1. O título constitutivo da propriedade horizontal estabelece o estatuto do respectivo prédio e, registado, tem efeito erga omnes.
2. Constando do título de constituição de propriedade horizontal que as fracções A e B são armazéns e que as demais fracções são habitação, deve interpretar-se o título como destinando-se aquelas a armazém e as últimas a habitação.
3. Não havendo outros elementos a considerar, o termo armazém deve ser interpretado no seu sentido normal, significando armazém de retém ou armazém de venda por grosso e não local de prestação de serviços, indústria ou comércio que não seja grossista.
Relatório
AA e esposa,
BB
Intentaram contra
BB,
CC,
DD e
A. J. P..., Ldª
Acção declarativa de condenação sob a forma ordinária
Pedindo
. seja decretada a cessação das actividades que vêm a ser desenvolvidas nas fracções “A” e B” do condomínio aqui em causa;
. seja decretado o encerramento dos estabelecimentos existentes naquelas fracções;
. sejam os RR. solidariamente condenados a pagar uma quantia pecuniária – nunca inferior a € 100,00 – por cada dia de atraso no cumprimento da sentença;
Alegando que são donos da Fracção H, destinada à habitação, do prédio em propriedade horizontal que descrevem e que os RR. alteraram o fim a que se destinam as suas fracções – A e B – do referido prédio, que, sendo destinadas a armazém, passaram a desenvolver nelas as actividades que descrevem que causam vibrações, ruídos e cheiros, perturbando-lhes o repouso, tranquilidade e segurança.
Os RR. (menos o terceiro) contestaram por impugnação, referindo, designadamente, a R. CC que a palavra “armazém”, para além de “arrecadação ou depósito de mercadorias ou equipamentos” também tem o sentido de estabelecimento comercial onde se vende por junto ou atacado mercadoria de todo o género”; e a R. A. J. P..., Ldª diz também que a colocação, calibragem e alinhamento de direcções são actividades dependentes da venda de pneus, permitida na fracção.
Efectuado o julgamento foi a acção julgada improcedente, não obtendo também sucesso os AA. na apelação que interpuseram, pedindo agora revista, cujas alegações terminaram com várias conclusões, nas quais suscitam a seguinte
Questão
Constando do título constitutivo de propriedade horizontal que as fracções A e B se destinam a armazém, é possível nelas exercer-se as actividades, respectivamente, de “estabelecimento comercial dedicado à prestação de serviços no campo da montagem de alarmes e auto-rádios para veículos automóveis; e “a venda, montagem, calibragem de pneus e alinhamento de direcção ?
Contra alegou a R. CC que conclui pela manutenção da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Fundamentação
Matéria de facto provada:
1. Encontra-se registada a favor dos AA. a aquisição da fracção “H” do prédio urbano sito na Rua S.Roque da Lameira nº... a ..., no Porto (al. A)
2. Encontra-se registada a favor do 1º R. BB a aquisição da fracção “A” do prédio sito na Rua S.Roque da Lameira n.º ... a ... no Porto correspondente a um armazém no rés-do-chão, com entrada pelo nº ... (al. B)
3. Encontra-se registada a favor da Ré CC a aquisição da fracção “B” do prédio sito na Rua S. Roque da Lameira nº...a... no Porto corresponde a um armazém no rés-do-chão, com entrada pelo nº... (al C)
4. Por acordo escrito celebrado em 4 de Julho de 1994, EE tomou de arrendamento a fracção correspondente ao rés-do-chão do prédio sito na Rua S. Roque da Lameira nº s .../..., com entrada pelo nº ..., no Porto, destinando-se o arrendado a comercialização e colocação de pneus e comercialização de equipamentos hoteleiros, não lhe podendo ser dado outro destino sem o consentimento dos primeiros outorgantes dado por escrito (doc. de fls. 111 a 113) (al. D)
5. Consta do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio, datado de 24 de Setembro de 1997, que as fracções “A” e “B” são:“ Armazém no rés do chão (…) constituída por uma ampla área, instalações sanitárias e logradouro. (…)” (doc. de fls. 23 a 28) (al E)
6. O 3.º R. mantém a funcionar na fracção “A” um estabelecimento comercial dedicado à prestação de serviços no campo da montagem de alarmes e auto-rádios para veículos automóveis (resposta ao artº 1º)
7. A 4.ª Ré tem a funcionar na fracção “B” um outro estabelecimento comercial vocacionado para a venda, montagem, calibragem de pneus e alinhamento de direcção (resposta ao artº 2)
8. O estabelecimento do 3.º R. funciona de Segunda a Sexta-Feira das 09.00 até cerca das 19.00h e ao sábado das 09.00 até ás 13.00h (resposta ao artº 3º)
9. O estabelecimento da 4.ª R. funciona de segunda a sexta-feira das 09.00h até às 19.00 h e ao sábado das 09.00 às 13.00h. (resposta ao art. 4º)
10. Diariamente, entram e saem viaturas e pessoas daqueles dois estabelecimentos (resposta ao artº 5º)
11. O 3.º R. tem, habitualmente, no logradouro das traseiras, estacionados vários automóveis e motos (resposta ao artº 10º)
12. A 4.ª Ré mantém permanentemente armazenados no seu terraço das traseiras várias dezenas de pneus (resposta ao artº 11º)
12. O 1.º R. e a 2.ª R. tem conhecimento de tudo (resposta ao artº 13º)
13. Desde que o prédio foi construído, há 35 anos, funcionaram, na fracção “A”, uma garrafeira aberta ao público e um armazém de tintas; na fracção “B”, um armazém de confeitaria; em 1997/98, funcionavam, na fracção “A” tal garrafeira e na fracção “B” o estabelecimento de pneus referido na resposta ao quesito 2.º (resposta aos artº 14º e 15º)
14. Na sequência do arrendamento referido em 1.4, a 4º R. exerce desde a data indicada – 4 de Julho de 1994 – tal actividade, descrita no acordo, no local (resposta ao art. 18º)
O direito
Como acima se disse a Questão a decidir é a seguinte:
Constando do título constitutivo de propriedade horizontal que as fracções A e B se destinam a armazém, é possível exercerem-se nelas as actividades, respectivamente, de “estabelecimento comercial dedicado à prestação de serviços no campo da montagem de alarmes e auto-rádios para veículos automóveis; e “a venda, montagem, calibragem de pneus e alinhamento de direcção” ?
No direito novo que a propriedade horizontal constitui, revestindo uma “natureza dualista”, com o concurso de dois direitos: propriedade plena sobre as partes privativas e compropriedade “forçada” sobre as partes comuns (1) , existem limitações dos condóminos que não cabem na propriedade em geral.
Assim, não podem os condóminos dar à sua fracção “um fim diverso do uso a que é destinada nem para quaisquer outras actividades que tenham sido proibidas no título constitutivo” (2)
O título constitutivo da propriedade horizontal – que, no caso, teve origem num negócio jurídico unilateral, por escritura pública, levado a cabo pelos respectivos donos de todo o edifício (3) - “é um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal e as suas determinações têm eficácia real” (4)
Nele é especificado o seu conteúdo (5) , não sendo obrigatória a menção do fim a que se destinam as fracções ou as partes comuns, mas se tal acontecer, “prevalece o que resulta do título constitutivo, dada a natureza real – e portanto, a eficácia erga omnes – do estatuto que nele se contém…” (6)
Por outro lado, constando o título constitutivo da propriedade horizontal de escritura pública, que representa uma formalidade ad substantiam – arts. 220.º e 371.º, é através dele que se afere se há ou não alteração do título constitutivo.
Finalmente, como esse facto estava sujeito a registo (7) e a ele foi levado, o fim de cada fracção aí definido é oponível a terceiros (8)
Na escritura de constituição da propriedade horizontal vêm identificadas as fracções do prédio do seguinte modo:
Fracção A – Armazém no rés do chão, com entrada pelo número ... da rua se S. Roque da Lameira, constituída por uma ampla área, instalações sanitárias e logradouro….”
Fracção B - Armazém no rés do chão, com entrada pelo número ... da rua se S. Roque da Lameira, constituída por uma ampla área, instalações sanitárias e logradouro….”
Fracção C – Habitação no primeiro andar….
Todas as demais fracções descritas como “habitação….”
A decisão recorrida conclui que “um declaratário normal, perante este quadro factual(9) – que era o que existia em 24.09.1997 – não poderá deixar de propender para interpretar a expressão "armazém" como dizendo respeito à descrição substantiva do espaço em causa e não como dizendo respeito à actividade/fim a ter lugar, em exclusivo, no espaço em causa”.
Poderia entender-se que esta conclusão é facto, insindicável pelo STJ (10), mas pensamos que não porque o facto donde se parte - que é o da nota 10 supra – não permite essa conclusão; na verdade, o ter “ havido uma garrafeira aberta ao público na fracção “A” e na fracção “B” o estabelecimento de montagem e calibragem de pneus que hoje lá se mantém”, em nada altera o estatuto real do prédio definido pela escritura de constituição de propriedade horizontal e pelos factos levados ao registo: é esse estatuto real que se impõe erga omnes e não as práticas que ali têm sido consentidas; seguir aquele pensamento seria violar estas regras do instituto da propriedade horizontal.
A existência de tais práticas nessas fracções, mesmo emergentes de contratos de arrendamento firmados, podem constituir meras permissões de alguns dos condóminos que, por isso, não vinculam os demais, designadamente, os AA.
E podia ter havido também um erro do conservador ao não fazer constar da escritura pública de constituição da propriedade horizontal que as fracções tinham a afectação de “armazéns e actividade industrial”, como consta da caderneta predial urbana de 1997, junta a fls. 80, erro esse que apenas poderia ser rectificado se se verificassem os respectivos requisitos e no lugar próprio que não aqui.
Como poderia também dar-se o caso de, sendo essa a afectação das fracções, os donos do prédio, aquando da constituição da propriedade horizontal, apenas terem feito constar do título constitutivo da propriedade horizontal a afectação das fracções como “armazéns” que não a de “actividade industrial”.
Também não pode concordar-se com a afirmação da decisão recorrida de que “o substantivo “armazém é frequentemente usado na linguagem comum para designar um local amplo em que podem ser desenvolvidas as mais diferentes actividades, desde o comércio grossista, à indústria e ao estrito armazenamento”.
“Estrito armazenamento”(11) ou “comércio grossista” (12), sim.
“Indústria” é que não.
Aqui o Acórdão da Relação recorre ao sentido usual do termo “armazém” que, em termos de interpretação jurídica, representa um dos métodos, embora o de grau mais baixo (13)
Mas no contexto do sentido usual (14) do termo, nunca ele pode ser usado para significar que um armazém é um local onde pode ser exercida a “indústria”.
E o dizer-se que já ali eram exercidas tais actividades, antes e depois da escritura de constituição da propriedade horizontal e respectivo registo, não permite dar ao conceito de “armazém” um sentido diferente do que ele tem na linguagem comum.
Por isso, recorrendo ao entendimento do “declaratário normal”, colocado na posição do real declaratário (15), nunca um comprador duma fracção para habitação dum prédio constituído em propriedade horizontal, podia deduzir que, constando do respectivo título, que os R/C, sendo “armazéns”, neles se pudesse exercer uma indústria ou um comércio que não fosse o grossista.
É certo, como diz a lei (16) e o Acórdão sob recurso, que não é obrigatório constar do título constitutivo da propriedade horizontal o fim a que se destinam as respectivas fracções, mas se esse fim aí constar, o respectivo condómino não poderá afectá-las a outro fim.
Como acima deixámos dito, a escritura de constituição da propriedade horizontal, ao identificar as fracções, na sua “composição”, refere as fracções “A” e “B” como “Armazém no rés do chão, ….., constituída por uma ampla área, instalações sanitárias e logradouro….”
E define as demais como “habitação….”
Ora, nesse contexto, o homem médio não deixará de concluir que estes andares se destinam à habitação e que o R/C se destina a armazém.
E, não havendo quaisquer outros elementos a coadjuvar a interpretação do documento, nem da matéria de facto provada se induzir noutro sentido, como se deixou também dito, nunca o intérprete pode concluir que num armazém possam funcionar as actividades que ali vêm sendo exercidas:
Na fracção “A” um estabelecimento comercial dedicado à prestação de serviços no campo da montagem de alarmes e auto-rádios para veículos automóveis.
Na fracção “B” um outro estabelecimento comercial vocacionado para a venda, montagem, calibragem de pneus e alinhamento de direcção.
Quer numa quer noutra das fracções indicadas, pratica-se o comércio e a prestação de serviços – montagem de alarmes e auto-rádios para veículos automóveis e a venda, montagem, calibragem de pneus e alinhamento de direcção – e não as actividades que um armazém compreende – armazém de retém e armazém de venda por grosso.
Procede, por isso, a revista (17)
A obrigação de cessação das referidas actividades e de encerramento dos estabelecimentos em causa, constituem obrigações de prestação de facto negativo, sendo, por natureza, infungíveis, como ensina Calvão da Silva (18) pelo que, nos termos do art. 829.º-A do CC, procede também o pedido de condenação dos RR. em sanção pecuniária compulsória que, atentas as circunstâncias do caso concreto, se fixa na quantia peticionada.
Decisão
Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se a decisão recorrida, decretando-se a cessação das actividades que vêm a ser desenvolvidas nas fracções “A” e B” do condomínio aqui em causa, bem como o encerramento dos estabelecimentos existentes nessas fracções.
Condenam-se ainda, solidariamente os RR. a pagar uma quantia pecuniária de €100,00 – por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação em que acabam de ser condenados.
Custas pelos RR., aqui e nas instâncias.
Lisboa, 15.10.2009
Custódio Montes (Relator)
Mota Miranda
Alberto Sobrinho
_____________________
(1)Mota Pinto, Direitos Reais, 1972, pág. 274.
(2) A. e Ob. Cits., pá. 281 e 282.
(3) Escritura de constituição da propriedade horizontal de 24.9.97- ver fls. 23 e sgts.
(4) Henrique Mesquita, RDES, XXIII, nota 41, pág. 94, citado por Aragão Seia, Propriedade Horizontal, pág. 24.
(5) Art. 1418.º do CC (como todos os que doravante se citem sem qualquer menção de origem).
(6) Aragão Seia, Ob. cit., pág. 45, nota 3, em citação, por sua vez de Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 102.
(7) Arts. 2.º, 1, a) e 5.º, 1 do CRP.
(8)Ver sobre a questão, Aragão Seia, Ob. cit., pág. 48.
(9) O quadro factual de que a decisão parte é a seguinte: “Tendo-se provado que à data da constituição da propriedade horizontal já existia e a funcionar, na fracção “A” uma garrafeira aberta ao público e na fracção “B” o estabelecimento de montagem e calibragem de pneus que hoje lá se mantém, não é crível que os então proprietários de todo o prédio (que foram os únicos outorgantes da escritura de constituição de propriedade horizontal ), reservassem os rés-do-chão para uma finalidade que não englobava a actividade para que haviam e estavam arrendados por eles próprios (e que os seus inquilinos, nos termos dos contratos com eles celebrados, lá exerciam)”.
(10) Ver o ac. do STJ de 22.2.1974, BMJ 234, 241, mas nesse acórdão considerava-se que a referida interpretação do documento não devia violar “quaisquer normas legais reguladoras do instituto”.
(11) Ou armazém de retém.
(12) Ou estabelecimento de vendas por grosso.
(13) Interpretação e Aplicação das Leis, Ferrara, traduzida por Manuel de Andrade, pág. 138.
(14) Ac. da RLx de 17.12.1992, CJ XVII, V, pág. 162: “o critério de interpretação dos seus dizeres deve assentar predominantemente no significado corrente das expressões nele usadas, consagrando-se, a esse respeito, uma doutrina objectiva de interpretação”.
(15) Art. 236.º, 1 do CC.
(16) Art. 1418, 1 e 2, a) do CC.
(17) Isto, sem prejuízo de as referidas fracções servirem de armazenamento de retém ou de venda por grosso, como acima se disse.
(18) Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsiva, 1995, pág. 364.