidariedade é que, a cada momento, a cada contitular se presume pertencer metade do respectivo saldo credor perante o Banco.
16- Ora, o Tribunal não cuidou de determinar qual o saldo bancário existente à data de cada um dos invocados levantamentos do ora recorrente, pelo que o acórdão em crise violou , de forma gritante, o disposto nos artigos 516.º e 533.º e ainda o disposto no artigo 1305.º do Código Civil, pois condenou o réu a ‘ restituir’ aos AA valores que são sua exclusiva propriedade.
Sem prescindir
17- Quanto ao pedido reconvencional de reconhecimento de que o recorrente adquiriu , de forma originária, a quantia de 71.193,42€, ou seja, o numerário, enquanto coisa móvel e usucapível, violou o acórdão recorrido, na interpretação feita, o disposto no artigo 1259.º do Código Civil, pois é manifesto que a posse por parte do recorrente das indicadas quantias de dinheiro que levantou - porque se trata de uma conta solidária - fundou-se num modo legítimo de adquirir.
18- Tal como é entendimento jurisprudencial pacífico, este tipo de conta tem como pressuposto necessário a autorização ou consentimento - pelos menos tácito - que antecipada e reciprocamente os seus titulares dão uns aos outros para a livre movimentação e disposição das contas e respectivos numerários.
19- Assim, e independentemente da validade substancial do negócio ( no caso do levantamento exceder a quota-parte do titular na conta solidária, o certo é que era perfeitamente legítimo ao réu reconvinte levantar - como levantou - as indicadas quantias daquela conta solidária.
20- A posse dos réus de tais valores é, por isso, titulada e, como tal, presume-se de boa fé já que, conforme dispõe a primeira parte do nº2 do artigo 1260.º do Código Civil ‘ a posse titulada presume-se de boa fé’.
21- O aresto aplicou o prazo de 6 anos para a aquisição por usucapião quando o mesmo é 3 anos, havendo justo título conforme 1º parte do artigo 1299.º do Código Civil.
22- O prazo de 3 anos decorreu entre as datas dos levantamentos ( 21/08 e 15/12/1997) e a data da dedução do pedido de indemnização civil pelos aqui autores no âmbito do processo-crime findo (Março de 20002) referida na sentença, data em que os autores reconvindos exprimiram , pela primeira vez, perante os reconvintes, a intenção de exercerem o direito a peticionarem as indicadas quantias.
23- O acórdão viola ainda o artigo 323.º/4 do Código Civil, pois que da apresentação da participação criminal não resulta manifesta a intenção de exercer o direito, requisito previsto naquele normativo, aplicável por força do artigo 1292.º do mesmo diploma, para efeitos de interrupção do prazo da usucapião.
10. Factos provados:
1- Por escritura pública de habilitação de herdeiros lavrada no dia 22-2-2002 no 2º Cartório Notarial […] os aqui autores foram declarados os únicos e universais herdeiros da falecida CC […], falecida a 24-12-2001 (A).
2- Por testamento outorgado a 21-6-1999, igualmente no 2º Cartório Notarial […], a referida CC, no estado civil de viúva, instituiu os aqui autores como seus únicos e universais herdeiros (B).
3- O 1º réu era enteado da falecida CC, sendo o 2º réu filho daquele (C).
4- A falecida e o 1º réu marido eram co-titulares das seguintes contas bancárias:
a) conta n.º 621[…], agência […] do Banco Espírito Santo;
b) conta master n.º 325 […] , agência […]do Banco Português do Atlântico, actualmente Millenium BCP (D).
5- Tais contas podiam ser movimentadas exclusivamente com a assinatura do 1º réu (E).
6- A falecida e o 2º réu marido eram co-titulares da seguinte conta bancária: conta n.º ...., agência […]do Banco Borges &Irmão (F).
7- Tal conta podia ser movimentada exclusivamente com a assinatura do 2º réu (G).
8- Os montantes depositados em tais contas ascendia a cerca de Esc. 38.000.000$00/190.000,00€ provenientes sendo que, deste valor, pelo menos 3.490.000$00 ( da conta do BES) era pertença exclusiva do 1º réu (H).
9- O 1º réu marido, em 15-4-1996, procedeu ao levantamento de 8.360.517$00 da conta do BPA, em 7-2-1997 ao levantamento de 4.500.000$00 da conta do BES e em 8-5-1997, ao levantamento de 14.436.613$00 da conta do BES (I).
10- O 2º réu marido, em 21-8-1997 e em 15-12-1997, procedeu ao levantamento das quantias de 8.073.000$00 e de 6.200.000$00, respectivamente, ambas da conta do BPI (J).
11- Em Maio de 1996, o 1º réu , acompanhado pela falecida e autora AA, levantaram a quantia de 3.490.000$00, correspondentes à parte da autora Maria Beatriz no depósito constituído na conta do BES, ficando o remanescente em depósito (K).
12- A conta identificada na alínea F) foi aberta em 15-7-1987 (2).
13- À morte do marido da CC o património do casal era constituído, para além do mais, por uma casa de habitação e pelo Campo da […] (4).
14- o 2º réu esteve emigrado na Alemanha desde 1976 (5).
15- A partir de Julho de 1993 toda a correspondência bancária passou a ser endereçada para a residência do sogro do 2º réu, ou seja, Rua da Praia […] (6).
16- A falecida CC auferia apenas 20.000$00 mensais a título de reforma (7).
17- A correspondência bancária relativa à conta do BPA era exclusivamente dirigida para a casa do 1º réu (12-A).
18- A partir de Novembro de 1996 toda a correspondência bancária referente à conta do BES passou a ser endereçada para o 1º réu - apartado nº 65((13).
19- Do documentos de fls. 421 resulta que, com o levantamento de 8.360.517$00, a conta Master nº 118[…] ficou em 15-4-1996 com saldo 0 ( ver fls. 421).
20- A conta do BES ficou saldada com o levantamento de 14.436.613$00 (ver fls. 334/335).
Apreciando:
11. Os AA são sucessores de CC […] falecida em 24-12-2001.
12. A referida CC era co-titular das contas bancárias referenciadas com os réus maridos: ver 4 a 7 supra.
13. As quantias levantadas das referidas contas não integraram o património hereditário da CC precisamente porque o seu levantamento ocorreu em momento anterior ao do seu decesso que coincide com o momento da abertura da sucessão (artigo 2031.º do Código Civil).
14. No entanto, porque a sucessão se traduz no chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações patrimoniais de pessoa falecida (artigo 2024.º do Código Civil), com tal definição do fenómeno sucessório exprime-se a ideia de que o “ facto de a disposição se referir, não apenas à titularidade dos bens, mas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais em geral, significa naturalmente que a sucessão tanto abrange a substituição no lado activo, como no lado passivo das relações hereditárias, embora o fenómeno típico da devolução, subsequente ao chamamento, apenas se refira aos bens, no lado activo da relação jurídico-patrimonial”(Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol VI, 1998, pág. 7).
15. Ora, no caso, não se trata, na verdade, de considerar integrado no património hereditário as aludidas quantias, que já tinham saído das contas bancárias de que a CC era co-titular, mas antes a existência do direito de crédito da referida CC respeitante às referidas quantias que alegadamente lhe pertenciam exclusivamente ( assim foi mencionado na petição inicial onde, a título de pedido principal, se reclamou a totalidade dos levantamentos; o pedido que subsiste é o pedido subsidiário que tem em vista metade dessas quantias) e de que os réus se apropriaram sem disporem, para tanto, nem de autorização dado pela co-titular nem de título que a justificasse.
16. Naturalmente, os herdeiros que, por virtude do fenómeno sucessório, encabeçam as relações de que anteriormente era titular a pessoa falecida - o que significa que tudo se passa exactamente na mesma pois ocorre tão somente uma mudança de titular - podem exercer os mesmos direitos que podiam ser exercidos pelo de cujus, não lhes ficando subtraída a possibilidade de reclamar os créditos que aquele podia ter reclamado e não reclamou.
17. Nessa medida, e porque estamos face a um direito de crédito fundado no indevido enriquecimento dos réus à custa da falecida CC, não pode tal direito, assim qualificado, deixar de se considerar integrado no património hereditário, susceptível de integrar a própria relação de bens, muito embora passível de exclusão se for negada pelo devedor (artigos 1346.º/3, alínea a), 1348.º, 1351.º todos do C.P.C).
18. Aliás, a cobrança de dívidas activas da herança pode ser exercida pelo próprio cabeça-de-casal em caso de periculum in mora (artigo 2089.º do Código Civil) e, como parece óbvio, seria surpreendente que os herdeiros que respondem pelas dívidas da herança com o seu património pessoal, salvo aceitação a benefício de inventário (artigos 2053.º e 2071.º do Código Civil), não pudessem reclamar créditos da herança. Na tese dos recorrentes, porque o numerário foi levantado antes do decesso da CC, os seus herdeiros nada mais poderiam fazer, significando isto que seriam premiados os levantamentos indevidos de conta bancária de pessoa ulteriormente falecida com a impossibilidade os herdeiros reclamarem tais quantias.
19. Os recorrentes, que levantaram de contas bancárias de que eram titulares conjuntamente com a CC um total de 41.570.130$00 (207.350,93€), pretendem que nada devem, apesar de não estar ilidida a presunção atenta a prova produzida de que, enquanto credores solidários da instituição de crédito onde foram depositadas as aludidas quantias, comparticipam em partes iguais no crédito (artigo 516.º do Código Civil).
20. É que, segundo argumentam, a fim de se saber “em que medida é que o crédito dos réus ‘ foi satisfeito para além da parte que lhes competia na relação interna entre os credores’ importaria apurar o saldo total da conta na data de cada um dos levantamentos, para depois poder aferir se os réus levantaram a sua ( presumida) quota-parte (metade) se levantaram mais ou menos, e tudo, em que medida, pois a presunção do artigo 516º do Código Civil existe apenas quanto aos saldos credores”.
21. Importa notar que todas as contas em causa nos autos estão saldadas e, no que respeita às contas de que era titular o réu DD […], ele próprio confessou que levantou a totalidade dos valores em existência ( ver artigos 22.º e 28.º da contestação a fls. 67/68), o que resulta igualmente dos documentos referidos em 19 e 20 supra da matéria de facto.
22. Por isso, o saldo a considerar é desde logo o correspondente a tais valores.
23. Se as contas não estivessem saldadas, importaria considerar o quantitativo sobrante para se verificar então se o levantamento ultrapassou ou não metade do depósito subsistente. Se este correspondesse a metade do levantado, o valor sobrante caberia por inteiro ao outro co-titular.
24. Não se suscitou esta questão, nem tinha de o ser, pois certo é que as contas estão saldadas e por conseguinte, os herdeiros da CC e respectivos co-titulares têm direito a metade das importâncias levantadas, como as instâncias decidiram, e bem.
25. A ideia dos recorrentes de que importaria verificar, por cada levantamento, se este era ou não superior a metade do saldo então existente, considerando-se válido o levantamento não superior a metade, poderia originar uma situação deste tipo: (a) 10.000 em saldo: levantamento 4.000, portanto 6.000 em saldo; (b) levantamento 2.500, portanto 3.500 em saldo; (c) levantamento 1.500, portanto 2.000 em saldo; (d) levantamento 1.000, portanto 1.000 em saldo; (e) levantamento 500, portanto 500 em saldo; (f) levantamento 250). Ou seja, uma conta de 10.000 ficava reduzida a 250 e os levantamentos seriam considerados irrepetíveis quanto a metade com o argumento de que, no momento de cada levantamento, não se retirara mais do que metade!
26. Ora não existindo outros levantamentos por parte do outro co-titular, questão que aqui jamais foi suscitada, os valores a restituir são sempre 50% dos montantes levantados, importando, quanto ao sobrante, se houver, dividi-lo em 50% por tantos serem os co-titulares. No exemplo dado, do valor total levantado de 9750, 50% (ou seja, 4.875) seriam devidos ao outro co-titular que faria seus 50% do valor sobrante de 250, ou seja, 125, perfazendo-se, assim, 50% do total de 10.000 (4875+125=5.000).
27. Parece que os recorrentes pretendem que se considere ilidida a presunção constante do artigo 516.º do Código Civil de igual participação no crédito que detinham sobre a instituição de crédito onde foram efectuados os depósitos de numerário nas aludidas contas bancárias considerando-se que tais quantias foram adquiridas por usucapião.
28. No entanto, e abstraindo por mera comodidade de raciocínio de que o numerário é usucapível, o que importa é o reconhecimento da propriedade no momento do depósito, ou seja, a montante dos actos que o co-titular de uma conta pode praticar no âmbito do contrato de depósito, in casu depósito bancário ( artigo 407.º do Código Comercial); é que tais actos inserem-se no plano das relações contratuais que emergem do contrato de depósito e, portanto, respeitam às relações instituição de crédito/depositante, não exprimem de modo algum o exercício de um poder de facto sobre uma coisa ( o numerário depositado) exercitável contra o outro co-titular; se assim fosse, isso logicamente pressuporia, por parte do exercente, o reconhecimento de que afinal a coisa depositada era, quando do depósito, do outro e não dele próprio.
29. Isto é assim porque o depositante, como credor solidário, “ tem apenas um direito de crédito, isto é, o direito a receber a prestação a que está adstrito o devedor, o direito a exigir a entrega da importância do depósito. Mas esse direito não pode confundir-se com a propriedade da quantia depositada; é atribuído por igual a todos os titulares da conta, e a importância do depósito pode pertencer a um só deles ou mesmo a um terceiro, e é evidente que, na totalidade, não pode integrar-se no património ou constituir riqueza de todos” (José Gabriel Pinto Coelho, “Operações de Banco”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 81.º, pág. 227).
30. E prossegue o ilustre autor, agora já no plano que mais nos importa salientar que é o da não usucapibilidade do valor depositado, que “ rigorosamente, porque se trata de depósito de dinheiro e portanto de direito de crédito relativo a uma coisa fungível, isto é, de prestação que tem por objecto uma coisa fungível, nem pode falar-se de propriedade ou de direito real sobre a coisa depositada, não podendo conceber-se o direito real, quando a prestação tem por objecto coisas indeterminadas de certa espécie ou qualidade, senão depois de feita a determinação ou a escolha. Ora o depositante é credor duma prestação pecuniária, e assim, antes de lhe ser entregue a prestação, não pode falar-se em propriedade ou objecto desta, ou da quantia devida” (loc. cit, pág. 227).
31. O depósito bancário é um depósito irregular ao qual, por força da lei, se aplicam as normas relativas ao contrato de mútuo (artigos 1205.º e 1206.º do Código Civil) tudo isto significando que o depositário adquire a propriedade do objecto do depósito e é obrigado a restituir quantidade igual da mesma espécie e qualidade; não estamos, salvo situações outras que não importam agora (depósito e moeda sem curso legal, por exemplo), face a uma restituição em espécie, não se impondo ao banqueiro sequer conservar em depósito igual quantidade e qualidade das coisas depositadas.
32. Por isso, independentemente da possibilidade de aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre numerário ( ver Ac. do S.T.J. de 30-1-2001, revista n.º 2292/00 in www.dgsi.pt cujo sumário diz “ não podendo subsistir um direito real sobre uma quantia em dinheiro, por não ser uma coisa corpórea e determinada, ela é também insusceptível de ser adquirida por usucapião”), para ela não concorrem os actos ao dispor do depositante, não assumindo o mero acto de levantamento de importâncias depositadas efectuado nos termos de um contrato real quoad constitutionem, como é o caso do contrato de depósito, o significado jurídico de uma “ inversão do título de posse”, incompreensível, pelas razões expostas atinentes ao contrato de depósito, incompreensível também porque, para que assim pudesse ser, os réus não poderiam deixar de assumir que a falecida era a proprietária da totalidade das quantias depositadas.
33. Ainda que se quisesse atribuir aos actos do depositante o significado de actos de posse para usucapião, verifica-se que não logrou favor probatório o juízo sobre a convicção do depositante de que lhe pertenciam as quantias depositadas, juízo alegadamente aferido pela realização de depósitos e levantamentos com o conhecimento da falecida, pois não se provaram as respostas aos quesitos 8.º e 9.º.
34. Afinal o que relevaria, para efeito de se ilidir a mencionada presunção, seria a demonstração de que as quantias depositadas pertenciam aos próprios recorrentes e tal prova manifestamente não foi produzida.
Concluindo:
I- Os herdeiros podem reclamar o crédito correspondente aos levantamentos efectuados ainda em vida da pessoa titular de conta bancária.
II- O Tribunal, uma vez não ilidida a presunção de solidariedade constante do artigo 516.º do Código Civil, pode condenar os co-titulares que procederam aos levantamentos dos depósitos a restituir metade desses valores, não importando atender ao valor do saldo no momento de cada levantamento.
III- No que respeita às quantias entregues para depósito bancário, não são elas usucapíveis pelo co-titular porque se trata de depósito de dinheiro e portanto de direito de crédito relativo a uma coisa fungível, isto é, de prestação que tem por objecto uma coisa fungível, não podendo falar-se de propriedade ou de direito real sobre a coisa depositada, não podendo conceber-se o direito real, quando a prestação tem por objecto coisas indeterminadas de certa espécie ou qualidade, senão depois de feita a determinação ou a escolha.
Decisão: nega-se a revista
Custas pelos recorrentes
Lisboa, 19 de Maio de 2009
Salazar Casanova (Relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar