PRESUNÇÕES JUDICIAIS
FACTOS ESSENCIAIS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
PENHORA
OPOSIÇÃO
BENS IMPENHORÁVEIS
PESSOA COLECTIVA
UTILIDADE PÚBLICA
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - Não é admissível por presunção judicial considerar-se provado um facto concreto, essencial à sorte do litígio, que carece de ser alegado para poder ser tomado em consideração pelo Tribunal (arts. 349.º e 351.º do CC e arts. 264.º, 514.º, 515.º e 665.º do CPC).
II - Na presunção judicial (arts. 350.º e 351.º do CC) o facto desconhecido consiste no facto a provar e não no facto que não foi alegado.
III - Não estão isentos de penhora os bens de pessoas colectivas de utilidade pública quando não se demonstre encontrarem-se especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública, cumprindo ao executado o ónus de provar essa especial afectação (arts. 342.º, n.º 2, do CC e 823.º do CPC).

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA recorre para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de Lisboa proferido nos autos de execução 642/04 com o valor de 873.079,27€ o que faz nos termos do artigo 754.º/2 por considerar que o acórdão está em contradição com os infra indicados proferidos no domínio da mesma legislação não havendo sido fixada jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça.

2. A disposição que está em causa é o artigo 823.º/1 do C.P.C. com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março:

Artigo 823.º
Bens relativamente impenhoráveis

1. Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas púbicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.

— O Litígio

3. AA deduziu execução contra BB Futebol Clube tendo o executado deduzido oposição à penhora de dois imóveis alegando que “ sobre todo o seu património, móvel e imóvel, já recaem penhoras, nada mais havendo para ser penhorado” (artigo 2.º); mais alegou - artigo 8.º - que “ o ora executado, BB Futebol Clube, é uma pessoa colectiva de utilidade pública, como se pode comprovar pela certidão da Conservatória do Registo Comercial do … (doc. n.º1) sendo que e por esse facto, não podem ser penhoradas as verbas requeridas no presente processo segundo o artigo 823.º do Código de Processo Civil”

4. O exequente, na resposta ao incidente de oposição, alegou, para além do mais, o seguinte:

- Que admite, sem discussão, que o executado é uma pessoa colectiva (associação) de utilidade pública.

- Que isso, só por si, não isenta de penhora os bens do executado, cumprindo-lhe alegar e provar o seguinte:

a) Quais os fins de utilidade pública que prossegue.
b) Que os bens penhorados se encontram “ especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública” (cf. artigo 823.º/1 do C.P.C.).

5. Foi proferida sentença que julgou procedente a oposição à penhora ordenando o levantamento da penhora sobre os prédios descritos identificados.

Referiu a sentença:

"No caso dos autos, alega o exequente que o executado não alegou que os bens penhorados se encontrem afectos a fins de utilidade pública.
Ainda que se admita que o executado não tenha afirmado concretamente qual o uso dado aos imóveis penhorados, não se pode ignorar que resulta da prova documental junta aos autos de execução apensos, nomeadamente, da certidão predial relativa aos prédios penhorados que os mesmos são balneários e aquecimento e recinto desportivo com campos de jogos e bancadas. Equipamentos que pela sua natureza são necessariamente usados para prossecução das finalidades do executado, pessoa colectiva de utilidade pública.
Finalidades essas que são, como resulta da factualidade provada, a promoção de educação física dos seus associados e desenvolvimento entre eles da prática dos Desportos e proporcionar--lhes meios de distracção e cultura e que não poderão ser prosseguidos sem os equipamentos penhorados.
Tais factos, que resultam dos autos, não podem ser ignorados pelo julgador sendo de sufragar o entendimento do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2-3-2006 […] Tal facto é notório, não carecendo de alegação".

6. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, por maioria, a decisão de 1ª instância, reconhecendo

"que o executado é parco na sua alegação no que concerne à explicitação de que os imóveis em questão, instalações onde leva a cabo a prossecução de actividade desportiva, estejam afectos, sejam usados para essa finalidade […] E, por outra feita, a natureza inextrincável entre um edifício destinado à prática de desportos, com espaços para o efeito, balneários, secretaria e outros conexos, e o desenvolvimento da actividade desportiva de interesse público, acaba por redundar no célebre definir o definido pela definição […] É dever do Tribunal socorrer-se , de todos os elementos trazidos aos autos, e de sobremaneira, quando a apreciação da questão tem por detrás um documento autêntico, como é o caso do registo predial […]. Nessa medida secundamos a decisão de 1ª instância que se socorreu desse suporte documental para concluir, que os imóveis servem a actividade e o interesse público da actividade prosseguida pelo executado, e decorrentemente, que a utilidade pública resulta do uso do próprio bem e que é essa a sua afectação e não outra"

— A admissibilidade do recurso

7. O exequente, para fundamentar o recurso de agravo para o Supremo Tribunal, sustentou que

"foi decidido no acórdão recorrido que não é necessário que o executado, associação civil com o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública ( por via de reconhecimento administrativo que não afecta a natureza dos respectivos bens) alegue e prove os factos concretos que demonstrem a afectação especial dos bens penhorados à realização dos fins que prossegue e que foram reconhecidos como de utilidade pública […] Interpretou, assim, este Tribunal , de acordo com a posição que fez vencimento, a referida norma naquele sentido[…] Tal solução […] está em flagrante oposição com muitos outros acórdãos anteriores […)”, a saber:

- Ac. da Relação de Lisboa de 11-5-2004 in www.dgsi.pt (P. 2849/2004 - 7 2849/2004 - 7 ª secção) onde se concluiu:

I- Em princípio, os bens da CC (enquanto pessoa colectiva de direito público) são penhoráveis ( a não ser que se trate de bens do domínio público), apenas deixando de o ser quando estiverem afectos à realização de um fim de utilidade pública, a qual tem de resultar do uso que esteja a ser dado ao próprio bem
II- Compete à executada (CC) para evitar a penhora alegar e provar que os seus bens estão afectos à realização de um fim de utilidade pública.

- Ac. da Relação de Lisboa de 13-7-2005 (P. 4399/2005 - 8 4399/2005 - 8 ª secção) in www.dgsi.pt e também na C.J.,2005, Tomo IV, pág. 82/83 onde se concluiu:

I- Os saldos bancários podem, inclusivamente, não se destinar, de momento, a nenhum fim específico, ou seja, a utilidade pública tem de ser aferida no tocante ao uso a que especificamente se destina o bem a penhorar.
II- No âmbito da execução, e não tendo o oponente alegado um único facto concreto que permita inferir que os saldos bancários visam a aplicação em determinado projecto de utilidade pública, prevalece a sua penhorabilidade, atento o disposto no já mencionado artigo 823.º/1 do C.P.C.

- Ac. da Relação de Évora de 12-1-2006 (P. 1845/2005 - 2 1845/2005 - 2 ª secção inwww.dgsi.pt onde se conclui:

I- No que respeita à penhora de bens do domínio público existe uma salvaguarda absoluta - impenhorabilidade total - assente, obviamente, na presunção juris et de jure de que tais bens estão , pela sua própria natureza, afectos exclusivamente a fins de utilidade pública
II - Já quanto aos bens do domínio privado do Estado e demais pessoas colectivas públicas só os que estiverem afectos a fins de utilidade pública beneficiarão da prerrogativa da impenhorabilidade.
III- A natureza destes bens não permite concluir ou presumir a afectação exclusiva ou sequer predominante a fins de utilidade pública e daí que, se pretender obter o levantamento da penhora desses bens, incumba ao executado embargante , beneficiário da impenhorabilidade relativa, a alegação e prova ( trata-se de matéria de excepção e, como tal, o ónus da prova cabe a quem aproveita - artigo 342.º do Código Civil da afectação concreta dos bens a fins de utilidade pública.

- Ac da Relação do Porto de 22-5-2006 (P. 1458/2006 ) também in www.dgsi.pt assim sumariado:

I- A lei - artigo 823.º, n.º1 do Código de processo Civil - ao isentar de penhora os bens de pessoas colectivas de utilidade pública, especialmente afectados à realização desses fins, consagra uma impenhorabilidade relativa
I- A prova dessa afectação especial cabe à pessoa colectiva, caso deduza embargos de executada à penhora de bens que considera impenhoráveis.

8. São aplicáveis ao caso os artigos 754.º e 923.º do C.P.C. com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março (que entrou em vigor no dia 15-9-2003) e, por isso, o presente recurso é admissível ressalvado que está pelo artigo 923.º o disposto no artigo 754.º/2 ambos do C.P.C.

9. Não se suscitando dúvida sobre o trânsito em julgado da jurisprudência mencionada nem sobre a questão havida em contradição face à jurisprudência indicada, o recurso foi admitido.

— Factos provados

1. O BB Futebol Clube é uma pessoa colectiva de utilidade pública matriculada com o n2…. na Conservatória do Registo Predial e Comercial do … e que tem por fins "Promover a educação física dos seus associados, desenvolver entre eles a prática dos Desportos e proporcionar-lhes meios de distracção e cultura " (cf. certidão de fls. 5 a 8 cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
2. Nos autos de execução apensos foram penhorados em 25.07.2007 os seguintes prédios:
- prédio urbano situado na Rua BB Futebol Clube, BB, composto de balneários e aquecimento, descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o nº …, da freguesia do …, inscrito na matriz sob o artigo nº. 1205.
- prédio urbano situado na Rua BB Futebol Clube, …, composto de recinto desportivo com campos de jogos e bancadas, descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o nº. 680/20060310 680/20060310 , inscrito na matriz sob o artigo 1207, tudo conforme certidão predial junta a fls. 31 a 33 dos autos de execução apensos.
3. Na certidão da Conservatória do Registo Predial relativa a estes prédios consta o registo de penhoras anteriores à efectuada nos autos de execução em apreciação

­ ­— Conclusões do recorrente

1ª- De acordo com as normas processuais às alegações do recorrente, o recorrido pode responder e ,de facto, o recorrido BB Futebol Clube fê-lo mas não autoliquidou, com devia, a taxa de justiça devida. Tais alegações, por força e em obediência ao comando do artigo 690.º-B/1 e 2 do C.P.C., então em vigor, foram desentranhadas, não podendo, assim, fazer parte dos autos e ser invocadas para efeitos de apreciação e decisão do recurso, como fez o Tribunal da Relação de Lisboa
2ª- O Tribunal, embora não estando sujeito em matéria de interpretação e aplicação do direito ao invocado pelas partes, levou em consideração o que não está nos autos ou , estando-o, não devia estar, violando, além doutros, a norma referida na conclusão anterior, o que ou é lapso manifesto, que pode ser corrigido, ou é violação de lei, que inquina a decisão final (artigo 201. do C.P.C.) por influir na decisão da causa.
3ª- O Tribunal da Relação não apreciou a matéria alegada e concluída nas conclusões do recurso no que tange ao facto de todo o património do devedor estar penhorado, matéria omitida, que está provada e tem interesse para a decisão da causa; tal omissão implica a nulidade da decisão por força do disposto no artigo 668.º/1, alínea d) do C.P.C.
4ª- Essa factualidade é relevante em ordem a compreender as razões por que o executado se inibiu de alegar que os bens penhorados se encontravam “especialmente afectados à realização dos fins de utilidade pública”.
5ª- Estando todo o património do executado penhorado, não tem ele quaisquer condições jurídicas para exercer actividades própria do escopo social que impliquem a utilização dos bens penhorados, os quais, como é consabido, estão na posse de terceiro(s) que são seus fiéis depositários (cf. artigo 840.º, 848.º/1 e 4, designadamente).
6ª - O executado não alegou, directa ou indirectamente, qualquer facto susceptível de comprovar a especial afectação de bens penhorados à realização dos fins de utilidade pública, nem sequer quais os fins que prossegue susceptíveis de serem relacionados com os bens em causa, que integram tal património.
7ª- Compete ao executado alegar e provar, por se tratar de matéria de defesa por excepção e, por isso, lhe caber o ónus da prova , que os bens penhorados estão afectados à realização do fim ou fins de utilidade pública, afectação que deve resultar directamente do uso dado aos próprios bens.
8ª- [omissis]
9ª- Não tendo sido alegados os pertinentes factos, não é possível substituir o executado por invocação do teor da descrição registal dos prédios , a qual não permite confirmar um facto desconhecido, que é o de saber se existe especial afectação dos mesmos à realização de fins de utilidade pública; além disso,
10ª- A descrição dos bens penhorados para fins registais não permite concluir ou presumir a afectação referida porquanto os bens podem não ter qualquer uso ou tê-lo completamente alheio aos fins de utilidade pública e só a prossecução destes pode isentar de penhora os bens que lhe estejam especialmente afectados
11ª- O tribunal apenas pode servir-se dos factos articulados pelas partes e aplicar o direito aos que estão provados.
12ª- A sentença recorrida, por deficiente interpretação e aplicação, violou flagrantemente o disposto nos artigos 821.º, especialmente o 823.º e o n.º1 e 664.º do C.P.C. , artigos 334., 342.º/2, 349.º, 351º e 817.º do Código Civil.

— Questão a resolver

10. A questão a decidir pode sintetizar-se assim: no âmbito de execução para pagamento de quantia certa, estando em causa a penhora de bens imóveis de pessoas colectivas de utilidade pública e não tendo o executado/oponente alegado que tais bens se encontram especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública, pode o Tribunal, com base na descrição predial, concluir que se verifica tal afectação, ou seja, concluir um facto concreto - a efectiva utilização dos bens - que não foi alegado.

— Evolução legislativa

11. A regra é a da sujeição à execução de todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda (artigos 601.ºdo Código Civil e 821.º do C.P.C.).

12. A lei consagra, porém, a impenhorabilidade de certos bens: total ou absoluta (artigo 822.º), relativa (artigo 823.º) e parcial (artigo 824.º).

13. Interessa-nos aqui o já mencionado e transcrito artigo 823.º/1 na parte em que se refere à isenção de penhora dos bens de pessoas colectivas que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.

14. Este preceito sofreu alterações desde a redacção do Código de Processo Civil de 1939, referindo-se no então correspondente artigo 822.º que não podiam ser apreendidos para a execução

1º Os bens do Estado e das colónias, salvo se a execução for por cousa certa ou para pagamento de dívida que tenha privilégio ou hipoteca;
2º Os bens de todas as outras pessoas morais afectados ou aplicados a fins de utilidade pública, salvas as excepções estabelecidas no número anterior; depois, com o Código de Processo Civil de 1961, o artigo 823.º/1, alínea a) passou a consagrar expressamente que estão igualmente isentos de penhora
a) Os bens do Estado e das províncias ultramarinas, assim como das restantes pessoas morais quando afectados ou aplicados a fins de utilidade pública, salvo se a execução for por coisa certa ou para pagamento de dívida com garantia real.

Lopes-Cardoso sobre este preceito escreveu que

"é notável a distinção entre a inapreensibilidade dos bens do Estado e das províncias ultramarinas, e a dos bens pertencentes às restantes pessoas morais: - enquanto os primeiros são sempre relativamente inapreensíveis, qualquer que seja o fim a que se destinem, os das outras pessoas morais, inclusive os dos corpos administrativos, só estão isentos de apreensão, mesmo relativamente, quando estejam afectados a fins de utilidade pública. Quer dizer, as coisas particulares pertencentes aos corpos administrativos, as coisas do seu domínio privado, ao contrário do que sucedia perante o Código de 1876, podem, sem restrições, ser apreendidas para a execução, desde que não estejam afectadas ou aplicadas a fim de utilidade pública; as coisas do Estado ou das províncias ultramarinas só podem ser apreendidas nos caso exceptuados pela alínea a) do n.º1 do artigo 823.º” (Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 1964, 3º edição, pág. 325/326).

15. O preceito foi alterado, afastando-se a crítica de Lopes-Cardoso, com o Decreto-lei n.º 47690, de 11 de Maio de 1967 e depois com o Decreto-Lei n. 368/77, de 6 de Setembro passando a dizer-se que estão também isentos de penhora

a) Os bens do Estado e do território de Macau, assim como das restantes pessoas colectivas, quando se encontrem afectados ou estejam aplicados a fins de utilidade pública, salvo se a execução for por coisa certa ou para pagamento de dívida com garantia real.

16. A partir da revisão de 1995/1996 a lei alterou a expressão “quando se encontrem afectados ou estejam aplicados a fins de utilidade pública” pela expressão “ que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública” que se mantém no texto actual.

17. Por via da primeira expressão tinha-se em vista esta distinção no que respeita às pessoas morais (pessoas colectivas, salvo as sociedades):
1) ou os bens se acham afectados ou aplicados a fins de utilidade pública, como os edifícios onde funcionam serviços municipais, paroquiais ou de utilidade geral; 2) Ou os bens são fruídos com os de qualquer outro património particular. Quanto aos primeiros, o regime é precisamente o mesmo que o dos bens pertencentes ao Estado ou às colónias: só podem ser apreendidos nos dois casos excepcionais previstos no n.º 1 do artigo 822.º; quanto aos segundos, não gozam de qualquer espécie de isenção: estão sujeitos ao regime geral e comum, podem ser apreendidos nos mesmos termos em que o podem ser os bens de qualquer proprietário particular ( artigo 822.º,nº2)” Alberto dos Reis, Processo de Execução, I, pág. 366).

18. A questão que se suscitou, face à redacção do Código de 1939, foi a de se afastar a possibilidade de penhora de bens do Estado e de pessoas colectivas públicas afectados ou aplicados a fins de utilidade pública em caso, designadamente, de execução hipotecária - que aqui não vem ao caso - cumprindo salientar que, com essa expressão, se tinha em vista a utilização efectiva desses bens.

19. Assim , referia Marcello Caetano:

"A admitir-se a penhorabilidade de alguns bens do Estado ou das pessoas públicas deveria o legislador basear-se em distinção análoga.
Os edifícios públicos e os prédios rústicos afectados a serviços públicos, seriam considerados indisponíveis, enquanto desempenhassem essa função e, consequentemente, não poderiam ser hipotecados ou constituídos em garantia de outra espécie, nem penhorados" (O Direito, Ano 74.º, Janeiro de 1942, pág. 100).

20. Defendia-se que os bens do Estado ou de pessoas públicas não deveriam ser susceptíveis de penhora em caso algum enquanto desempenhassem função de utilidade pública, o que não acontecia à luz da lei então vigente, designadamente no caso de execução hipotecária.

21. A evolução legislativa não se orientou nesse sentido, mas no da equiparação dos bens do Estado e das demais entidades para efeitos de isenção de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, desde que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública. Actualmente, os bens do Estado e pessoas colectivas públicas não só não estão isentos de penhora no caso de execução para pagamento de dívida com garantia real, como tão pouco estão isentos se não se encontrarem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública, regime que se aplica igualmente a outras entidades designadamente às pessoas colectivas de utilidade pública.

— Interpretação da expressão bens de pessoa colectiva “ que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública”

22. Não se afigura que a distinção vocabular “ bens... afectados ou aplicados a fins de utilidade pública”, terminologia feliz nas palavras de Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 1969, 8ª edição, pág. 895), tenha perdido o alcance que lhe era dado a partir da substituição operada pela Revisão de 1995/1996 que passou a utilizar a expressão “ bens...que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública”.

23. Tem-se nos referidos casos seguramente em vista “ que os bens […] estejam especial e efectivamente afectados à (actual) realização de fins de utilidade pública” Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil,1999, Almedina, pág. 546), impondo-se, assim, apurar a efectiva utilização que é dada aos bens.

24. Se o edifício público ou o prédio rústico não desempenharam função para a qual se destinaram ou deixaram de a exercer definitivamente, não se vê que fique afastada a regra da penhorabilidade.

25. No entanto, pode a afectação do bem resultar da lei e, em tal caso, poderia sustentar-se que, independentemente da efectiva utilização, o bem devia ter-se por impenhorável. Já se decidiu que, mesmo que a afectação derive da lei, ela não podia produzir efeitos em relação a dívidas anteriores pois isso diminuiria unilateralmente as garantias dos credores e iria contra o princípio da confiança dos cidadãos face ao poder legislativo (Ac. da Relação de Coimbra de 22-9-1992, C.J.,4, pág. 73).

26. A afectação de bens à realização de fins de utilidade pública ainda quando resultante da lei (veja-se o caso referido no Ac. do S.T.J de 9-12-1999,C.J.,3, pág. 138) não está excluída pela actual redacção nem afasta o entendimento de que, fora destas situações de afectação ex lege, não seja o destino actual e efectivo que é dado ao bem o que releva para se aferir da sua penhorabilidade.

27. Igualmente se afigura que a especial afectação à realização de fins de utilidade pública não ficará afastada em situações de não utilização temporária, pois obviamente não se sustenta que essa utilização tenha de ser realizada momento a momento, aspectos estes que, no entanto, interessam no acto de definição de uma situação concreta.

28. Por isso, porque a regra é a da penhorabilidade e a excepção a da impenhorabilidade que ocorre, designadamente em caso de efectiva afectação aos fins prosseguidos de utilidade pública pela pessoa colectiva, cumpre ao executado alegar e provar que o bem penhorado está especialmente afectado à realização de fins de utilidade pública, constituindo seu ónus probatório ( artigo 342.º/2 do Código Civil). Assim se tem decidido e não vemos razão para nos afastarmos da invocada jurisprudência: ver o Ac. da Relação do Porto de 26-2-1996 (Sousa Peixoto) B.M.J. 454-801 onde se menciona que “ só devem considerar-se impenhoráveis os bens directamente utilizados por uma pessoa colectiva de utilidade pública no desempenho da sua actividade, ou seja, os bens de todo indispensáveis ao seu normal funcionamento” , orientação acompanhada por Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, pág. 211, o Ac. de 29-1-1998, C.J.,1, pág. 101 (Paixão Pires) onde se menciona que importa saber qual é a actividade que se desenvolve com os bens para se saber se ocorre ou não a sua afectação a fim de utilidade pública, o Ac. da Relação de Lisboa de 16-11-1999 (Quinta Gomes) C.J.,5, pág. 92, Ac. da Relação de Lisboa de 10-10-2000 (Martins de Sousa).

29. Saliente-se ainda que faz todo o sentido este entendimento, pois, como se referiu no Ac. da Relação de Lisboa de 7-10-1993 (Sousa Inês), C.J.,4, pág. 146 onde se decidiu que a executada tem de provar ser uma pessoa colectiva “ e que os bens penhorados estão afectados ou aplicados a fins de utilidade pública, que tem de resultar do uso do próprio bem se os próprios bens do Estado não afectados directamente ( porque indirectamente todos o estão) a fins de utilidade pública, podem ser penhorados, ainda mais o podem ser os bens das pessoas colectivas.Bem se compreende que assim seja. É que a existência de património penhorável, como garantia geral do cumprimento das obrigações, é para qualquer pessoa a base necessária à atribuição do crédito. A impenhorabilidade em termos excessivos, colocaria o Estado e as restantes pessoas colectivas na mesma situação de quem não tem património e, por isso, não tem crédito, dificultando, ou até, impedindo a sua intervenção no comércio jurídico (salvo com o dinheiro na mão). Se os tribunais acolhessem a interpretação extensiva da norma excepcional do artigo 823.º/1, alínea a) do C.P.C. isso acabaria por redundar em prejuízo do Estado e das demais pessoas colectivas. Com efeito, a impenhorabilidade leva a que o credor veja o valor reclamado ser inscrito em verba orçamental (artigos 74.º da L.P.T.A. e Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho)"

— Inexistência de alegação

30. No caso em apreço não foi alegado pelo executado que os referenciados imóveis estavam especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública; não o foi nem por via de remissão para documento junto como sucederia se o executado tivesse alegado que “ as verbas requeridas não podem ser penhoradas conforme se pode comprovar pelo documento junto”. Se assim tivesse sucedido, o Tribunal talvez pudesse entender adequadamente feita a alegação de que tais imóveis eram impenhoráveis fazendo equivaler tal referência como uma referência à sua efectiva utilização.

31. Mas nada foi alegado nesse sentido até porque o documento para o qual o oponente remete não é a descrição predial onde se menciona o destino visado com os imóveis. O documento em causa - o doc. n.º1 mencionado no artigo 8.º da oposição à penhora - é uma certidão da Conservatória do Registo Comercial onde se menciona efectivamente que a executada , quanto à sua natureza jurídica, é uma PCUP (pessoa colectiva de utilidade pública) e, com efeito, era isso que o executado queria provar, pois, em seu entender, bastava tal alegação para se dever entender que os imóveis em causa eram impenhoráveis.

32. A mencionada composição dos imóveis surge apenas na certidão oficiosamente junta aos autos emitida pela Conservatória do Registo Predial já na fase de recurso para o Tribunal da Relação e à qual a sentença fez menção por constar dos autos de execução apensos.

— Presunção derivada do registo predial

33. A presunção constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial refere-se ao direito que declara, pertencendo ao titular inscrito nos precisos temos em o registo o define. Por isso, é vasta e conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de que essa presunção não abrange a descrição do prédio, designadamente, a área, confrontações e limites e, assim sendo, coerentemente se deve entender que o destino que dela conste que seja dado aos imóveis não significa que seja o destino efectivamente dado, aspecto salientado no parecer do Prof. Januário Gomes junto aos autos que a este propósito salienta que
"pretender[…] que a certificação das descrições e inscrições prediais relativas aos prédios penhorados demonstram que os mesmos se encontram especialmente afectados a fins de utilidade pública será algo como admitir que uma certidão (descrição e inscrições em vigor) relativa a uma casa de habitação permite provar, com a força própria do registo predial, que essa casa é utilizada como residência permanente do seu proprietário […]
Nesta lógica, nunca será possível, estritamente com base numa certidão de registo predial, que descreve um recinto desportivo e balneários, concluir que os mesmos são efectivamente utilizados ( recorde-se a necessidade da prova de que “ se encontrem” - artigo 823.º/1 do C.P.C) para fins desportivos e que o são especialmente e para fins de utilidade pública

— Presunção judicial

34. No entanto, a ser assim, dir-se-á que o ponto essencial do litígio não está no facto de o acórdão ter seguido uma orientação em desconformidade com a jurisprudência indicada. Com efeito, não se vê que o acórdão tenha negado que cumpre ao executado/oponente alegar que os bens se encontram especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública ou que , com tal expressão, se tenha em vista o mero destino dos bens e não a sua aplicação em concreto.

35. A nosso ver, o acórdão partiu de uma realidade, que consta do registo predial e que ninguém põe em causa, ou seja, que os imóveis foram destinados ou afectados a balneários, campos de jogos, destino que se insere nos fins de utilidade prosseguidos pelo executado, para daí concluir que essa era a sua utilização.

36. Sabendo-se que as presunções judiciais se situam no plano de facto, insindicáveis pelo Supremo Tribunal salvo quando pecam por manifesto ilogismo, entendimento corrente na jurisprudência deste Tribunal, a conclusão que se perfila outra parece ser: a da inadmissibilidade do recurso visto que, mal ou bem, esta matéria não pode ser objecto de recurso de agravo, não constituindo afinal a invocação dos mencionados acórdãos senão um meio de se abrirem as portas ao recurso de agravo contemplado no artigo 754.º/2 do C.P.C.

37. E se a presunção judicial mais não é do que, a partir de um facto conhecido ( in casu, o destino dos imóveis que consta da certidão do registo predial, matéria que o Tribunal pôde considerar adquirida e que não foi posta em causa sendo certo que o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas: ver artigo 515.º do C.P.C.), se concluir um facto desconhecido ( in casu, que aos mencionados imóveis é efectivamente dada a utilização que consta do registo predial), tudo ao abrigo das normas constantes dos artigos 349.º e 351.º do Código Civil, o conhecimento do recurso, com o juízo de procedência consequente, pressupõe o entendimento de que não é admissível a presunção judicial quando o facto desconhecido não tenha sido alegado.

38. Uma tal afirmação parece contraditória pois se o facto foi alegado não é já um facto desconhecido. Cremos todavia que o facto desconhecido não é o facto não alegado mas o facto a provar; traduz-se ele no facto alegado sobre o qual não se produziu prova ( o que é diferente dos casos em que, produzida prova, o Tribunal julga um determinado facto “não provado”) mas ao qual o tribunal “chegou” através de outros factos, esses provados, por via de presunção judicial; traduz-se também nas realidades que consubstanciam invocadas conclusões de facto ou juízos de valor de facto; traduz-se ainda no facto que decorre ou constitui desenvolvimento lógico dos factos alegados que se provaram.

39. Tratando-se, porém, esse facto desconhecido de um facto novo concreto e essencial para a sorte do litígio, não se nos afigura que seja legítima a utilização da presunção judicial, se ele não foi alegado, visto que afinal, por tal via, o Tribunal, assim procedendo, entra em colisão com as normas conjugadas dos artigo 264.º do C.P.C. (ónus de alegação) e 342.º/1 do Código Civil (ónus da prova de factos constitutivos do direito alegado); neste caso, a utilização do mencionado juízo de decorrência lógica tem como consequência suprir, quando tal já não é possível, a falta de alegação de facto essencial constitutivo do direito.

40. Importa ainda salientar, se estamos a ver bem as coisas, que o admitir-se , nestas circunstâncias, a presunção judicial, isso implica uma severa postergação do contraditório visto que o facto desconhecido - um facto essencial à sorte do litígio - não chega sequer a ser objecto de contraditório ( nem o podia ser, se não foi alegado).

41. Do exposto decorre que afinal existe uma conexão relevante entre a invocada omissão de alegação de facto e a decisão proferida. É que o acórdão recorrido, embora sem negar que ao executado cumpre alegar e comprovar a especial afectação dos bens à realização de fins de utilidade pública, acaba por aceitar que essa omissão pode ser suprida por via de presunção judicial. Aceita-se, assim, uma interpretação do artigo 823.º/1 do C.P.C. com base na qual o executado pode lograr decisão de impenhorabilidade sem cumprir o mencionado ónus de alegação e de prova. Se tal entendimento não tivesse sido seguido, nem sequer se mostraria necessário “avançar” pela via da presunção judicial. O acórdão e a decisão de 1ª instância, confirmada com voto de vencido, não podiam, pelas razões expostas, utilizar a presunção judicial que serve uma finalidade que, no caso, lhe é estranha. Vale isto para se reconhecer que existe efectivamente uma contradição a justificar a admissibilidade do recurso.

42. Cumpre salientar que a própria lei afasta o ónus de alegação tratando-se de factos notórios (artigos 264.º e 514.º do C.P.C.). Ora podia dar-se o caso de o Tribunal entender à luz da descrição do imóvel que correspondia este a um parque de jogos cujo uso efectivo deve considerar-se do conhecimento geral (artigo 514.º do C.P.C.), situação esta em que não se pode já falar de presunção judicial, pois o que é notório não é, por definição, desconhecido. No entanto, tal questão não está aqui suscitada nem se nos afigura que o deva ser com base nos elementos de facto disponíveis.

43. Os imóveis já foram objecto de outras penhoras; dir-se-á que tal questão não tem relevância visto que o erro estaria na efectivação dessas penhoras, não no afastamento da presente penhora. A inferência que o recorrente entende fazer de que a utilização dos imóveis não ocorre já no âmbito das atribuições da executada, mas apenas em função da autorização dos fiéis depositários, seria efectivamente ponderável, correspondendo ao exercício do contraditório de que o exequente ficou impossibilitado. E porque o facto em causa não foi alegado, nem sequer é possível determinar- -se a elaboração de base instrutória que o integre. Tudo isto, a nosso ver, evidencia a inaplicabilidade a uma situação deste tipo da presunção judicial.

Concluindo:

I- Não é admissível por presunção judicial considerar-se provado um facto concreto, essencial à sorte do litígio, que carece de ser alegado para poder ser tomado em consideração pelo Tribunal (artigos 349.º, 351º do Código Civil, artigos 264.º, 514.º, 515.º, 665.º todos do Código de Processo de Civil).
II- Na presunção judicial (artigos 350.º e 351.º do Código Civil) o facto desconhecido consiste no facto a provar e não no facto que não foi alegado.
III- Não estão isentos de penhora os bens de pessoas colectivas de utilidade pública quando não se demonstre encontrarem-se especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública, cumprindo ao executado o ónus de provar essa especial afectação (artigo 342.º/2 do Código Civil e 823.º do Código de Processo Civil).

Decisão: concede-se provimento ao recurso, revogando-se o acórdão, subsistindo a penhora dos referenciados imóveis.

Custas pelo executado em ambas as instâncias

Lisboa, 20 de Janeiro de 2010

Salazar Casanova (Relator)

Azevedo Ramos

Silva Salazar