REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CASO JULGADO MATERIAL
VALOR EXTRAPROCESSUAL DAS PROVAS
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - Para reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, como é pressuposto de um segundo julgamento da matéria de facto, a Relação deve proceder à audição da prova pessoal gravada e à análise do teor dos documentos existentes nos autos, examinando as provas e motivando a decisão, adquirindo os elementos de convicção probatória, de acordo com o princípio da convicção racional.
II - Na prova documental autêntica, prevalece o princípio da prova legal, só podendo a respectiva força probatória ser elidida, mediante a prova do contrário ou através do incidente da falsidade, excepto quando a falta de autenticidade for manifesta, pelos sinais exteriores do documento.
III - Não constitui violação do princípio do caso julgado a consagração de factos com base em documentos oriundos de acções apensas, já decididas com trânsito em julgado, entre as mesmas partes a que a causa respeita, nem a reprodução do conteúdo da parte dispositiva da sentença nelas proferida, transitada em julgado.
IV - Em matéria de reapreciação das provas, na sequência do pedido de alteração sobre a decisão relativa à matéria de facto, formulada pelos recorrentes, a Relação está vinculada a idêntico dever de fundamentação das respostas proferidas, tal como acontece com a decisão em 1ª instância. Não se afigura, portanto, inconstitucional a norma contida no art. 653.º, n.º 2, do CPC.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

“AA – Indústria de Móveis Tosel, Ldª”, com sede em Albergaria dos Doze, Pombal, propôs a presente acção, sob a forma de processo ordinário, contra BB e esposa, CC, entretanto, falecida, e no lugar da qual foram julgados habilitados aquele e DD, casado com EE, pedindo que, na sua procedência, estes sejam condenados a restituir-lhe a posse da porção de terreno, identificada no auto de entrega judicial da acção sumária nº 389/94, 1º Juízo, 1ª secção, do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, e ainda a ser mantida na posse do mesmo terreno, até ser convencida de que a propriedade não lhe pertence, alegando, para o efeito, e, em síntese essencial, que, sendo dona do prédio urbano infraidentificado, com a área de 17011,822 m2, a que corresponde o artigo matricial com o nº 1606, e a respectiva descrição predial nº 1030, da freguesia de Albergaria dos Doze, que vem utilizando, há vários anos, com a superfície mencionada, os réus pretendem apropriar-se de uma parte do prédio em causa, individualizada no aludido auto de entrega judicial.
Na contestação, os réus concluem pela improcedência da acção e pela condenação da autora como litigante de má fé, formulando um pedido indemnizatório, no quantitativo de 465 000$00, invocando, para o efeito, em resumo, que as matrizes de 1957 estão desactualizadas, em virtude de sucessivas transmissões dos confinantes, pelo que o prédio, a que corresponde o artigo nº 11864, confronta, actualmente, de Norte, com estrada da Ladeira, e de Sul, com estrada da Vidoeira, que compraram, em 14 de Fevereiro de 1989, e registaram, para além de que foi por eles adquirido, por usucapião, em razão da posse que, por si e antecessores, exercem, há mais de 40 anos.
Que a autora adquiriu o prédio, a que corresponde o artigo nº 11 851, em 1981, mas com as confrontações referidas no artigo 3º da petição inicial, e com a área de 11 000 m2, sendo certo que, em 14 de Maio de 1993, fez rectificar as confrontações e a área dos logradouros de 7500 m2 para 17 011,822 m2, sacrificando, assim, os prédios dos réus, quer aquele a que respeita o artigo nº 11864, quer outro, pelo que a descrição feita, no artigo 1º da petição inicial, não corresponde à realidade material, quanto às confrontações, área e anexos, que são 4 e não 7.
A autora ocupou parte do prédio dos réus, entrando nele, abusivamente, em 1994.
Na réplica, a autora rejeita a matéria articulada na contestação, concluindo como na petição inicial.
A sentença julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
Desta sentença, a autora interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a respectiva apelação, confirmando a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação, a mesma autora interpôs recurso de revista, tendo este Supremo Tribunal de Justiça anulado o acórdão recorrido, ordenando a baixa dos autos à Relação de Coimbra, para suprir a falta de conhecimento da impugnação da matéria de facto, em conformidade com o disposto pelo artigo 731º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Ouvida a prova pessoal gravada, o Tribunal da Relação proferiu novo acórdão, julgando improcedente a apelação e confirmando a sentença recorrida.
Deste novo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, a autora interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e repetição do julgamento, em 2ª instância, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra violou os poderes de reapreciação da matéria de facto ao realizar um novo julgamento em 2a instância, produzindo ex-novo, novas respostas aos quesitos da base instrutória e aditamentos aos factos assentes.
2ª - No Acórdão recorrido foi realizado um novo julgamento em matéria de facto na 2a instância, sem dar prévio cumprimento ao contraditório e sem ordenar a renovação dos meios de prova nos termos do artigo 712 n° 3 do C P. Civil, violando desse modo a regra do artigo 665º do C P Civil.
3ª - O Acórdão recorrido limitou-se a alterar a matéria de facto com base em documentos com violação do artigo 655 n° 1 e n° 2 do CPC apenas com base em factos dados como provados noutras acções desprezando a prova testemunhal, tudo em sentido desfavorável à recorrente.
4ª - O recurso de revista é admissível em face do princípio de unidade ou absorção, quando a revista se fundamente, em termos principais, na violação de lei substantiva e, em termos acessórios, na violação de normas processuais pelo qual não é vedada, neste ponto particular, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.
5ª - O recurso tem também como fundamento a violação do disposto no artigo 722 n°2 in fine, pois o Acórdão recorrido valora como documentos autênticos peças processuais existentes na acção 398/94, e desse modo viola o artigo 369° e 370° e 371 do C. Civil o sentido e limites do caso julgado proferido na referida acção 285/99 e também na acção 398/94.
6ª – O Acórdão socorre-se de factos, documentos, raciocínios, pressupostos vertidos nas acções n°s 389/94 e 285/99 para alicerçar a sua convicção, bem distinta daquela que resulta da análise criteriosa e rigorosa da matéria de facto produzida e é em si mesmo uma violação dos limites do caso julgado e do direito a um processo justo e equitativo previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
7ª - O Acórdão recorrido ignora, por defeito, a matéria de facto constante dos depoimentos das testemunhas e socorre-se de "Auto de entrega Judicial” lavrado na acção 398/94 e do que foi constatado por oficial publico como se de um documento autentico se tratasse, sendo certo que outras acções que correram entre ambas as partes não fazem caso julgado em relação à matéria que se discute nos presentes autos e podem ser objecto de recurso de revisão.
8ª - O artigo 653 n° 2 do C.P. Civil é inconstitucional porque não impõe ao julgador a justificar a motivação das respostas dadas à matéria de facto por referência aos pontos concretos dos depoimentos das testemunhas com referência ao registo magnético que possam fundamentar a resposta dada à questão a provar, conforme é exigido às partes pelo artigo 690-A n° 1 do C P. Civil, o que se verificou também na 2a Instancia.
9ª - O Acórdão recorrido mantém a alteração da causa de pedir da presente acção (restituição provisória da posse) sendo certo que não considerou provada a localização exacta do prédio com o artigo matricial n°11.864.
10ª - O Acórdão recorrido viola o caso julgado formado no despacho saneador e decide ilegalmente nos presentes autos a matéria de facto e de direito, quando refere que a recorrente confunde turbação de posse com esbulho, decisão judicial de restituição com turbação ou esbulho e causa de pedir com pedido, o que revela um julgamento sumário dos autos, sem renovação da prova em 2a instancia e sem contraditório prévio.
Foram violadas as normas dos artigos 369°, 370° e 371º do C. Civil, 3º, nº 3, 275º, 661º, nº 3, 664º, 652º, 653º, nº 2, 655º, nºs 1 e 2, 712º, nºs 2 e 3 e 722º, todos do CPC, e 20º, 62º, 202º, 203º e 204º da Constituição da República.
Os réus não apresentaram contra-alegações.
O Tribunal da Relação declarou demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça reproduz:
1. Na Conservatória do Registo Predial de Pombal, freguesia de Albergaria dos Doze, encontra-se registado o seguinte prédio: urbano, em Vale........, destinado à indústria, com ................, com a superfície coberta de 3.275 metros2, com o anexo 1 de 75 metros2, o anexo 2 de 100 metros2, o anexo 3 de 25 metros2, e o anexo 4 de 100 metros2, e logradouro com 7.500 mts2, a confrontar de Norte, Nascente e Sul com caminho, Poente com herdeiros de FF, com o artigo 1368º, e a descrição sob o nº 1030.
2. Pela apresentação 7, de 14 de Maio de 1993, foi averbado que o imóvel acabado de referir tinha área de logradouro com 17.011, 822 mts2, bem assim como o anexo 5 (451, 30 mts2), o anexo 6 (316, 75 mts2), o anexo 7 (177 mts2), confrontando do Norte com GG Nascente com EM 532- 1, HH e cemitério, do Poente com II (art. 1.606º) - A);
3. Por escritura de 9 de Dezembro de 1981, JJ, LL e esposa venderam a MM o seguinte prédio: pinhal e mato, no sítio de Vale Ternoves, freguesia de Albergaria dos Doze, a confrontar de Norte, Nascente e Sul com caminho, e do Poente com herdeiros de FF, inscrito na matriz sob o artigo 11. 851º, não descrito na CRP - B);
4. No prédio, referido na alínea B) dos factos assentes, foi construído um edifício destinado à industria, com rés-do-chão e 1º andar, com a superfície coberta de 3.275 metros2, com o anexo 1 de 75 metros2, o anexo 2 de 100 m2, o anexo 3 de 25 metros2, e o anexo 4 de 100 metros2, passando a estar inscrito, na matriz urbana, sob o artigo 1368º, da freguesia de Albergaria dos Doze - C);
5. Os réus têm inscrito, no registo predial, a seu favor, desde 10 de Março de 1989, um prédio, em Vale Damieiro, de pinhal e mato, com 2.156 mts2, a confrontar de Norte com caminho, Nascente com NN, Sul com caminho e Poente com OO, inscrito na matriz, sob o artigo 11. 864º, descrito na CRP, sob o nº 287 - D);
6. Por sentença de 1 de Fevereiro de 1996, proferida no Pº 389/94 (ou 398/94) e transitada em julgado, foi a autora condenada a reconhecer que os ora réus são donos e proprietários desse prédio, referido em 5, a restituir aos aqui réus tal prédio e a indemnizar os autores, ora réus, pelos danos resultantes do corte de árvores e depósito de madeiras nesse prédio - E) e documento de folhas 41 e ss;
7. Na sequência dessa decisão, aos 6 de Maio de 1999, em execução da sentença, referida em 6, foi, judicialmente, entregue aos aqui réus, o imóvel dito 11 864, confrontando a Norte com caminho e a Sul com caminho, a que se reporta o auto certificado a folhas 48 e 49 dos autos, restituindo-o a BB e mulher, na presença das partes e mandatários e de força da GNR, após retirada das madeiras que o ocupavam, mais constando desse auto, em suma: tal restituição foi feita apesar de PP (representante da ré) se ter oposto à remoção das madeiras, afirmando que o terreno é sua pertença e não do exequente BB; o exequente deu-se por investido da posse do terreno; o representante da executada, embora se tenha recusado a assinar o auto, acabou por assiná-lo, com a declaração de que as confrontações constantes do processo executivo não coincidem com os documentos que existem.
8. Por sentença proferida, aos 10 de Janeiro de 2000, no Pº 285/99, cuja decisão foi confirmada, pelo acórdão da Relação de 16 de Janeiro de 2001, e em relação ao qual foi negada a revista, pelo acórdão do Supremo de 12 de Julho de 2001, foi declarado que a ora autora é dona de um prédio urbano, sito em Vale Ternoves ou Castelo, freguesia de Albergaria dos Doze, destinado à indústria, composto de rés do chão.........., com a superfície coberta de 3.275 mts2, com o anexo 1 com área de 75 mts2, o anexo 2 com área de 100 mts2, o anexo 3 com área de 25 mts2, o anexo 4 com área de 100 mts2, e o logradouro com 7.500 mts2, a confrontar a Sul com caminho, do Nascente com EM 532, do Poente com herdeiros de FF, e a Norte com o caminho que liga Albergaria dos Doze a Vidoeira, tendo, por isso, a configuração e limites que são assinalados no croquis de folhas 21 da acção 285/99, do 2º juízo deste Tribunal, e até ao caminho que liga Albergaria dos Doze a Vidoeira, que o limita a Norte, prédio esse que, embora com descrição diferente da acabada de fazer, se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Albergaria dos Doze, sob o nº 1.606º, e descrito na CRP de Pombal, sob o nº 1030º, da freguesia de Albergaria dos Doze - G);
9. Na porção de terreno que se localiza entre os caminhos da Vidoeira e da Ladeira, a confrontar com a QQ, a autora e antes de si a RR cortaram algumas árvores aí existentes e depositaram madeira, entre o ano de 1981 e 6 de Maio de 1999 (resposta alterada ao quesito 4º).
10. À data da proposição desta acção, o dito prédio inscrito na matriz, sob o artigo 11. 864º, confrontava a Norte com estrada da Ladeira, a Sul com estrada da Vidoeira, a Nascente QQ- Fábrica de Plásticos, Ldª, não se tendo apurado qual a confrontação, a Poente, nessa data (resposta alterada ao quesito 6º).
11. Em 14 de Maio de 1993, a autora rectificou, na CRP, a área do seu prédio, passando este de 11 075 m2 para 21531,872m2 (resposta ao quesito 7º).
12. Os réus intentaram a acção de reivindicação nº 398/94, da 1ª Secção, 1º Juízo, após este aumento de área criado pela autora (resposta ao quesito 9º).


Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da violação dos poderes de reapreciação da matéria de facto pela Relação.
II – A questão da violação do caso julgado.
III – A questão da constitucionalidade da norma que não impõe ao julgador a justificação da motivação das respostas dadas á matéria de facto.

I. DA VIOLAÇÃO DOS PODERES DE REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PELA RELAÇÃO

Defende a autora que o acórdão recorrido violou os poderes de reapreciação da matéria de facto, porquanto produziu novas respostas aos quesitos da base instrutória e aditamentos aos factos assentes, com base em documentos e em factos dados como provados noutras acções, desprezando a prova testemunhal, sem dar prévio cumprimento ao contraditório, nem ordenar a renovação dos meios de prova.
O recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto deve, obrigatoriamente, especificar os concretos pontos de facto que considera, incorrectamente, julgados e quais os meios probatórios que impõem decisão diversa sobre os mesmos, procedendo o tribunal de recurso à audição dos depoimentos indicados pelas partes em que se funda, quando tenham sido gravados, atento o disposto pelo artigo 690º-A, nºs 1, a), b), 2 e 5, do CPC.
E o Tribunal da Relação, com vista à pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto, ocorrendo a sobredita gravação dos depoimentos prestados, reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de, oficiosamente, atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, podendo até determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª instância, ou anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida, nos termos do preceituado pelo artigo 712º, nºs 1, a), 2, 3 e 4, do CPC.
Na sequência de anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de folhas 693 e seguintes, proferido em revista interposta pela mesma autora, decidiu-se ordenar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, para suprir a falta de conhecimento da impugnação da matéria de facto, em conformidade com o disposto pelo artigo 731º, nº 2, do CPC.
A Relação de Coimbra, ouvida a prova pessoal gravada, na sequência do determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o acórdão de que se recorre, pronunciando-se, expressamente, sobre os quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, em consonância com o que fora solicitado pela autora, nas suas alegações da apelação para a Relação, sem qualquer expansão ou alargamento para outra matéria da base instrutória.
E, para reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, como é pressuposto de um segundo julgamento da matéria de facto, e, aliás, havia sido determinado por este Supremo Tribunal de Justiça, a Relação procedeu à audição da prova pessoal gravada e à análise do teor dos documentos existentes nos autos, examinando as provas e motivando a decisão, adquirindo os elementos de convicção probatória, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 655º, nºs 1 e 2, do CPC, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal.
Para o efeito, a Relação não tinha que observar um novo princípio do contraditório, que já ocorrera na fase das alegações de recurso e da resposta dos réus, bem assim como nas etapas anteriores da instrução do processo e da discussão e julgamento da causa, sendo certo, igualmente, que a prova já se encontrava produzida, quer a prova pré-constituída, quer a prova constituenda, não tendo sido admitida, sem audiência contraditória da parte respectiva, como decorre da exigência constante do artigo 517º, nºs 1 e 2, do CPC, porquanto do que se tratou, com o novo julgamento da Relação, foi, tão-só, o de, reapreciando a prova existente, dela retirar uma eventual e nova convicção probatória.
Por outro lado, a Relação entendeu não dever determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª instância, certamente, em virtude da reapreciação das provas em que se baseou, para conhecer a parte impugnada da decisão, se ter mostrado suficiente para o apuramento da verdade material, atendendo ao estipulado pelo artigo 712º, nºs 1, a), 2 e 3, do CPC.
Finalmente, o acórdão recorrido precisou e explicitou o sentido de alguns factos constantes da “matéria assente”, com base no teor dos documentos que enunciou e em factos dados como provados noutras acções, em conformidade com o disciplinado pelo artigo 712º, nº 1, a), do CPC, de modo a consubstanciar a decisão sobre a matéria de facto e a evitar eventuais contradições na mesma.

II. DA VIOLAÇÃO DO CASO JULGADO

Sustenta, também, a autora que o acórdão recorrido violou o sentido e limites do caso julgado, ao valorar como documentos autênticos peças processuais existentes, nas acções nºs 398/94 e 285/99, em detrimento do que resulta da matéria de facto constante dos depoimentos das testemunhas.
De acordo com o princípio da livre convicção do julgador, que vigora, em geral, no sistema jurídico português, por força do preceituado pelos artigos 655º, nºs 1 e 2, 519º, nº 2 e 529º, todos do CPC, os meios de prova são apreciados, livremente, pelo Tribunal, sem qualquer escala de hierarquização ou vinculação, a não ser a que resulta das regras de experiência, isto é, dos juízos gerais e abstractos de sucessão causal (1)., pois que, apenas, em determinadas situações, como acontece, v. g., na prova documental, que agora interessa considerar, prevalece o princípio da prova legal, ou seja, o Tribunal está vinculado às provas com força probatória pré-estabelecida na lei, e nos termos e limites fixados.
Efectivamente, os documentos autênticos fazem prova, por si mesmo, da sua proveniência ou paternidade, e prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles estão atestados, de acordo com o disposto pelo artigo 371º, nº 1, do Código Civil (CC).
Assim sendo, os documentos existentes na acção, ou seja, o auto de entrega judicial de folhas 48 e 49, a certidão registral de folhas 232 a 234 e a certidão de descrição predial de folhas 15 a 21, constituem inequívocos documentos autênticos, cujo teor impõe ao julgador não só que valore, criticamente, a restante prova testemunhal produzida, em face deles, como, também, como já se disse, dada a natureza de prova positiva ou legal que representam, e o seu carácter de prova pré-constituída, a respectiva força probatória só pode ser elidida, mediante prova do contrário ou através do incidente da falsidade, excepto quando a sua falta de autenticidade for manifesta, pelos sinais exteriores do documento, atento o estipulado pelo artigo 370º, nº 2, do CC.
Por seu turno, os factos provados que reproduzem a parte dispositiva de uma anterior sentença, transitada em julgado, entre as mesmas partes que, novamente, pleiteiam, como acontece agora com as confrontações do prédio da autora, devem ser aceites pelo Tribunal, tratando-se, inequivocamente, de factos relevantes, pois que decidiram a causa, de modo definitivo, independentemente de os singulares factos em que a aludida sentença se suporta, poderem, eventualmente, não estar abrangidos pelo caso julgado, no sentido de deverem ser dados como provados nos fundamentos desta acção.
Independentemente de o caso julgado se formar, apenas, sobre a parte decisória da sentença final, e não, também, sobre os fundamentos de facto que a suportam (2)., ou de abranger quer as questões, directamente, decididas na parte dispositiva da sentença, quer, igualmente, as questões preliminares, que, decididas, expressamente, na fundamentação da sentença, constituem antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado (3), não constitui violação do princípio do caso julgado a consagração de factos, com base em documentos oriundos das aludidas acções apensas, já decididas com trânsito em julgado, entre as mesmas partes a que a presente causa respeita, nem o conteúdo da parte dispositiva da sentença nela proferida com as mesmas partes.
Por outro lado, diz o autor que o acórdão recorrido viola o caso julgado formal que se constituiu com o despacho saneador, porquanto indeferiu, liminarmente, a petição inicial.
Com efeito, traduzindo-se a presente acção, nos exactos termos do pedido, numa acção de restituição de posse, que se define, segundo o estabelecido pelo artigo 1278º, nº 1, do CC, como aquela em que “…, o possuidor…esbulhado será…restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito”, sendo o despacho saneador proferido nos autos, de natureza meramente tabelar, em que nenhuma questão foi apreciada, «ex professo», não se verifica qualquer ofensa ao princípio do caso julgado formal quando o acórdão recorrido, aliás, confirmando a sentença apelada, julga a acção improcedente, o que é realidade diversa e tem consequências jurídicas distintas do indeferimento liminar da petição inicial que, efectivamente, não poderia sequer ter ocorrido, por falta de suporte legal, e, aliás, se não verificou.
A isto acresce que o acórdão recorrido não consagrou qualquer alteração da causa de pedir, não tendo qualificado a acção como de restituição provisória de posse, conforme a autora sustenta, mas antes como uma acção de restituição de posse.
É que, sendo a acção de restituição provisória de posse, na definição dada pelo artigo 1279º, do CC, aquela em que “…o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador”, uma acção de defesa da posse e, simultaneamente, uma providência cautelar, consagrada pelo artigo 393º, do CPC, tal não poderia ter acontecido, porquanto foi o Tribunal, na aludida acção nº 389/94, que reconheceu os ora réus como donos da parcela de terreno e do prédio controvertidos, em acção que propuseram contra a aqui autora, que foi condenada a reconhecer os actuais réus como donos desse prédio, longe, portanto, do quadro normativo da acção de restituição provisória de posse, por falta dos requisitos do esbulho e da violência, que não é suposto os Tribunais cometerem.
Assim sendo, também, não ocorre qualquer alteração da causa de pedir da acção.

III. DA CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA DO ARTIGO 653º, nº 2, DO CPC

Defende, por fim, a autora a inconstitucionalidade da norma que não impõe ao julgador a justificação da motivação das respostas dadas à matéria de facto, por referência aos pontos concretos dos depoimentos das testemunhas e ao registo magnético que possa fundamentar a resposta dada à questão a provar, conforme é exigido às partes, pelo artigo 690º-A, n° 1, do CPC, o que se verifica, também, para a 2a instância.
Estipula, a este propósito, o artigo 653º, nº 2, do CPC, que “…; a decisão [sobre a matéria de facto] proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.
Com efeito, em matéria de reapreciação das provas, na sequência do pedido de alteração da decisão relativa à matéria de facto, formulada pelos recorrentes, a Relação está vinculada a idêntico dever de fundamentação das respostas proferidas, como acontece com a decisão em 1ª instância, em conformidade com o preceituado pelos artigos 712º, nºs 1, a) e 2, 653º, nº 2, 659º, nº 2, 659º, nº 3, 668º, nº 1, b) e 158º, nº 1, todos do CPC.
Não se afigura, portanto, inconstitucional a norma contida no artigo 653º, nº 2, do CPC, sendo certo, outrossim, que o acórdão recorrido motivou, suficientemente, as respostas dadas aos pontos controvertidos da matéria de facto, analisou, criteriosamente, as provas e definiu o sentido de orientação das alterações ou manutenções verificadas.
Improcedem, pois, as conclusões constantes das alegações da revista da autora, não se mostrando violadas as disposições legais citadas ou outras de que, oficiosamente, importe conhecer.

CONCLUSÕES:

I - Para reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, como é pressuposto de um segundo julgamento da matéria de facto, a Relação deve proceder à audição da prova pessoal gravada e à análise do teor dos documentos existentes nos autos, examinando as provas e motivando a decisão, adquirindo os elementos de convicção probatória, de acordo com o princípio da convicção racional.
II - Na prova documental autêntica, prevalece o princípio da prova legal, só podendo a respectiva força probatória ser elidida, mediante a prova do contrário ou através do incidente da falsidade, excepto quando a falta de autenticidade for manifesta, pelos sinais exteriores do documento.
III - Não constitui violação do princípio do caso julgado a consagração de factos com base em documentos oriundos de acções apensas, já decididas com trânsito em julgado, entre as mesmas partes a que a causa respeita, nem a reprodução do conteúdo da parte dispositiva da sentença nelas proferida, transitada em julgado.
IV - Em matéria de reapreciação das provas, na sequência do pedido de alteração sobre a decisão relativa à matéria de facto, formulada pelos recorrentes, a Relação está vinculada a idêntico dever de fundamentação das respostas proferidas, tal como acontece com a decisão em 1ª instância.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


Custas pela autora.

Notifique.

Lisboa, 21 de Maio de 2009

Helder Roque (Relator)
Sebastião Póvoas
Alves Velho

____________________________

(1) - Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, 1970, 283; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 382.
(2) - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 317.
(3) - STJ, de 14-3-2006, Pº nº 05B3582, in http://www.dgsi.pt