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DECISÃO SURPRESA
Sumário
Ponderando o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, decidir o destino de condecorações, com base nas regras próprias dos direitos de personalidade, ignoradas nas decisões das instâncias e, sempre, pelas partes, não tem que ouvir, previamente, estas.
Texto Integral
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I -
Na revista interposta para este Tribunal, discutia-se a questão de saber se a autora tinha direito a haver, do réu, as condecorações com que fora agraciada a avó dela.
As instâncias haviam tomado posição, situando-se na perspectiva material e, por isso, com recurso aos regimes jurídicos da sucessão em geral, posse, comodato e afins.
Nessa perspectiva se situaram os argumentos do réu/recorrente carreados para este tribunal no presente recurso de revista.
Aqui proferimos acórdão, entendendo que não valiam as regras da sucessão em geral, da posse, comodato e afins, porque se tratava, em primeira linha, de direitos de personalidade, tendo-se decidido em conformidade com o regime próprio destes.
II –
Reclama o réu/recorrente, sustentando que o acórdão proferido é nulo, por encerrar uma decisão surpresa, vedada pelo artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Nada disse a contraparte.
III –
Aquele artigo 3.º, n.º 3 surgiu com a reforma introduzida pelo do DL n.º 329-A/95, de 12.12 e tinha a seguinte redacção:
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenha tido a possibilidade de, agindo com a diligência devida, sobre elas se pronunciarem.
Foi justificado no respectivo preâmbulo, nos seguintes termos:
“Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem…”
Com o Decreto-Lei n.º180/96, substituiu-se a expressão “agindo com a diligência devida”, pela de “salvo manifesta desnecessidade”, ficando o preceito assim redigido:
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
IV –
Como se vê, o instituto da proibição de decisões surpresa é, entre nós, muito recente exigindo a sua ponderação uma atenção, ainda que sumária, sobre o que se vem considerando no país donde dimanou e tem longo historial, ainda que se venham a constatar importantes diferenças de regime.
Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, página 96), “a esta concepção [do princípio do contraditório], válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtilches Gehör germânico, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa,no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”
O rechtliches Gehör, como o próprio autor transcreve em nota de pé de página, está previsto no artigo 103.º, 1, da Lei Fundamental Alemã, cuja melhor tradução pensamos ser e seguinte:
Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos.
Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (o Código de Processo Civil) e deles vemos que o legislador germânico lhe confere uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa.
Logo no n.º1 do primeiro daqueles parágrafos, se determina que o tribunal tem de “discutir” (erörtern) com as partes a vertente factual e jurídica do litígio, para, no n.º2, se estatuir que quando uma das partes (ou ambas) tenham ignorado ou menosprezado, claramente, um ponto de vista, que não respeite a questão acessória, o tribunal só pode fundamentar a sua decisão depois de a(s) esclarecer e de lhe(s) dar a possibilidade de se pronunciarem.
O seguimento prático destas normas não traduz, contudo, o que delas, numa primeira análise, poderia resultar. Assim, como refere Othmar Jauernig (Direito Processual Civil, edição da Almedina, página 169), o tribunal “não é obrigado sem mais a apresentar à discussão das partes, antes da decisão, o seu parecer jurídico”, limitando-se o autor a referir que o tribunal “fará bem em dar a conhecer oportunamente às partes a sua concepção jurídica, para que elas se possam manifestar quanto a isso… procedendo o tribunal assim, poupa-se à difícil verificação de uma das partes tomar um aspecto jurídico manifestamente como irrelevante.” Trata-se, pois, apenas dum aconselhamento em ordem a poupar a diligência que aquele n.º2 do § 139 impõe. Como “exemplo modelar” de decisão surpresa exemplifica, agora a páginas 143, a que foi tomada pelo tribunal supremo, no sentido da aplicação (não anteriormente discutida) do direito estrangeiro a um caso que as instâncias haviam conhecido aplicando o direito alemão. Um caso extremo em que toda a construção jurídica do tribunal assentou em ordem jurídica diferente da que vinha sendo tida em conta.
V -
Cotejando o regime legal português, que vertemos essencialmente em III, com o regime germânico, logo vemos que estamos longe do que, ali, a lei contempla.
Assim, a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja. Podemos admitir o avanço de Lebre de Freitas, no sentido de que terá perdido actualidade a discussão duma parte contra outra, com o juiz, acima delas, a decidir, estando agora aberto o caminho para que elas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega.
Outrossim, inexiste, entre nós, preceito correspondente àquele n.º2 do §139 da ZPO. Pelo contrário, já vimos, em III, que o legislador chegou a introduzir, no texto legal, a expressão “agindo com a diligência devida”, que veio a retirar, substituindo-o pela “manifesta desnecessidade”, mas tal não significará - até ante os princípios gerais que enformam o nosso código – que tivesse aliviado as partes de usarem a diligência devida para alcançarem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão que virá a ser tomada (neste sentido, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 33 e Abílio Neto também em anotação ao artigo 3.º)
Repare-se aliás, que, na nossa lei, existem muitos preceitos que apontam para a ideia de, à discussão – nas vertentes factual e jurídica – se suceder a apreciação e decisão pelo tribunal, deixando a convicção de que, quanto a esta, o tribunal decide – aproveitando ou não o teor dessa mesma discussão - sem que se abra nova disputa, ainda que situada em campo diferente. Não precludem eles, é certo, que tal se abrisse – e casos há em que tem mesmo de ser assim - mas não se adequam bem a tal. Vejam-se os artigos 664.º (o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito…), 658.º (concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, é o processo concluso ao juiz, que proferirá sentença dentro de 30 dias), 659.º, n.º2 (seguem-se os fundamentos – da sentença – “devendo o juiz … interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”) e 690.º n.ºs 2 e 3 (enquanto impõe ao recorrente que indique as normas jurídicas violadas e o sentido com que devem ser interpretadas e aplicadas, sem que se preveja que constitua deficiência a omissão do que vier a ser relevante na decisão) (sublinhados nossos).
VI –
Do que vem sendo exposto resulta que acompanhamos e continuamos a jurisprudência deste tribunal, plasmada nos Acórdãos de 16.1.2007 (Agravo n.º 3294/06 : “Não constitui decisão surpresa o conhecimento pela Relação da questão do esbulho violento com fundamentos jurídicos diversos e não suscitados na 1.ª instância, sem que previamente tenha sido convidada a agravante a tomar posição sobre tal questão”) e de 11.11.2008 (Revista n.º 11.11.2008 : “I - Ao aplicar ao caso o art. 12.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 24/07, de 18-07, não foi suscitada no processo uma questão nova de direito, pronunciando-se o reclamado acórdão sobre a mesma questão de direito, que foi objecto de discussão ao longo de todo o processo, que era a questão da natureza da responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas, pelos danos causados nos acidentes de viação nela ocorridos, devido ao atravessamento de animais, e do consequente ónus da prova da culpa. II - Pronunciando-se sobre essa questão, o Acórdão decidiu-a por uma razão de direito resultante da aplicação de uma norma legal que ainda não tinha sido considerada no processo, mas podia tê-lo feito, ao abrigo do art. 664.º do CPC, pois o Tribunal não está sujeito as alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regas de direito.”).
Orientação que também o STA já assumiu (Ac. de 23.1.2008, processo 0574/07, com texto integral em www.dgsi.pt : “O princípio do contraditório, na vertente que proíbe a decisão surpresa, não impõe ao tribunal de recurso que, antes de decidir questão proposta pelo recorrente, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado e até então não referido no processo”).
Por isso, não se viola o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, quando se decide o destino de condecorações com base nas regras próprias do direito de personalidade, não obstante as partes, na oportunidade que as alegações lhe proporcionaram - e até antes - de discutirem a questão, terem ignorado tais regras.
De qualquer modo, sempre há que acentuar que a construção, que levámos a cabo, relativa aos direitos de personalidade, se inseriu na questão, mais vasta e levantada pelo recorrente, da inversão do título de posse, servindo para afastar a sua relevância. Assim subordinada, assume apenas a categoria de argumentação, não se guindando, com propriedade, a “questão”, para efeitos daquele n.º 3.
VII –
Face ao exposto, desatende-se a reclamação.
Custas pelo reclamante, com 4 UCCs de taxa de justiça.
Lisboa, 4 de Junho de 2009
João Bernardo (relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos