RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL
PROVA
Sumário


I - Para verificar da existência de oposição de julgados, fundamental no recurso para fixação de jurisprudência, importa assinalar que:
- enquanto que no acórdão recorrido o arguido foi submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho Drager, acusando 1,40 g/l, mas, não tendo a 1.ª instância deduzido à leitura efectuada pelo alcoolímetro a margem de erro admissível, o Tribunal da Relação acabou por alterar a matéria de facto provada, descontando ao valor da taxa de álcool no sangue indicada no talão emitido pelo alcoolímetro o erro máximo admissível definido no quadro anexo à Portaria 1556/2007, ou seja 8%, o que deu como resultado uma taxa de álcool no sangue de 1,28 g/l,
- no acórdão fundamento o arguido veio a registar a taxa de 1,49 g/l, mas porque o Tribunal de 1.ª instância deduziu ao valor indicado no talão emitido pelo aparelho a margem de erro correspondente, resultou ter-se considerada como provada uma taxa de 1,38 g/l; no entanto, interposto recurso, o Tribunal da Relação considerou que o valor a ter em conta deve ser o fornecido pelo aparelho, tal como consta do respectivo talão por ele emitido.
II - No presente caso não se está perante uma oposição de acórdãos por força da interpretação contraposta das normas aplicáveis, não obstante ambos terem decidido de forma divergente questões de facto idênticas; a questão vem a traduzir-se, apenas, numa questão de prova.
III - No acórdão indicado como fundamento não se dissente da ideia de que há erros máximos admissíveis para o funcionamento dos aparelhos designados como alcoolímetros, cujas percentagens, de acordo com o teor de álcool no ar expirado, vêm indicadas no anexo ao diploma. Simplesmente considerou-se – ao contrário do acórdão recorrido – que esses aparelhos são técnico-cientificamente fiáveis e credíveis, desde que aprovados pela entidade competente e sujeitos às operações de verificação exigíveis, onde são levados em conta aqueles erros máximos admissíveis.
IV - A partir daí são aptos a darem o valor a considerar para efeitos de prova da taxa de álcool no sangue do indivíduo sujeito ao teste, constituindo mesmo prova legal; se não confia nesse resultado, o sujeito ao teste tem ao seu dispor a contraprovaconsistente numa análise ao sangue destinada a elidir a presunção em que assenta a exactidão do valor fornecido pelo aparelho. Por conseguinte, é sempre no domínio da prova que o problema é colocado, e não em norma que prescreva qualquer comportamento em face dos dados fornecidos pelos alcoolímetros.
V - Assim sendo, como as soluções opostas relativamente a questões fácticas idênticas, não assentaram em qualquer divergência de interpretação normativa, mas no âmbito da produção, interpretação e valoração da prova, rejeita-se o recurso para fixação de jurisprudência.

Texto Integral



I.
1. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto veio, ao abrigo do disposto no art. 437.º do Código de Processo Penal (CPP) interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão da referida Relação, proferido em 20/04/2009 no Proc. n.º 1120-08.9PAPVZ, da 1.ª Secção Criminal, com fundamento em estar ele em oposição com o Acórdão da mesma Relação, proferido em 01/10/08 no Proc. n.º 3774-08, da 4.ª Secção, transitados ambos em julgado, tendo tais acórdãos sido proferidos no domínio da mesma legislação.
Para tanto concluiu a respectiva motivação do seguinte modo:

1.
Do acórdão proferido, nesta Relação, não foi possível, por não ser legal, interpor recurso ordinário.
2.
Porém, porque o referido acórdão se acha em oposição com o Ac deste Tribunal da Relação do Porto, acórdão fundamento tirado neste Tribunal e na 4.ª Secção, no processo n.° 3774/08.
3.
O Acórdão recorrido transitou em julgado em 25.05.09 (cf. doc. 1)
4.
O acórdão fundamento transitou em julgado em 30.10.08 (cf. art. 437.2) (doc.l)
5.
O presente recurso é, pois, atempado, é interposto no prazo referido no art. 3 do art. 437.3
6.
Desde que o acórdão fundamento foi proferido e o momento presente não houve alteração legislativa que interferisse directa ou indirectamente na questão objecto do recurso (o que por maioria de razão significa que, também, até ser proferido o acórdão recorrido tal alteração não ocorreu).
7.
O MP tem legitimidade para interpor o presente recurso, (cf. art. 437. °, n. ° 3 do CPP.).
8.
O acórdão recorrido e o acórdão fundamento acham-se em oposição, nos termos do art. 437° relativamente à mesma questão de direito, assentando em soluções opostas.
9.
A existência de oposição relevante de acórdão pressupõe que os mesmos tenham sido proferidos sobre a mesma questão de direito e sobre factos idênticos no domínio da mesma legislação.
10.
Explicitando, mais pormenorizadamente, a proposição avançada diremos o seguinte para que exista oposição de julgados a que se refere o art. 437.° do CPP exige-se, como conditio sine qua non, que se verifique em um e outro acórdão (oposição de julgados entre acórdãos dos Tribunais das Relações ou/e entre este e outro tirado no Supremo Tribunal de Justiça):
• Identidade entre nas questões debatidas entre ambos os acórdãos ao aplicarem a mesma legislação a situações idênticas.
• Esta identidade tanto se pode traduzir na mesma questão ou questões diversas se, neste último caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos tidos como contraditórios se pronunciaram de maneira oposta acerca de qualquer ponto jurídico neles discutido (isto é: verifica-se oposição ainda quando os casos concretos apreciados apresentam particularidades diferentes, se tal não impede que a questão de direito em apreço nos dois acórdãos seja fundamentalmente a mesma e haja sido decidida de modo oposto).
• Inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação de ambos os acórdãos conflituantes:"4 ASTJ de 12.12.02- P.° 3603/02, in www.dgsi.pt
11.
Damos, também, por adquirido que in casu, expressamente, quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento é afirmado que constitui condição de perfectibilidade do tipo legal da infracção do crime previsto no art.. 292°, n° 1, do Código Penal o seguinte, e citamos:
12.
«Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via público ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
13.
A dúvida contraditória e antagónica coloca-se maxime na definição da legalidade do desconto feito ao resultado da medição, em nome das margens de erro admissíveis nos alcoolímetros.
14.
Isto no busílis interpretativo que tem a ver com o teor da Portaria n.° 1556/2007,de 10.XII, a interpretação/comprensão que um e outro acórdão fazem do mapa que estabelece as margens.
15.
A mesma questão de direito é, pois, base, a génese da oposição de julgados.
16.
A mesma questão de direito que origina o dissídio entre um e outro acórdão reside, apenas, e só, no \nc\so normativo do mapa atrás referido anexo à Portaria n.° 1556/2007.
17.
Estabelecida a manifesta oposição de julgados, apontado o pomo do dissídio, como residindo a nível conceptual na forma como se classifica e como opera, no âmbito da dogmática jurídico-penal, a adição normativa operada pelo mapa quantificado das margens de erro do anexo à portaria n.° 1556/2007, de 10 de Dezembro.
"Não tendo, pois, havido eliminação do número das infracções nem modificação dos respectivos elementos constitutivos da infracção, não se configura qualquer hipótese de descriminalização."
18.
Por estas razões afirmamos, como justificamos supra, que há oposição de julgados, nada obstando ao conhecimento do presente recurso e que os acórdãos em contradição antagónica de julgados, constituam objecto de um recurso extraordinário de fixação de jurisprudência nos termos do art. 437° do CPP.
19.
Porque concordamos com a posição defendida pelo acórdão fundamento e com a sua posição discursiva concreta, na judicativa aplicação da lei ao caso concreto, entendemos que o presente recurso, nesse plano, merecerá provimento.
20.°
Até ao momento ainda não foi publicado qualquer acórdão desse Supremo Tribunal no Jornal Oficial que tivesse estabelecido jurisprudência obrigatória em um ou em outro sentido.
(…)

2. Foram juntas certidões do trânsito em julgado dos acórdãos recorrido e fundamento, aquele tendo transitado em 25-05-2009 e este, em 30-10-2008.

2. O Ministério Público junto deste Tribunal sustentou a existência de oposição de julgados e os demais requisitos de que depende a fixação de jurisprudência.

3. No exame preliminar a que se refere o art. 440.º, considerou-se que o recorrente tem legitimidade, que o recurso foi interposto tempestivamente, mas que não se verifica oposição entre os acórdãos recorrido e fundamento sobre a mesma questão de direito.

4. Colhidos os vistos em simultâneo, juntamente com o do Conselheiro - presidente da secção, o processo veio para conferência, a fim de se decidir a questão preliminar do presente recurso para fixação de jurisprudência (art. 440.º, n.º 3 do CPP).



II.
5. O art. 437.º n.º 1 do CPP exige, como pressuposto do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, que no domínio da mesma legislação o Supremo Tribunal de Justiça profira dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, admitindo-se também o mesmo tipo de recurso relativamente a acórdão proferido por tribunal da relação que esteja em oposição com outro da mesma ou de diferente relação, ou proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, não sendo admissível recurso ordinário.
A esses requisitos (decisões opostas proferidas sobre a mesma questão de direito e identidade de lei reguladora, traduzindo-se na aplicação das mesmas normas, de forma contraditória, à mesma questão de direito), a jurisprudência do STJ tem uniformemente advogado que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem de assentar em julgados explícitos ou expressos sobre situações de facto idênticas.
Ou seja, não basta que a oposição se deduza de posições implícitas, tendo de materializar-se em decisões contrapostas, que não apenas no que respeita aos fundamentos, devendo, além disso, tais decisões versarem sobre questões de facto semelhantes.

«Para que exista a oposição a que se refere o art. 437.º do CPP, torna-se necessário que os acórdãos em confronto assentem relativamente à mesma questão fundamental de direito em soluções opostas e no domínio da mesma legislação, sendo necessário que os mesmos preceitos sejam interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos; e que uma das decisões tenha estabelecido por forma expressa doutrina contrária à fixada na outra, não sendo suficiente que em uma possa ver-se aceitação tácita da doutrina contrária à enunciada na outra; a oposição tem de ser expressa, e não apenas tácita» (Acórdão de 18/9/9 BMJ n.º 409, p. 664 e ss.)
No mesmo sentido vieram a decidir, muitíssimos outros arestos, visto tratar-se de jurisprudência uniforme, como se disse, citando-se, entre eles, os Acórdãos de 7/2/02, Proc. n.º 112/02 – 5.ª Secção; de 11/2/02, Proc. n.º 3075/02 – 3.ª Secção, ambos sumariados nos Sumários de Acórdãos das Secções CriminaisEdição anual do STJ, pgs. 71 e 379 e, mais recentemente, o Acórdão de 10/07/08, Proc. n.º 669/08 – 5.ª Secção.
6. A questão a decidir é, pois, a de saber se os acórdãos recorrido e fundamento corporizam a oposição de julgados por aquela forma explicita ou expressa, no domínio da mesma legislação, e se versam sobre questões de facto idênticas.

6.1. O acórdão recorrido diz respeito a uma decisão do 1.º Juízo Criminal da Póvoa de Varzim, proferida em processo sumário, em que o arguido foi condenado na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses.
A matéria de facto em que assentou tal decisão reporta-se ao dia 4/10/2008, tendo o arguido intervindo num acidente de viação, quando conduzia um veículo ligeiro de mercadorias. Em consequência, foi submetido pela PSP ao exame de pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho Drager, tendo acusado uma TAS (taxa de álcool no sangue) de 1,40 g/l. O arguido agiu voluntaria e conscientemente, sabendo que conduzia sob a influência do álcool e que tal conduta não lhe era permitida.
O arguido, em julgamento, confessou os factos integralmente e sem reservas, pelo que estes foram dados como provados, com dispensa da prova testemunhal arrolada pelo Ministério Público, nos termos do art. 344.º, n.º 2 do CPP, e condenado nos termos sobreditos.
Interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto o próprio arguido, com fundamento em o tribunal da 1.ª instância não ter atendido à margem de erro prevista na Portaria n.º 1556/2007, de 10/12/2007.
Na apreciação do recurso, a Relação veio a considerar que o tribunal de 1.ª instância não podia ter dado como provados os factos imputados ao arguido com base na confissão, pois «não tendo o arguido capacidade para saber qual a TAS de que era portador, mas apenas para saber aquela que foi acusada pelo aparelho, a confissão que a este respeito fez só é relevante na estrita medida da admissão que fez de tê-la acusado quando foi testado.» (…)
E mais considerou que «a confissão (livre, integral e sem reservas) feita pelo arguido só tem pleno valor probatório relativamente a factos dos quais ele tenha/possa ter conhecimento; não tendo ele capacidade para saber a TAS de que era portador, mas apenas aquela que tinha acusado quando foi submetido ao teste de alcoolemia, o tribunal, ao aceitar a confissão, só está vinculado, por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 344.º, a considerar como provado que o arguido acusou a TAS que ele admite ter acusado; logo, a confissão feita pelo arguido, só por si, não obstava a que o tribunal desse como provado que ele era portador de um valor de TAS diferente daquele que constava da acusação.»
O acórdão recorrido começa por referir a legislação aplicável à medição da quantidade de álcool no sangue e à problemática «da eventual dedução das margens de erro admissíveis (EMA) detectadas nos alcoolímetros quantitativos (…)», para, depois, citar extensas passagens de dois arestos da mesma Relação, que servem de sustentáculo à sua tomada de posição.
O problema coloca-se a partir do art. 81.º do Código da Estrada, que define a proibição de condução sob influência do álcool, considerando-se debaixo de tal influência o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue (TAS) igual ou superior a 5g/l, detectada através de um exame específico. Entre 0,5 e 0,8 g/l., o facto constitui contra-ordenação grave (art. 145.º, n.º 1, alínea l) do CE); entre 0,8 e 1,2 g/l., constitui contra-ordenação muito grave (art. 146.º, alínea j) do CE) e a condução de veículo com uma TAS igual ou superior a 1,2 g/l. preenche o tipo legal de crime previsto no art. 292.º do Código Penal (CP), punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber através de outra disposição legal, acrescendo-lhe ainda a pena acessória da proibição de conduzir, nos termos do art. 69.º do CP.
Ora, o teor de álcool no sangue tem de ser apurado por meio de exames, conforme prossegue o acórdão recorrido, sendo que os meios e processos adequados para detectar e comprovar de forma segura a taxa de alcoolemia foi remetida para regulamentação autónoma pelo art. 158.º, n.º 1 do CE.
Essa regulamentação consta da Lei n.º 18/2007,de 17/05, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas.
Os meios aí referidos vêm a traduzir-se nos analisadores qualitativos, nos analisadores quantitativos e na análise do sangue. Os primeiros destinam-se a detectar a presença de álcool no sangue e os segundos, a proceder à sua quantificação.
A análise ao sangue destina-se a servir de contraprova, quando seja requerida, ou para suprir a impossibilidade de realizar o teste por meio de analisador quantitativo.
Os analisadores quantitativos devem obedecer a determinadas características metrológicas fixadas em regulamentação própria e estão sujeitos a aprovação por despacho do presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, precedida de homologação do modelo pelo Instituto Português da Qualidade de Vida – I.P. - IPQ, em conformidade com o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros.
Este Regulamento, aprovado pela Portaria n.º 1556/2007, de 10/12, define o que são alcoolímetros (… “instrumentos destinados a medir a concentração mássica de álcool por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado” – art. 2.º) e os requisitos a que devem obedecer (“Os alcoolímetros deverão cumprir os requisitos metrológicos e técnicos definidos pela Recomendação 126 da Organização Internacional de Metrologia Legal - OIML R 126.” – art. 4.º). No seu art. 5.º designa-se a autoridade competente para proceder ao controlo metrológico dos alcoolímetros – o I.P. – IPQ, que deve proceder, entre o mais, à aprovação do modelo, à primeira verificação, à verificação periódica e à verificação extraordinária. No art. 8.º, referem-se, então, os erros máximos admissíveis nestes aparelhos – os EMA – os quais variam em função do teor de álcool no ar expirado – TAE -, constando de um quadro anexo ao diploma.
A partir daqui e declarando, desde logo, que deve ser deduzida à leitura efectuada pelos alcoolímetros a margem de erro admissível, o acórdão recorrido cita as já referidas extensas passagens de dois arestos da mesma Relação.
O primeiro é o acórdão proferido no âmbito do recurso n.º 2537/08 e o segundo, o acórdão referente ao processo de recurso n.º 5857/08.
Do primeiro interessará reter os seguintes pontos:
- «Os EMA não apresentam valores reais de erro, numa qualquer medição concreta, mas um intervalo dentro do qual, com toda a certeza (uma vez respeitados os procedimentos de medição) o valor da indicação se encontra (…) A definição através da Portaria n.º 1556/2007, de determinados EMA, quer para a aprovação do modelo e primeira verificação, quer para a verificação periódica, visa definir barreiras-limite dentro das quais as indicações dos instrumentos de medição, obtidas nas condições estipuladas de funcionamento são correctas. Ou seja, um alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, utilizado nas condições normais, fornece indicações válidas e fiáveis para os fins legais.» (De um trabalho de MÁRCIA RUSSMAN GALLAS, obtido através da Internet);
- A adição ou subtracção dos EMA aos valores dos alcoolímetros sujeitos a controlo metrológico não tem justificação do ponto de vista técnico-metrológico, dado que, verificada a fiabilidade do aparelho, os seus dados são correctos.
- Do ponto de vista jurídico-penal, porém, há que levar em conta a incerteza que afecta toda e qualquer medição efectuada com os alcoolímetros, acarretando problemas ao nível da determinação e prova da taxa real verificada, sendo que essa incerteza é afirmada e balizada por normas do próprio Regulamento do Controlo Metrológico e, assim, o tribunal não deve ignorar essas margens de erro, em nome dos princípios da culpa e da presunção de inocência, independentemente de o legislador mandar atender àqueles EMA.
- Tais erros máximos admissíveis obstam a que possa aceitar-se, para além de toda a dúvida razoável, a taxa indicada no talão do alcoolímetro quantitativo, devendo aceitar-se, sim, a taxa indicada no alcoolímetro, depois de deduzido o EMA aplicável no caso, pois deve ter-se como razoável e não merecedor de dúvida que o arguido conduzisse, ao menos, com essa taxa.

Do segundo acórdão, importará reter, desde logo, o seguinte:
«O que importa para a punição é a taxa de álcool no sangue e não a da leitura do aparelho. Se por alguma forma for posta em causa a correspondência exacta entre uma e outra, não pode o Tribunal demitir-se de a considerar na apreciação crítica da prova, quedando-se inerte por não haver lei que expressamente preveja essa incongruência.
«Por isso é que consideramos irrelevante que haja ou não norma a prever margens de erro. O que interessa saber é se elas, de facto, existem.»
Depois de transcrever parte de um acórdão da Relação de Guimarães, o aresto em foco acaba por concluir que os alcoolímetros, como quaisquer outros instrumentos de medição, oferecem sempre uma margem de erro que as entidades competentes – no caso, o IPQ – tentam reduzir ao mínimo (a própria lei – portaria 1556/2007 – prevê margens de erros máximos admissíveis). Tais erros devem ser corrigidos, de acordo com a Recomendação da OIML e da Directiva do Director-Geral de Viação a que no texto se faz referência, quanto mais não seja em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Aderindo ao entendimento desses dois arestos, o acórdão recorrido acabou por alterar a matéria de facto provada, descontando ao valor da TAS indicada no talão emitido pelo alcoolímetro o erro máximo admissível definido no quadro anexo à Portaria n.º 1556/2007, ou seja 8%, o que deu como resultado uma TAS de 1,28, em vez de 1,40 g/l, baixando proporcionalmente a medida da pena aplicada. Isto com o voto de vencido de um dos juízes, que entendeu que, face à confissão integral e sem reservas do arguido, haveria que aceitar o valor dado como provado, tanto mais que não foi produzido qualquer outro tipo de prova em julgamento (de resto, dispensada, exactamente por causa da confissão integral e sem reservas) que infirmasse a fiabilidade ou qualidade do alcoolímetro utilizado.

6.2. Quanto ao acórdão indicado como fundamento, este partiu da seguinte factualidade: O arguido conduzia um veículo-automóvel ligeiro de passageiros, no dia 6/01/2008, quando interveio num acidente de viação. Submetido ao teste de álcool num equipamento Drager, 7110 MK IIIP, veio a acusar uma TAS de 1,49 g/l, sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas e que a sua conduta era proibida por lei. Confessou também a sua conduta na audiência de julgamento. No final, o tribunal condenou-o pelo crime de condução sob influência do álcool, depois de ter deduzido ao valor indicado no talão emitido pelo aparelho a margem de erro correspondente, de acordo com a tabela de erros máximos admissíveis anexa à Portaria 1556/2007, de que resultou ter-se considerado como provada uma TAS de 1,38 e não 1,49 g/l.. Na decisão condenatória, para além da referência à Portaria, alude-se a uma tabela da DGV remetida aos tribunais através da Circular n.º 101/2006 do Conselho Superior da Magistratura, «na qual se faz aplicação prática do acima referido ⌠isto é, das margens de erro máximo admissíveis⌡, encontrando-se previsto para cada valor de álcool no sangue, obtido através do aparelho Drager 7110, o valor mínimo a que tal há-de corresponder, ou seja, o valor de álcool no sangue de que, pelo menos, o sujeito ao teste há-de ser portador, deduzida a margem de erro máximo aplicável.»
Interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto, veio este a considerar que o valor a ter em conta devia ser o fornecido pelo aparelho, tal como constava do respectivo talão por ele emitido. Isto, porque os ditos aparelhos são aprovados pelas entidades competentes, de acordo com determinadas regras técnico-metrológicas e submetidos a quatro operações de controlo: a aprovação do modelo; a primeira verificação; a verificação periódica e a verificação extraordinária.
Ora, de acordo com o argumentário da decisão, «os valores concretos apresentados por estes aparelhos podem não corresponder exactamente ao valor real, mas isso é irrelevante uma vez que o seu resultado se situa dentro da margem de erro máximo admissível.» Continuando a desenvolver a sua linha de raciocínio, aduz-se no acórdão que «os EMA apresentados são considerados não a propósito do valor apresentado após cada utilização, mas antes quando o aparelho é aferido para, posteriormente, ser usado pelas entidades competentes.» Depois de considerar que este é o caminho percorrido por todos os aparelhos de medição utilizados para determinar uma qualidade ou quantidade juridicamente relevante», desde os alcoolímetros, aos radares, às balanças e mesmo às máquinas de corte da indústria e máquinas de calibragem, conclui que os resultados apresentados pelos referidos aparelhos têm de ser tidos como rigorosos e fiáveis, uma vez aprovados e submetidos às várias formas de controle técnico que as normas pertinentes prevêem.
Considerou ainda o acórdão em apreço que a detecção e concentração de álcool no sangue foi efectuada por aparelho devidamente aprovado e submetido a teste de verificação periódica, não tendo sido o respectivo resultado posto em causa pelo arguido.
E, a terminar, exara: «A prova resultante do teste de álcool constitui prova legal, porque resulta de aparelho de alta performance tecnológica, sujeito a exames prévios determinantes para a sua aprovação, que oferece características funcionais que garantem que a medição efectuada, observados que sejam os procedimentos concretos na sua recolha são exactos (…). Esta exactidão resulta de presunção elidível mediante contraprova solicitada pelo arguido e cientificamente capaz de a pôr em causa.
Desta forma, considerou-se que a decisão da 1.ª instância enfermava de erro notório na apreciação da prova, pelo que, sendo suprível tal vício na própria instância de recurso, veio a considerar-se para efeitos da prática do crime de condução em estado de embriaguez, o valor fornecido pelo aparelho, mas mantendo-se a pena aplicada na 1.ª instância, por não ter sido dada suficiente relevância para o efeito à discrepância de valores.

7. Como resulta líquido do confronto entre os acórdãos recorrido e fundamento, não estamos em face de uma oposição de acórdãos por força de interpretação contraposta das normas aplicáveis. Isto, não obstante ambos eles terem decidido de forma divergente questões de facto idênticas.
Com efeito, ambos os arestos são concordes em que o normativo indicado como pomo da discórdia – o art. 8.º da Portaria n.º 1556/2007 – estabelece para os alcoolímetros erros máximos admissíveis – EMA – variáveis em função do teor de álcool no ar expirado e que esses erros máximos são definidos por valores que constam do anexo ao diploma. De resto, a norma não prescreve nenhum comportamento a adoptar pelos tribunais, face a esses erros máximos admissíveis.
A questão vem a traduzir-se, apenas, em ambos os casos, numa questão de prova.
Para o acórdão recorrido, a confissão integral e sem reservas feita pelo arguido não podia valer em toda a plenitude, dado que o arguido, como qualquer outro cidadão não “perito”, não podia saber qual a TAS real de que era portador, mas apenas aquela que era indicada no aparelho e constava do talão emitido por ele, significando isto, desde logo, que, para os juízes que assinaram o acórdão, o aparelho não podia ser considerado como absolutamente fiável.
Dessa forma, o Tribunal da Relação passou por cima da referida confissão, desvalorizando-a como meio de prova, ao menos no tocante ao valor relativo à TAS de que o arguido era portador. E, mesmo sem ter havido contraprova pedida pelo arguido em relação ao valor indicado pelo alcoolímetro, ou ter-se produzido a prova indicada na acusação, que acabou por não ser efectuada, por força da renúncia implicada pela confissão integral e sem reservas (art. 344.º, n.º 2, alínea a) do CPP), o Tribunal da Relação, alterou a matéria de facto no ponto em questão, considerando que ao valor da TAS indicado pelo alcoolímetro tinha de ser deduzida a percentagem da margem de erro correspondente indicada na tabela anexa à Portaria acima indicada.
Porém, chegou a esse resultado, não porque tal fosse imposto por qualquer norma substantiva e, nomeadamente a referida norma da Portaria, que, como dissemos, não determina a dedução de qualquer percentagem de erro aos valores indicados pelos alcoolímetros, mas tão-só as margens de erro máximo admissíveis no funcionamento de tais aparelhos. O Tribunal da Relação chegou a esse resultado através de critérios e princípios probatórios. Daí que, significativamente, a certo passo, se expenda o seguinte raciocínio no acórdão recorrido: (…) para concluir qual a concreta TAS de que o arguido era portador, o tribunal tem de se socorrer, para formar a sua convicção, do conjunto da demais prova produzida (na qual, obviamente, avulta o talão emitido pelo alcoolímetro) e apreciá-la com respeito pelos princípios e regras probatórias vigentes no processo penal.
Entre esses princípios, destaca-se o princípio in dubio pro reo, tão insistentemente referido nos dois arestos citados pelo acórdão recorrido, os quais põem a tónica, sempre, numa questão de prova do valor real da taxa de álcool no sangue apresentada pelo indivíduo sujeito ao teste do alcoolímetro. Foi em nome de tal princípio, às vezes também crismado de princípio da «presunção de inocência», que se procedeu ao tão falado desconto da percentagem da taxa de erro referida no art. 8.º da citada Portaria e indicada no seu anexo. Não porque a referida norma o impusesse – repita-se. Num dos arestos citados pelo acórdão recorrido e para cuja argumentação este remete, chega mesmo a dizer-se que o mencionado desconto da indicada percentagem deve ser feito, independentemente de o legislador mandar atender àqueles EMA.
Os erros máximos admissíveis que são indicados no art. 8.º da Portaria e respectivo anexo são, nessa perspectiva, apenas considerados como indícios ou pontos de referência a levar em conta na apreciação e valoração da prova. É significativo que no segundo dos arestos citados pelo acórdão recorrido, se raciocine deste modo: No nosso caso, subtraindo à TAS o EMA, surgem-nos como hipóteses concorrenciais e todas plausíveis no plano das possibilidades, que o arguido pudesse ter uma proporção efectiva de álcool no sangue de qualquer dos valores situados no intervalo entre 1,15 g/l e 1,24 g/l. (…) Estamos, pois, perante uma situação de non liquet relativamente ao facto de o arguido circular com a TAS de 1,24 g/l que lhe foi atribuída. Tanto podia ser essa como outra qualquer num erro máximo (superior ou inferior) de 0,093 g/l (de acordo com a tabela anexa à Directiva do Exmo Sr. Director-Geral de Viação, cuja fonte é a que acima vimos). Nessas situações, “se o tribunal não reúne as provas necessárias à decisão, a falta delas não pode desfavorecer o arguido” – cf. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Vol. I, 213. No processo Penal não existe repartição do ónus da prova, pelo que, de acordo com o princípio in dubio pro reo, a dúvida sobre factos incertos há-de ser valorada a favor do arguido. Por tal motivo considerou-se provado o resultado da leitura efectuado pelo alcoolímetro Seres, mas não provada a existência real de uma TAS de 1,24 g/l. (…), pois não seria de considerar absolutamente rigorosa e fiável a leitura da TAS efectuada pelo aparelho Seres utilizado no presente caso(…)
De resto, para além de critérios de apreciação da prova, princípios relativos à prova e razões de convicção, os citados arestos aludem à Recomendação da OIML e a uma Directiva do Director-Geral de Viação – a mesma a que a decisão modificada pelo acórdão-fundamento também se refere, aí se dizendo, como vimos acima, que a mesma foi remetida aos tribunais através da Circular n.º 101/2006, do Conselho Superior da Magistratura.

8. No acórdão indicado como fundamento, como já foi salientado, não se dissente da ideia de que há erros máximos admissíveis para o funcionamento dos aparelhos designados como alcoolímetros, cujas percentagens, de acordo com o teor de álcool no ar expirado, vêm indicadas no anexo ao diploma.
Simplesmente, ao contrário do acórdão recorrido e arestos nele citados, considerou-se que esses aparelhos são técnico-cientificamente fiáveis e credíveis, desde que aprovados pela entidade competente e sujeitos às operações de verificação exigíveis, onde são levados em conta aqueles erros máximos admissíveis. A partir daí, tornam-se aptos a darem-nos o valor a considerar para efeitos de prova da taxa de álcool no sangue do indivíduo sujeito ao teste, constituindo mesmo prova legal. Se não confia nesse resultado, o sujeito ao teste tem ao seu dispor a contraprova consistente numa análise ao sangue destinada a elidir a presunção em que assenta a exactidão do valor fornecido pelo aparelho.
Por conseguinte, é sempre no domínio da prova que os problemas são colocados, e não em norma que prescreva qualquer comportamento face aos dados fornecidos pelos alcoolímetros.
Acresce que, no acórdão indicado como fundamento, também ao contrário do acórdão recorrido, considerou-se que a confissão integral e sem reservas do arguido era válida e só podia significar a concordância dele com a TAS indicada no talão emitido pelo aparelho. Esse valor tinha de valer por não ter sido impugnado, nomeadamente por contraprova pedida pelo arguido. E mais do que isso: tal valor foi confessado integralmente e sem reservas pelo mesmo arguido, o que levou a dispensar a restante prova indicada na acusação.
Daí que, com base na existência de erro notório na apreciação da prova, o Tribunal da Relação tivesse alterado os factos dados como provados na 1.ª instância.
Tudo isto denuncia claramente que nos movemos, em ambos os acórdãos postos em confronto, no âmbito dos meios de prova, dos meios de obtenção de prova, dos princípios relativos à produção, validação e aferição da prova e da matéria de facto a considerar como provada e não provada, de acordo com a prova produzida e os critérios e princípios que devem reger a matéria da prova no processo penal.
Daqui se conclui que, se há soluções opostas relativamente a questões fácticas idênticas, elas não assentam em qualquer divergência de interpretação normativa, mas no âmbito da produção, interpretação e valoração da prova. Tal equivale a dizer que não ocorre a invocada oposição de acórdãos.


III.
9. Nestes termos, acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça em não julgar verificada a oposição de acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito e, em consequência, rejeitam o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público (arts. 437.º, n.º 1 e 441.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal).

Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Dezembro de 2009
Os Juízes Conselheiros
Artur Rodrigues da Costa (Relator)
Arménio Sottomayor