USUFRUTO
USO E HABITAÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE PROPRIEDADE
ERRO MATERIAL
SEPARAÇÃO DE FACTO
NULIDADES DE ACÓRDÃO
Sumário


1. É legalmente admissível a venda simultânea e num mesmo acto do direito de propriedade e do direito de usufruto de uma fracção autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal a compradores diferentes, assim repartindo entre eles os poderes que integram a propriedade plena.

2. O usufrutuário pode constituir a favor de outrem um direito de uso e habitação sobre a fracção; perde, no entanto, o poder de a usar.

Texto Integral


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA instaurou contra BB e CC, DD e EE uma acção na qual pediu que os dois primeiros réus e a segunda ré fossem “condenados a reconhecer o A. e a 3ª R. como usufrutuários das fracções” autónomas designadas pelas letras AI, BB, AG e BA do prédio situado na Rua ...., nºs ... a ...-D, em Lisboa, “a abrir mão delas e a entregá-las livres e devolutas de pessoas e bens e a 3ª R. a limitar-se ao uso e utilização das fracções AG e BA e a suportar as despesas de condomínio e impostos respectivos, permitindo o uso e utilização pelo A. das fracções AI e BB”.
Pediu ainda a fixação de uma sanção pecuniária compulsória de, no mínimo, € 50 “por cada dia de atraso na entrega das fracções”.
Para o efeito e em síntese, alegou que, juntamente com sua mulher, a 3ª ré, da qual se encontrava separado de facto, é usufrutuário das referidas fracções, das quais são proprietárias a 1ª e a 2ª rés, filhas de ambos (a 1ª, das fracções AI e BB, a 2ª das fracções AG e BA); que os primeiros dois réus habitam a fracção AI e usam a fracção BB por mera autorização precária sua; que a 2ª e a 3ª rés habitam a fracção AG e utilizam a fracção BA desde a separação, sem o seu consentimento; e que tem suportado integralmente as despesas de condomínio e de impostos respeitantes às fracções.
Os réus contestaram. Reconhecerem o direito de usufruto invocado mas sustentaram utilizarem legitimamente as fracções: BB, que vive em união de facto com CC, por ser proprietária das fracções AI e BB e por ter sido permitido pelo autor a correspondente utilização; EE, por ser usufrutuária e, quanto a DD, por estar autorizada pela mãe, para além de ser proprietária das fracções AG e BA.
Por sentença de fls. 203, a acção foi julgada parcialmente procedente, decidindo-se que “devem os réus BB, CC e DD reconhecer o autor e a ré EE como usufrutuários”.
Esta sentença foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de fls. 271.
Em síntese, a Relação desatendeu a impugnação da decisão sobre a matéria de facto; considerou que “as rés BB e DD têm título legítimo que lhes permite a ocupação que vêm fazendo das referidas fracções”, não tendo “o autor o direito de exigir que as mesmas lhe sejam entregues”, porque no título constitutivo do usufruto foi restringido o seu conteúdo, nos termos permitidos pelo artigo 1445º do Código Civil, por nele ter sido declarado, pelos usufrutuários, “que as fracções AI (11º andar) e AA (12º andar) se destinavam à residência permanente das proprietárias de raiz”; entendeu que “a ré EE [se] limita (…) a usar o andar de que também é usufrutuária e que habita juntamente com a sua filha DD, que (…) é a proprietária da raiz desse mesmo andar, não se vendo que possa proceder qualquer das pretensões formuladas em relação a ela, designadamente, no que respeita às despesas de condomínio e impostos, pois que nada se apurou a esse propósito”.
Este trecho do acórdão enferma de dois manifestos lapsos de escrita, facilmente corrigíveis pela leitura do próprio acórdão, não existindo qualquer dúvida possível quanto ao que realmente se quis escrever, e que era “que as fracções AI (12º andar) e AG (11º andar) se destinavam (…)”.

2. O autor recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso foi admitido como revista, com efeito meramente devolutivo.
A fls. 338, foi proferido novo acórdão pela Relação, no sentido de não ser motivo de nulidade a contradição apontada pelo recorrente, ao abrigo do disposto na al. c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

“l- A sentença proferida em 1ª instância reconheceu o recorrente e a recorrida EE como usufrutuários das fracções autónomas AG, AI, BA e BB, do prédio sito na Rua ... ,N°... a ... D,em Lisboa e condenou os recorridos BB, CC e DD nesse reconhecimento.
II -As partes conformaram-se com essa decisão.
III- As RR. BB e DD são as proprietárias de raiz de tais fracções.
IV- As fracções AG e AI destinam-se a habitação e as BA e BB a garagem/estacionamento.
V- O usufruto do recorrente e da recorrida EE foi constituído vitalicia, sucessiva e simultaneamente, através de escritura pública.
VI- Nessa escritura pública não foi estabelecida qualquer limitação ao conteúdo e exercício do usufruto das fracções autónomas AG,BA e BB.
VII- Nem foi consignada expressa e especificamente qualquer limitação ao usufruto do recorrente relativamente à fracção AI.
VIII- Foi o recorrente que procedeu ao pagamento dos preços de aquisição e a ele foi dada a posse efectiva das fracções, mesmo antes de outorgada a escritura de compra e venda.
IX- Por deferência do recorrente os recorridos BB e CC foram viver na fracção "AI" e passaram a utilizar a fracção "BB",pouco antes da outorga da escritura de compra e venda.
X- Após os factos referidos nas duas conclusões anteriores, os usufrutuários, que eram casados, separaram-se de facto e,
XI- As relações entre o recorrente e os recorridos DD, BB e CC deterioraram-se tendo deixado de existir os laços de cooperação, compreensão e afecto que os uniam e,
XII- A recorrida DD, proprietária de raiz, foi ocupar as fracções "AG" e "BA" tendo-se-Ihe junto a recorrida EE.
XIII- Os recorridos impedem o recorrente, enquanto usufrutuário, de usar e fruir as fracções.
XIV- O recorrente opõe-se a que os recorridos fruam e utilizem as fracções e solicitou-lhes a desocupação das mesmas.
XV- Não foram consignados no titulo constitutivo do usufruto, ou em documento posterior com igual força ,quaisquer direitos dos recorridos, nomeadamente das proprietárias de raiz, quanto ao uso e fruição das fracções na vigência do usufruto.
XVI- O usufruto caracteriza-se pelo gozo universal e temporário do bem ,o que está a ser impedido ao recorrente.
XVII- As proprietárias de raiz não podem com a oposição do usufrutuário habitar e ocupar as fracções e manter-se na sua posse.
XVIII- A proposição contida na escritura de constituição do usufruto relativa à fracção "AI" de que a mesma se destina à residência permanente da proprietária de raiz BB não significa limitação do usufruto e,
XIX- Que a mesma possa ocupar a fracção na vigência do usufruto,
XX- E muito menos que possa ocupar a fracção "BB".
XXI- A aceitação de tal proposição como limitativa dos direitos de uso e fruição do usufrutuário desvirtua a figura jurídica do usufruto e atenta contra o princípio do "numerus clausus" que preside aos direitos reais.
XXII- A interpretação feita no douto Acórdão recorrido constitui uma interpretação violadora do consignado nos Art°s 3°,8°-3 e 9° do Código Civil.
XXIII- Essa interpretação e a aceitação da existência da limitação traduziria uma condição que tornaria na prática impossível os direitos de uso e fruição do usufrutuário e sem conteúdo o direito de administrar o bem e,
XXIV- Seria contrária à Lei, à ordem pública e ofensiva dos bons costumes.
XXV-A usufrutuária EE ao ocupar uma das fracções habitacionais e uma das de estacionamento e ao permitir a ocupação da duas outras pela proprietária de raiz, opondo-se a que o recorrente use e frua qualquer das fracções excede os limites do seu direito, dos impostos pela boa fé, pelos bons costumes e o fim económico e social do direito,
XXVI-O que traduz um Abuso de Direito.
XXVII- Ambos os usufrutuários devem contribuir, em partes iguais, para as despesas e encargos das fracções.
XXVIII- Existe contradição entre os factos constantes dos títulos constitutivos dos usufrutos, dos factos assentes e das respostas à base instrutória e a fundamentação e a decisão proferida.
XXIX- Os recorridos BB, CC e DD não têm qualquer titulo legitimo para ocupar as fracções e negar a sua entrega ao recorrente usufrutuário.
XXX-O douto Acórdão recorrido fez uma errada valoração e interpretação da matéria de facto e do direito aplicável e violou o disposto nos Art°s. 3°,8°- 3, 9°, 280°, 334°, 1253°, 1268°-1, 1306°, 1403°-2, 1404°, 1405°, 1406°, 1407°, 1439°, 1442°, 1445°, 1446°, 1476° do Código Civil e ainda os Artºs do CPC, 514°, 515°, 664°, 668, nº1-c), 672°, 721°-2, estes na redacção anterior à alteração introduzida pelo DL. 303/2007, de 24 de Agosto
Termos em que e com o Venerando Suprimento de Vª Exas deve dar-se provimento ao recurso e em consequência:
Anular-se e/ou revogar-se o douto Acórdão recorrido, decidindo-se que:
1- O usufruto sobre as fracções é vitalício, sucessivo e simultâneo, sem sujeição a qualquer limitação;
2- O ora recorrente, enquanto usufrutuário, tem o direito a usar e fruir as fracções dos autos, sem limitação, enquanto durar o usufruto;
3- Os recorridos BB, CC e DD devem respectivamente, abrir mão das fracções dos autos e permitir que o recorrente, de facto, as use, frua e administre;
4- A recorrida EE deve permitir que na mesma medida que ela própria o recorrente use, frua e administre as fracções;
5- E contribuir com ele, em partes iguais, nas despesas e encargos das fracções,
Condenando nessa medida os recorrentes e disciplinando-se,
6- O exercício dos direitos do recorrente e da recorrida EE sobre as fracções atribuindo-se a esta o uso e fruição de facto sobre as fracções ‘AG’ e ‘BA? e ao apelante os das fracções ‘AI’ e ‘BB’, ou aleatoriamente uma qualquer fracção habitacional e uma das fracções de estacionamento, assim o declarando e condenando no seu cumprimento, como é de inteira justiça.”

Quanto aos réus, contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso. Referem que foi já decretado o divórcio entre o autor e a ré EE, sem daí retirar qualquer consequência.

3. As instâncias consideram assente que (conforme se transcreve do acórdão recorrido):
«1. O autor é, conjuntamente com sua mulher, aqui ré EE, usufrutuário das fracções autónomas designadas pelas letras "AI"e "BB", que correspondem ao 12° andar direito e ao parqueamento nº 11 na terceira cave, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ...., nºs ...-A, ...-B, ..., ...-C e ...-D, tornejando para a Rua ..., nºs ..., ...-A, ...-B e ...-C, na freguesia de Benfica, concelho de Lisboa, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob a ficha N.01703 da dita freguesia, inscrito na matriz sob o Artigo 2102 da mesma freguesia. (A)
2. E, também, das fracções autónomas designadas pelas letras "AG" e "BA", que correspondem ao 11° andar direito e ao parqueamento n° 10 na terceira cave, do mesmo prédio. (B)
3. Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 26.12.02, no 20° Cartório Notarial, "J...-S... de C..., Lda.", vendeu ao autor e à ré EE, pelo preço de € 79.807,76, o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo da dita fracção "AI" e pelo valor de € 8.728,96, o usufruto da fracção "BB". (C)
4. Por escritura pública, com a mesma data, e outorgada no mesmo Cartório, a citada vendedora vendeu ao autor e à ré Teresa pelo preço de € 79.807,76, o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo da dita fracção "AG" e pelo valor de € 8.728,97, o usufruto da fracção "BA". (C)
5. A ré BB consta como proprietária de raiz das mencionadas fracções, por ter adquirido a nua propriedade das mesmas à dita vendedora, pelo preço de € 79.807,77 relativamente à fracção “AI” e pelo preço de € 8.728,97 pela fracção “BB”. (D)
6. A ré DD consta como proprietária de raiz das mencionadas fracções, por ter adquirido a nua propriedade das mesmas à dita vendedora, pelo preço de € 79.807,77 relativamente à fracção "AG" e pelo preço de € 8.728,97 pela fracção "BA". (D)
7. Nessas mesmas escrituras foi declarado que as fracções "AI" e "AG", se destinam à residência permanente das rés BB e EE, respectivamente, tendo o teor das mesmas escrituras sido lido aos outorgantes e explicado o seu conteúdo. (C)
8. O réu vive com a ré BB em comunhão de cama, mesa e habitação, em situação análoga à dos cônjuges. (E)
9. O autor e a ré EE estão separados de facto, tendo a mesma, após a saída do lar conjugal, ido viver com a ré DD, no andar de que esta é a proprietária de raiz. (F)
10. O autor e a ré EE casaram em 07.12.74, sem precedência de escritura ante-nupcial. (G)
11. A ré DD é filha do autor e da ré Teresa e nasceu em 09.06.83. (H)
12. O autor adquiriu a posse das ditas fracções antes da celebração das respectivas escrituras de compra e venda, dado que as mesmas já haviam sido integralmente pagas. (1)
13. Posteriormente, e ainda antes da celebração da escritura, o autor permitiu que os réus BB e CC passassem a morar na fracção habitacional respectiva e a ocupar o parqueamento. (2)
14. Uma vez que pretendiam viver em comum e não tinham outro local para o fazer. (3)
15. Quando se deu a ruptura da vida conjugal do autor com a ré EE, esta e a filha, aqui ré DD, que com eles morava, num andar sito nas Olaias, foram viver para o dito apartamento de que aquela ré é proprietária. (6)
16. Os réus continuam a morar nas fracções em causa. (9)
17. O autor e a ré decidiram adquirir duas casas. (10)
18. Os réus BB e CC instalaram na dita fracção, de que aquela é proprietária, a sua casa de morada e família, passando também a usar o respectivo parqueamento. (13).
19.Os réus BB e CC mantêm-se na referida fracção. (15)
20. A casa onde o autor mora, e onde era anteriormente a casa de morada de família dele e da ré EE, tem 5 divisões assoalhadas e, pelo menos, 3 lugares de garagem. (18)».

4. Cumpre começar por observar que está fora do âmbito possível deste recurso a apreciação do pedido com que o recorrente termina as suas alegações de que se discipline “o exercício dos direitos do recorrente e da recorrida EE sobre as fracções atribuindo-se a esta o uso e fruição de facto sobre as fracções ‘AG’ e ‘BA’ e ao apelante os das fracções ‘AI’ e ‘BB´, ou aleatoriamente uma qualquer fracção habitacional e uma das fracções de estacionamento, assim o declarando e condenado no seu cumprimento”.
Para além do mais, trata-se de pedido nem sequer oportunamente formulado em 1ª Instância, impossível de conhecer em recurso.
E cabe ainda fixar que, tal como as instâncias implícita mas necessariamente entenderam, quando deram como provado que da escritura de fls. 17 consta a declaração de que a fracção AG se destina à residência permanente da ré DD (ponto 7 da lista atrás transcrita), sem reacção do recorrente, se trata de um manifesto e ostensivo lapso de escrita a referência, no texto da mesma escritura, à fracção AA (na parte em que atesta que “os segundos e terceiros outorgantes” disseram “que aceitam a Venda nos termos exarados, destinando-se a fracção letras ‘AA’ à residência permanente do terceiro outorgante”, DD).
É esse sentido que indubitavelmente resulta do contexto da escritura, em si mesma e lida em conjunto com a escritura de fls. 11, e que ressalta da actuação das partes (cfr., por exemplo, as alegações do recorrente, no recurso de apelação) e das decisões das instâncias.
Não se compreende, assim, que o recorrente venha agora sustentar que tal afirmação se referia à fracção AA e que na escritura as partes “declararam que a fracção autónoma ‘AA’ se destinava à residência permanente” de DD (ponto 3. das alegações), dizendo, em consonância, não haver na escritura nenhuma referência ao destino da fracção AG.
Assim sendo, considera-se definitivamente assente que, quando na escritura de fls. 17 se afirma que “os segundos e terceiros outorgantes” disseram “que aceitam a Venda nos termos exarados, destinando-se a fracção letras ‘AA’ à residência permanente do terceiro outorgante”, se referiam à fracção AG.

5. Há assim que apreciar as seguintes questões:
- Nulidade do acórdão recorrido, por “contradição entre os factos constantes dos títulos constitutivos dos usufrutos, dos factos assentes e das respostas à base instrutória e a fundamentação e a decisão proferida”;
- Saber se o autor tem o direito de exigir a entrega das fracções;
- Saber se ocorreu abuso de direito por parte da ré EE;
-Saber se a ré EE deve ser condenada suportar despesas de condomínio e impostos.

Não são aplicáveis ao recurso as alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 303/207, de 24 de Agosto.

6. Relativamente à arguição de nulidade, são inteiramente procedentes as observações constantes do acórdão de fls. 338. As contradições que o recorrente aponta, ainda que se verificassem, não provocariam nulidade do acórdão recorrido, nos termos em que a al. c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil a prevê, pois que se não traduziriam numa contradição da próprio decisão, coerente com os fundamentos em que assentou.
Se o recorrente sustenta esta alegação na referência à fracção AA, trata-se ostensivamente de um lapso, tão somente, cuja correcção poderia ter sido requerida, e que em caso algum afectaria a coerência do acórdão.

7. Resulta da escritura de fls. 11, de 26 de Dezembro de 2002, que J... – S... de C..., Lda., vendeu a AA e a EE “o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo da fracção autónoma designada pelas letras ‘AI’ correspondente ao décimo segundo andar direito, habitação e arrecadação número 11 (…)” e “o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo, da fracção autónoma designada pelas letras ‘BB’ correspondente à terceira cave – parqueamento número 11 (…)” e a BB “a nua propriedade da identificada fracção designada pelas letras ‘AI’ (…)” e “a nua propriedade da fracção designada pelas letras ‘BB’ (…)”.
Da mesma escritura resulta que os outorgantes AA, EE e BB “disseram (…) que aceitam as vendas nos termos exarados, destinando-se a fracção letras ‘AI’ à residência permanente” de BB.
Da escritura de fls. 17, também de 26 de Dezembro de 2002, resulta que J... – S... de C..., Lda., vendeu a AA e a EE “o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo da fracção autónoma designada pelas letras ‘AG’ correspondente ao décimo primeiro andar direito, habitação e arrecadação número 10 (…)” e “o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo, da fracção autónoma designada pelas letras ‘BA’ correspondente à terceira cave – parqueamento número dez (…)” e a DD “a nua propriedade da identificada fracção designada pelas letras ‘AG’ (…)” e “a nua propriedade da fracção designada pelas letras ‘BA’ (…)”.
Da mesma escritura resulta que os outorgantes AA, EE e DD “disseram (…) que aceitam as vendas nos termos exarados, destinando-se a fracção letras ‘AG’ [corrigindo o lapso, nos termos já esclarecidos] à residência permanente” de DD.
Está provado nos autos que BB (juntamente com o réu CC, em condições análogas às dos cônjuges) e DD habitam as fracções de que são proprietárias e, quanto àquela, que usa o parqueamento (fracção BB).
Verifica-se assim que a mesma proprietária vendeu simultaneamente e no mesmo acto o direito de usufruto e o direito de nua propriedade a compradores diferentes, como é legalmente admissível, por essa forma repartindo entre eles os diversos poderes que integram a propriedade plena: “de uso, fruição e disposição” (artigo 1305º do Código Civil).
De entre esses poderes, passaram a integrar a esfera jurídica de AA e de EE os que correspondem ao conteúdo típico do direito de usufruto (uso, fruição e administração, nos termos constantes do artigo 1446º do Código Civil), já que nenhuma restrição foi acordada entre vendedora e compradores, como poderia ter sido (artigo 1445º do Código Civil).
Sucede, todavia, que, com base nesses poderes, AA e EE constituíram a favor de suas filhas o direito de uso e habitação relativamente às fracções (AI e AG) de que são proprietárias (artigo 1484º do Código Civil), assim lhes conferindo o direito (real) de nelas terem a sua residência permanente (artigo 1485º do Código Civil).
Com efeito, “salvas as restrições impostas pelo título constitutivo ou pela lei”, nada impede que o usufrutuário trespasse a outrem o seu direito, ou que o onere (nº 1 do artigo 1444º do Código Civil). No caso, o que se verificou é que, com base nos poderes que lhe cabiam como usufrutuários, AA e EE constituíram a favor de suas filhas direitos reais de menor âmbito, assim onerando o direito de usufruto.
Não pode pois proceder o pedido de condenação das rés BB e DD na entrega das fracções AI e AG.

8. No que toca às fracções BB e BA, correspondentes ao parqueamento, cumpre desde já excluir qualquer possibilidade de condenação na devolução por parte de DD por não figurar entre os factos provados que esta ré utilize a fracção BA (nem, naturalmente, a fracção BB).
Seja como for, o nexo que existe entre as fracções destinadas a habitação (AI e AG) e as correspondentes aos parqueamentos conduz necessariamente a que se considere abrangido pelo direito de uso constituído a favor de BB e de DD a possibilidade de utilização correspondente.

9. Relativamente ao réu CC, está provado que o autor consentiu em que fosse habitar a fracção AI mesmo até antes de ser celebrada a escritura de fls. 11 (ponto 13 da matéria de facto); tanto basta para que também improceda, em relação a ele, o pedido de condenação na entrega das fracções.

10. No que toca à recorrida EE, também não pode proceder nenhum dos pedidos contra ela deduzidos.
Em primeiro lugar, quanto à pretensão de que permita “na mesma medida que ela própria o recorrente use, frua e administre as fracções”, cumpre ter em conta que da matéria de facto provada apenas resulta que a recorrida usa a fracção AG, pois nela vive com a filha DD.
No entanto, a constituição, a favor desta última, do direito de uso como habitação permanente implica que a recorrida EE nem sequer possa permitir que o recorrente use tal fracção.
O mesmo se diga relativamente a todas as outras fracções, uma vez que o pedido formulado pelo autor também as abrange: a constituição do direito de uso a favor das filhas retirou-lhe o poder de as usar – e, naturalmente, de decidir sobre tal uso.
Quanto ao pedido de condenação na contribuição, “com ele, em partes iguais, nas despesas e encargos das fracções”, tal como o acórdão recorrido observou, não estão provados quaisquer factos em que se possa sustentar a condenação pretendida.

11. Finalmente, há que referir ainda que também carece de qualquer suporte a alegação de que a recorrida EE exerce abusivamente o seu direito de usufrutuária. Desde logo porque não é em exercício desse direito que a habita a fracção AG, mas enquanto familiar da titular do direito de uso, abrangida pelo artigo 1487º do Código Civil.
Ainda que assim não fosse, aliás, não há nos autos qualquer prova que sustente tal alegação.

12. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 24 de Setembro de 2009

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relator)
Lázaro Faria
Lopes do Rego