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AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DESPEDIMENTO DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
ABANDONO DO TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
I – Para que o STJ possa ordenar a ampliação da matéria de facto, nos termos do n.º 3 do art. 729.º, do Código de Processo Civil, é imperioso constatar-se que, aquando da elaboração da base instrutória ou, na sua ausência, da própria fixação dessa matéria, tenha havido preterição da “matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”, nos precisos termos do art. 511.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
II – Essa faculdade de ampliação, relativamente ao tribunal de recurso, só pode ser exercida relativamente a factos que tenham sido articulados pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, de harmonia com o estatuído no art. 264.º do mesmo Código.
III – No domínio do despedimento promovido pelo empregador, a vontade de pôr termo ao contrato há-de ser “inequívoca”, admitindo-se os “despedimentos de facto”, corporizados numa atitude inequívoca daquele, de onde decorre necessariamente a manifestação de uma vontade de fazer cessar a relação laboral.
IV – Cabe ao trabalhador, na acção de impugnação de despedimento, alegar e provar a existência de um contrato de trabalho e a sua cessação através do despedimento promovido pelo seu empregador (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
V – Não configura “despedimento de facto”, a circunstância da ré, no dia 30 de Maio de 2005, ter impedido a autora de trabalhar no seu antigo horário de trabalho, quando se constata que no dia 22, desse mesmo mês e ano, havia comunicado à autora a alteração do horário de trabalho, com efeitos a partir daquele dia 30, advertindo-a que o não cumprimento do novo horário a fazia incorrer em desobediência, alteração de horário com a qual a autora não concordou.
VI – Relativamente à cessação do vínculo laboral por iniciativa do trabalhador, a lei distingue entre a sua resolução e a sua denúncia (artigos 441.º a 450.º do Código do Trabalho de 2003): no 1.º caso exige-se que a desvinculação seja operada através de documento escrito, com a indicação sucinta dos factos que a justificam e nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos; no 2.º caso exige-se, também, uma comunicação ao empregador, que, aqui como ali, constitui uma declaração negocial receptícia.
VII – Diferentemente, o “abandono do trabalho” – artigo 450.º –, constituindo uma modalidade de denúncia tácita, pressupõe, ao invés, a omissão daquele acto.
VIII – A figura jurídica do abandono do trabalho integra dois elementos: (i) um objectivo, que consiste num incumprimento voluntário do contrato de trabalho que, na generalidade dos casos se traduz na não comparência do trabalhador no local e no tempo de laboração, (ii) um elemento subjectivo, traduzido num “animus” extintivo, que se capta através de algo que o revele ou que exteriorize factos que, de acordo com a lei, “com toda a probabilidade revelem a intenção de não retomar o trabalho”.
IX – Para que o facto seja considerado “concludente” da vontade de não retomar o serviço, não se torna necessário que o sentido dele extraível haja sido representado pelo respectivo agente: a concludência de um comportamento determina-se “de fora”, “objectivamente”.
X – Não tendo a autora feito qualquer comunicação à ré de tipo resolutivo ou denunciativo – enviou, pelo contrário, uma carta a considerar-se despedida –, o pedido indemnizatório formulado pela ré contra a autora só pode basear-se no abandono do posto de trabalho.
XI – Porém, nesta situação, para que pudesse haver lugar a indemnização à ré era necessário que esta tivesse produzido a comunicação enunciada no n.º 5, do artigo 450.º do CT, dando-lhe conta do abandono do trabalho por parte da mesma, comunicação essa através de carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida da autora.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
1- RELATÓRIO
1.1.
AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Barcelos, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra “TEBE – Empresa T... de B..., S.A.”, pedindo, com fundamento no despedimento ilícito de que diz ter sido alvo por banda da Ré, que esta seja condenada a reintegrá-la no seu posto de trabalho – sem prejuízo de oportuna e eventual indemnização optativa – e a pagar-lhe as componentes retributivas e moratórias discriminadas na P.I..
A Ré contraria na íntegra a versão da Autora, negando tê-la despedido e imputando-lhe, pelo contrário, o abandono do seu posto de trabalho, pelo que sempre lhe será devida, segundo diz, a indemnização correspondente ao referido comportamento infraccional da demandante. 1.2.
Instruída e discutida a causa, foi proferida sentença que:
- rejeitou as teses de ambas as partes, considerando improvados, tanto o despedimento aduzido pela Autora, quanto o abandono do posto de trabalho invocado pela Ré;
- contabilizando, se seguida, os montantes a que a Autora sempre teria direito pela cessação, por qualquer modo, do vínculo laboral, condenou a Ré a pagar-lhe a quantia global de € 1.882,95, acrescida de juros moratórios.
Ambas as partes reagiram recursoriamente contra tal decisão, fazendo-o a Autora a título principal e a Ré subordinadamente: debalde o fizeram, porém, visto que o Tribunal da Relação do Porto confirmou “in totum” a sentença apelada.
1.3.
Mantendo-se irresignada, a Autora pede a presente revista, onde convoca o seguinte núcleo conclusivo útil:
1- cremos, que o douto Acórdão decidiu erradamente quando julgou improcedente o recurso principal da A., confirmando a sentença recorrida, que julgou parcialmente improcedente o pedido da A. e apenas condenou a R. no pagamento de €1.882,95, acrescidos de juros moratórios, sendo que não se pronunciou o Acórdão sobre questões de direito colocadas no recurso da recorrente, questões essas que, salvo melhor opinião, são fundamentais para considerar verificado o despedimento da recorrente;
2- a questão que se colocou anteriormente, e que aqui também se coloca , é o facto de se apurar se a interpretação da recorrente, quando foi impedida, no dia 30/5/2005, de entrar nas instalações da recorrida foi, ou não, correcta no sentido de ter entendido tal comportamento como um despedimento por parte da entidade patronal;
3- conforme bem refere o Acórdão em crise, o despedimento efectuado pela entidade patronal pode ser tácito, ou indirecto, e não expresso;
4- ora, salvo melhor opinião, foi o que se passou no presente caso;
5- assim, conforme também se pode ler no Acórdão, a empregadora já tinha expressamente declarado perante a A. que não necessitava do seu trabalho e tudo fez para que esta deixasse de o prestar, mas queria fazê-lo de uma forma “barata”;
6- todo o circunstancialismo que antecedeu o dia 30/5/05 é relevante para perceber porque é que a recorrente entendeu, ao ser impedida de aceder às instalações da empresa, que estava a ser unilateralmente despedida, sendo que foi essa a intenção da recorrida;
7- assim, conforme se pode verificar da factualidade dada como provada, a recorrente estava ao serviço da recorrida desde 1979, ou seja, prestou trabalho ininterrupto para ela durante cerca de 26 anos, nunca lhe tendo sido impedido o acesso às respectivas instalações;
8- ora, se é certo que a sua entidade patronal já lhe havia comunicado a alteração do horário de trabalho, também é certo que a recorrente já tinha afirmado a sua indisponibilidade para tal horário,
9- sendo que, conforme se verifica do Acórdão, a empregadora referiu que, caso a trabalhadora não cumprisse o novo horário, tal corresponderia a uma desobediência, nunca tendo sido referido que lhe impediria o acesso às instalações da empresa;
10- é certo que a ignorância da lei não pode ser levada em conta para a produção, ou não, de efeitos jurídicos, mas certamente deverá relevar numa situação como esta, em contraposição com o enorme suporte, nomeadamente jurídico, que tem uma empresa como a R., com centenas, se não milhares de empregados;
11- para além disso, será de considerar o facto de a recorrente, no dia 31/5/2005, ter remetido uma carta à recorrente, onde relatava a situação do dia anterior, e como havia interpretado tal facto como um despedimento – cfr. ponto 10 dos factos provados;
12- sendo que a empregadora não lhe instaurou qualquer processo disciplinar, quer por desobediência – como referira na carta que lhe havia remetido, quer por faltas ao trabalho;
13- refere ainda o Acórdão que a matéria alegada pela recorrente teria interesse no caso de uma rescisão do contrato por justa causa; no entanto, como intentaria a recorrente uma tal rescisão se havia sido despedida e se afirmou isso mesmo perante a Ré sem ser por ela contrariada de qualquer forma?
14- a recorrente trabalhou sob as ordens, direcção e fiscalização da recorrida durante 26 anos, sendo que este foi o seu primeiro trabalho, tendo a recorrente apenas 15 anos aquando do início da prestação, tendo sido naquela empresa que cresceu, física, psíquica e profissionalmente, e nunca, durante todo aquele tempo, lhe foi vedado o acesso às instalações da recorrida, onde sempre cumpriu com zelo, dedicação e assiduidade as suas funções;
15- assim, a trabalhadora já tinha perfeito conhecimento de que o seu trabalho não era mais necessário, foi-lhe comunicado a alteração do horário de trabalho, que mantinha há cerca de 26 anos, tendo a mesma imediatamente manifestado a sua indisponibilidade para essa alteração, ao que a entidade patronal respondeu que iria considerar isso como desobediência, nada referido quanto ao acesso às instalações, a recorrente foi impedida de entrar nas mesmas, com a indicação de ordens da administração, no dia seguinte a trabalhadora remete uma carta à entidade patronal a afirmar que havia considerado tal comportamento como despedimento, a recorrida nada responde;
16- ora, em face de tais circunstâncias, um declaratário normal afirmaria o referido despedimento por parte da Ré;
17- é certo que a doutrina e a jurisprudência vêm salientando que a vontade de pôr termo ao contrato de trabalho tem de ser inequívoca, e que compete ao trabalhador alegar as circunstâncias tendentes a revelar a convicção da vontade do seu despedimento;
18- no presente caso, tendo com atenção os factos provados, nomeadamente e para o que mais importa, a atitude da Ré ao manifestar o seu propósito de fazer cessar o contrato que tinha com a Autora, impedir a sua entrada nas instalações, quando, na comunicação que lhe efectuou, apenas referiu que o não cumprimento do novo horário poderia implicar uma desobediência (e, como tal, um processo disciplinar onde a recorrente teria a hipótese de se defender) e não a esclarecer quanto ao sucedido, mesmo quando a Autora manifesta o seu entendimento por escrito, tem de ser entendida como uma manifestação de vontade de fazer cessar o contrato de trabalho;
19- sendo certo que a recorrente, como afirma o Acórdão, poderia até ter fundamento legal para resolver o contrato, pelo comportamento ilícito da Ré, mas, o que não pode deixar de se considerar é que o seu entendimento, no sentido do despedimento por parte da recorrida, foi correcto em face das circunstâncias;
20- assim, e perante o art. 236º n.º 1 do C.C., é absolutamente razoável que a Autora, depois de a Ré ter vindo a declarar que já não necessita do seu trabalho e de a ter impedido de entrar nas suas instalações, tenha entendido que esta já não queria mais que trabalhasse para ela;
21- a recorrente, de facto e à cautela, mesmo depois de ter sido impedida de entrar nas instalações da recorrida, remeteu-lhe uma carta onde afirma qual a sua interpretação daquele comportamento, sendo que esta não contrariou, de qualquer forma, aquele entendimento da recorrente;
22- pois que, embora o silêncio só possa ser considerado juridicamente relevante quando tal esteja previsto na lei, o facto é que pode ser levado em consideração, sendo que, no presente caso, bastava que a recorrida tivesse feito chegar à recorrente um entendimento contrário, de que não a estava a despedir, nomeadamente instaurando um processo disciplinar;
23- sendo que a Autora, em momento algum, duvidou daquele entendimento, aliás, como não duvidaria um declaratário normal, colocado naquela situação;
24- para além do critério objectivista daquele art. 236º n.º 1, podemos ainda, no presente caso, em face de a recorrida ter já afirmado perante a recorrente de que não necessitava do seu trabalho, lançar mão de uma interpretação subjectivista da declaração negocial: é o que sucede quando o declaratário conheça a vontade real do declarante, caso em que a declaração valerá de acordo com essa vontade – n.º 2 do mesmo preceito;
25- chama-se ainda a atenção para o facto de que o funcionário da Ré, que impediu a entrada da trabalhadora nas instalações da empresa, ter afirmado peremptoriamente que estava a cumprir ordens da administração – cfr. ponto 9 dos factos provados – ou seja, não estava a impedir o acesso de um trabalhador por não estar dentro do seu horário de trabalho, estava a impedir o acesso desta trabalhadora por ser essa a vontade da entidade patronal;
26- assim, afigura-se que a declaração da entidade patronal, quer objectiva quer subjectivamente, configurou uma manifestação de vontade de romper unilateralmente o contrato de trabalho com a recorrente, sendo que tal declaração se traduz num despedimento ilícito, nos termos do art. 429º do C.T., desde logo porque não foi precedido do respectivo procedimento;
27- sendo assim, para além dos créditos plasmados na douta sentença, tem ainda a Autora direito à indemnização de antiguidade, pelo qual optou em substituição da reintegração, e ainda direito às prestações pecuniárias vencidas e vincendas desde 30 dias antes da propositura da acção até à data da sentença, tudo acrescido de juros à taxa legal;
28- assim, o douto Acórdão violou, nomeadamente, os arts. 236º n.ºs 1 e 2 do C.C., 429º al. a), 435º n.º 1, 436º, 437º, 438º e 439º do C.T.. 1.4.
À semelhança do que já fizera aquando da apelação, também a Ré pede subordinadamente revista, onde conclui como segue:
1- a A. ausentou-se do trabalho, revelando inequívoca intenção de o não retomar;
2- não comunicou à ora recorrente a intenção de se despedir;
3- antes se considerou, sem razão, despedida por esta;
4- a douta sentença deu como inexistente um tal despedimento pela entidade patronal;
5- a R. invocou, aquando do “thema decidendum”, o abandono do trabalho por iniciativa da A., o que constitui mera qualificação da situação jurídica em causa;
6- a A. deixou de comparecer ao trabalho, colocando-se numa situação de total ausência de fundamento legal para agir de tal modo e, portanto, na obrigação de indemnizar a R., quer tivesse havido abandono do trabalho, quer despedimento ilícito da sua iniciativa, o que, em termos de facto, vale o mesmo;
7- tal como se, acaso, se houvesse despedido sem aviso prévio e sem justa causa, situação em que se analisa a errónea invocação de despedimento da iniciativa da entidade patronal;
8- nestes termos, bem andou a R. ao tornar efectiva a compensação invocada, pois sempre lhe cabia o direito de ser indemnizada;
9- inócua a qualificação, eventualmente discutível, efectuada pela recorrente, quanto à situação jurídica em concreto e, agora, em apreço;
10- os factos provados revelam que a A. violou o seu dever de prestar trabalho sem fundamento legal;
11- seria, de todo, despropositada, como se pretende, uma comunicação pela ora R. à A., a dar-lhe conhecimento da intenção de a despedir, quando fora esta quem se havia já, e por escrito, considerado despedida;
12- não pode, por isso, contra toda a lógica, ser assacada à ora recorrente o não cumprimento do art. 450º n.º 5 do C.T., omissão que lhe não é imputável;
13- tampouco teria de mover processo disciplinar com base em faltas injustificadas, pois que a A. – mal, embora – havia posto termo ao contrato, imputando tal responsabilidade à entidade patronal,
14- a A., ao invocar, sem fundamento, ter sido despedida, mais não fez do que despedir-se, invocando justa causa embora sem qualquer razão;
15- aliás o art. 441º n.º 2 do C.T. não faz uma enumeração taxativa das situações possíveis de justa causa a invocar pelos trabalhadores;
16- ora, o poder disciplinar deixa de existir face à cessação do contrato de trabalho – art. 365º do C.T.;
17- a compensação é legalmente possível por os créditos serem recíprocos, exigíveis judicialmente, de natureza fungível e, até, líquidos, cumprindo todas as exigências do art. 847º do C.C.;
18- a sentença, na parte objecto do presente recurso, violou os art.s 365º, 450º n.º 5 ou os arts. 446º e 448º do C.T. e, também, os princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade, para além do art. 847º do C.C.. 1.5.
Cada uma das partes contra-alegou no recurso da parte contrária, sustentando a improcedência das correspondentes revistas. 1.6.
A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta propugna, sem reacção das partes, a negação das duas revistas. 1.7.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2- FACTOS 2.1.
A 1ª instância, com o aval da Relação, fixou a seguinte matéria de facto:
1- a R. dedica-se à indústria têxtil, explorando um estabelecimento no lugar da sua sede;
2- no exercício da sua actividade, a R. admitiu ao seu serviço a A. em 15/3/79, através de documento escrito denominado “contrato de trabalho a prazo”, com início nessa data e termo em 31/5/79, para, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, exercer a actividade de aprendiz de costureira;
3- posteriormente, em 1/10/79, A. e R. subscreveram outro “contrato de trabalho a prazo”, pelo período de seis meses;
4- no final do prazo referido em 3-, a A. continuou ao serviço da R., mantendo-se nessa situação até 30/5/2005;
5- a A. foi progredindo na sua carreira, sendo que, ultimamente, tinha a categoria de modelista, auferindo a retribuição base mensal de € 704,01;
6- tinha o seguinte horário de trabalho: 2ª a 6ª feira, com início às 7h45;
7- no dia 20/5/2005, a R. comunicou por escrito à A. que, a partir do dia 30/5/2005, deveria iniciar o cumprimento de um novo horário de trabalho por turnos, cabendo-lhe o 2º turno, que era o seguinte: 2ª a 6ª feira, das 14 às 18 horas, e das 18h30 às 22 horas;
8- a A. já havia manifestado à R. o seu desacordo quanto à alteração do horário;
9- no dia 30/5/2005, a A. apresentou-se à porta da empresa pelas 7h45, mas foi impedida de aceder ao interior das instalações, tendo-lhe o funcionário que controla o ponto dito que não podia entrar naquela hora, sendo estas as ordens da administração;
10- no dia 31/5/2005, a A. enviou à R. uma carta com o seguinte teor: “No passado dia 30 de Maio de 2005, apresentei-me ao trabalho pelas 7.45 horas, tendo-me sido vedada a entrada pelo segurança, que se encontrava acompanhado pelo funcionário que controla o ponto, Sr. Sebastião, tendo-me este dito que não podia entrar e que estas eram as ordens da administração. Esta sempre foi a minha hora de entrar ao trabalho ao longo de 26 anos, de acordo com o horário individualmente acordado por escrito quando da minha admissão ao serviço da empresa, pelo que ao ser impedida de entrar ao trabalho, sem que me tivesse sido comunicada a instauração de qualquer processo disciplinar ou qualquer suspensão de trabalho, me considero unilateralmente despedida” (...);
11- a R. pagou à A. a quantia de € 405,08, a título de férias e subsídio de férias vencidas em 1/1/2005 e proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal do trabalho prestado nesse ano de 2005. 2.2.
A Relação aditou ainda a seguinte factualidade:
12- em 20/5/2005, a R. dirigiu à A. a carta junta a fls. 61 dos autos e com o seguinte teor: “ Por nota interna comunicamos a intenção da empresa integrar V.Ex.ª no horário por turnos já aprovado para vários sectores da empresa e agora decidido para vigorar igualmente no gabinete de estudos. Mostrou-se V. Ex.ª contrária a essa alteração de horário (...). Por tudo quanto referimos vimos comunicar a V.Ex.ª, sob pena de desobediência, deverá iniciar o cumprimento do novo horário, agora expressamente determinado, a partir do dia 30 de Maio de 2005”;
13- nessa carta consta ainda que a A. recebeu o original da mesma em 20/5/2005.
São estes os factos.
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3- DIREITO
3.1.
Compulsando o Acórdão em crise, verifica-se que ali foram abordadas três questões:
- “Da alteração da matéria de facto”;
- “Se está provado o despedimento da Autora”;
- “Da indemnização devida à Ré por abandono do trabalho por parte da Autora”.
Mais se evidencia, por confronto com as conclusões vertidas nas correspondentes minutas alegatórias, que essa pronúncia incidiu sobre as questões efectivamente colocadas por ambas as apelantes, reportando-se as duas primeiras à censura da Autora (recurso principal) e a última à censura da Ré (recurso subordinado).
Na sua presente revista, retoma a Autora o entendimento de que foi alvo de um despedimento (ilícito) por parte da Ré.
A par disso, porém, começa por dizer que “... não se pronunciou o Acórdão sobre questões de direito colocadas no recurso da recorrente, questões essas que, salvo melhor opinião, são fundamentais para considerar verificado o despedimento da recorrente” (conclusão 1ª).
Não obstante esse anúncio, a verdade é que a Autora não identifica as “questões de direito” sobre as quais teria o Acórdão omitido a reclamada pronúncia, não se dando sequer ao cuidado de, ao menos, proceder a essa identificação nas precedentes alegações.
Poderia este Supremo Tribunal, com toda a legitimidade, descartar, sem mais, a referência contida na sobredita conclusão 1ª.
E teria uma dupla motivação para o fazer:
- desde logo, a assinalada omissão identificativa mas, a montante disso, o silêncio da própria requerente sobre tais pretensos vícios decisórios no seu requerimento de interposição da revista, em violação do art. 77º n.º 1 do Cod. Proc. de Trabalho (aplicável aos recursos para o Supremo por via do comandado nos arts. 716º e 726º do Cod. Proc. Civil).
Contudo, fazendo um esforço de confrontação entre a apelação e a revista, mormente anotando que a Autora alude amiudadas vezes, neste seu vertente recurso, a matéria de facto que não vem firmada das instâncias, conseguimos alcançar que as mencionadas “questões de direito”, supostamente omitidas, se reconduzem, afinal, a um determinado acervo fáctico que, produzido na contestação da Ré, foi desconsiderado pelas instâncias.
Não teríamos feito este esforço indagatório – que até nem nos seria consentido – se não fosse o caso de estarem cometidos ao Supremo poderes próprios – e oficiosos – neste domínio – art. 729º n.º 3 do Cod. Proc. Civil.
No que concerne à revista subordinada da Ré, também ela retoma agora a problemática que já levara à sua apelação.
Em suma, deverá a nossa análise incidir sobre três questões:
1ª – insuficiência do acervo factual coligido pelas instâncias;
2ª – verificação do suposto despedimento da Autora por banda da Ré;
3ª – indemnização devida à Ré por pretenso abandono do trabalho cometido pela Autora. 3.2.1.
O mencionado art. 729º n.º 3 permite que o Supremo anule a decisão de facto quando entenda que esta “... pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto, que inviabilizam a decisão jurídica do pleito”.
Trata-se de uma prorrogativa em tudo idêntica àquela que o art.º 712º n.º 4 confere à Relação, ainda que circunscrita, aqui, aos casos em que os citados vícios afectem ou impossibilitem a correcta solução de mérito.
Para que possa ser ordenada a ampliação da matéria de facto, é imperioso constatar-se que, aquando da elaboração da base instrutória ou, na sua ausência, da própria fixação dessa matéria, tenha havido preterição de “matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”, nos precisos termos do art. 511º n.º 1 do Cod. Proc. Civil.
Ademais, a faculdade dessa ampliação, no tocante ao tribunal de recurso, só pode ser exercida relativamente a factos que tenham sido articulados pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, de harmonia com o estatuído no art. 264º do mesmo Código. 3.2.2.
Está concretamente em causa a factualidade vertida nos arts. 41º a 46º e 52º da contestação, que assim se condensa:
“Assim, porque de facto o trabalho da Autora era inteiramente desnecessário à Ré, por acordo, aquela foi gozar as férias que, dado o impedimento prolongado, não gozara em 2003, mantendo-se nesta situação de 8.3.2004 a 5.4.2004. Quando se apresentou, findas as férias, o Administrador, Sr. Eng. BB, deu conta à Autora, em 6.4.2004, da impossibilidade prática da Ré, como lhe havia já feito saber, de a reintegrar no seu posto de trabalho e que estava a estudar uma hipótese de solução para o caso. Isto porque, entretanto, a Ré havia adquirido novos computadores para a secção de modelação, considerando apenas as profissionais ao serviço e que se revelaram mais do que suficientes para as necessidades da empresa. E a Autora já não tinha, sequer, computador adequado à prestação de trabalho. Propondo-lhe, na verdade, uma rescisão do contrato por mútuo consentimento, adiantando um número para a compensar. Aceita-se que a Autora tivesse ficado desencantada e que tivesse reagido negativamente a esta hipótese, embora a mesma lhe fosse colocada com delicadeza. Perante a recusa peremptória da Autora em aceitar esta transferência para a citada empresa do grupo, foi-lhe aventada a hipótese de se fazer cessar o contrato de trabalho por mútuo consentimento, propondo-lhe uma compensação económica de 4.489,18 €”.
A Ré reconhece, na transcrita factualidade, que o desempenho laboral da Autora, nos moldes em que vinha sendo praticado, lhe era desnecessário.
E, perante isso, propôs-lhe duas alternativas:
- a transferência para outra empresa do grupo;
- a resolução amigável do contrato.
Não se alcança como possa a referida factualidade fornecer subsídios no sentido de levar a Autora a interpretar, como um despedimento, os acontecimentos – de que adiante cuidaremos – que vieram a ocorrer no dia 30 de Maio de 2005.
Aliás, a Ré não se limitou a alegar o que deixámos consignado: também disse que, havendo-se “gorado as negociações ... teve de encontrar uma outra forma de rentabilizar o trabalho da A.”, submetendo-a a formação que se destinava “... exactamente, a permitir à A. trabalhar no computador que iria compartilhar com a colega Amélia Ferreira em horário de turnos e que esta aceitou, embora não lhe conviesse” (arts. 55º e 60º da contestação).
Ao contrário do que refere a Autora, o Acórdão recorrido pronunciou-se expressamente sobre a questão.
E, após ter coligido também a factualidade dos arts. 41º a 46º e 52º, discorreu como segue:
“Tal matéria é irrelevante para se poder concluir que, com base nela, a Autora interpretou a conduta da Ré – do dia 30.5.2005 – como um despedimento.
Na verdade, tal matéria poderia ter interesse para o caso de a Autora ter rescindido o seu contrato de trabalho invocando justa causa, por, eventualmente, a mesma poder configurar e indiciar ...” perseguição e coacção psicológica sobre a Autora”, com o “único objectivo [de] afastá-la da empresa”. Mas a Autora não seguiu o caminho da rescisão do contrato de trabalho mas antes veio invocar o despedimento” (FIM DE TRANSCRIÇÃO).
Corroboramos, no essencial, este juízo da Relação.
Somos a concluir, pois, que a citada factualidade é de todo irrelevante para a específica questão – e só esta releva – de saber se a Ré veio a operar, ou não, o despedimento da Autora. 3.3.1.
O despedimento constitui estruturalmente um negócio jurídico unilateral receptício, através do qual a entidade patronal revela a vontade de fazer cessar o contrato de trabalho.
Sabe-se que “A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade; é tácita quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” – art. 217º n.º 1 do Cod. Civil.
Essencial, para a relevância da declaração tácita, é a inequivocidade dos chamados “facta concludentia”.
Dir-se-á que ela tem lugar sempre que a um comportamento seja atribuído um significado legal tipificado, sem admissão de prova em contrário” (cfr. Mota Pinto in 2teoria Geral ...”, 1967, pág. 174).
Diversa da declaração tácita é a declaração presumida, que ocorre sempre que a lei liga a determinado comportamento o significado de exprimir uma vontade negocial em certo sentido, podendo ilidir-se tal presunção mediante prova em contrário” (cfr. Autor e obra citados, pág. 173).
No domínio do despedimento promovido pela entidade patronal, tem-se entendido que a vontade de pôr termo ao contrato há-de ser “inequívoca”, razão por que se não tem admitido o despedimento tácito, com a amplitude que é conferido às declarações negociais tácitas pelo falado artigo 217º (e, muito menos, o despedimento presumido).
Neste particular, apenas se admitem os chamados “despedimentos de facto”, corporizados numa atitude inequívoca da entidade patronal, de onde decorre necessariamente a manifestação de uma vontade de fazer cessar a relação laboral.
Como quer que seja, a manifestação negocial do empregador só se torna eficaz se for levada ao alcance da outra parte, por forma a que esta tome conhecimento da respectiva declaração de vontade – artigo 224º do Cod. Civil.
Essa declaração, por sua vez, há-de ser interpretada segundo os critérios enunciados nos artigos 236º e segs. do mesmo Código: por isso, se não for expresso, o despedimento terá de ser extraído de factos que, perante o homem médio, revelem inequivocamente a vontade da entidade patronal de fazer cessar o contrato.
Finalmente, importará referir que cabe ao trabalhador, na acção de impugnação de despedimento, alegar e provar a existência de um contrato de trabalho e a sua cessação através de despedimento promovido pelo seu empregador – artigo 342º n.º 1 do Cod. Civil. 3.3.2.
Retornando ao concreto dos autos, recuperemos o que o Acórdão em crise discorreu sobre a matéria:
“À Autora foi comunicado que, a partir do dia 30.5.2005, o seu horário de trabalho passaria a ser das 14 às 18 horas e das 18.30 às 22 horas. Por não ter concordado com tal alteração, a Autora apresentou-se, como sempre fizera, às 7h45 para trabalhar, tendo sido impedida de o fazer naquela hora (na presente acção não está em discussão se a alteração do horário de trabalho da Autora, por parte da Ré, é ilegítima).
Ora, do acabado de referir podemos afirmar que a Autora apenas foi impedida de iniciar o trabalho pelas 7h45 e nada mais. É a conclusão a que se tem de chegar tendo em conta todo o circunstancialismo descrito.
Mas, se dúvidas existissem quanto ao sentido da declaração proferida pela Ré ... o teor da carta referida no n.º 12 da matéria provada de modo algum ajudaria a Autora a interpretar o alcance da ordem dada pela Ré no dia 30.5.2005. Com efeito, na referida carta a Ré alertou a Autora que o não cumprimento do novo horário implicava para ela, trabalhadora, uma desobediência, ou seja: a Autora estava plenamente convicta de que deveria apresentar-se para trabalhar no novo horário de trabalho e que não estava autorizada a trabalhar no horário com início pelas 7.45 horas.
E tal convicção só pode significar que a Autora não poderia ter entendido o impedimento de iniciar o trabalho pelas 7.45 horas como um despedimento, até porque nem sequer ficou provado – nem foi alegado – que ela se tivesse apresentado para trabalhar, no mesmo dia, pelas 14 horas e que fosse impedida de o fazer. E o mesmo entendimento teria qualquer pessoa colocada na posição da Autora e conhecendo os factos que atrás se deixaram referidos ...” (FIM DE TRANSCRIÇÃO).
Subscrevemos, sem hesitação, o juízo assim extraído.
Torna-se de todo evidente que, conhecendo o novo horário imposto pela Administração – que deveria observar sob pena de desobediência – a Autora só podia admitir que lhe fosse barrada a entrada se, porventura, insistisse em observar o horário derrogado.
Foi o que aconteceu.
Não se vê como possa uma tal obstrução, no circunstancialismo vertente, ser razoavelmente entendido como um despedimento.
Nem se diga, como faz a Autora, que essa era a vontade real da Ré: sem menor respeito, trata-se de uma afirmação puramente gratuita, de que os autos não fazem o menor eco e que, aliás, a matéria factual pretensamente descartada jamais consentiria.
Muito menos se diga que a Autora apenas estava alertada para uma eventual “desobediência” e não para que lhe fosse impedida a entrada nas instalações: além de não se atingir o efeito útil da alegação, temos por evidente que essa obstrução era, justamente, uma das formas de sancionar a desobediência da trabalhadora que, ademais, também não explicou o que se propunha fazer nas instalações até às 14 horas.
Também é seguro – diga-se por fim – que a Ré não devia resposta à carta que a Autora lhe enviou no dia 31 de Maio: essa carta não solicita qualquer esclarecimento, antes exprime o juízo da Autora de que “... me considero unilateralmente despedida”.
Somos a concluir, pois, que, no tocante à revista da Autora, nenhum reparo nos merece o Acórdão da Relação. 3.4.1.
Aquando da sua contestação, veio a Ré aduzir que “... ao deixar de comparecer ao trabalho nesse dia e nos imediatos, a A. vem a faltar injustificadamente”, sendo que “... a presente acção representa uma posição inequívoca de não pretender retomar o trabalho”, acabando por concluir que “... como tal, ficou a A. incursa em abandono do trabalho, nos termos do art. 450º/1 do C.T.”.
Já na revista, por seu turno, alega que o falado “abandono” “... constitui uma qualificação da situação jurídica em causa”, admitindo que tal situação tanto poderá efectivamente reconduzir-se à invocada figura extintiva, como poderá integrar “despedimento ilícito de sua iniciativa”, isto é, “sem aviso prévio e sem justa causa”.
A mencionada alegação da Ré no instrumento contestatório integra simples defesa exceptiva: tal alegação foi produzida – não mais – para justificar a compensação, que a Ré operou, no acerto de contas, entre as quantias devidas à autora, pela cessação do vínculo, e a indemnização que, ela própria, reclamava a seu favor.
Ora, tal como se mostra declinada a defesa, o que está exclusivamente em causa, no tocante à questão em análise, é apenas saber se à Ré assiste, ou não, o direito à indemnização com que entendeu dever compensar parcialmente os créditos devidos à sua trabalhadora.
Sendo verdade que o Tribunal não está adstrito à qualificação operada pelas partes sobre o enquadramento jurídico que as mesmas hajam conferido a determinada situação factual – art. 664º~do C.P.C. – sempre nos será imposta uma incursão ao concreto dos autos, por forma a apurar se, no contexto vertente, poderia a Ré aspirar à reclamada indemnização.
Mas essa incursão terá esse exclusivo propósito, não nos sendo consentido ir mais longe, designadamente para decidir se a Autora fez cessar unilateralmente o contrato e, em caso afirmativo, que modalidade elegeu para o efeito.
3.4.2.
A extinção de um vínculo contratual decorrerá sempre, por necessário, da verificação ou ocorrência de determinados actos ou factos a que a lei confere a virtualidade de operar aquele efeito jurídico.
Relativamente à cessação do vínculo laboral por iniciativa do trabalhador, a lei distingue entre a sua resolução e a sua denúncia – arts. 441º a 450º do Código do Trabalho de 2003, em cujo domínio ocorreram os factos ajuizados.
No primeiro caso, exige-se que a desvinculação seja operada através de documento escrito, com a indicação sucinta dos factos que a justificam e nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos – art. 442º.
Também a denúncia exige comunicação ao empregador que, aqui como ali, constitui uma declaração negocial receptícia – art.º 447º.
Tal já não sucede, porém, no chamado “abandono de trabalho” – art.º 450º - que, constituindo uma modalidade de denúncia tácita, pressupõe, ao invés, a omissão daquele acto.
Ora, se a comunicação consubstancia um acto que é inerente à “resolução” e à “denúncia”, já se vê que o “abandono de trabalho” não pode jamais ser confundido com as restantes figuras de cessação vinculística por banda do trabalhador.
Vejamos melhor. 3.4.3.
A legislação laboral de pretérito, nomeadamente o D.L. n.º 372-A/75, de 16 de Julho, não dispunha directamente sobre as consequências de uma ausência prolongada e sem notícias do trabalhador, ignorando, assim, um instituto semelhante ao do “abandono do lugar”, de há muito consagrado no âmbito da função pública.
Perante essa lacuna, a jurisprudência dominante orientou-se no sentido de que o trabalhador, a quem pudesse ser assacado um tal comportamento, só podia ser despedido mediante processo disciplinar, com arrimo em faltas injustificadas – cfr., entre tantos outros, o Acórdão do S.T.J. de 22/6/89, in A. J., 1ª , página 20.
Contudo, havia quem entendesse que a “ausência prolongada e não justificada de serviço integra uma ideia de abandono do lugar, que pode e deve ser interpretada como despedimento imputável ao trabalhador faltoso. (...) Considerar que, nestes casos, subsiste o contrato de trabalho e que a entidade patronal lhe deve pôr termo, apenas porque o trabalhador não accionou formalmente os mecanismos extintivos, como lhe competia, é sem dúvida contrariar a própria natureza das coisas. O que se passa afinal é que ocorreu uma verdadeira declaração extintiva, ainda que tácita. Com a ausência prolongada (ou melhor, o abandono), o trabalhador assume um comportamento concludente no sentido de evidenciar que realmente quis pôr termo ao contrato” – Bernardo Lobo Xavier in “Notas sobre o abandono do lugar nas relações de trabalho privadas” – R.D.E.S., Ano XXV, n.ºs 1 – 2, pags. 149 a 154 – .
O art. 40º da L.C.C.T. (aprovada pelo D.L. n.º 64-A/89) previu expressamente, pela primeira vez, a figura do “abandono do trabalho”, no que foi seguido pelos Códigos de Trabalho de 2003 (art. 450º) e de 2009 (art. 403º).
Nos termos daquele art. 450º, considera-se abandono do trabalho “a ausência do trabalhador ao serviço, acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelem a intenção de o não retomar” – n.º 1.
Como se extrai deste preceito, a figura em análise integra dois elementos:
- um elemento objectivo;
- um elemento subjectivo.
Quanto ao primeiro, consiste o mesmo num incumprimento voluntário do contrato de trabalho que, na generalidade dos casos, se traduz na não comparência do trabalhador no local e no tempo de laboração: o trabalhador deixa de se manter disponível para prestar o seu trabalho à entidade patronal, assim incumprindo o vínculo com a sua ausência voluntária e prolongada.
Mas, para que a ruptura do contrato se opere, não basta esse objectivo incumprimento a que a ausência se reconduz.
A par dele, torna-se necessária a existência de um “animus” extintivo, que se capta através de algo que o revele ou exteriorize ou, como diz o preceito transcrito, “através de factos que, com toda a probabilidade revelem a intenção” de não retomar o serviço.
Para que o facto seja considerado “concludente” da vontade de não retomar o serviço, não se torna necessário – cabe aqui salientá-lo – que o sentido dele extraível haja sido representado pelo respectivo agente: a concludência de um comportamento determina-se “de fora”, objectivamente”, “... não exigindo a consciência subjectiva por parte do seu autor desse seu significado implícito” (cfr. Jorge Leite, in “Portuário do Direito do Trabalho”, Actualizado, n.º 33, pgs. 124 e segs., Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da relação Jurídica”, II, pág. 132 e Mota Pinto in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 425).
Conforme começamos por anunciar, o “abandono do trabalho” é a única modalidade de desvinculação contratual que pressupõe a ausência de comunicação.
A breve incursão encetada vem confirmar esse anúncio.
Ora, evidenciando os autos que a Autora não fez qualquer comunicação à Ré de tipo resolutivo ou denunciativo – enviou, pelo contrário, uma carta a considerar-se despedida – logo se alcança que a defesa exceptiva da Ré só poderia inserir-se no quadro de uma desvinculação tácita da demandante, logo, no abandono do seu posto de trabalho. 3.4.4.
Aqui chegados, já se vê que a reclamada indemnização só poderia acobertar-se no n.º 4 do coligido art. 450º:
“O abandono do trabalho vale como denúncia do contrato e constitui o trabalhador na obrigação de indemnizar o empregador pelos prejuízos causados (...).”
Mas, para que essa indemnização fosse devida, tornava-se mister que a Ré tivesse produzido a comunicação enunciada no seguinte n.º 5:
“A cessação do contrato só é invocável pelo empregador após comunicação por carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida do trabalhador”.
Ora, os autos evidenciam – desde logo por referência expressa da Ré – que a sobredita comunicação nunca foi produzida.
Tanto basta para concluir que a Ré não pode aspirar a reclamada indemnização.
Nem se diga – certamente para contornar o comando imperativo daquele art.º 450º n.º 5 – que “a errónea invocação de despedimento da iniciativa da entidade patronal” corresponde, da parte da Autora, a um despedimento sem aviso prévio e sem justa causa.
Não se ignora que a lei equipara o “abandono” do trabalho à “resolução” desmotivada e sem aviso prévio, ao menos para efeitos indemnizatórios em benefício do empregador.
Porém, essa equiparação não permite confundir as duas figuras, que integram formas diferenciadas de cessação vinculística.
E há uma distinção fundamental entre elas: a “resolução” pressupõe a comunicação ao empregador, enquanto o “abandono” pressupõe a sua omissão.
Por isso, sempre que não haja comunicação – como aqui acontece – só pode configurar-se a figura do “ abandono”, caso em que o ressarcimento da entidade patronal pressupõe a implementação do mecanismo previsto no artigo 450º n.º 5.
A finalizar, diremos que se não vislumbra em que medida o entendimento expresso possa ofender os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Ao convocar essa violação, limita-se a Ré a dizer que “... A douta decisão em apreço violou, mesmo, os princípios da igualdade e da proporcionalidade, constitucionalmente consagrados, ao não sancionar, pela indemnização legal, o incumprimento de clara obrigação contratual por parte da A. ...”.
Ora, se o comportamento da Autora só poderia integrar – assim o cremos – a figura do “abandono”, ficou já consignado que a questionada indemnização exigia o cumprimento de uma formalidade – a do art. 450º n.º 5 – que a Ré omitiu.
Em suma, também neste segmento nenhuma censura nos merece o Acórdão revidendo.
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4. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se negar as duas revistas e confirmar na íntegra o Acórdão da Relação.