IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MÁ FÉ
Sumário


I. A má fé, para efeitos do art. 612.º-2 do CC, enquanto consciência do prejuízo, pode revelar-se sob a forma dolosa em qualquer das suas formas (directa, indirecta/necessária ou eventual), ou sob a forma de culpa consciente(1). Do conceito deve no entanto excluir-se a “culpa inconsciente”.
No dolo directo, o agente, depois de representar a conduta que pretende tomar, age com a intenção de atingir o efeito ilícito (prejudicar os credores);
No dolo indirecto, ou necessário, o agente, embora represente previamente a conduta que pretende tomar, não tem propriamente a intenção de prejudicar o credor, mas sabe que com a prática do acto ilícito que pretende tomar virá a decorrer esse prejuízo como consequência necessária de tal acto;
No dolo eventual, o agente prevê a possibilidade de o acto que pretende praticar ir prejudicar o credor, mas não obstante age, indiferente ao resultado.
Na culpa consciente, o agente embora continue num estado de dúvida e admita como possível que o acto afecte os interesses dos credores, acredita, apesar disso, sincera mas levianamente, que a consequência prevista não se irá verificar. Ao intervir no acto, assume ainda uma opção intelectual e axiológica, pelo que a consciência do prejuízo ainda se lhe prefigurou.
Na culpa inconsciente, o agente actua sem sequer equacionar que com o seu acto pode prejudicar o credor. O agente não representa sequer a possibilidade de lesar a garantia patrimonial dos credores.

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(1) Acs. do STJ de 2009.02.26 na Revista 09B0347 (Salvador da Costa, Ferreira de Sousa e Armindo Luís); de 2009.03.12 na Revista 09B0264 (Oliveira Vasconcelos, Serra Baptista e Álvaro Rodrigues); e de 2009.06.18, na Revista 152.09.4YFLSB (Alberto Sobrinho, Maria dos Prazeres Beleza e Lázaro Faria.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

A Massa Falida de AA, representado pelo respectivo Liquidatário Judicial, instaurou acção com processo ordinário
contra
1) AA, com sede no lugar e freguesia de V… N… de A…
2) BB, com sede em L…, C…,
3) CC, sede na P… F… S… C…, 3, 4°, freguesia de S… J…, L…,
4) DD, residente em C… P…, apartado 30, 2480-801 J…, P… de M…,
5) EE, com sede em C…,
6) FF e esposa GG, residentes em V… N… de A…,
pedindo
I) - que se declare nulo o contrato de arrendamento celebrado em 2003.03.22 entre a 1.ª e a 2.ª Ré relativamente ao imóvel onde aquela laborava e ao prédio a ele adjacente; e os subarrendamentos realizados em 2001.01.11 da 2.ª para a 3.ª Ré, e os subarrendamentos subsequentes efectuados em 2003.08.01
II - que sejam restituídas à A. as rendas recebidas pela 3.ª Ré, que na altura foram computadas em €12.120,79;
III - subsidiariamente, que seja declarada a ineficácia em relação à A. dos contratos de arrendamento e os subarrendamentos posteriores. e revertam para a A. os imóveis objecto desses contratos.

A 2.ª Ré (BB) contestou, mas esta foi considerada ineficaz em virtude de não vir subscrita por Advogado.
Os 3.º, 4.º e 5.º não contestaram, sendo de notar que os 3.º e 4.ºs RR. só editalmente foram citados
Os 6.ºs RR. contestaram por excepção (em que arguiram a sua ilegitimidade) e por impugnação.- cfr. fls 264

Houve réplica.
No saneador, foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade deduzida pelos 6.ºs RR. (FF e GG), pelo que foram eles absolvidos da instância. (fls. 272)

Oportunamente veio a ser realizada audiência de discussão e julgamento, vindo o Tribunal indicar quais os factos que considerava provados e não provados, proferindo em seguida a respectiva Sentença.
Esta julgou a acção improcedente por não provada e absolveu do pedido os Réus que ainda se mantinham na instância. (1.º a 5.º) – fls. 292 a 307.

Inconformada com a Sentença dela interpôs recurso a Autora – fls. 313- , sendo este admitido como apelação e efeito devolutivo. – fls. 322.
A A. apresentou então as alegações de recurso respectivas- fls. 327 a 340
Contra-alegaram o 3.º e 4.º RR. – fls. 353.

A Relação, no entanto, julgou improcedente a apelação. – fls. 386 a 406.

Continuando inconformada, recorre agora a A. para o Supremo.- fls. 417.
O recurso foi admitido como Revista e com efeito devolutivo. – fls. 424.
A Recorrente apresentou as respectivas alegações.- fls. 429 a 453.
Voltaram a contra-alegar o 3.º e 4.º RR..- fls. 462 a 467.

Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com adjectivação que lhe fora atribuída.
Correram entretanto os vistos legais.


II. Âmbito do recurso

Os recursos não se destinam a dirimir questões novas, não anteriormente suscitadas.
O recorrente deve, por outro lado, exprimir nas “conclusões” das suas alegações de recurso, as questões que pretende ver reapreciadas.- arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC.
As conclusões devem ser sintéticas – art. 690.º-1 do CPC - e não um repositório integral ou quase integral do corpo alegacional, designadamente quando ele é apresentado por forma extensa, como nos presentes autos são apresentadas.
Não há razão no entanto para convidar a Recorrente a fazer a síntese conclusiva que deveria obedecer ao objectivo sintético traçado, porque da sua leitura extravasa clara e objectivamente que o seu recurso incide apenas sobre o facto de se ter considerado improcedente o pedido subsidiário (respeitante à impugnação pauliana), e a única questão suscitada se resume a apreciar se deve considerar-se que a Ré BB actuou de má fé, para efeito de se considerarem preenchidos todos os requisitos para a procedência da impugnação pauliana.

III. Fundamentação

III - A) Os factos

A Relação considerou fixados os factos seguintes:

“1°- Por sentença de 2003.01.29, transitada em julgado em 2003.05.21, foi declarada a falência da Ré, AA (art. 1°).
2°- A Falida de(ra) de arrendamento em 2000.03.22 o imóvel onde laborava e o prédio rústico a ele adjacente, à BB, a qual ficou a pagar uma renda mensal de 100.000$00 hoje, 498,80 € (art. 2°).
3°- A Ré CC, em 2003.08.01 declarou dar de subarrendamento a DD e este declarou tomar de subarrendamento a cave do imóvel sito no lugar da C…, limite da freguesia de V… N… de A…, S…, inscrito na matriz sob o art. 994, pela renda mensal de 750€ (art. 4°).
4°- O liquidatário judicial em 18/06/2003 procedeu à apreensão do imóvel e do prédio rústico e passaram a fazer parte do acervo de bens que constituem a massa falida da AA (art. 5°).
5°- Nos autos de reclamação de créditos apensos aos de falência foram reclamados os seguintes créditos:
-Caixa de Crédito Agrícola de Vila Nova de Anços no valor de 356.332,70€
-Banco Totta & Açores, SA, no montante de 173.559,94€;
- Estado, no montante de 116.522,63€;
- Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social – Delegação de Coimbra, no montante de 111.708,55€;
- BNC, no montante de 34.444,50€;
- Petróleos de Portugal – Petrogal, SA, no montante de 20.125,92€;
- BCP, no montante de 10.418,96€;
- Niaricar, Imobiliária e Gestão, Lda, no montante de 9.975,96€;
- Maria Isabel Rodrigues Carvalho, no montante de 2.370,58€;
- Famari – Fábrica Marinhense de Cartonagem, Lda, no montante de 1.426,56€.
Os créditos referidos são anteriores aos actos referidos em 2) e 3) (art. 6°).
6°- O valor dos imóveis à data do arrendamento referido em 2) ascendia a 125.000€ (art. 9°).
7°- A procuradora substabelecida da sociedade Ré CC, GG, e que foi interveniente no contrato de arrendamento referido em 3) é sócia da falida AA (n°s 12 e 13° da petição inicial).
8°- A GG e marido FF são sócios da falida (art. 14°)
9°- Os créditos reclamados no apenso de reclamação de créditos são anteriores aos actos referidos em 2) e 3) (art. 23°).
10°- Com os actos referidos em 2) e 3) agravou-se pelo menos a impossibilidade de satisfação integral dos créditos reclamados em 5). (art. 24°).
11°- A Ré AA e GG (que havia já sido absolvida da instância), procuradora da Ré CC, tinham conhecimento e consciência, a primeira ao celebrar o contrato de arrendamento referido em 2) (com a R. BB), e a segunda ao celebrar o contrato de subarrendamento referido em 3) (com o R. DD), que prejudicavam os credores reclamantes e pelo menos agravariam a impossibilidade de satisfação integral dos créditos reclamados (art. 27°).
12°- A Ré AA e a procuradora da Ré CC, GG tinham conhecimento do valor dos imóveis e o montante dos créditos dos credores reclamantes (art. 35°).”


III-B) O Direito:

Nos termos do art. 157.º do CPEREF são impugnáveis em benefício da massa falida todos os actos susceptíveis de impugnação pauliana nos termos da lei civil.

A impugnação pauliana mostra-se contemplada no CC. no art. 610.º e ss.
Insere-se entre as garantias dadas ao credor contra os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal.
Para a sua procedência é necessária a conjugação dos seguintes requisitos:
Requisitos gerais (art. 610.º do CC.):
a) Ser o crédito anterior ao acto, ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (eventus damni)
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
Requisitos específicos (art. 612.º-1 do CC.):
a) Se o acto for oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé;
b) Se o acto for gratuito, a impugnação procede sempre, ainda que devedor e terceiro tenham agido de boa fé.
O Acórdão recorrido considerou verificados os dois requisitos gerais.
Entendeu no entanto que não se mostrava preenchido o requisito específico da má fé da arrendatária BB, o que levou à improcedência da acção de impugnação.

Pois bem:

O art. 612.º-2 diz-nos que por má fé se entende a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.

Sendo esta a questão central do recurso, está nela expressa apenas a forma de dolo, em qualquer das suas variantes (dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual), ou incluirá nela as formas de culpa (consciente ou até mesmo a inconsciente)?

Para analisar a questão, vamos por partes:

É pacífico que na interpretação do n.º 2 do art. 612.º do CC. se abriga a forma de dolo, em qualquer das suas formas (directo, necessário ou indirecto e eventual), excluindo-se no entanto o “dolus bonus”(1):
No dolo directo, o agente, depois de representar a conduta que pretende tomar, age com a intenção de atingir o efeito ilícito (prejudicar os credores);
No dolo indirecto, ou necessário, o agente, embora represente previamente a conduta que pretende tomar, não tem propriamente a intenção de prejudicar o credor, mas sabe que com a prática do acto ilícito que pretende tomar virá a decorrer esse prejuízo ( in casu, impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade) como consequência necessária de tal acto;
No dolo eventual, o agente prevê a possibilidade de o acto que pretende praticar ir prejudicar o credor ( in casu, impossibilitando a satisfação integral do seu crédito ou agravando essa impossibilidade), mas não obstante age, indiferente ao resultado.

A consciência do prejuízo abrange indiscutivelmente, todos os casos de dolo.
Como se escreveu no recente Ac. do STJ de 2009.03.12 -09B0264 (Oliveira Vasconcelos, Serra Baptista e Álvaro Rodrigues), in www.dgsi.pt :
“(…) A consciência do prejuízo é, pois, um acto psicológico, pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva.
O devedor e o terceiro adquirente devem não só ter a percepção da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do acto que vão praticar, mas também aperceberem-se que estes podem impossibilitar os credores de obter a satisfação integral dos seus créditos”

Levanta-se no entanto a questão de saber se, para além do dolo, pode o conceito de “má fé” do art. 612.º-2 do CC. satisfazer-se com a existência de “culpa consciente” ou até mesmo de “culpa inconsciente.”

Uma parte da doutrina sustenta que na impugnação pauliana exige que se tenha perfeita consciência do prejuízo, o que induz a considerar que só a actuação dolosa é atendível. (2)
Mas outra parte da doutrina, que tem vindo a ganhar terreno nos últimos tempos, sustenta que o requisito da má fé pode albergar-se em formas em que o agente actue com culpa consciente. (3)
Ainda há por fim, mas em situação minoritária, quem entenda que pode manifestar-se mesmo em situação de culpa inconsciente. (4)

O Prof. Meneses Cordeiro (5) admite-a quando afirma que “(…) A acção pauliana visa proteger a garantia patrimonial dos credores de actos que, sendo censuráveis, a prejudiquem. Permite-se, deste modo, analisar a consciência do prejuízo no seu conhecimento ou no seu desconhecimento negligente (…).”

Pois bem:

Reconhecemos que é efectivamente muito ténue a separação entre dolo eventual e culpa consciente:
No entanto, na culpa consciente, o agente embora continue num estado de dúvida e admita como possível que o acto afecte os interesses dos credores, acredita, apesar disso, sincera mas levianamente, que a consequência prevista não se irá verificar.
Nesta situação, ao intervir no acto, assume ainda uma opção intelectual e axiológica, pelo que a consciência do prejuízo ainda se lhe prefigurou, adoptando por isso uma conduta anti-ética, sem dúvida reprovável.
Finalmente, pode dar-se o caso do agente não ter sequer representado a possibilidade de lesar a garantia patrimonial dos credores.
Nesta situação (culpa inconsciente), o agente actua sem sequer equacionar que com o seu acto pode prejudicar o credor.
A censura ética é já muito mais esbatida, pelo que a maior parte da doutrina e toda a Jurisprudência que conhecemos tem entendido dever excluir essa vertente do conceito jurídico utilizado no art. 612.º, sob pena de se alargar de tal forma o leque das preposições e dos deveres de quem realiza um negócio, que, a exigi-lo, seria inviabilizá-lo na grande maioria dos casos.
Na perspectiva desta tese, e salvo o devido respeito, poderia haver censura até a um limite que poderia esbarrar no absurdo, porque haveria sempre margem para questionar mais alguma coisa em todo e qualquer negócio, designadamente qual a real situação financeira da outra parte, que credores tem, por que razões faz ele o negócio, por que razão se estipula aquele preço, etc… etc…
A realização de qualquer negócio sem que um contraente tivesse o conhecimento real da situação económico-financeira do outro, poderia, em situação limite, demandar a necessidade de aceder a livros, relatórios, balanços, documentos, lista de fornecedores, clientes, produção, vendas, etc…etc, o que, não seria admissível nem exigível, nem muito menos compaginável com ele!

É esta, em linhas gerais, a posição do Supremo nos mais recentes Acórdãos, ou seja, a que sustenta que a má fé para efeitos do art. 612.º-2 do CC, enquanto consciência do prejuízo, se pode revelar sob a forma dolosa em qualquer das suas formas (directa, indirecta/necessária ou eventual), ou sob a forma de culpa consciente (6), mas pondo de parte a alegada consciência do prejuízo por “culpa inconsciente”.

Tecidas estas considerações teóricas (doutrinárias e jurisprudenciais), passemos agora à apreciação do mérito do recurso:

O julgamento tem de ser feito com as provas factuais recolhidas e não com alegações ou suposições feitas mas que não passaram pelo crivo do julgamento de facto.
É só com base nos factos provados que iremos portanto aplicar o Direito.

Pois bem:
De acordo com a prova efectuada, os créditos reclamados na falência são todos eles anteriores à celebração desse arrendamento. (cumprido o requisito do art. 610.º-a) do CC.) – cfr. ponto 9.º da matéria de facto.
E resultou também provado que com esse negócio ficou pelo menos agravada a impossibilidade de os credores obterem a satisfação integral dos seus créditos.- art. 610.º-b) do CC.- cfr. ponto 10 da matéria de facto.
O negócio foi oneroso pois que esse arrendamento foi celebrado contra o pagamento mensal de uma renda de 100.000$00 ( € 498,80).- cfr. ponto 2 da matéria de facto - , e não está provado que essa renda fosse irreal ou simbólica.
No entanto, nos negócios onerosos, a impugnação pauliana só procede se tanto o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé. - art. 612.º-1 do CC.

O art. 158.º do CPEREF prevê várias hipóteses em que se presume a má fé de todos os intervenientes em determinados tipos de negócios.
Nesse quadro, teriam de ser os intervenientes a provar que não agiram de má fé, ilidindo assim a presunção que contra eles funciona.

Feita no entanto a análise de todas essas hipóteses, e perante a matéria dada como provada, só duas poderiam configurar a presunção de má fé por todas as pessoas participantes no negócio do referido arrendamento: as alíneas a) e d) do art. 158.º do CPEREF.
Contudo, como não ficou provada qualquer ligação de pessoas a título de prestação de serviços, de relação laboral, de coligação, de grupo, ou de domínio entre a falida (senhoria) e a arrendatária (BB), fica afastada a presunção estabelecida na al. a) do art. 158.º
E como também não foi sequer alegado que a obrigação assumidas pelo devedor (AA) excedia manifestamente a da contraparte (BB), indicando factos concretos nesse sentido, está posta de lado também a aplicação da alínea d) do mesmo artigo.
Pelo que, inaplicáveis as presunções estabelecidas no CPEREF quanto à má fé, teria ela de ser provada pelo A., segundo as regras gerais, dado que ela é constitutiva do direito de impugnação.- art. 342.º-1 do CC.(7)

Avancemos então mais um pouco:

De acordo com a prova produzida, a falida (AA) tinha a consciência que com esse arrendamento à BB prejudicava os credores reclamantes e/ou pelo menos agravaria a impossibilidade de satisfação integral dos respectivos créditos.- cfr. ponto 11 da matéria de facto – pelo que é absolutamente inquestionável que a falida (AA) agiu com dolo directo, portanto integrando “má fé” no seu comportamento.
Faltava no entanto provar que a Ré BB tivesse também ela essa intenção ou pelo menos consciência que ao celebrar o contrato de arrendamento com a falida estivesse a causar prejuízo ou criando agravamento da garantia dos credores quanto à impossibilidade de cobrança dos respectivos créditos.

Mostra-se inconformada a A. com a resposta restritiva ao ponto 12.º (que excluiu da matéria provada a consciência do prejuízo por parte da R. BB que tal negócio representava para os credores da falida) porque entende que havia elementos factuais expressos no próprio contrato que referiam ter o negócio sido celebrado com carácter de urgência e dado que o arrendamento era feito com cedência total das instalações, maquinismos e trabalhadores.
Sustenta a A. que esse quadro era suficiente para a Ré BB ter consciência do prejuízo, ou seja, a sua “má fé”, nos termos do art. 612.º-2 do CC., o que, como consequência, deveria levar à procedência da impugnação pauliana.

Esse caminho, no entanto, não pode ser aqui trilhado nem assumido:
Por um lado, não foram alegados tais factos nos articulados, apenas surgindo no contrato de arrendamento, pelo que não eram passíveis de ser levados à base instrutória, e, consequentemente, serem objecto da matéria de julgamento;
Por outro lado, mesmo que assim não fosse – o que não se aceita mas apenas se hipotisa por mero dever de raciocínio - , seria necessário estar provado que a Ré BB tivesse conhecimento da real situação económica da Ré AA ou que a devesse conhecer, o que as instâncias não deram como provado.
Ora é nas instâncias que se reúnem os indícios e se conjugam as provas por forma a fazer-se o julgamento da matéria de facto.
Por outro lado ainda, sendo nas instâncias que se usam as presunções judiciais, é nelas que se deve utilizar essa operação mental para, de acordo com os dados e os elementos probatórios disponíveis, se chegar a outros factos, porventura relevantes para a decisão da causa.

Ora, a Relação – tal como de resto a primeira instância já fizera - apreciou os factos alegados e valorou as provas produzidas, não chegando a qualquer resultado a respeito da “consciência do prejuízo” por parte da Ré BB, uma vez que a deu como não provada.

Tendo a Relação considerado não provado tal requisito, e uma vez que em nenhum ponto se mostra violado o direito probatório material - arts. 712.º-6, 722.º-2 e 729.º-2 do CPC - , não pode o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é, substituir-se às instâncias, e ser ele a fazer uso de presunções para alterar a matéria de facto contra o que por elas foi decidido.
É que, na verdade, as declarações contidas no contrato, podendo revestir a forma de confissão na medida em que sejam contrárias aos interesses dos declarantes, não encerravam só por si o reconhecimento por parte da Ré BB que a A., com essa operação prejudicava ou agravaria a impossibilidade de os credores daquela manterem assegurados os seus créditos:
Podendo tal declaração constituir um indício da má situação económica da A., há que ter em conta que existem empresas que encerram ou até cedem as suas instalações, maquinismos e trabalhadores, sem que nada tenham ficado a dever aos credores.

Para que a impugnação pauliana procedesse em negócio oneroso, como foi este, seria necessário que a A. conseguisse provar factos nas instâncias que permitissem sustentar que tanto o devedor (AA) como a arrendatária (BB) tinham agido de má fé, alegando e provando factos concretos nesse sentido

Ao improceder a impugnação pauliana quanto ao primeiro arrendamento, necessariamente tem de improceder a presente acção quanto aos actos seguintes, por falta de verificação dos requisitos previstos no art. 613.º do CC.

Mesmo que se tivesse considerado provado – o que não foi o caso – que a BB havia subarrrendado posteriormente o imóvel à R. CC e esta a outros, a impugnação improcederia quanto a todos, porque a improcedência da primeira impugnação inviabilizava a procedência dos actos posteriores.

Face ao exposto, a Revista terá de ser negada.


IV. Decisão

Na negação da Revista, mantém-se o Acórdão recorrido.
Custas pela Massa falida. Lisboa, 2009.09.29
Mário Cruz (Relator)
Garcia Calejo
Helder Roque



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(1) O “dolus bonus” é aquele que a lei tolera e que representa como simples solércia ou astúcia, reputada legítima pelas concepções imperantes num certo sector negocial, id est, aquele que a lei não considera ilícito, ou seja, as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos, segundo as concepções dominantes do comércio jurídico (art-253.º-2 do CC.)- C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 398.
(2) Antunes Varela, vol.II, 6.ªed., pg. 450.
(3) Almeida Costa, RLJ, 127, pg. 274 e ss. ; Menezes Cordeiro, Da Boa fé em Direito Civil, I, pgs. 492 e ss.; Vaz Serra, RLJ, n.º 75, pg. 221 e ss.., Cura Mariano.
(4) Menezes Cordeiro, ob citada, I, pgs, 492 e ss.
(5) Menezes Cordeiro, “A Boa Fé em Direito Civil”, Vol. I, pág. 496
(6) Acs. do STJ de 2009.02.26 na Revista 09B0347 (Salvador da Costa, Ferreira de Sousa e Armindo Luís); de 2009.03.12 na Revista 09B0264 (Oliveira Vasconcelos, Serra Baptista e Álvaro Rodrigues); e de 2009.06.18, na Revista 152.09.4YFLSB (Alberto Sobrinho, Maria dos Prazeres Beleza e Lázaro Faria).
(7) Ac do STJ de 2009.02.26 e de 2009.06.18, já atrás citados em nota.