HOMICÍDIO QUALIFICADO
CÔNJUGE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
DESESPERO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
Sumário

I - O art. 133.° do CP prevê um tipo privilegiado de homicídio, assente numa acentuada mitigação da culpa (exigibilidade diminuída), provocada por uma “compreensível emoção violenta”, um estado de “compaixão”, de “desespero”, ou por “motivo de relevante valor social ou moral”.

II - Existirá “compreensível emoção violenta” quando o agente actua dominado por um estado emocional provocado por factos a que um homem comum e “fiel ao direito” seria sensível, sendo, portanto, atenuada a exigibilidade de conformação com as normas; ”desespero” refere-se a estados depressivos vividos pelo agente, sendo em qualquer caso necessário que a acção revele uma exigibilidade diminuída.

III - No caso em que ficou provado o seguinte:
- a conduta do recorrente seguiu-se a uma discussão entre ele e a vítima, provocada pela manifestação da intenção por parte desta (e não era a primeira vez que o fazia) de se divorciar e deixar de residir com o recorrente;
- no desenrolar dessa discussão, e vendo que não conseguia demover a vítima das suas intenções, o recorrente agrediu-a com uma faca, dando-lhe seis golpes;
- a discussão inseriu-se no mau relacionamento entre ambos, que vinha de há muito e que se acentuara cerca de duas semanas antes do crime, quando a vítima pela primeira vez anunciara a intenção de se divorciar e sair de casa;
tem de se concluir que a acção homicida do recorrente não foi provocada pelo comportamento, absolutamente compreensível, da vítima, ou de terceiros, antes tendo resultado da “incapacidade” do arguido em aceitar a decisão da vítima de pôr termo à relação conjugal, fruto possivelmente, da sua “mentalidade”, da forma como encara as relações interconjugais, revelada no longo martírio a que submeteu a vítima durante os anos de vigência do casamento, e que o impediu de aceitar as tentativas de autonomização da vítima, e sobretudo o seu desejo de se divorciar, de manifestar assim a sua livre determinação como pessoa humana.

IV - A conduta do arguido não revela que tenha agido com “compreensível emoção violenta”, nem em estado de “desespero”, mas, pelo contrário, encerra uma censurabilidade agravada que a integra no homicídio qualificado.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

AA, com os sinais dos autos, foi condenado pela 1ª Vara Mista de Sintra como autor material de:
- um crime de homicídio qualificado, p. p. pelo art. 132º, nºs 1 e 2, b) do Código Penal (CP), na pena de 14 anos de prisão;
- um crime de violência doméstica, p. p. pelo art. 152º , nºs 1, a) e 2 do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art. 86º, nº 1, d), com referência ao art. 3º, nº 2, e) e ao art. 2º, nº 1, ar) da Lei nº 5/2006, de 23-2, na pena de 6 meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, na pena única de 15 anos de prisão.
Desta decisão, recorreu o arguido, concluindo assim a sua motivação:

1. A conduta do arguido teve lugar em circunstâncias especialmente emocionais.
2. O arguido encontrava-se particularmente fragilizado, por virtude de doença que o afligia e aflige.
3. O arguido encontrava-se desorientado, não conseguindo aguentar a pressão que sua mulher lhe fazia exigindo o divórcio, estado esse que mais se sublimou ao ter conhecimento de indícios de que sua mulher lhe poderia ser infiel.
4. Foi particularmente o facto de ver sua mulher a fazer as malas para abandonar o lar conjugal e os filhos que levou o arguido a cometer o crime, que não queria praticar, já que era sua vontade viver com a família que ambos haviam constituído, daí a sua oposição ao divórcio.
5. A pena aplicada é exagerada face a todo o conjunto de factos e circunstâncias que estão na base do crime, não podendo assacar-se toda a responsabilidade ao arguido, já que se encontrava dominado pelo desespero e emoção violenta e, provavelmente, sob efeito do álcool.
6. Face a estes factos e circunstâncias, a culpa do arguido encontrar-se-á substancialmente atenuada, pelo que lhe deveria ser aplicada pena correspondente ao homicídio privilegiado previsto no art. 133º do CP, cuja moldura é de 1 a 5 anos de prisão.
7. Ao optar-se pelo homicídio qualificado, mostra-se violado o art. 40º, nº 1 e 2 do CP.
Termos em que, concedendo V. Exas. provimento ao presente recurso e reduzindo a pena para 5 anos, farão a mais lídima Justiça.

A sra. Procuradora da República respondeu, concluindo:

1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido nos autos que condenou o arguido (…)
2. São as conclusões que delimitam o objecto recurso.
3. O objecto do presente recurso é restrito a matéria de direito, pois que o arguido apenas discute a qualificação do crime de homicídio e a medida da pena - nem mesmo questiona a sua efectividade.
4. Nos termos do art° 432°, nº 1, c) do CPP, e porque não há lugar a recurso prévio para a Relação (cfr. nº 2 do citado preceito), para conhecer do presente recurso é competente o Supremo Tribunal de Justiça.
5. No que à qualificação jurídica dos actos concerne: Considerando que os factos declarados provados - que não foram questionados – integram objectiva e subjectivamente a prática de um crime de homicídio doloso e um crime homicídio qualificado, p. p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, b) do CP, atenta a especial censurabilidade –e perversidade das circunstâncias dadas como provadas em que foi produzida a morte da vítima (o facto do arguido ter morto a sua mulher com seis facadas, por motivo de a mesma pretender sair de casa e divorciar-se de si).
6. Quanto à medida concreta da pena que o recorrente considera excessiva entendendo violado o art.° 40° n° 1 e 2 do Código Penal, e que, dentro da moldura abstracta de 12 a 25 anos aplicável ao crime de homicídio qualificado, p e p. pelos art°s. 131° e 132º, n°s 1 e 2, al. b) do Código Penal, praticado pelo arguido – tendo o tribunal considerado:
-Que arguido não tem antecedentes criminais e tem problemas de saúde, mas não descurando:
a) Que o arguido desferiu seis facadas naquela que era sua esposa há mais de 20 anos e mãe dos seus filhos;
b) Que apesar da sua mulher e infeliz vítima - com apenas 42 anos de idade - ter gritado por socorro assim que o arguido desferiu a primeira facada e ter tentado fugir, o arguido, de forma rápida e consciente, agarrou-a, desferindo-lhe pelo menos mais cinco facadas, não conseguindo aquela sequer sair do quarto da filha, conseguindo desta forma o resultado que pretendia de forma livre, deliberada e consciente: a morte da sua mulher;
c) Que actuou na presença dos filhos menores de ambos.
7. Não esquecendo que num crime como este é indispensável que não seja posta irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
8. Aceita o Ministério Público como o mínimo abaixo do qual seriam defraudados todos os princípios que presidem à determinação da medida concreta da pena a aplicação ao arguido da pena de prisão de 14 anos em que foi ondeando, a qual peca pela brandura porquanto a Relação e o Supremo têm considerado (em casos de arguidos sem antecedentes criminais) penas de 17 e 18 anos como mais adequadas a este tipo de ilícitos, sendo 15 anos mais proporcional ao crime de homicídio simples perpetrada em moldes como os presentes.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, quanto ao mérito do recurso, da seguinte forma:

III.1. O recorrente põe em causa a qualificação do crime de homicídio e a medida da pena aplicada.
Não lhe assiste, porém, qualquer razão.
O legislador português seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular, combinando um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos padrão.
As circunstâncias previstas, por forma não taxativa, no nº 2 do artigo 132º nº 2 do C. Penal, não operam automaticamente, sendo indispensável determinar se, no caso concreto, preenchem o elemento qualificante de especial censurabilidade ou perversidade e justificam uma sanção que não cabe na moldura incriminadora do homicídio simples. Essas circunstâncias são modos ou meios, exemplificativos, de avaliar e surpreender o especial juízo de censura, que, todavia, se não esgota, nem confunde com estas cláusulas.
O recorrente foi condenado, com base na matéria de facto assente, como autor de um crime de homicídio qualificado em razão da circunstância prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º do C. Penal.
Como é por demais óbvio, tal qualificação não merece o mínimo reparo, sendo, por outro lado, totalmente descabido pretender, como o faz o recorrente, que a sua conduta haverá de ser qualificada como homicídio privilegiado, nos termos do artigo 133º do C. Penal, por ter actuado “dominado pelo desespero e emoção violenta”.
Tal estado emotivo, que torne a conduta do agente menos exigível, não tem o mínimo de suporte na matéria de facto dada como provada – fls. 422-431.
De acordo com essa matéria de facto, a vítima era objecto de agressões e insultos verbais, desde o início do casamento, o qual ocorreu em 1987.
Cansada desses maus tratos físicos e psicológicos, a vítima manifestou ao arguido, em 30-05-2008, a sua decisão de se divorciar e sair de casa, alegando para tal esses maus tratos.
Confrontado com essa afirmação, o arguido, nesse mesmo dia, repetiu diversas vezes que a matava e tentou esfaqueá-la com a faca referida a fls. 424, o que só não aconteceu porque ela começou a gritar e o arguido teve receio que os vizinhos ou terceiros ouvissem os gritos e chamassem a Polícia.
Quando a vítima manifestou novamente a intenção de se divorciar, em 12-06-2008, o arguido puxou de uma navalha de ponta e mola e atingiu a vítima, pelo menos por seis vezes, na zona do peito e dos braços, para assim lhe provocar a morte, que pretendia de forma livre, deliberada e consciente.
E essa bárbara actuação teve lugar na presença dos filhos, de menor idade, nos termos constantes de fls. 425.
O grau de ilicitude da sua conduta é, pois, elevadíssimo, revelando-se particularmente perversa e censurável a conduta que conduziu à morte da vítima, sua mulher e mãe dos seus três filhos – fls. 444.
O dolo foi, por sua vez, directo e intenso.
Os problemas de saúde que o arguido invoca foram devidamente ponderados no acórdão condenatório.
Tais problemas de saúde são, em bom rigor, alheios à conduta do arguido.
O arguido quis levar a cabo os intentos de matar a sua mulher através do método surpresa, fls. 432, por esta não retroceder na intenção de sair de casa e se divorciar, por não aguentar mais os maus tratos de que era vítima.
Ou seja, o arguido actuou movido por um absurdo e inqualificável sentimento de posse e de despeito.
Estamos, pois, em face de um crime repugnante e altamente censurável.
III.2. Como a jurisprudência vem sublinhando regularmente, o homicida manifesta sentimentos anti-sociais que provocam acentuada censura ético-social, a exigir forte reacção punitiva e repressiva, sendo especialmente fortes as exigências de prevenção e a reprovação, tanto geral como especial, atento o especial impacto negativo, que tais comportamentos causam no meio social.
Estando em causa o homicídio da própria mulher e mãe dos seus filhos, essa censura ético-social e a exigência de forte reacção punitiva e repressiva mostram-se especialmente acentuadas, pois está em causa, como se sublinhou já, um crime especialmente repugnante.
O acórdão recorrido ponderou devidamente o grau elevadíssimo da ilicitude dos factos, o modo de execução do crime, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, que é elevado, os motivos que determinaram o arguido, a ausência de arrependimento, as condições pessoais do arguido e os seus antecedentes.
Tudo ponderado, a conclusão que se extrai é a de que as penas parcelares e a pena única de prisão, aplicada em cúmulo jurídico, não se mostram exageradas.
Como se refere na resposta do Ministério Público na 1ª instância, a pena aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado peca pela sua brandura, estando, porém, prejudicado o seu agravamento, atenta a proibição da reformatio in pejus.
Assim sendo, o recurso não poderá deixar de improceder.
IV. Concluindo:
1. O arguido foi condenado como autor de um crime de homicídio qualificado, em razão da circunstância prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º do C. Penal, qualificação essa que não merece o mínimo reparo.
2. Atenta a matéria de facto dada como provada, mostra-se totalmente descabido pretender, como faz o arguido, que a sua conduta seja qualificada como homicídio privilegiado – artigo 133º do C. Penal.
3. As penas parcelares e a pena única de prisão aplicadas não poderão ser consideradas desproporcionadas, pecando antes de brandura a pena respeitante ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2, b) do C. Penal,
4. Estando afastada a possibilidade de agravação das penas, atenta a proibição da reformatio in pejus, o acórdão recorrido haverá de ser mantido, nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.

Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº 2 do CPP, nada tendo respondido o recorrente.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A única questão colocada pelo recorrente é a da qualificação dos factos, que ele pretende que integram o crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo art. 133º do CP, com a decorrente redução da pena para 5 anos de prisão.
Antes da apreciação do mérito dessa pretensão, importa conhecer a matéria de facto, que é a seguinte:

O arguido AA e BB encontravam-se casados desde o dia 23 de Agosto de 1987.
Desse casamento nasceram três filhos: R...A...L..., nascido em 27.06.1988, C...A...L..., nascida em 18.07.1992, e G...L..., nascido em 1998.
O arguido, a BB e os três filhos residiam na Rua Casal da Serra, nº ... - ... Dtº, em Rio de Mouro, área desta comarca.
Desde o início do casamento que o arguido agredia a BB pelo menos uma vez por mês, ora por insultos verbais, chamando-lhe de “puta” e “vaca”, ora por puxões de cabelos ou chapadas na cara.
Estas agressões ocorriam sempre no final do mês quando o arguido recebia o ordenado e se embriagava.
No ano de 2002, a BB adquiriu, por troca, um veículo automóvel para se deslocar para o trabalho (era auxiliar de alimentação no Hospital da Força Aérea) e, apesar do arguido ter concordado com essa aquisição, algum tempo depois quis proibi-la de usar o veículo e obrigá-la a voltar a ir de transportes para o trabalho.
Na sequência das discussões que mantinham, o arguido ameaçou a BB que havia de cortar os pneus do veículo, dizendo que tinha para o efeito um punhal escondido em cima do móvel da sala, o que efectivamente acontecia.
Em data não apurada do ano de 1997, o arguido, munido desse mesmo punhal que mantinha em cima do móvel da sala de estar e de jantar, tentou esfaquear a BB, tendo-lhe causado apenas ferimentos nas mãos.
No dia 11 de Maio de 2002, o arguido AA, ao chegar a casa alcoolizado, quis que a BB lhe entregasse as chaves do carro, o que aquela não quis, tendo sido agarrada pelos braços pelo mesmo.
O filho mais velho do casal, R...A...L..., separou os pais que se encontravam a agredir mutuamente com empurrões, tendo nessa data cerca de 14 anos.
A BB vivia num clima de insegurança e de medo constante do arguido AA, no sentido que aquele concretizasse não só as ameaças de morte mas também que a privasse subitamente do uso do veículo automóvel onde se fazia deslocar para o trabalho diariamente, o que aquele chegou efectivamente a consumar.
As discussões entre a BB e o arguido AA eram frequentes, quer pelos ciúmes que o arguido tinha da sua mulher, quer devido à utilização do veículo automóvel por parte daquela.
O arguido sabia que estava obrigado a tratar a sua mulher com respeito, mas constantemente colocava em causa a sua honra e a sua dignidade enquanto pessoa e enquanto ser humano, fazendo-o no recesso do lar e na presença dos seus filhos, à data todos menores de idade e psicologicamente frágeis.
No dia 30 de Maio de 2008, cerca das 19h00, o arguido e a BB, sua esposa, encontravam-se no interior da residência em que ambos habitavam, tendo a BB manifestado ao seu marido a decisão de se divorciar e de sair de casa, alegando os maus tratos físicos e psicológicos que aquele lhe vinha a infligir desde o início do casamento.
O arguido, como não pretendia divorciar-se da BB e não queria que esta abandonasse a casa, iniciou uma discussão com a mesma, injuriou-a com as expressões “puta” e “vaca” e dirigiu-se à cozinha onde se muniu de uma faca de cozinha.
Após ter ido buscar uma faca à cozinha dirigiu-se à BB com intenção de a esfaquear, repetindo por diversas vezes que a matava.
A BB, assustada, desviou-se do arguido, pegou na sua mala com os pertences pessoais e não conseguiu logo abandonar a residência por o arguido a ter impedido, logrando mais tarde fazê-lo e através do uso do telemóvel contactar a Polícia de Segurança Pública que se deslocou ao local.
A faca de cozinha com que o arguido tentou esfaquear a BB no dia 30.05.2008 foi apreendida e, submetida a exame e avaliação, apurou tratar-se de uma faca de cozinha em mau estado de conservação, “com cabo em madeira de cor castanha, comprimento total de 38 cm, e comprimento de lâmina de 23,02 cm”.
No dia 30.05.2008 o arguido não esfaqueou a BB porque esta começou a gritar e o arguido teve receio que vizinhos ou terceiros ouvissem os gritos e chamassem ao local a Polícia de Segurança Pública.
Após ter tido conhecimento que a BB se tinha deslocado à esquadra da Polícia de Segurança Pública, em Rio de Mouro, para formalizar a queixa, o arguido dirigiu-se à filha do casal C... L... e disse à filha que estava arrependido de efectivamente não ter mesmo esfaqueado a mãe, referindo-se à BB.
Desde pelo menos o ano de 2002 que o arguido tem vindo a ameaçar de morte a BB, sua mulher, a injuriá-la com expressões como “puta” e “vaca”, e a agredi-la com chapadas e puxões de cabelos.
O comportamento maltratante assumido pelo arguido em relação à BB ocorria sempre no interior da residência do casal de forma a não ser presenciado por terceiros, evitando assim o arguido a sua responsabilização penal pelos maus tratos físicos e psíquicos que infligia à sua mulher em relação à qual sabia ter um dever acrescido de respeito e de dignidade no tratamento com a mesma.
O arguido sempre se serviu da sua superioridade física e da dependência económica da BB em relação aos três filhos que tinham em comum para assumir todos os comportamentos humilhantes e as agressões físicas que a BB suportava.
Desde o dia 30.05.2008 que a BB dormia na mesma cama da filha C... e no quarto desta última.
No dia 12 de Junho de 2008, cerca das 18h30m, o arguido e a BB, bem como os filhos de ambos, R... L..., de 20 anos e o G...L..., de 10 anos, encontravam-se no interior da residência da família.
A BB voltou a manifestar ao arguido a intenção de se divorciar e deixar de residir naquela casa, tendo-se dirigido ao quarto da filha C... para ali recolher alguns pertences pessoais, arrumá-los e abandonar a casa, manifestando mais uma vez desagrado, descontentamento e infelicidade pela forma como era tratada pelo arguido.
O arguido e a BB começaram então a discutir, de forma a que o filho de ambos, R..., se apercebeu da discussão.
O arguido, quando percebeu que não conseguia demover a BB das suas intenções de abandonar a casa e de se divorciar, puxou de uma navalha do tipo “ponta e mola”, que trazia no bolso, e desferiu vários golpes no corpo da sua mulher.
O arguido desferiu seis facadas na BB que a atingiram em zonas vitais, começando a mesma a perder sangue de forma abundante.
Quando o filho do casal, R... L..., chegou junto dos pais, ainda tentou separar os mesmos, a mãe ainda se encontrava a respirar mas a ficar sem forças, tendo sido o arguido a agarrar a BB, deitando-a no chão.
Enquanto o filho mais novo do casal, o G..., com 10 anos, telefonava para o 112 a fim de pedir ajuda, o arguido, munido da faca com que tinha desferido os golpes na BB, dirigiu-se à casa de banho, ao lavatório, onde lavou a faca (ali ficando vestígios do sangue da BB) e, posteriormente, à cozinha, dependência da casa onde a escondeu.
O arguido muniu-se então de uma faca de cozinha com lâmina em forma de serrilha e colocou-a por baixo do corpo da BB, a fim de fazer crer às autoridades que teria sido com aquela faca que tinha esfaqueado a mulher.
Apesar dos esforços empreendidos pela equipa do 112, a BB veio a falecer no interior da residência.
No dia 13.06.2008 o R... L... dirigiu-se à esquadra da Polícia de Segurança Pública de Rio de Mouro e procedeu à entrega da navalha (tipo ponta e mola) que o G...L... tinha visto o pai a esconder na cozinha por cima de um armário, junto de uma mala térmica que ali se encontrava.
Examinada e avaliada a faca entregue pelo R... L... à Polícia de Segurança Pública, com que o arguido desferiu vários golpes na BB, apurou tratar-se de uma faca com um comprimento total de 25 cm, comprimento total da lâmina de 11,5 cm, comprimento de lâmina na zona com gume de 10,3 cm e largura máxima de lâmina na zona com gume 2,6 cm, tratando-se de uma faca de sistema de abertura automática da lâmina, vulgarmente conhecida por “ponta e mola”.
No local dos factos foram ainda apreendidas peças de vestuário e ainda efectuados diversos exames de recolha de vestígios de ADN ao arguido e ao cadáver de BB, em zaragatoas bucais efectuadas ao arguido e em recolha de sangue ao cadáver da BB.
A navalha entregue pelo R... L... à Polícia de Segurança Pública foi submetida a exame de pesquisa de ADN, tendo na mesma, bem como no pedaço do papel e nos pedaços de tecidos apreendidos, se detectado uma mistura de vestígios biológicos provenientes de vários indivíduos, da qual não podem ser excluídos como dadores AA e BB.
Junto do cadáver da BB foi encontrada uma faca, que se encontra apreendida, que ali foi colocada pelo arguido para se eximir à sua punição pela detenção de uma navalha de “ponta e mola”.
Submetida a exame e avaliação apurou-se que a mesma tinha um comprimento total de 33,1 cm e 19,5 cm de lâmina, sendo da marca Continente.
O arguido, ao desferir pelo menos seis facadas no corpo da BB, provocou-lhe as seguintes lesões, descritas no relatório de autópsia médico-legal efectuada à mesma, apresentando à observação do hábito externo:
1. Peças de vestuário constituídas por calções e cuecas manchados por sangue sem rasgões suspeitos. Sapatos de pala manchados por sangue.
2. Cadáver de indivíduo do sexo feminino, caucasiano, normolíneo, bom estado de nutrição, com cerca de 166 cm de estatura e 66 Kg de peso, aparentando a idade cronológica referida na informação.
3. Livores Cadavéricos, roxos, fixados, no dorso. Rigidez cadavérica forte nos membros. Conjuntivas pálidas.
4. Cicatriz operatória de laparotomia infra umbilical, mediana, vertical, que mede 14 cm de comprimento.
5. Feridas cortantes e corto-perfurantes.
5.1.- na região esterno-clavicular esquerda, fusiforme, em cunha, oblíqua ara baixo e para a esquerda que mede 3 cm de comprimento.
5.2.- na região peitoral direita, que dista l cm para dentro e 10 cm para cima do mamilo, horizontal, que mede 4,5 cm de comprimento.
5.3.- na face externa do cotovelo esquerdo que mede l x 2 cm.
5.4.- no dorso da mão esquerda, junto ao punho, que mede 2,5 cm de comprimento.
5.4.- na face dorsal da primeira prega interdigital da mão esquerda, que se prolonga para a face externa e última articulação do dedo polegar que mede 6 cm de comprimento.
5.5.- Na face interna do joelho direito, superficial, que mede 10 cm de comprimento e que se prolonga para a face antero-interna da perna que, rectificada, mede 19 cm de comprimento.
6. Lesão modelada no terço superior da face interna do braço esquerdo constituída por escoriações lineares, paralelas entre si, que medem cerca de 5 cm de comprimento, delimitando uma área equimótica roxa de cerca de 3,5 cm de largura.
7. Ausência de outras lesões traumáticas externas recentes.
Relativamente ao exame do hábito interno da BB, apurou-se na sequência do relatório de autópsia efectuado:
A. Em relação com as feridas descritas em III – 5 feridas corto-perfurantes do tecido celular subcutâneo:
- Ferida 5.1. - ferida corto-perfurante
- Dos músculos do 1º e 2º espaços intercostais anteriores esquerdos com fractura da 2ª costela e secção da 2ª articulação esterno-costal esquerda
- Do saco pericárdico
- Da veia cava superior, transfixiva e de válvula tricuspida
Hemicárdio de cerca de 100cc
Hemotórax esquerdo de cerca de 700cc
- Ferida 5.2. - ferida corto-perfurante
- Dos músculos do 2º e 3º espaços intercostais anteriores direitos com fractura do arco anterior da 3ª costela direita
- Duas, do lobo superior do pulmão direito, a mais superior, transfixiva
Hemotórax direito de cerca de 400cc
Órgãos anemiados
Estômago com alimentos sem cheiro específico, mucosa gástrica sem alterações
Bexiga vazia; mucosa vesical sem alterações.
A causa da morte de BB foram lesões traumáticas torácicas, por acção de instrumento de natureza corto-perfurante, de etiologia médico-legal homicida.
A morte de BB foi devida às graves lesões traumáticas torácicas descritas.
As lesões traumáticas torácicos descritas são causa necessária de morte.
As lesões traumáticas descritas no nº 5 do Exame do Hábito Externo e no nº A do Exame do Hábito Interno resultaram da acção de instrumento de natureza corto-perfurante.
O instrumento corto-perfurante actuou no tórax de diante para trás e de cima para baixo.
A morte da BB sobreveio como consequência directa e necessária dos golpes que lhe foram infligidos pelo arguido e respectivas lesões.
Efectuados exames toxicológicos ao sangue recolhido ao cadáver de BB, o mesmo não revelou a presença de álcool, não revelou a presença de substâncias medicamentosas e não revelou a presença de anfetamina ou metanfetamina, cocaína, opiáceos ou cannabis.
Ao agir da forma descrita, sabia o arguido que estava a esfaquear a sua mulher BB, com o intuito de lhe tirar a vida, não hesitando em espetar-lhe violentamente uma faca no corpo pelo menos por seis vezes, com especial incidência na zona do peito e dos braços.
Apesar da BB ter gritado por socorro assim que o arguido lhe desferiu a primeira facada e ter tentado fugir, o arguido, de forma rápida e consciente, agarrou-a, desferindo-lhe pelo menos mais cinco facadas, não conseguindo aquela sequer sair do quarto da filha, conseguindo desta forma o resultado que pretendia de forma livre, deliberada e consciente: a morte da sua mulher BB.
O arguido sabia que não estava autorizado a deter a faca do tipo “ponta e mola” e que a posse daquele tipo de objectos é proibido e punido por Lei Penal.
O arguido sabia ainda que não estava autorizado a utilizar uma faca de cozinha para com a mesma ameaçar a sua mulher que a esfaquearia no dia 30.05.2008, e ainda assim agiu de forme livre, deliberada e consciente, com o propósito de provocar medo e insegurança à BB, coagindo-a a não intentar o divórcio como era firme propósito daquela.
Em todas as condutas que assumiu desde o ano de 2002, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.
A vítima tinha 42 anos de idade à data da sua morte.
Nada consta do CRC do arguido.
O arguido AA realizou o seu processo de desenvolvimento, até aos 13 anos de idade, em ambiente rural, no interior de um agregado familiar estruturado, de condição sócio-económica modesta. Frequentou a escola até concluir o 6º ano de escolaridade, altura em que, por dificuldades económicas dos pais, uma vez que para continuar os estudos teria que se deslocar para fora de Tondela e pela sua própria vontade em começar a trabalhar, passa a viver aos 13 anos de idade em casa de uns primos, onde trabalhou em tanoaria. A partir dos 14 anos de idade inicia o seu processo de autonomização pessoal, tendo primeiro residido durante 2 anos numa pensão em Rio Maior e trabalhado como servente de carpinteiro na construção civil e, posteriormente, se radicado em Lisboa, com o apoio dos seus irmãos mais velhos já aí residentes, residindo, no início, numa parte de casa. Ao nível profissional, desenvolveu a sua actividade profissional como carpinteiro de cofragem, mantendo-se sempre integrado laboralmente até aos 45 anos de idade, essencialmente na mesma entidade empregadora, altura em que se reformou por invalidez. Em termos afectivos, contraiu casamento aos 25 anos de idade com a vítima dos autos, do qual vieram a nascer os seus três filhos, actualmente com 8, 16 e 20 anos de idade, tendo constituído agregado próprio, inicialmente no Lumiar e posteriormente na actual residência. O relacionamento conjugal veio a caracterizar-se pela constante conflituosidade. Como factores mais determinantes da situação de conflituosidade entre o arguido e a esposa terão estado o consumo exagerado de bebidas alcoólicas por parte de AA, uma postura de reprovação deste perante o estilo de vida da mulher, criticando-a por falhas na gestão do quotidiano familiar, e um sentimento de desconfiança de lhe estar a ser infiel. O arguido sempre assumiu as suas responsabilidades parentais para com os filhos, não existindo problemas relevantes no relacionamento que estabelecia com estes. A partir de 2003, o arguido foi sujeito a várias intervenções cirúrgicas à coluna, após um acidente de trabalho, e posteriormente a um tumor maligno na língua, situação que motivou a sua reforma por invalidez. Após a intervenção cirúrgica ao tumor maligno e respectivos tratamentos posteriores, em 2006, o arguido deixou de consumir bebidas alcoólicas. Antes de ser detido, o arguido constituía agregado familiar com a sua mulher e os três filhos, estando numa situação de reformado por invalidez, pelo que as condições sócio-económicas se revelavam difíceis. A dinâmica entre o casal mantinha-se com características disfuncionais, vindo-se a agravar com o tempo, com constantes desentendimentos e situações de conflituosidade, o que motivou uma elevada instabilidade emocional no arguido, tendo retomado o consumo exagerado de bebidas alcoólicas de forma impulsiva. O arguido beneficia actualmente dos apoios, afectivo e material, dos seus familiares, essencialmente do irmão J...L... e cunhada, que assumiram os cuidados dos seus três filhos, residindo o mais novo no agregado destes e os dois mais velhos mantêm-se a viver na residência da família, conjuntamente com um tio materno. Durante o período de reclusão, o arguido tem apresentado um comportamento institucional adequado, beneficiando do apoio dos seus familiares e visitas dos seus três filhos. Tem realizado consultas derivadas dos seus problemas de saúde e tem apoio psicológico.
Não resultou provado que:
O arguido AA agiu com premeditação na sua intenção de tirar a vida à sua mulher e mãe dos seus filhos, mantendo e incentivando essa vontade pelo menos pelo período de 13 dias.
Ao escolher como meio para efectuar o seu plano uma faca de ponta e mola, o arguido quis levar a cabo os seus intentos de matar a sua mulher através do método da surpresa.
O arguido sabia ainda que, ao utilizar aquela faca com uma lâmina afiada e pontiaguda, iria provocar grande dor e aumentar sofrimento na vítima, o que igualmente foi sua livre, directa, voluntária e consciente intenção conseguida.
Os factos ocorreram nos termos alegados na contestação apresentada pelo arguido na parte não coincidente com a factualidade apurada.
Inexistem quaisquer outros factos não provados com relevância para a decisão de mérito.

Pretende o recorrente que os factos integram o crime de homicídio qualificado do art. 133º do CP porque agiu em “circunstâncias especialmente emocionais”. A intenção de a sua mulher se divorciar e o conhecimento de “indícios” de que ela lhe era infiel desencadearam, segundo ele, o estado emocional em que actuou.
O citado art. 133º do CP prevê um tipo privilegiado de homicídio, assente numa acentuada mitigação da culpa (exigibilidade diminuída), provocada por uma “compreensível emoção violenta”, um estado de “compaixão”, de “desespero”, ou por “motivo de relevante valor social ou moral”.
Os factos descritos nos autos não poderão certamente enquadrar-se nem na “compaixão”, nem no “motivo de relevante valor social ou moral”.
Terá o recorrente agido com “compreensível emoção violenta” ou em “desespero”?
Existirá a primeira situação quando o agente actua dominado por um estado emocional provocado por factos a que um homem comum e “fiel ao direito” seria sensível, sendo, portanto, atenuada a exigibilidade de conformação com as normas.
“Desespero” refere-se a estados depressivos vividos pelo agente, sendo em qualquer caso necessário que a acção revele uma exigibilidade diminuída.
Segundo a matéria de facto, a conduta do recorrente seguiu-se a uma discussão entre ele e a vítima BB, provocada pela manifestação de intenção por parte desta (e não era a primeira vez que o fazia) de se divorciar e deixar de residir com o recorrente. No desenrolar dessa discussão, e vendo que não conseguia demover a vítima das suas intenções, o recorrente agrediu-a com uma faca, dando-lhe seis golpes.
Desta factualidade não é possível retirar qualquer referência directa ou indirecta a um estado de exaltação ou de desequilíbrio emocional acentuado por parte do recorrente. A discussão inseriu-se no mau relacionamento entre ambos que vinha de há muito e que se acentuara a partir de 30.5.2008, cerca de duas semanas antes do crime, quando a BB pela primeira vez anunciara a sua intenção de se divorciar e de sair de casa.
Em qualquer caso, não estamos perante uma compreensível emoção violenta, porquanto a conduta do recorrente, a aceitar-se como resultando de uma emoção violenta, nunca poderia ser considerada “compreensível”, já que lhe era exigível outro comportamento perante a atitude da BB. Na verdade, uma pessoa fiel ao direito teria de aceitar a vontade dela de se divorciar, de respeitar a sua autonomia, e até de compreender essa intenção, perante o reiterado comportamento agressivo e mesmo violento que o recorrente mantinha há muito para com ela. Não há qualquer provocação por parte da vítima, mas apenas o livre exercício dos seus direitos enquanto pessoa humana.
A instabilidade emocional do recorrente, que o consumo de álcool agravava, não se pode atribuir à vítima. Os desentendimentos e conflitos conjugais terão resultado seguramente de uma vivência conjugal que era precisamente marcada pelos maus tratos do recorrente na pessoa da mulher, situação da qual ela naturalmente queria libertar-se.
A acção homicida do recorrente não foi provocada pelo comportamento, absolutamente compreensível, da vítima, ou de terceiros. Terá resultado da “incapacidade” do arguido em aceitar a decisão da vítima de pôr termo à relação conjugal, fruto possivelmente da sua “mentalidade”, da forma como encara as relações inter-conjugais, revelada no longo martírio a que submeteu a vítima ao longo dos anos de vigência do casamento, e que o impediu de aceitar as tentativas de autonomização da vítima, e sobretudo o seu desejo de se divorciar, de manifestar assim a sua livre determinação como pessoa humana.
Aceitar que o recorrente agiu com “compreensível emoção violenta” seria beneficiar o agressor pela sua infidelidade ao direito e à lei.
Nem um estado de “desespero” se pode aceitar, pois nenhuma circunstância se provou que diminua acentuadamente a sua culpa.
Pelo contrário, a sua conduta encerra uma censurabilidade agravada e bem integrada foi no homicídio qualificado.
Não vindo impugnada a medida da pena, no quadro desse tipo legal, considera-se essa questão excluída da matéria do recurso.
Improcede, pois, o recurso interposto.

III. DECISÃO

Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.
Vai o recorrente condenado em 10 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 17 de Setembro de 2009

Maia Costa (relator)
Pires da Graça