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NULIDADE
ACTA
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ROUBO AGRAVADO
SEQUESTRO
JULGAMENTO
DIREITOS DE DEFESA
AUTO
RECONHECIMENTO
SANAÇÃO
CONCURSO APARENTE
CONSUMPÇÃO
BURLA INFORMÁTICA E NAS COMUNICAÇÕES
BURLA
VIOLÊNCIA
CARTÃO MULTIBANCO
Sumário
I-Não enferma de nulidade o acórdão da 1.ª instância que condenou o recorrente, pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221.°, n.º 1, do CP, pelo qual não havia sido acusado, se da acta de julgamento consta ter sido o arguido notificado, nos termos do art. 358.°, n.ºs 1 e 3, do CPP, de que os factos descritos na acusação, a provarem-se, integrariam a prática daquele crime (além de um crime de sequestro agravado, pelo qual viria também a ser condenado em julgamento e não o crime de sequestro simples, que lhe era imputado na acusação), e lhe foi dada a oportunidade de se defender da nova imputação, nos termos da disposição legal supra citada. II- A infracção do formalismo referido no art. 147.º do CPP, no que respeita ao auto de reconhecimento, configura nulidade (se não mesmo mera irregularidade) processual, que não é de conhecimento oficioso, ficando sanada se não for arguida até ao final do inquérito - art. 120.°, n.º 3, al. c), do CPP. III-Existe concurso aparente, na modalidade de consumpção, quando a protecção concedida por um tipo legal abrange ou abarca (consome) a que é concedida por outro tipo legal de crime. Exemplo típico é a relação que se estabelece entre os crimes de roubo e de sequestro, já que o roubo, que é simultaneamente um crime contra as pessoas e contra a propriedade, frequentemente envolve a privação parcial ou total do ofendido como meio indispensável à sua consumação. Todavia, sempre que ela exceda o que é necessário e proporcional à consumação do roubo, a privação da liberdade do ofendido exige e adquire protecção autónoma, através da protecção do crime de sequestro. IV- O crime de burla informática é um crime especial de burla, cuja especificidade reside no processo vinculado de execução, que assenta na manipulação do sistema informático por uma das seguintes formas: interferência no resultado ou estruturação incorrecta de programa, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou qualquer intervenção não autorizada de processamento. V-A burla informática, tal como a burla geral, assenta necessariamente num artifício, engano ou erro consciente, mas, contrariamente ao tipo geral, esse expediente não se dirige à manipulação da vontade de uma pessoa, antes pela utilização (obrigatoriamente) de um daqueles procedimentos, que se traduz no uso abusivo do sistema de dados ou de tratamento informático, e consequentemente, na manipulação do funcionamento do sistema informático, em ordem à obtenção de um enriquecimento patrimonial ilícito. VI-O levantamento de quantias em dinheiro através da utilização dos cartões, obtidos com os respectivos códigos, por meio de violência, constitui simplesmente a consumação da apropriação violenta, ou seja, a consumação do crime de roubo.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. RELATÓRIO
AA, com os sinais dos autos, foi condenado pelo Tribunal Colectivo do 2º Juízo Criminal do Seixal pela prática, em co-autoria material, de
- um crime de roubo agravado, p. p. pelos arts. 210º, nºs 1 e 2, b) e 204º, nºs 1, a) e 2, f) do Código Penal (CP) na pena de 10 anos de prisão;
- um crime de sequestro agravado, p. p. pelo art. 158º, nºs 1 e 2, b) do CP, na pena de 4 anos de prisão;
- um crime de burla informática, p. p. pelo art. 221º, nº 1 do CP, na pena de 2 anos de prisão;
e, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 anos de prisão.
Desta decisão recorreu o arguido, que conclui desta forma a sua motivação:
A. 1. Nulidade do Acórdão.
a) O acórdão recorrido enferma de nulidade, porquanto condenou o arguido pela prática, em co-autoria, dos crimes de roubo agravado, p. e p. pelo art° 210° n° 1 e n° 2, al. b), com referência ao art° 204°, n° 1, al. a) e n° 2, al. f) e de um crime de sequestro, p. e p. pelo art° 158°, n° 1, todos do C. Penal e um crime de burla informática.
b) Na acusação não é imputado ao arguido a prática, em co-autoria, ou de outra forma, do crime de burla informática, p. e p. no art° 221° do C.P.
c) Logo não pode o mesmo ser condenado pela prática daquele crime.
2. A falta da acusação do arguido pela prática do crime de burla informática é compreensível e juridicamente justificada, uma vez que entendeu, e muito bem, o Digno Magistrado do Ministério Público que o crime de burla informática havia sido consumido pelo crime de roubo.
3. Daí que o Acórdão recorrido e no qual o arguido é condenado pelo crime de burla informática é nulo, violando o mesmo o disposto no art° 379° n° 1 al. b) do C.P.P.
B. 1. Não pode o auto de reconhecimento ser valorado como meio de prova, porque de acordo com o conteúdo do mesmo o reconhecimento não obedeceu às regras mínimas do art° 147° do C.P.P.
a) É referido no auto de reconhecimento que a linha de reconhecimento é formada por dois agentes da P.J. e pelos dois arguidos, colocados uns e outros lado a lado entre si.
b) Não é referido que foi dito ao ofendido que entre aquelas pessoas podem não estar presentes os arguidos.
c) Não foram trocadas as posições dos arguidos e colocados mais elementos na linha de reconhecimento, atento o número de arguidos.
2. Não respeitando o reconhecimento o mínimo das regras previstas no art° 147° do C.P. P. não pode ser aceite como meio de prova, e assim ser valorizado no sentido em que o foi (art° 147° n° 7 do C.P.P.).
C. 1. Foi o arguido condenado na pena de 14 anos de prisão.
a) A pena de prisão visa a protecção de bens jurídicos e reinserção do arguido na sociedade, aos vários níveis;
b) Por isso a determinação da medida da pena deve ser encontrada entre a medida da culpa do arguido que não pode ser ultrapassada e o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas da sociedade.
c) No caso deste arguido, apesar da censura da sua conduta, também a medida da pena deve ser encontrada entre estes parâmetros.
d) Aqui deve relevar a circunstância de que na data da prática dos factos o arguido tinha apenas uma condenação por crime de corrupção.
e) Por estas razões deve ser aplicada ao arguido pena muito próxima do limite mínimo da pena aplicável ao crime de roubo.
f) Não se tendo decidido de acordo com estes limites legais, violou o, aliás, douto Acórdão o referido no art° 40° do CP.
O Ministério Público (MP) respondeu, concluindo:
1. Inexistiu qualquer nulidade do acórdão nos termos do art. 379°, n.° 1, al. b) do CPP, já que foi dado escrupulosamente cumprimento às disposições legais necessárias para a imputação ao arguido de imputações jurídicas diversas, por via de alteração da qualificação jurídica, já que os factos em concreto sempre constaram da acusação.
2. O reconhecimento presencial do arguido por parte do ofendido não padece de vício que cumpra apreciar.
3. Existe uma relação de concurso efectivo entre o crime de sequestro e o crime de roubo, já que a privação da liberdade do ofendido excedeu em muito o estritamente necessário para concretizar o crime de roubo.
4. Assiste razão ao recorrente no que tange ao concurso aparente entre o crime de roubo e o de burla informática.
5. A medida concreta de pena é proporcionada e adequada a cada um dos ilícitos imputados ao arguido, devendo a pena única ser, todavia, corrigida no que tange à pena unitária, caso se entenda dar provimento ao recurso nos moldes acima exarados.
6. A sentença recorrida deve ser parcialmente revogada quanto à imputação do crime de burla informática e quanto à medida concreta da pena única, devendo, no mais, ser mantida.
Neste Supremo Tribunal de Justiça, o MP teve vista dos autos.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
São as seguintes as questões colocadas pelo arguido:
a) Nulidade do acórdão, nos termos do art. 379º, nº 1, b) do Código de Processo Penal (CPP), porque na acusação não lhe era imputado o crime de burla informática, pelo qual foi condenado;
b) Invalidade do auto de reconhecimento como meio de prova;
c) Consumpção entre os crimes de roubo e de sequestro (questão não incluída nas conclusões, mas apenas na parte expositiva da motivação, mas que se entende dever tratar por a qualificação dos factos ser de conhecimento oficioso);
d) Não verificação do crime de burla informática;
e) Medida da pena, que considera excessiva.
Previamente ao tratamento destas questões, importa conhecer a matéria de facto fixada na decisão recorrida, que é a seguinte:
No dia 9 de Julho de 2005, cerca das 18H30, o ofendido BB circulava no seu veículo de marca e modelo Citroen C3, de matrícula 00-00-00, pela EN n° 10, Seixal, em direcção ao Barreiro.
Já próximo do Parque Industrial do Seixal, parou o veículo nas bombas de abastecimento de combustível e dirigiu-se à loja aí existente. Quando se encontrava a sair da loja foi abordado pelo arguido AA que lhe perguntou se tinha cabos de encosto para a bateria, pois tinha a viatura parada, sem bateria.
O ofendido respondeu que sim e deslocou-se no seu veículo até junto da viatura em causa, que se encontrava parada numa estrada próxima.
Ao chegar junto do veículo – Rover 213 SE, de cor branca, matrícula 00-00-00, do ano de 1989 – o arguido disse-lhe que antes de ligarem os cabos à bateria ia tentar pôr o automóvel a trabalhar, pedindo-lhe que o empurrasse. Nessa sequência o arguido sentou-se ao volante do veículo e o ofendido posicionou-se na retaguarda do mesmo para o empurrar.
Nesse momento, saiu do interior do veículo um indivíduo, que acompanhava o arguido e que, agarrando o ofendido, o puxou para o seu interior.
O ofendido começou a gritar e o arguido saiu do veículo, apontando-lhe uma faca enquanto lhe ordenava que estivesse calado pois, caso contrário, desferia-lhe um golpe.
Nessa sequência, quer o arguido, quer o indivíduo que o acompanhava desferiram vários socos no corpo do ofendido e, desse modo, conseguiram introduzi-lo no banco traseiro, no interior do veículo, onde lhe ataram as mãos e os pés.
Enquanto o arguido se sentou no lugar do condutor, o seu acompanhante manteve-se no banco traseiro, junto ao ofendido, apontando-lhe um objecto que aparentava tratar-se de uma arma de fogo. De seguida abandonaram o local, no veículo Rover, levando com eles o ofendido, que continuava preso e atado.
No interior do veículo, o acompanhante do arguido, desferiu vários murros e pontapés ao ofendido, enquanto lhe perguntava pela carteira e pelos cartões bancários.
Pararam o veículo em local próximo, numa zona de mato, e puxaram o ofendido para fora do veículo, onde, ambos, lhe desferiram socos e pontapés por todo o corpo, obrigando-o desse modo a revelar-lhes que tinha a carteira no interior do seu veículo e os cartões no interior daquela. Revelou-lhes também os códigos de Multibanco de que dispunha.
O companheiro do arguido abandonou o local a fim de ir buscar a carteira do ofendido e proceder aos levantamentos bancários que entendesse. Enquanto isso, o arguido permaneceu com o ofendido, empunhando o objecto que aparentava tratar-se de arma de fogo.
A certo momento, o arguido e o indivíduo que o acompanhava falaram por telefone e este disse àquele que não encontrava a carteira, pelo que o arguido voltou a agredir o BB.
O ofendido permanecia deitado de bruços, no chão e amarrado, enquanto o AA, continuando a apontar-lhe o dito objecto com aparência de arma de fogo, lhe continuava a bater.
A certo momento o arguido recebeu nova chamada, após o que disse ao ofendido para não se mexer que ele já voltaria. De seguida ausentou-se do local, no veículo de marca Rover.
O ofendido, atado e receoso que o arguido e o outro indivíduo voltassem, permaneceu no local durante algum tempo, após o que conseguiu desatar-se e fugir.
O arguido e o seu companheiro, usando o PIN fornecido pelo arguido, procederam a dois levantamentos de € 200,00 cada, o primeiro pelas 19H17, na Caixa Automática do BPI, sita na ...................... da Amora e o segundo pelas 19H18, na Caixa Automática do BPI, sita na ..............
Apropriaram-se dessa quantia em proveito comum.
Apropriaram-se também do veículo do ofendido, no valor de € 14.500,00, no qual se encontrava a sua carteira que continha a quantia de cerca de € 30,00, os seus documentos pessoais, os documentos do veículo, um livro de cheques, um telemóvel no valor de € 199,00, um par de óculos graduados, vários cheques e as chaves da residência, da empresa e de um outro veículo.
Em consequência da conduta do arguido e do seu companheiro, o ofendido sofreu, directa e necessariamente, traumatismo da face, da grelha costal direita e do lábio inferior, lesões que foram produzidas pelas mãos e pés e que demandaram para a sua cura um período de 30 dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
O veículo do ofendido não foi recuperado.
O veículo Rover, de matrícula 00-00-00 era, à data dos factos, de propriedade do arguido, embora este nunca o tivesse registado em seu nome. Posteriormente, em data não apurada, o arguido procedeu à sua troca por outro.
O telemóvel subtraído ao ofendido foi usado, após os factos, com um cartão de titularidade de CC.
O arguido e o seu companheiro agiram em comunhão de esforços e intentos e de acordo com plano previamente delineado e quiseram, pelo uso de violência e ameaça com arma, apoderarem-se dos bens do ofendido, o que conseguiram, não ignorando que os mesmos eram de valor elevado, não lhes pertenciam e agiam contra a vontade do dono.
Do mesmo modo sabiam e quiseram privar o ofendido da liberdade de se movimentar, o que conseguiram.
Sabiam também que não podiam utilizar os códigos de acesso dos cartões bancários do ofendido sem a sua autorização.
Agiam de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O arguido não confessou os factos, não demonstrando também qualquer arrependimento.
Foi já condenado:
- na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, pela prática, em 24/1/2003, do crime de corrupção;
- na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em 13/8/2005, de um crime de roubo agravado.
O arguido encontra-se em situação irregular em Portugal. Não dispõe de familiares próximos neste Pais que lhe prestem apoio. Encontra-se em cumprimento de pena de prisão e não dispõe de qualquer residência em Portugal. Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
- que a faca utilizada pelo arguido tinha uma lâmina fina e comprida;
- que o objecto exibido num primeiro momento pelo indivíduo que acompanhava o arguido e depois por este e que aparentava tratar-se de uma arma de fogo, o era efectivamente;
- que o ofendido não forneceu logo que lhe pediram os códigos de MB;
- que o veículo de propriedade do ofendido lhe havia custado a quantia de € 14.767,00;
- que o veículo Rover havia sido comprado pelo arguido no início do ano de 2005 e que este o vendeu no final de Julho do mesmo ano;
- que a carteira do ofendido tinha o valor de € 20,00;
- que o ofendido tinha no veículo dois pares de óculos graduados, cada um deles no valor de € 1.200,00 e dois perfumes, no valor de € 70,00.
Nulidade do acórdão
Argui o recorrente de nulo o acórdão recorrido, por o ter condenado pelo crime de burla informática, do art. 221º, nº 1 do CP, pelo qual não havia sido acusado.
Contudo, é manifestamente improcedente esta posição. Na verdade, na acta de julgamento de fls. 494-495, foi o arguido notificado, nos termos do art. 358º, nºs 1 e 3 do CPP, que os factos descritos na acusação, a provarem-se, integrariam a prática daquele crime (além de um crime de sequestro agravado, pelo qual viria também a ser condenado em julgamento, e não o crime de sequestro simples que lhe era imputado na acusação).
O recorrente foi, assim, notificado da eventual alteração da qualificação dos (mesmos) factos, pelo que teve oportunidade de se defender da nova imputação, nos termos da disposição processual citada.
Não incorreu, desta forma, o acórdão recorrido na nulidade suscitada pelo recorrente.
Validade do auto de reconhecimento como meio de prova
Impugna o recorrente a validade do auto de reconhecimento de fls. 126, realizado no inquérito, por não ter obedecido ao formalismo estabelecido no art. 147º do CPP.
Contudo, é inoportuna a questão suscitada pelo recorrente. Com efeito, a infracção do formalismo referido constitui nulidade (se não mesmo irregularidade) processual, que não é de conhecimento oficioso, ficando sanada, em qualquer caso, se não for arguida até ao final do inquérito (art. 120º, nº 3, c) do CPP).
O recorrente só agora, após a condenação em 1ª Instância, argui a nulidade.
Consequentemente, é intempestiva a arguição, pelo que improcede também nesta parte o recurso.
Concurso aparente (consumpção) entre o crime de roubo e o de sequestro
Entende o recorrente que a restrição de liberdade a que foi submetido o ofendido não excedeu o tempo necessário para a consumação do roubo, sendo assim consumido o crime de sequestro pelo de roubo.
Existe concurso aparente, na modalidade de consumpção, quando a protecção concedida por um tipo legal abrange ou abarca (consome) a que é concedida por outro tipo legal de crime.
Exemplo típico é a relação que se estabelece entre os crimes de roubo e de sequestro, já que o roubo, que é simultaneamente um crime contra as pessoas e contra a propriedade, frequentemente envolve a privação parcial ou total da liberdade do ofendido como meioindispensável à sua consumação.
Daí que o desvalor dessa privação seja abrangido pela protecção que a punição pelo roubo envolve. Ponto é que a referida privação seja a estritamente necessária para a efectivação do roubo. Sempre que ela exceda o que é necessário e proporcional à consumação do roubo, a privação da liberdade do ofendido exige e adquire protecção autónoma, através da punição do crime de sequestro.
O que importa, pois, no caso dos autos, é determinar se a privação a que o arguido e o seu companheiro submeteram o ofendido foi necessária e proporcional para consumarem o roubo.
Considerou-se no acórdão recorrido o seguinte:
…no nosso entendimento o roubo não consumiu o sequestro, pois o ofendido esteve privado da sua liberdade ambulatória por um período que excedeu aquele que era absolutamente necessário para a prática do roubo. Em concreto, não existia qualquer necessidade, para a prática deste último, que o arguido ficasse junto do ofendido após este, nas circunstâncias concretas em que os factos ocorreram, ter indicado onde se encontravam os seus bens e os códigos dos cartões. E muito menos existia qualquer necessidade de o arguido se ausentar do local deixando o ofendido deitado no solo e atado – e, como tal, privado da sua liberdade, já que tal privação não exige, para que se verifique, que o ofendido se encontre permanentemente sob vigilância, bastando para tal que se mostre impossibilitado, por acção de outrem, de se movimentar e deslocar livremente.
Ao privar, desnecessariamente, a vítima da sua liberdade, durante tal período de tempo, ocorreu uma privação de liberdade que extravasa do tipo do roubo.
Só parcialmente se podem aceitar estas considerações. Com efeito, a privação da liberdade do ofendido após a indicação do local dos seus bens e dos códigos dos cartões destinava-se obviamente à comprovação da veracidade dessas informações, sem a qual não estava evidentemente garantida a consumação da apropriação dos valores. A funcionalidade dessa conduta relativamente à consumação do roubo é, pois, evidente.
Quanto à privação da liberdade posterior à apropriação, a situação é diferente. Essa privação da liberdade constituía-se como funcional, não já para a apropriação, mas sim para a sua consolidação, impedindo o ofendido de reagir imediatamente, de pedir socorro e de alertar as autoridades em tempo útil para impedir que o recorrente e o seu companheiro obtivessem a posse pacífica dos bens e valores apropriados, estando já consumado o roubo.
Nestas circunstâncias, a privação da liberdade do ofendido só no primeiro momento se pode considerar como determinante (essencial) da consumação do crime de roubo, pelo que o crime de sequestro terá de assegurar a protecção a privação da liberdade o ofendido após a “fuga” do arguido. (1).
Esta redução do alcance da protecção do crime de sequestro terá obviamente de reflectir-se na medida da respectiva pena.
Burla informática
Pretende o recorrente que o crime de burla informática é consumido pelo de roubo, pois a obtenção e a utilização dos cartões e dos respectivos códigos visaram exclusivamente a apropriação do património do ofendido.
O tribunal recorrido entendeu que o arguido e seu companheiro cometeram o crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221º, nº 1 do CP, porque “obtiveram enriquecimento ilegítimo mediante a utilização de dados sem autorização”.
É o seguinte o texto desse preceito legal:
Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Da leitura do texto, reforçada pela inserção sistemática no CP e pelo próprio nomen do tipo legal de crime, resulta que o crime de burla informática é um crime especial de burla, cuja especificidade reside no processo vinculado de execução, que assenta na manipulação do sistema informático por uma das seguintes formas: interferência no resultado ou estruturação incorrecta de programa, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou qualquer intervenção não autorizada de processamento. Ou seja, a burla informática, tal como a burla geral, assenta necessariamente num artifício, engano ou erro consciente, mas, contrariamente ao tipo geral, esse expediente não se dirige à manipulação da vontade de uma pessoa, antes pela utilização (obrigatoriamente) de um daqueles procedimentos, que se traduz no uso abusivo do sistema de dados ou de tratamento informático, e consequentemente na manipulação do funcionamento do sistema informático, em ordem à obtenção de um enriquecimento patrimonial ilícito.
É este o entendimento corrente deste Supremo Tribunal de Justiça. (2).. Ora, no caso dos autos, não se verificou nenhuma utilização abusiva do sistema informático, ou seja, a apropriação pelo recorrente (e companheiro) das quantias não se deveu a nenhum dos procedimentos descritos no preceito, nomeadamente ao da utilização de dados não autorizados, porque o acesso a esses dados (códigos dos cartões) resultou do recurso à violência sobre o ofendido.
Não houve, pois, nenhuma manipulação do sistema de informação. Verificou-se, sim, uma apropriação violenta de valores pertencentes ao ofendido. O levantamento de quantias em dinheiro através da utilização dos cartões, obtidos, como os respectivos códigos, por meio de violência, constitui simplesmente a consumação da apropriação violenta, ou seja, a consumação do crime de roubo.
Nestes termos, a conduta do recorrente não integra a tipicidade do crime de burla informática, pelo que dele deverá ser absolvido.
Medida da pena
Resulta do antecedente que o recorrente deverá ser absolvido do crime de burla informática.
Quanto ao crime de sequestro, pelas razões atrás expostas, entende-se que a pena deverá ser reduzida de 4 para 3 anos de prisão.
Relativamente à pena do crime de roubo, recorde-se que o arguido foi condenado em 10 anos de prisão por esse crime, sendo a moldura penal (art. 210º, nº 2 do CP) de 3 a 15 anos de prisão.
A ilicitude e a culpa são muito elevadas. Na verdade, todo o processo de execução do crime revelou uma especial intensidade na prossecução dos objectivos criminosos e um acentuado desprezo pela pessoa do ofendido, quer pelas agressões infligidas, que lhe provocaram 30 dias de doença, quer pela privação da liberdade por um período significativo.
É particularmente condenável o ardil a que o arguido e o seu companheiro recorreram para atrair o ofendido a um lugar onde pudessem praticar o crime, traindo a sua boa-fé.
Em contrapartida, nenhuma circunstância atenuativa se provou.
Por outro lado, são muito relevantes as exigências da prevenção geral neste tipo de criminalidade, que provoca um geral e acentuado sentimento de insegurança entre a população.
Tudo ponderado, considera-se adequada a pena fixada para o crime de roubo.
Finalmente, quanto à pena única, tendo em conta a gravidade dos factos dos autos e os antecedentes criminais do arguido, já condenado por crime de roubo, pelo qual cumpre pena, entende-se fixar a mesma em 11 anos e 6 meses de prisão.
III. DECISÃO
Com base no exposto, decide-se:
a) Absolver o recorrente do crime de burla informática;
b) Condenar o recorrente na pena de 3 (três) anos de prisão, pelo crime de sequestro, p. e p. pelo art. 158º, nºs 1 e 2, b) do CP;
c) Manter a pena de 10 (dez) anos correspondente ao crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nºs 1 e 2, b) do CP;
d) Fixar em 11 (onze) anos e 6 (seis) meses a pena única;
c) Condenar o recorrente em 5 (cinco) UC de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Setembro de 2009
Maia Costa (Relator)
Pires da Graça
________________________
(1) Em sentido idêntico, ver o ac. deste STJ de 29.5.2008 (proc. nº 1313/08, relator Cons. Santos Carvalho).
(2) Ver os acs. deste STJ de 20.9.2006 (proc. nº 1942/06, relator Cons. Henriques Gaspar), de 5.12.2007 (proc. nº 3864/07, relator Cons. Armindo Monteiro) e de 5.11.2008 (proc. nº 2817/08, relator Cons. Henriques Gaspar).