Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
POSSE
DETENÇÃO
Sumário
I) - Por ausência do “animus”, não são havidos como possuidores mas apenas como detentores “os que simplesmente aproveitam da tolerância do titular do direito” – alínea b) do artigo 1253º do Código Civil. II) - O facto de um proprietário de um prédio ter concedido a anuência para a construção de um alpendre no prédio vizinho sem o intervalo legal, não tem como consequência imediata que tenha que se considerar o proprietário desse prédio mero detentor, por tolerância e, por isso, impossibilitada de adquirir um servidão de vistas por usucapião; III) - Para se considerar tal anuência como um acto de mera tolerância era necessário que se tivesse demonstrado que com aquela anuência aquele proprietário não tinha concedido a este último o direito de manter o alpendre em condições de se poder ver e devassar o seu prédio.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 06.01.10, nas Varas Mistas do Funchal, AAmoveu acção declarativa, sob a forma ordinária, contra BB e mulher, CC
pedindo que
• fosse declarada constituída sobre o prédio dos Réus e a favor do seu prédio uma servidão de vistas e, em consequência, fossem os Réus condenados a absterem-se de ofender o exercício de actos de fruição resultantes de tal direito;
• fosse ordenada a demolição das obras mandadas fazer pelos Réus lesivas de vistas adquiridas;
• fossem os Réus condenados a pagar-lhe os prejuízos causados com a execução de tais obras, no valor que se vier a apurar em peritagem a requerer;
• fossem os Réus condenados a pagar-lhe a importância de 2 500, 00 euros, a título de danos não patrimoniais ou morais, causados em consequência da violação do seu direito
alegando
em resumo, que
- é proprietária de um prédio urbano que confina a Norte com o prédio dos Réus;
- desde 1982, dada em que a sua moradia foi construída, usufrui de uma vista para o lado Norte, sobre o prédio dos Réus, para o lado Nascente e parte do lado Sul, situação que se manteve até 2004;
- data em que, após terem comprado o seu prédio, em 2003, os Réus começaram a fazer obras;
- as obras efectuadas pelos Réus, nomeadamente na partilha com o seu prédio, consistiram num muro com cerca de dois metros e trinta de altura, que tapou a sua vista na totalidade para o lado Norte e parte da vista para o lado Nascente;
- e cuja execução implicou a violação da sua propriedade, bem como a remoção de uma caleira do seu prédio e de algumas telhas, que originaram, com as chuvas, inundações no seu prédio, que lhe causaram danos materiais;
- a situação em causa têm-lhe causado danos morais.
Contestando
e também resumo, os réus alegaram que
- a Autora lhes deu autorização para a realização das obras por si executadas;
- a Autora recusou-se a que reparassem a sua casa, em consequência dos necessários estragos que causaram com a execução da sua obra;
- a Autora não possui qualquer alpendre e que nunca lhe foi dada possibilidade de usufruir das vistas.
Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.
Em 08.06.20, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, pela seguinte forma:
“- declarar constituída sobre o prédio dos Réus BB e mulher, CC, identificado em B) dos factos provados, e a favor do prédio da Autora AA, identificado em A) dos factos provados, uma servidão de vistas, materializada no alpendre referido em L) e M) dos factos provados, e, consequentemente, condenou os referidos Réus a absterem-se de ofender o exercício de actos de fruição resultantes de tal servidão de vistas; - ordenar a demolição das obras efectuadas pelos Réus BB e mulher, CC, no seu prédio, identificado em B) dos factos provados, na parte em que impede as vistas do alpendre existente no prédio da Autora AA e em toda a extensão daquele; - condenar os Réus BB e mulher, CC, a pagar à Autora AA uma indemnização pelos prejuízos materiais causados no prédio desta, com a execução das obras levadas a cabo pelos primeiros no seu prédio, junto ao muro de partilha, cujo valor deverá ser fixado em execução de sentença; - absolver os Réus BB e mulher, CC, do pedido formulado pela Autora AA quanto ao pagamento de uma indemnização no valor de 2 500, 00 euros por danos morais”.
Os réus apelaram, sem êxito, pois a Relação de Lisboa, por acórdão de 09.06.23, confirmou a decisão recorrida.
Novamente inconformados, os réus deduziram a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.
A recorrida contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
As questões
Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) - Posse
B) – Abuso de direito
C) – Novo prazo para usucapião
D) – Prejuízos.
Os factos
São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:
A) Em 3 de Agosto de 1979, por escritura lavrada no 1° Cartório da extinta Secretaria Notarial do Funchal, exarada a folhas 67-V, do livro de notas para nº 179B, DD, casado no regime da comunhão geral com AA, ora Autora, comprou a EE e mulher FF, o prédio constituído por uma porção de terreno destinado a construção urbana, com a área de 762 m2, localizado ao Sítio da ........, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, actualmente correspondente ao prédio urbano localizado ao Caminho do ............, nº ..., Sítio da Nazaré, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, com 119,5 m2 de superfície coberta e 642,5 m2 de logradouro, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 3544 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o nº 48943, a folhas 144 do livro B-145 (al. A) dos factos assentes).
B)Os Réus são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, com a área total de 784 m2, sendo 195 m2 de área coberta e 589 m2 de área logradouro, localizado ao Sítio da Nazaré, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 3 413º e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o nº 000000000, onde se encontra registado a favor daqueles pela inscrição 0000000000-AP.4 (al. B) dos factos assentes).
C) O prédio dos Réus confina a norte com o prédio da Autora e do seu marido (al. C) dos factos assentes).
D) Em 14 de Fevereiro de 2005, faleceu DD, marido de AA, ora Autora, deixando como únicos herdeiros por direito de sucessão legítima, o cônjuge sobrevivo, a quem, por testamento, legou o usufruto de todos os seus bens, direitos e acções, e um filho de nome DD (al. D) dos factos assentes).
E) A Autora é cabeça-de-casal da herança deixada por óbito de seu marido DD (al. E) dos factos assentes).
F) A Autora é septuagenária, viúva, e vive só (al. F) dos factos assentes).
G) Em 1981, correu termos na Câmara Municipal do Funchal, um processo de licenciamento para a construção de uma moradia, que viria a ser a casa-de-morada de família da Autora, e seu marido DD, e a que corresponde o prédio urbano identificado em A) (al. G) dos factos assentes).
H) A moradia da Autora foi concluída em 1982 (al. H) dos factos assentes).
I) Altura em que a Autora e seu falecido marido, DD, foram para lá viver definitivamente (al. I) dos factos assentes).
J) Por sua vez, a moradia erigida na porção de terreno confinante a norte com o prédio da Autora e do seu falecido marido DD, foi concluída posteriormente, por volta do ano de 1983 (al. J) dos factos assentes).
L) Tendo ficado na zona mais a nascente do lado correspondente ao alçado norte, com um alpendre parcialmente apoiado no muro de partilha (al. L) dos factos assentes).
M) E, na parte superior deste muro, com uma grande abertura longitudinal para entrada de luz que possibilitava a vista terminando num balcão com um parapeito de 80 cm de altura, que continua mais uns metros para leste, tendo ficado com um logradouro também a leste com vista sobre a quase totalidade do norte, toda a zona nascente e parte do sul (al. M) dos factos assentes).
N) A moradia edificada no prédio confinante a norte com a da Autora e do seu falecido marido DD, não impediu que estes pudessem continuar a desfrutar da excelente vista que sempre tiveram sobre a cidade do Funchal (al. N) dos factos assentes).
O) Em 2003, os Réus adquiriram o prédio confinante a norte com o da Autora (al. O) dos factos assentes).
P) Em 2004, os Réus começam a fazer obras no prédio que adquiriram (al. P) dos factos assentes).
Q) Nessas obras, os Réus mandaram proceder ao prolongamento do anterior logradouro para leste, construindo para o efeito uma laje encostada à partilha e tendo demolido, inclusive, a sua própria varanda de balaustres, a fim de construir essa nova área (al. Q) dos factos assentes).
R) Do lado sul, confinante com o prédio da Autores, os Réus mandaram executar um novo muro à partilha, encostado ao já existente, com cerca de dois metros e trinta e cinco centímetros de altura (al. R) dos factos assentes).
S) Este muro mandado executar pelos Réus, encostado à partilha do prédio da Autora, a sul do prédio daqueles, tapou totalmente a abertura longitudinal que esta havia feito, impedindo a entrada de luz, e a vista que daí se podia usufruir para norte (al. S) dos factos assentes).
T) Bem como a vista toda para norte e parte da vista para nascente que se podia usufruir do balcão (al. T) dos factos assentes).
U) Este muro e o prolongamento do logradouro dos Réus para leste impediram a vista para norte e parte da vista para nascente que se podia usufruir da mencionada faixa de logradouro do prédio da Autora (al. U) dos factos assentes).
V) Iniciaram igualmente os Réus a construção de uma chaminé, que se supõe ser de um “barbecue”, encostado ao muro que tapou as vistas da Autora (al. V) dos factos assentes).
X) Para edificar o muro, os Réus mandaram retirar a caleira, que recolhia as águas pluviais que caíam sobre o alpendre da Autora e uma fileira de telhas (al. X) dos factos assentes).
Z) Por ofício emitido pela Câmara Municipal do Funchal, datado de 09.03.2005, esta notificou o Réu marido para, no prazo de trinta dias, de harmonia com o despacho de 2005.02.24, contados da data da recepção deste, proceder a correcção do muro de vedação para a altura regulamentar l,80 m, conforme art. 9º do Regulamento Municipal e Tabela de Taxas de Urbanização e Edificação Funchal, e repor o telhado e caleira da vizinha de modo a não prejudicar o uso da sua edificação, respeitando os limites das propriedades (cfr. doc. a fls. 42 dos autos - al. Z) dos factos assentes).
AA) - Em 16 de Março de 2005, o Réu marido envia à Autora uma carta solicitando que esta lhe indicasse o dia em que poderia dar início às obras de reposição do telhado e caleira a fim de cumprir o prazo camarário (cfr. doc. a fls. 43 dos autos - al. AA) dos factos assentes).
BB) A Autora respondeu, por carta registada com aviso de recepção, datada de 24 de Março de 2005, informando os Réus de que deveriam de respeitar na íntegra o estipulado pela Câmara Municipal do Funchal (cfr. doc. a fls. 45 dos autos - al. BB) dos factos assentes).
CC) O Réu marido respondeu à notificação referida em Z) através de requerimento, datado de 18.05.2005, onde declarou que:
- o muro de vedação, dado o desnível do terreno e a localização do alpendre da vizinha, tem actualmente a altura de 2,30 m.;
- simplesmente, a caleira da vizinha está a 2,10m, pelo que o exponente apenas tem a altura de um bloco acima do beiral para evitar que as águas pluviais passem para a sua moradia e, igualmente, para não permitir a devassa do imóvel;
- só foram retiradas 2 filas de telha que cobriam o muro da partilha e invadiam a propriedade do exponente;
- o mesmo se diga quanto à caleira, a qual invadia os limites da sua propriedade;
- deste modo, os limites de ambas as propriedades estão perfeitamente definidos. Só não foi “respingado” parte do muro do lado da vizinha (a sul) porque esta impediu os trabalhadores do exponente de o fazer;
- da parte do requerente, existe toda a disponibilidade e vontade em pôr termo a esta contenda;
- o mesmo não se poderá dizer da atitude da vizinha;
- aliás, no dia 13 do corrente mês, os técnicos do Município estiveram no local e fizeram um levantamento da situação.
Assim, não tem o exponente que proceder a qualquer correcção do seu muro, a não ser que a vizinha proceda à correcção das suas ilegítimas obras (alpendre, caleira e telhado) (cfr. doc. a fls. 62 a 64 dos autos - al. CC) dos factos assentes).
DD) Os trabalhadores, encarregues pelos Réus para construírem o muro, sujaram partes do chão do prédio da Autora e do muro de partilha desta (resposta com esclarecimento ao artigo 1º da base instrutória).
EE) Aquando da obra referida em X), caíram telhas da Autora no chão do prédio desta (resposta com esclarecimento ao artigo 2º da base instrutória).
FF) As telhas nunca foram repostas no lugar (resposta com esclarecimento ao artigo 3º da base instrutória).
GG) Não foi dado cumprimento à notificação referida em Z) (resposta com esclarecimento ao artigo 4º da base instrutória).
HH) Com a chuva, a ausência das telhas deu origem a infiltrações de água que danificaram a instalação eléctrica, cujos curto-circuitos inutilizaram o frigorífico, estragando a pintura interior do alpendre (resposta positiva ao artigo 5º da base instrutória).
II) (...) e obrigando, por diversas vezes, a Autora a se levantar durante a noite para evitar que parte dessas águas penetrassem na área interior da habitação (resposta positiva ao artigo 6º da base instrutória).
JJ) A Autora teve e tem despesas com:
- com a limpeza de toda a sujidade que atingiu o prédio desta, nomeadamente, com a remoção de bocados de cimento caídos das obras que lhe sujam o prédio junto à partilha;
- com a reparação da instalação eléctrica (entretanto já efectuada);
- com a compra de um frigorífico novo;
- com a pintura do interior do alpendre;
- com a compra das telhas novas partidas e colocação de todas as removidas;
- com a colocação da caleira, que foi abusivamente retirada(resposta positiva ao artigo 7º da base instrutória).
LL) As obras realizadas pelos Réus têm causado à Autora muita apreensão (resposta positiva ao artigo 8º da base instrutória).
MM) (...) obrigando-a, inclusivamente, a diversos incómodos, como, nomeadamente, a ter que levantar-se durante várias noites, por diversas vezes, para fazer escoar a água da chuva que, entrando pela zona do alpendre de onde aqueles removeram as telhas, lhe ia inundando progressivamente a casa (resposta positiva ao artigo 9º da base instrutória).
NN) Todas estas situações descritas têm originado na Autora um estado permanente de preocupação (resposta restritiva ao artigo 10º da base instrutória).
OO) A Autora e o seu marido, desde a construção da sua casa, têm exercido o direito de vistas na convicção de que exerciam um direito legítimo (resposta positiva ao artigo 11º da base instrutória).
PP) (...) sempre de forma pacífica (resposta positiva ao artigo 12º da base instrutória).
QQ) (...) à vista de todos, dos Réus e dos ante possuidores do prédio que agora é sua pertença (resposta positiva ao artigo 13º da base instrutória).
RR) (...) de forma contínua e há mais de 20 anos (resposta positiva ao artigo 14º da base instrutória).
SS) O Réu marido enviou um trabalhador à casa da Autora para proceder à reposição da caleira e das telhas, sendo que essa colocação não poderia corresponder à situação existente anteriormente dadas as obras realizadas pelos Réus no seu muro de partilha (resposta com esclarecimento ao artigo 21º da base instrutória).
TT) A Autora recusou a entrada do operário (resposta restritiva ao artigo 22º da base instrutória).
UU) O GG, anterior proprietário do prédio dos Réus, concedeu a anuência à Autora para esta construir um alpendre da sua habitação marginando o então seu lote que iria destinar a moradia (resposta positiva ao artigo 25º da base instrutória).
VV) A Autora fechou o referido alpendre com uma armação de alumínio e vidro acastanhado (resposta conjunta aos artigos 26º e 27º da base instrutória).
XX) Há menos de 10 anos, o alpendre foi fechado com vidro e alumínio, inclusivamente na parte que confina com o prédio dos Réus (resposta com esclarecimento ao artigo 28º da base instrutória).
ZZ) Os Réus, através dos seus empregados, levantaram duas fiadas de telha do alpendre da Autora e colocaram-nas sobre o respectivo telhado (resposta positiva ao artigo 29º da base instrutória).
AAA) Com o propósito de voltar as colocar através do prédio da Autora (resposta positiva ao artigo 30º da base instrutória).
BBB) Só que esta impediu os Réus de acederem a sua propriedade (resposta positiva ao artigo 31º da base instrutória).
Os factos, o direito e o recurso
A) – Posse
No acórdão recorrido entendeu-se que se tinha constituído por usucapião uma servidão de vistas a favor do prédio da autora onerando o prédio dos réus porque a autora e o seu falecido marido, “após a conclusão de um alpendre com vista para o norte, sobre o prédio dos réus, mantiveram tal alpendre nessas condições durante mais de 20 anos, de forma pública, pacífica e de boa fé, dele usufruindo quando lhes apeteceu, nomeadamente para contemplarem as vistas para norte sobre o prédio” dos réus.
Estes entendem que a autora não podia adquirir a servirão por usucapião porque não tinha a posse, na medida em que, tendo sido autorizada a construir o alpendre pelo anterior proprietário do prédio dos réus, carecia do chamado “animus possidendi”.
Cremos que não têm razão.
No termos do disposto no artigo 1251º do Código Civil “posse é o poder que se manifesta quanto alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outros direito real”.
Assim para que exista posse, necessário é que haja uma actuação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor – o “corpus”.
E que haja por parte do detentor a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa – o “animus”.
Assim e por ausência deste “animus”, não são havidos como possuidores mas apenas como detentores “os que simplesmente aproveitam da tolerância do titular do direito” – alínea b) do artigo 1253º do Código Civil.
Ora, no caso concreto em apreço, está provado que “a autora e o seu marido, desde a construção da casa, têm exercido o direito de vistas na convicção de que exerciam um direito legítimo” – resposta positiva ao ponto 11º da base instrutória.
Não questionado que está a existência do “corpus”, temos, assim, que também se provou o “animus” e, portanto, a posse.
O facto de o anterior proprietário do prédio dos réus ter concedido a anuência para a autora construir o alpendre – cfr. resposta ao ponto 25º da base instrutória – não tem como consequência que tenha que se considerar a autora mera detentora, por tolerância e, por isso, impossibilitada de adquirir a servidão de vista por usucapião.
É que para se considerar tal anuência como um acto de mera tolerância era necessário que se tivesse demonstrado que com aquela anuência aquele anterior proprietário não tinha concedido à autora o direito de manter o alpendre em condições de se poder ver e devassar o seu prédio – neste sentido, ver Menezes Cordeiro “in” A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 1997, página 60 e Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado, em anotação ao citado artigo 1253º.
Ora e até porque tal facto nem sequer foi alegado pelos réus, não está demonstrado que naquela autorização não estava contido aquele direito.
Antes e pelo contrário, da resposta ao referido ponto 25º da base instrutória o que se pode concluir é que o anterior proprietário do prédio dos réus, ao conceder autorização para a construção do alpendre, concedeu à autora o direito de devassa do seu prédio consubstanciado na invocada servidão de vistas.
Ou seja, da construção do alpendre no limite do prédio da autora com o prédio dos réus ressaltou um sinal visível e permanente de que daquele se podia ver e devassar este, sem haja indícios que tal sinal tenha sido criado por mera tolerância do anterior proprietário do prédio dos réus.
Concluímos, pois, que a autora podia adquirir por usucapião a servidão de vistas que invocou.
B) – Abuso de direito
No acórdão recorrido entendeu-se não existir qualquer abuso de direito por parte da autora ao requerer a demolição do muro porque tal se traduzia no exercício de um seu legítimo direito e porque os réus não lograram provar que foi com base na anuência da autora que realizaram as obras, após licenciamento pela Câmara do respectivo projecto.
Os réus entendem que ao não impedir a obra por meios judiciais e ao fazer intervir o Município do Funchal – entidade administrativa – para obter apenas a redução da altura do muro, a autora confessou aceitar, pelo menos, a construção do muro, pelo que criou legítimas expectativas aos réus que não se opunha à construção do dito muro, agindo assim com abuso de direito.
Cremos que não têm razão.
A noção de abuso de direito foi consagrada no art.334º do Código Civil segundo a concepção objectiva, conforme salienta Antunes Varela ao escrever: “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exercer o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” - Das Obrigações, vol.II, 5ª edição, página 516.
Esta contradição é patente nos actos de venire contra factum propium: são os casos em que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando, por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contra parte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação do contrato - Antunes Varela, ob.cit., página 517.
Conforme sublinha Baptista Machado “in” Tutela de confiança e “venire contra factum proprium” - Obra Dispersa, vol.I, página 385, a ideia imanente a esta proibição é a do dolus praesens, isto é, que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas ponto de referência para, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da conduta actual.
Na decorrência do exposto, enumera aquele mestre, a páginas 415 a 418 da citada obra, três pressupostos para o desencadeamento dos efeitos do instituto:
1º - uma situação objectiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
2º - investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contra parte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que surgirão danos, se a confiança legitima vier e ser frustada.
3º - boa fé da contra parte que confiou: a confiança do terceiro ou da contra parte só merecerá protecção jurídica quando tenha agido de boa fé e com cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico.
Posto isto, vejamos se no caso concreto em preço se verificam estes três pressupostos.
Para que o primeiro requisito se tenha como verificado, necessário era que se demonstrasse que a autora procedeu em termos de criar nos réus a expectativa de que a demolição das obras efectuadas por estes lesivas da servidão de vistas por si invocada jamais seria requerida.
E tendo em conta os princípios gerais de interpretação das declarações ínsitos nos arts.236º, nº1 e 237º do Código Civil, o quantum relevante de credibilidade para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante, tendo em conta o esforço realizado por este na obtenção do factor a que se entrega.
Ora, no caso concreto em apreço, os réus alegaram que antes de iniciarem as obras contactaram a autora, explicando o que iam fazer e que foi com base na anuência desta que as realizaram.
Tais factos foram vertidos para os pontos 17º a 20º da base instrutória que, no entanto, foram todos dados como não provados.
Daqui, pois, não podia advir qualquer confiança para os réus de que a autora não iria requerer a demolição das obras na parte em que impediam a servidão de vistas que invocou nesta acção.
Mas os réus dizem, como acima ficou referido, que a autora, ao lançar mão desta acção judicial só depois da obra concluída, criou neles a legítima expectativa de que não se opunha à construção do muro.
Cremos não ser assim.
É que uma pessoa normal, colocada na posição dos réus, nunca podia confiar que a autora não ia judicialmente requerer o restabelecimento das condições do exercício da servidão de vistas que invocava.
Primeiro, porque o espaço de tempo que mediou entre o início das obras – 2004 – e a data da instauração desta acção é irrelevante para o efeito de os réus criarem uma expectativa que a acção não seria instaurada.
Depois, porque conforme resulta dos factos dados como assentes nas alínea z) e bb), já antes da instauração desta acção a autora havia manifestado o seu inconformismo com a realização das obras efectuadas pelos réus.
Ou seja, os réus deviam ter consciência deste inconformismo e não criar falsas expectativas sobre o comportamento futuro da autora.
Vejamos agora o segundo requisito.
Não existem quaisquer factos que demonstrem que os réus tenham realizado as obras em causa porque confiaram que a autora não se opunha a elas.
Reproduz-se aqui o que se disse a respeito do requisito anterior.
Finalmente e quanto ao terceiro requisito, necessariamente a sua existência está prejudicada pelo que se disse sobre os restantes requisitos.
Face ao inconformismo da autora, os réus não agiram com os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico.
Concluímos, pois, não ter a autora agido com abuso direito.
C) – Novo prazo para usucapião
No acórdão recorrido entendeu-se ser “irrelevante para o efeito da constituição da referida servidão que o alpendre tenha sido fechado com uma armação de alumínio e vidro acastanhada pois não foi alegado e consequentemente não resultou provado que o vidro castanho colocado pela apelada impedisse a vista ou a devassa do prédio dos apelantes, tornando inútil a servidão”.
Os réus entendem que ao fechar o alpendre e a abertura em vidro acastanhado, a autora renunciou e ficou impedida de debruçar-se sobre o prédio dos réus pelo que ao invocar agora a servidão de vistas nessa novas condições, sujeitou-se a um novo prazo para usacapir, ainda não decorrido.
Também não têm razão.
É sabido e como já vem referido nas instâncias, que a servidão de vista não se exerce com o facto de se desfrutarem as vistas sobre um prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho.
Da matéria dada como provada não existem quaisquer factos dos quais se possa concluir que com a construção da “marquise” referida nas respostas aos pontos 26º, 27º e 28º da base instrutória a autora deixou de desfrutar de vistas sobre o prédio dos réus.
E não existem porque os réus nem sequer os alegaram.
Do que se conclui que o facto de a autora ter fechado o alpendre não impediu que continuasse a manter-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio dos réus.
Ou seja, com a construção da “marquise” não houve qualquer alteração substancial das condições em que a autora exercia a devassa sobre esse prédio.
Pelo que não se podia iniciar qualquer novo prazo de usucapião.
D) – Prejuízos
O acórdão recorrido confirmou a sentença da 1ª instância no que concerne à consideração de que foi a conduta dos réus ao retirarem a caleira que existia no prédio da autora e um fileira de telhas que provocou infiltrações de água que ocasionaram os danos invocados pela autora.
Os réus entendem que a sua conduta não foi causal dos prejuízos porque se predispuseram a voltar a colocar as telhas através do prédio da autora, só o não o fazendo porque esta os impediu de acederem à sua propriedade.
Cremos que também não têm razão.
A conduta dos réus, ao retirarem a caleira e as telhas do prédio da autora foi ilícita, porque violadora do direito de propriedade desta sobre o seu prédio.
E foi culposa, porque não devia ter assim actuado.
A questão que se põe agora é a de se saber se desse acto ilícito e culposo resultaram os danos que a autora invoca, sabendo-se que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” – artigo 563º do Código Civil.
Provou-se que os réus tinham o propósito de repor as telhas no telhado do prédio da autora e que esta os impediu de acederem à sua propriedade.
No entanto, esta questão é lateral em relação à causalidade dos danos,
Na verdade e face à matéria que está assente e dada como provada no presente processo, sabemos que tendo iniciado as obras em 2004 – alínea p) dos factos assentes – o réu marido apenas em Março de 2005 solicitou à autora autorização para proceder à reposição do telhado e da caleira – cfr. alínea aa) dos mesmos factos.
Daqui se pode concluir que a omissão de reposição durante esse período se mostrava, face à experiência comum, como adequada à produção dos danos invocados pela autora, havendo fortes probabilidades de os originar.
Tanto mais que não existem quaisquer factos que nos permitam concluir que antes da recusa da autora os danos ainda não se tinham verificado.
Concluímos, pois, pela existência do nexo de causalidade entre a conduta dos réus e a existência dos danos invocados pela autora.
Como acima ficou referido, os réus foram condenados a pagar por esses danos uma indemnização à autora “cujo valor deverá ser fixado em execução de sentença”.
Os réus entendem que tais danos já eram quantificáveis à data da instauração da presente acção, pelo que não era admissível relegá-los para momento posterior.
Também não têm razão.
Na sua petição inicial, a autora alegou que o quantitativo dos prejuízos que alegava ter sofrido pela actuação dos réus não estava ainda apurado, pedindo que esse quantitativo fosse apurado por uma peritagem.
Apesar da oposição dos réus, o pedido foi admitido naqueles termos.
Não se tendo efectuado a peritagem, restou, portanto, o pedido ilíquido, por se desconhecer os factos que permitissem essa liquidez.
Ou seja, está provada a existência de danos, mas não existem elementos para se fixar o seu montante.
Motivo mais que suficiente para que fosse admissível que a fixação deste fosse posteriormente liquidado, nos termos do nº2 do artigo 661º do Código de Processo Civil.
Não é, assim, de censurar a decisão em causa.
A decisão
Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2009
Oliveira Vasconcelos (Relator) Serra Baptista Álvaro Rodrigues