PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
HERANÇA INDIVISA
INVENTÁRIO
PRESCRIÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
Sumário

I - O cabeça de casal está obrigado a prestar contas dos bens cuja administração, efectivamente, exerceu e, tratando-se de uma situação de processo de inventário, só podem respeitar ao período temporal em que, após a nomeação para o exercício desse cargo, administrou os bens da herança.
II - Só através do processo de prestação espontânea de contas, apresentadas sob a forma de conta-corrente, e não de forma avulsa e desgarrada, no processo de inventário, pode o cabeça de casal, cumprir, legalmente, a obrigação anual de prestação de contas.
III - A obrigação de prestação de contas pela cabeça de casal só se extingue, mesmo que apresentadas sem documentos justificativos, se tivessem sido aceites e aprovadas pelos demais interessados, ou se se demonstrasse a existência de qualquer outra causa extintiva daquela obrigação.
IV - No caso dos direitos ou créditos meramente eventuais, como acontece com a prestação de contas, o prazo ordinário da prescrição de vinte anos, aplicável, começa a correr desde o dia em que o credor pode promover a liquidação da dívida, ou seja, em que os obrigados cessam a gerência, mas, se o resultado for ilíquido, a partir do dia em que as contas se tornarem líquidas, quer por consenso, quer por decisão transitada em julgado.
V - Entendendo o Tribunal não ser necessário proceder a qualquer espécie de produção de prova, por ter considerado que o caso a decidir se traduzia numa simples questão de direito, não foi violado o princípio do contraditório quando a decisão em causa foi proferida na sequência da contestação oferecida pela requerida.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

AA, nos autos de inventário facultativo, por óbito de BB e de CC, em que é requerente, veio instaurar, por dependência dos mesmos, a presente acção especial de prestação de contas contra DD, que neles exercera o cargo de cabeça-de-casal, do qual foi, entretanto, removi­da e substituída pela interessada EE, pedindo que, na sua procedência, considerando, entretanto, o despacho de indeferimento liminar parcial do requerimento inicial, transitado em julgado, que a requerida preste contas, com apuramento das receitas obtidas e despesas realizadas, desde Dezembro de 1998 até ao termo do cabeçalato, quanto aos montantes das rendas recebidas e não recebidas e em falta, desde Dezembro de 1998, relativas ao arrendamento dos imó­veis pertencentes à herança, aos montantes pagos à interessada EE, desde Dezembro de 1998, aos montantes pagos relativos a contribuição autárquica, IMI, e saneamento dos prédios, desde Dezembro de 1998, às demais despesas com os referidos prédios, incluindo obras, desde a mesma data, aos montantes que reverteram para a ex-cabeça-de-casal, aos saldos bancários existentes, e deposite os montantes que faltam na relação entre o saldo bancário actual e o saldo bancário que deveria existir, segundo as despesas e receitas documentadas.
Na contestação, a requerida alega que inexiste obrigação de prestar contas, por já ter exercido o cabeçalato, sendo certo que, enquanto cabeça-de-casal apresentou contas da sua administração, até 4 de Janeiro de 2005.
Por outro lado, a existir essa obrigação, a mesma encontra-se prescrita, relativamente aos anos anteriores aos últimos cinco anos do termo do cabeçalato.
Na resposta, a requerente sustenta a improcedência das excepções deduzidas e reafirma a obrigação de prestação contas de contas, pela requerida, até Maio de 2006.
Seguidamente, foi proferida decisão a julgar improcedente a ex­cepção da prescrição deduzida e a reconhecer a obrigação de a requerida prestar
contas, desde Novembro de 1998 até ao termo do respectivo cabeçalato,
ordenando-se a notificação daquela para prestar as contas, no prazo de 20
dia, sob pena de não ser possível contestar as contas que a requerente apresente.
Desta decisão, a requerida interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a respectiva apelação, confirmando a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação, a mesma requerida interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outro que decida pela inexistência da obrigação de prestação de contas, por parte da recorrente, e, caso tal não se venha a verificar, pela declaração da nulidade daquela decisão e sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos termos subsequentes do processo comum, e, tal não se verificando, apreciando-se a excepção do cumprimento da obrigação de prestação de contas e da prescrição da respectiva obrigação, com referência aos últimos 5 anos de cabeçalato, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – A recorrente quando notificada do apenso de prestação de contas em processo de inventário.
2ª - Os artigos 1014º e 1019º do CPC reportam-se às contas de "quem administra bens alheios", ou seja, respeita a quem exerce o cabeçalato, por ser assim é parte ilegítima na presente acção de prestação de contas.
3ª - Com a sua remoção do cabeçalato, houve entrega dos suportes documentais e contabilísticos à actual cabeça de casal, que aceitou o cargo, e aceitou a documentação sem reservas e sem requerer a prestação de constas.
4ª - Por isso, ou seja, por não ter a documentação contabilista, é objectivamente impossível à ex-cabeça de casal prestar contas, devendo ser julgada a obrigação como inexistente.
5ª - A recorrente enquanto cabeça de casal apresentou contas da sua administração, porque por requerimentos de 13 de Julho de 2001, de 9 de Julho de 2003 e de 11 de Fevereiro de 2005 especificou a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo, confessado de 8.158,92 e.
6ª - Das contas apresentadas e seu saldo não houve qualquer reclamação ou impugnação.
7ª - As contas estão assim tacitamente aceites.
8ª - Por aplicação do disposto no art. 2093- n9 1 do CC, ao estatuir que o cabeça de casal deve prestar contas anualmente em conjugação com o disposto no art. 310º g) do mesmo diploma, as prestações periodicamente renováreis prescrevem no prazo de cinco anos, pelo que a obrigação de prestar contas por parte da apelante teria prescrito no período anterior aos últimos 5 anos do cabeçalato.
9ª - A prolação da decisão que julgou improcedente as excepções da apelante e julgou a obrigação de prestação como exigível, preteriu a prova que foi apresentada, violando-se dessa forma o principio do contraditório, sendo nula ex vi alin. d) do nº 1 do art. 668º do CPC.
10ª - Houve redução do pedido de prestação de contas por parte da requerente de PC apresentada na sua resposta.
A requerente não apresentou contra-alegações.
O Tribunal da Relação declarou demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça tem como aceites, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. AA, aqui apelada, requereu proces­so de inventário para partilha de herança, junto do 3o Juízo Cível de Lisboa, a correr termos sob o n° 225/2000, de que a presente acção de prestação de contas é dependente, por óbito de BB e de CC, em que figuram como interessadas, além da requerente, DD, ora recorrente, e EE e FF – certidão de fls. 89 e segs.
2. No mencionado processo, a recorrente DD exerceu o cargo de cabeça-de-casal, até 22 de Maio de 2006, data em que foi removida desse cargo e substituída pela interessada EE, conforme decisão judicial reproduzida de fls. 97 a 102;
3. Em 13 de Julho de 2001, DD, na qualidade de cabeça-de-casal, apresentou, no referido processo de inventário, o requerimento reproduzido a fls. 103 a pedir a junção de cinco blocos de canhotos dos recibos de rendas e uma relação dos recibos deles constantes (fls. 104 a 114);
4. No sobredito requerimento, a requerente informa que dos canhotos de recibos e sua relação estão ainda incluídos no livro de canhotos 1, recibos ainda emitidos pelo seu falecido pai e cujas rendas foram recebidas pelo mesmo, pelo que ao total de todos os livros constante no final do livro 5 devem ser descontados estes recibos; aqueles recibos e relação não representam a totalidade de recibos emitidos, uma vez que já juntou aos autos um livro de canhotos com 45 recibos; na relação junta como doe. 6, os espaços por preencher referem-se a canhotos de recibos de rendas não preenchidos ou anulados;
5. Em 9 de Julho de 2003, a ora recorrente apresentou, também no processo de inventário, o requerimento de fls. 116 a 118, em que requer, além do mais, a junção dos documentos reproduzidos a fls. 119 a 137 para prova quanto ao acordo de entrega e repartição do montante depositado
relativo às rendas recebidas.
6. Posteriormente, a mesma recorrente apresentou ainda naqueles autos o requerimento reproduzido a fls. 141 a 144, no qual responde, na quali­dade de cabeça-de-casal, a várias questões suscitadas quanto à descrição e avaliação dos bens relacionados, ao aditamento de bens e às rendas recebi­das, requerendo algumas diligências probatórias.


Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da Ilegitimidade/inexistência da obrigação de prestação de contas pela requerida.
II - A questão da prescrição da obrigação de prestação de contas.
III - A questão da violação do princípio do contraditório.
IV - A questão da redução do pedido de prestação de contas.

I. DA ILEGITIMIDADE/INEXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS PELA REQUERIDA

Defende, desde logo, a requerida que é parte ilegítima na presente acção de prestação de contas, por já não exercer o cabeçalato, à data da instauração daquela acção com processo especial.
Por seu turno, sustenta ter entregue os suportes documentais e contabilísticos à actual cabeça de casal, em virtude da sua remoção do cabeçalato, sendo, portanto, objectivamente, impossível prestar contas.
Finalmente, diz ainda que, enquanto cabeça de casal, apresentou contas da sua administração, sem qualquer reclamação, devendo, portanto, considerarem-se as mesmas, tacitamente, aceites.
A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal”, que “…administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal”, nos termos do disposto pelos artigos 2079º e 2087º, nº 1, ambos do Código Civil (CC), ou seja, as funções do cabeça de casal prolongam-se, até à liquidação e partilha da herança, cessando, portanto, com o trânsito em julgado da sentença homologatória de partilha, concluída que está, então, a liquidação da herança, através do pagamento das dívidas e da cobrança dos respectivos créditos.
Efectivamente, a obrigação de prestação de contas deriva da administração da herança, como garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e que o administrador se não afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõem(1).
O dever de prestar contas, que o artigo 2093º, nº 1, do CC, faz incidir sobre o cabeça de casal resulta, como princípio geral, da qualidade de administrador de bens alheios, que aquele compete, como são todos os bens hereditários que excedem o respectivo quinhão hereditário.
A relação jurídica que se estabelece entre os interessados e a cabeça de casal conduz à obrigação deste prestar as contas e ao direito de aqueles receberem o que lhes couber nos rendimentos da herança, enquanto indivisa.
E, assim, a requerida tem interesse directo em contradizer a pretensão da requerente, sob pena de vir a suportar o prejuízo que dessa eventual procedência resulte, ou seja, goza de legitimidade passiva para a causa, nos termos do estipulado pelo artigo 26º, nºs 1 e 2, do CPC.
É que ao cabeça de casal pertencem não apenas funções de gestão económica dos bens que integram a massa hereditária, mas, também, tarefas processuais determinadas no processo de inventário, como as de inventariante.
Abrindo-se a sucessão, no momento da morte do «de cujus», ao cabeça de casal pertence a administração da herança, até á sua liquidação e partilha, com a obrigação de prestar contas, como já se disse, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2031º, 2079º e 2093º, todos do CC.
E essa obrigação de prestação de contas abrange todo esse período, na hipótese de partilha extra-judicial, ou até ao trânsito em julgado da sentença homologatória de partilhas, na hipótese de partilha judicial, a menos que, em qualquer dessas situações venha a ocorrer uma causa justificativa da cessação das respectivas funções, como seja a remoção do exercício do cargo.
Assim sendo, como é óbvio, tratando-se de uma situação de processo de inventário, as contas a prestar pelo cabeça de casal, por apenso a esse processo, só podem respeitar ao período temporal em que, após a nomeação para o exercício desse cargo, administrou os bens da herança.
E é por todo esse período e, em relação aos bens que, efectivamente, administrou que o cabeça de casal responde, sendo certo, igualmente, que não pode prestar contas de administração não exercida, quer porque outrem, entretanto, assumiu o encargo, quer porque os bens não foram descritos ou partilhados no inventário.
Deste modo, o cabeça de casal está obrigado a prestar contas dos bens cuja administração, efectivamente, exerceu, mas não já em relação aqueles que outrem deteve e administrou.
Na hipótese de o ex-cabeça de casal declarar não poder relacionar os bens, por se encontrarem já em poder de terceiro, conforme alegação da requerida, que com a sua remoção do cabeçalato, abriu mão dos suportes documentais e contabilísticos, em favor da actual cabeça de casal, deverá promover a notificação pessoal desta última para, no prazo que for designado, facultar o acesso aos mesmos e fornecer quaisquer elementos necessários para a prestação de contas, com base no estipulado pelo artigo 1347º, nº 1, 266º, nº 4, 531º, 535º, nº 1 e 1476º, todos do CPC.
Porém, recusando-se o actual cabeça de casal a dar cumprimento ao determinado, judicialmente, acabará, por fim, o Tribunal por decidir da pertinência da pretensão, aplicando a sanção civil que se mostre adequada, incluindo a possibilidade da apreensão temporária dos bens para o efeito, no âmbito da providência cautelar comum, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1347º, nº 2 1349º, nº 3 e 4 e 381º, todos do CPC.
Revertendo ao caso em apreço, importa reter que a requerida exerceu o cargo de cabeça de casal, até 22 de Maio de 2006, data em que foi removida desse cargo e substituída pela interessada Maria Antónia, sendo certo que a requerente solicitou a prestação de contas, com apuramento das receitas obtidas e despesas realizadas, desde Dezembro de 1998 até ao termo do cabeçalato.
Por outro lado, a requerida, em 13 de Julho de 2001, 9 de Julho de 2003 e 11 de Fevereiro de 2005 apresentou, no referido processo de inventário, requerimentos e documentos a especificar a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o saldo confessado de 8158,92€, requerendo ainda algumas diligências probatórias.
Assim sendo, o pedido de prestação de contas abarca o período em que a requerida exerceu funções de cabeça de casal, sem o ultrapassar, razão pela qual só não teria cabimento substantivo, em caso de contemplar um período temporal em que a administração da herança já fosse exercida por outrem, designadamente, pela actual cabeça de casal.
A isto acresce que o processo de prestação de contas é diverso consoante o cabeça de casal as presta, forçadamente, por solicitação de quem tenha o direito de exigi-las, ou seja, das pessoas directamente interessadas na partilha ou do Ministério Público, quando a herança seja deferida a incapazes, ausentes em parte incerta ou pessoas colectivas, 1327º, ou, voluntariamente, de sua livre vontade, por quem tenha o dever de prestá-las, nesta hipótese, por iniciativa do cabeça de casal, atento o estipulado pelos artigos 1014º, 1327º, nº 1, a) e b) e 1018º, nº 1, todos do CPC.
E, tendo a acção de prestação de contas “…por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”, segundo o estipulado pelo artigo 1014º, do CPC, devem as mesmas ser apresentadas, em forma de conta-corrente, com indicação especificada da proveniência das receitas, aplicação das despesas e saldo, em duplicado, instruídas com os documentos justificativos, em conformidade com as disposições concertadas dos artigos 1016º, nºs 1 e 2 e 1018º, nº 2, ambos do CPC.
Como assim, operando a síntese que resulta da subsunção da factualidade consagrada ao normativo legal aplicável, de acordo com o acabado de expor, a requerida está dotada de legitimidade processual e substantiva para prestar as contas reclamadas na presente acção, mantendo-se, outrossim, existente e válida a respectiva obrigação que resulta do cabeçalato, sendo certo que só através do processo de prestação espontânea de contas, apresentadas sob a forma de conta-corrente, e não de forma avulsa e desgarrada, no processo de inventário, poderia a cabeça de casal, ora requerida, cumprir, legalmente, a obrigação anual de prestação de contas que era mister realizar, por força do cargo que exercia e da administração de bens alheios que realizava.
É que a obrigação de prestação de contas pela cabeça de casal só se teria extinto, mesmo que apresentadas sem documentos justificativos, se tivessem sido aceites e aprovadas pelos demais interessados, ou se se demonstrasse a existência de qualquer outra causa extintiva daquela obrigação.

II. DA PRESCRIÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS

Sustenta ainda a requerida que a obrigação de prestar contas que lhe competia teria prescrito, no período anterior aos últimos cinco anos do cabeçalato.
Estipula o artigo 309º, do CC, que “o prazo ordinário da prescrição é de vinte anos”, enquanto que o artigo 310º, g), do mesmo diploma legal, preceitua que “prescrevem no prazo de cinco anos quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”.
Dispõe ainda o artigo 2093º, nº 1, que “o cabeça de casal deve prestar contas, anualmente”, começando a correr o prazo da prescrição, segundo decorre do artigo 306º, nº 1, também do CC, “…quando o direito puder ser exercido;…”, isto é, desde que o direito podia ser e não foi exercido, por qualquer causa, embora exclusivamente subjectiva (2).
No que contende com os direitos que impõem a uma pessoa uma prestação de dar ou fazer, a regra geral aplicável é a de que o prazo da prescrição começa a correr a partir do momento em que a obrigação se tornou exigível e, no caso dos direitos ou créditos meramente eventuais, como acontece com a prestação de contas, a respectiva prescrição começa a correr desde o dia em que os obrigados cessam a gerência, mas, se o resultado for ilíquido, com sucede no caso concreto, a partir do dia em que as contas se tornarem líquidas, quer por consenso, quer por decisão transitada em julgado.
Assim sendo, o prazo da prescrição da obrigação de prestação de contas, em que o saldo não está líquido, porquanto importa descontar as despesas realizadas face às receitas obtidas, só começa a correr desde a altura em que o credor pode promover a liquidação da dívida, ou seja, desde o dia em que os obrigados cessam a gerência, e a prescrição do resultado líquido dessas contas, desde o dia em que se tornarem líquidas, quer por consenso, quer por decisão transitada em julgado (3).
Efectivamente, abertas as heranças, por óbito dos dois inventariados, um ano depois é que a requerida deveria ter prestado contas da sua administração, razão pela qual esta obrigação ainda não prescreveu, atentas as datas dos respectivos falecimentos e o prazo ordinário da prescrição de vinte anos, aplicável, contados do temo do primeiro ano que se segue ao desempenho da função(4).
Com efeito, é inaplicável o prazo prescricional de cinco anos, constante do artigo 310º, g), do CC, consagrado para as prestações, periodicamente, renováveis, onde se compreendem, entre outros, os créditos por fornecimento de serviços (5), mas não já a obrigação de prestação de contas, cujo cumprimento se protela no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas, em que o objecto se encontra pré-fixado, sendo, periodicamente, renovado.

III. DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO

Diz ainda a requerida que foi violado o principio do contraditório, atento o estipulado pelo artigo 668º, nº 1, d), do CPC, porquanto a decisão do Tribunal de 1ª instância recorrida que julgou improcedente as excepções invocadas e exigível a obrigação de prestação de contas, preteriu a prova que foi apresentada.
Preceitua o citado artigo 668º, nº 1, d), do CPC, que a sentença é nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Na acção de prestação provocada de contas, a que se reportam os autos, se o requerido contestar a obrigação de prestar contas, como aconteceu, “…o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto no artigo 304º. Se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, mandará seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa”.
Assim sendo, se as questões suscitadas pela requerida e ex-cabeça de casal puderem ser decididas, sumariamente, produzidas as provas reputadas necessárias, o juiz decide, imediatamente, de acordo com o regime próprio dos incidentes da instância ou, se aquelas questões não puderem ser decididas, sumariamente, então, o Tribunal determinará que o processo prossiga os seus termos subsequentes, de acordo com o valor da causa.
Efectivamente, na aludida decisão, por existirem nos autos todos os elementos necessários à decisão das questões suscitadas pela requerida, considerou-se que se podia proceder, desde logo, à apreciação e decisão das questões suscitadas por aquela.
Efectivamente, o Tribunal de 1ª instância entendeu não ser necessário proceder a qualquer espécie de produção de prova, como lhe era admitido, por ter considerado que o caso a decidir se traduzia numa simples questão de direito.
Assim sendo, não foi violado o princípio do contraditório, com assento institucional nos artigos… da Constituição da República, e 3º, nº 1, do CPC, porquanto a decisão em causa foi proferida na sequência da contestação oferecida pela requerida, inexistindo qualquer fundamento consistente para arguir a decisão do vício da nulidade a que aludem os artigos 668º, nº 1, d) e 666º, nº 3, ambos do CPC.

IV. DA REDUÇÃO DO PEDIDO

Finalmente, a requerida defende que a requerente procedeu a uma redução do pedido de prestação de contas, na sua resposta à contestação.
Na resposta à contestação, a requerente conclui no sentido de que devem ser julgadas improcedentes e não provadas as excepções aduzidas pela requerida, decretando-se a obrigação de prestação de contas por esta, referentes aos últimos cinco anos de cabeçalato exercido pela mesma.
Dispõe o artigo 272º, do CPC, que “havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1ª ou 2ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito”.
Muito embora a requerente, na petição inicial, tenha solicitado que a requerida preste contas, desde Dezembro de 1998 até ao termo do cabeçalato, que se situa em, 22 de Maio de 2006, data em que foi removida desse cargo, o que é facto é que, na resposta ao articulado da contestação, talvez em jeito de clarificação do pedido, esclareceu que pretende que a requerida preste contas dos últimos cinco anos em que exerceu as funções de cabeça-de-casal, até Maio de 2006.
Por outro lado, e como resulta, exuberantemente, da tramitação processual, a requerida deu o seu assentimento a essa hipotética ou efectiva redução do pedido.
Assim sendo, importa considerar o pedido formulado pela requerente, neste particular, no sentido de que a requerida preste contas, relativamente aos últimos cinco anos de cabeçalato exercidos pela requerida.
Procedem, assim, apenas, nesta parte menor, as conclusões constantes das alegações da revista da requerida.

CONCLUSÕES:

I - O cabeça de casal está obrigado a prestar contas dos bens cuja administração, efectivamente, e tratando-se de uma situação de processo de inventário, só podem respeitar ao período temporal em que, após a nomeação para o exercício desse cargo, administrou os bens da herança.
II - Só através do processo de prestação espontânea de contas, apresentadas sob a forma de conta-corrente, e não de forma avulsa e desgarrada, no processo de inventário, pode o cabeça de casal, cumprir, legalmente, a obrigação anual de prestação de contas
III - A obrigação de prestação de contas pela cabeça de casal só se extingue, mesmo que apresentadas sem documentos justificativos, se tivessem sido aceites e aprovadas pelos demais interessados, ou se se demonstrasse a existência de qualquer outra causa extintiva daquela obrigação.
IV - No caso dos direitos ou créditos meramente eventuais, como acontece com a prestação de contas, o prazo ordinário da prescrição de vinte anos, aplicável, começa a correr desde o dia em que o credor pode promover a liquidação da dívida, ou seja, em que os obrigados cessam a gerência, mas, se o resultado for ilíquido, a partir do dia em que as contas se tornarem líquidas, quer por consenso, quer por decisão transitada em julgado.
V - Entendendo o Tribunal não ser necessário proceder a qualquer espécie de produção de prova, por ter considerado que o caso a decidir se traduzia numa simples questão de direito, não foi violado o princípio do contraditório quando a decisão em causa foi proferida na sequência da contestação oferecida pela requerida.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder, em parte, a revista, declarando que o pedido formulado pela requerente, no sentido de que a requerida preste contas, pelo exercício das suas funções de cabeça de casal, se reporta aos últimos cinco anos de cabeçalato, no mais confirmando o acórdão recorrido.


Custas pela requerida e pala requerente, na percentagem de 4/5 e de 1/5, respectivamente.


Notifique.

Lisboa, 09 de Junho de 2009

Helder Roque (relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves.

___________________
(1) Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, III, 1970, 61.
(2) Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, III, 1931, 735; Carvalho Fernandes, Teoria Geral, 1983, , 2º, 559.
(3) Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relaçõa jJurídica; ii, 1966, 449; Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, III, 1931, 737 e 738.
(4) Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, III, 1970, 66.
(5)Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 280.