HOMICÍDIO QUALIFICADO
CÔNJUGE
ESPECIAL CENSURABILIDADE
TORTURA
CRUELDADE
MARTELO
FRIEZA DE ÂNIMO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
PREMEDITAÇÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO EXCESSO
Sumário


I - Mostrando-se provados, entre outros factos, que:
- «… o arguido por desconfiar que IM queria iniciar uma separação de facto, e por ciúme desmotivado, decidiu tirar a vida à sua mulher, para o que se muniu de um martelo de pedreiro… e uma peça de ferro ….
- IM encontrava-se deitada na cama do quarto de um dos seus filhos, tendo o arguido ali entrado, cerca das 22h e, empunhando o martelo descrito .., com o mesmo desferiu sucessivas e fortes pancadas na cara da sua mulher, designadamente na zona da testa e olhos.
- A vítima tentou defender-se, pelo menos com a mão direita, onde sofreu leões, ainda conseguindo gritar ou gemer alto, acordando então a filha de ambos, MM, não só com a voz da mãe, como também com o barulho das pancadas na cabeça da ofendida.
- Entrando MM no quarto, deparou com o pai e ora arguido a desferir marteladas violentas na cabeça da vítima, que estava prostrada na cama, dizendo o arguido “olha o que faço à tua mãe”, estando a vítima a gemer, com a cabeça e a cama ensanguentadas.
- MM fugiu de imediato para a rua, .. tendo uma das vizinhas acorrido à casa e deparado com a vítima naquele estado e com o arguido, que empunhava o martelo, dizendo: “ainda estás viva? Isso não vai ficar assim”, ao que se dirigiu de novo para o quarto onde estava prostrada IM, sendo porém impedido de o fazer por aquela vizinha.
- Entretanto, chegada a PSP, deparou coma vítima a agonizar, estando o arguido com vestígios evidentes de sangue na camisa e calças, dizendo: “ela teve o que merece. Já está morta? Se não eu volto lá dentro para a matar, outra vez”».

II - Os factos provados integram o tipo de homicídio qualificado: segundo a definição do CP, aquele não é mais do que uma forma agravada do homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.º do CP.

III - Não há diversos tipos de crimes contra a vida, mas apenas um, que é o crime base, ao qual acrescem circunstâncias que especialmente o agravam (crime qualificado) e outras que especialmente o atenuam (crime privilegiado).

IV - Na qualificação do crime prevista no art. 132.º, o legislador optou por uma fórmula aberta, embora cingida a certos parâmetros, a qual deixa ao aplicador uma margem de ponderação das circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito legal de homicídio qualificado; para tanto, após fazer no n.º 1 uma afirmação genérica de um especial tipo de culpa, no n.º 2 enunciou, a título exemplificativo, um conjunto de circunstâncias susceptíveis de revelarem aquela especial censurabilidade ou perversidade, a chamada técnica dos exemplos-padrão.

V - Socialmente, os casos de “violência doméstica”, isto é, os exercidos contra a pessoa do cônjuge, quer de direito quer de facto, ainda que tenha havido separação ou divórcio, encontram uma crescente reprovação, não só pela consciência do seu elevado número e frequência, como também pela interiorização de que o cônjuge maltratado é normalmente uma pessoa indefesa e economicamente dependente e, portanto, merece a mais ampla protecção humanitária e jurídica.

VI - A introdução da actual al. b) pela reforma do CP de 2007, ao criar um novo exemplo padrão, procurou responder à censurabilidade social das situações de violência doméstica.
VII - A relação conjugal que no caso presente existia entre o homicida e a vítima, mesmo que pudesse encontrar-se em vias de cessar [“nos últimos tempos a IM e o arguido já não dormiam no mesmo quarto e aquela perspectivava divorciar-se deste”], confere ao crime uma especial censurabilidade, determinante para qualificar o homicídio, tanto mais que as agressões mortais tiveram origem na vontade legítima, manifestada pela vítima, de se querer separar do arguido, isto é, na própria natureza da relação.

VIII - A al. d) do art. 132.º, tida como verificada no acórdão da Relação, respeita aos casos em que o homicida emprega tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima, isto é, quando são usados meios de provocação da dor cuja intensidade ou duração ultrapasse a necessária para causar a morte: no caso em apreço, apesar do arguido ter usado como instrumento de agressão um martelo de pedreiro, um objecto duro, pesado e pontiagudo que os pedreiros usam para abrir roços no tijolo ou no cimento, e de o ter desferido na cara da vítima e por várias vezes, atingindo-a, designadamente, na testa e nos olhos, não resulta dos factos provados que o arguido tenha querido aumentar o sofrimento desta, para além do que já é próprio em qualquer acto homicida.

IX - Relativamente à al. j) do art. 132.º – agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24h –, é circunstância que efectivamente se verifica, pois o arguido foi ter com a sua mulher ao quarto de dormir, já munido do instrumento que iria usar na prática do crime, escolheu um momento em que a mesma se encontrava deitada, prestes a dormir, e usou-o da forma mais letal possível, com fortes e repetidas pancadas na cara e testa.

X - As circunstâncias que serviram para a qualificação do crime não podem ser novamente consideradas na graduação da pena; são circunstâncias agravantes para o efeito da graduação da pena, dentro da moldura já de si especialmente agravada do crime, a surpresa com o que o arguido agiu, a sua superioridade física, o meio de agressão utilizado, bem como a reiteração das pancadas, a presença no local da filha menor de 14 anos de idade e ainda os sentimentos revelados nas frases que proferiu durante e já após a sua actuação e, como atenuantes, o facto de não ter antecedentes criminais e ser pessoa considerada no seu meio social.

XI - Num sistema punitivo em que o máximo da pena é de 25 anos de prisão, a pena de 22 anos aplicada pelas instâncias, revela-se excessiva, entendendo-se adequado fixá-la em 20 anos de prisão, visto as penas de duração superior deverem ser reservadas, conforme vem entendendo o STJ, para as situações em que o agente é julgado por vários crimes.


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* Sumário elaborado pelo relator
** Sumário revisto pelo relator

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA foi julgado pelo tribunal de júri, no âmbito do processo comum colectivo n.º 108/08.4PEPDL do 2º Juízo Criminal de Ponta Delgada e veio a ser condenado, por acórdão de 16/06/2009, na pena de 22 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs 131.° e 132.º do Código Penal.

Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa onde, por acórdão de 28/10/2009, a matéria de facto foi modificada pontualmente, tendo, porém, sido mantida a condenação por aquele crime e naquela pena.

Continuando irresignado, o arguido recorre agora para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo do seguinte modo:
1. O presente recurso vem interposto do acórdão proferido em 28 de Outubro de 2009, por via do qual o Tribunal da Relação de Lisboa, se decidiu pela confirmação da medida da pena aplicada ao arguido, ora, recorrente, na consequência da sua condenação em 1ª instância como autor de um crime de homicídio qualificado, p. p. nos termos do disposto nos artigos 131° e 132° do Código Penal em 22 (vinte e dois) anos de prisão.
2. Na verdade e salvaguardado o devido respeito, a ora recorrente com tão severa condenação não se pode conformar,
3. E dizemo-lo porque em nosso entender não se alvitra o fundamento fáctico para a aludida qualificação jurídica e consequentemente, tão severa punição.
4. No douto acórdão ora recorrido pode-se ler a fls. "Não resultou provada qualquer factualidade que pudesse ser subsumida ao crime de homicídio privilegiado da previsão normativa do art. 133 do Código Penal. O que resultou provado (mesmo já tendo em conta a modificação da matéria de facto) é que o arguido, por ciúme desmotivado, matou a sua mulher - usando para tal de uma violência inaudita".
5. Contudo, salvo o devido respeito, a defesa do arguido, ora recorrente ousa discordar com tal douto entendimento, atentando ao provimento parcial que tal acórdão concedeu ao arguido aquando da materialidade fáctica em sede de recurso do acórdão de 1ª instância.
6. Num enquadramento legal do instituto ora aflorado, dispõe o artigo 133° do Código Penal, "Quem matar outra pessoa dominado ,por compreensível emoção violei a compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos" (sublinhado nosso).
7. Tal instituto consubstancia-se num tipo de culpa, comportando um nexo de causalidade entre o animus necandi do agente e a motivação emocional que preponderou para obter tal resultado, em abstracto mais ou menos racional, alter modo mais ou menos culposo.
8. Perfilhando a doutrina defendida pelo Prof. Maia Gonçalves, " O fundamento determinante do privilegiamento do crime de homicídio aqui estabelecido é uma diminuição sensível da culpa do agente, que no caso é dominado pelos factores previstos neste artigo: Compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral. (..) Compreensível emoção é um estado emocional não censurável ao agente e susceptível de afectar o homem médio suposto pela ordem jurídica. Exige-se ainda que a emoção, para além de compreensível, seja violenta, devendo portanto atingir elevada gravidade ou grau de intensidade. (...) Deve existir, para que seja possível o enquadramento da conduta neste homicídio privilegiado, nexo de causalidade entre a emoção violenta, a compaixão e qualquer motivo, de relevante valor social ou moral e a prática do crime." ( sublinhado nosso). Gonçalves, Manuel Lopes Maia, CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS, anotado e Comentado, 2001:459,460; e continuando com o que nos ensina o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque: "A incriminação de homicídio privilegiado fundamenta-se no estado emotivo ou de afecto em que se encontra o agente, que torna a sua conduta menos exigível e diminui sensivelmente a sua culpa. Portanto, o fundamento do privilegiamento reside na menor exigibilidade da conduta do agente em qualquer um dos casos previstos no tipo. A emoção pode resultar da provocação pela vítima ou por terceiro. (..) A emoção violenta deve ser compreensível, isto é, deve corresponder a uma reacção que o homem médio colocado na situação do agente poderia ter." Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2008:356,357.
9. Ora, atentando no supra explanado, somos a corroborar a opção técnico-legislativa em apreço por uma verificação fáctica de um crime de homicídio praticado inusitadamente, cujo próprio modus operandi, revela um estado desproporcional ao "suportado" pelo homem médio na gestão racional das suas emoções, determinando-se assim a exigibilidade jurídica do dever de agir.
10. Tanto mais se verifica, pelas consequências pessoais e sociais que uma relação conjugal encerra, e projecta uma imagem do indivíduo de per si, considerado perante a sociedade em geral e, em particular, perante a comunidade em que se insere.
11. Assim, quem compreende determinada emoção violenta não se limita a perceber a sua existência; percebe a razão da sua existência.
12. E assim, como perceber a razão de um homem respeitado e referenciado como homem pacato pela sua comunidade, ter perpetrado um acto com tais contornos que numa primeira análise se copulariam no âmbito do inexplicável à luz da experiência comum e do homem médio considerado pela ordem jurídica?
13. Tal resposta, a defesa do arguido, ora recorrente, enquadra num estado emocional, tão violento por inesperado, decorrente e provocado por uma discussão mantida entre o arguido e a vitima, marido e mulher, aquando do repto da vítima perante a vulnerabilidade da proposta do arguido visando reatamento da relação conjugal, rompida há já algum tempo por iniciativa da vítima.
14. Neste sentido, corroboram as declarações do arguido durante a audiência de Discussão e Julgamento que afirmou ter, no dia do crime, ido ao encontro da vítima para "fazerem as pazes", e que esta terá retorquido abruptamente dizendo que já não queria nada com o mesmo e que naquela mesma tarde, teria estado com um homem, "muito mais homem" que ele próprio.
15. Declarações estas, que o douto tribunal da Relação de Lisboa afirmou não serem muito claras e convincentes para formar convicção suficientemente fundamentada para a boa decisão na causa, no entanto atente-se:
16. Da análise de matéria de facto, oportunamente impugnada, o mesmo Tribunal no douto acórdão, ora recorrido, refere a fls., "Se tivesse ocorrido uma discussão e o arguido tivesse abandonado o quarto para ir ao quintal buscar o martelo, era natural que a BB, pelo menos tivesse acendido a luz do candeeiro maxime, exaltada com a mesma, se tivesse levantado, pelo que a dúvida permanece e, assim sendo, tem de ser valorada em favor do arguido."
17. Na sequência do excerto supra descrito, o douto tribunal considerou, louvavelmente, como não provado o facto n.º 4: "Que a agressão perpetrada pelo arguido, ter…ocorrido sem qualquer aviso" (sublinhado nosso).
18. Pelo exposto, frisando o supra referido, relativamente à dúvida que persiste e que assim sendo deverá ser valorada em favor do arguido perante tal factualidade e uma vez que, de acordo com o douto acórdão ora recorrido, tal como com o proferido em 1ª instância pelo Tribunal Judicial de Ponta Delgada, á data e hora dos factos o arguido encontrava-se a sós com a vítima,
19. Considera, humildemente, a defesa do arguido, ora recorrente, o facto de a matéria de facto modificada em sede de recurso de Apelação, consubstanciar, significativamente, a subsunção que foi feita ao Direito.
20. De outro modo, ousamos referir a inaplicabilidade prática do instituto em causa, uma vez que, de acordo com as regras da experiência comum da natureza humana, sob emoção violenta os contornos do ilícito perpetrado, assumem características, inexplicáveis à luz do razoável.
21. Deste modo, pugnamos, salvo melhor opinião em contrário, pela observação casuística do nexo de causalidade entre o desespero, um homem que "luta" pela manutenção da sua relação conjugal que se frustra de forma abrupta e inesperada e o resultado, um crime de proporções incompreensíveis e que pelos motivos provocatórios em que ocorreu, se privilegia em si de acordo com os ditames legais.
22. Nestes termos, afirmamos que a pena infligida ao arguido, ora recorrente, se afigura desproporcional e desadequada perante as necessidades de prevenção geral, prevenção especial e de justiça que o caso de per si reclama.
Termos em que,
Procedendo os vícios assacados, seja o acórdão recorrido substituído por outro que altere a qualificação jurídica subsumida à materialidade fáctica dada como provada, sendo assim revista a decisão de direito;
Ou ainda que assim não seja, somente se considere por alterada a medida da pena, diminuindo-se a mesma.

O Ministério Público no Tribunal da Relação respondeu, pronunciando-se pelo não provimento do recurso.
No Supremo Tribunal de Justiça, em circunstanciado parecer, o Ministério Público defendeu que:
- O arguido não agiu dominado por emoção compreensível (…como assente pelas instâncias resulta tão só que o arguido, por ciúme desmotivado, matou a sua mulher, usando para tal de uma violência inaudita. Na verdade, ao invés do que o arguido e aqui recorrente pretende fazer crer, a sua deplorável actuação (bem evidenciada na forma traiçoeira e brutal como, sendo noite e estando a vitima deitada num quarto às escuras e impossibilitada de reagir adequada e previamente à agressão que contra ela desencadeou, lhe desferiu várias e violentas pancadas no rosto, fazendo uso dum martelo de pedreiro) foi determinada, não pelo peso da emoção ou perturbação que, porventura, acometendo-o na ocasião e tornando menos exigível a sua conduta, mitigasse de modo sensível a sua culpa mas, antes, por uma firme e arreigada vontade de tirar a vida á sua cônjuge pelo mero facto de a mesma não querer reatar a vida em comum, E tanto assim é que, sem evidenciar o mínimo sinal de remorso pela sua inqualificável conduta, ao deparar-se com a filha do casal que acudira ao local do crime, desperta pelo ruído provocado pelos gritos e gemidos da vítima e bem assim pelas marteladas na cabeça desta, o arguido disse-lhe «olha o que faço à tua mãe». Do mesmo passo que, mais tarde e quando a P.S.P. já se encontrava no local, afirmou «ela teve o que merece. Já está morta? Se não, eu volto lá dento para a matar outra vez».
- O arguido cometeu um homicídio qualificado (…não funcionando de forma automática aquelas circunstâncias exemplificativamente enumeradas no n.º 2 do art. 132° do C. Penal mas apenas e tão só quando revelem especial censurabilidade ou perversidade por parte do agente, por claro não se tem que pelo facto de o arguido ser casado com a vitima possa só por si ser accionada a qualificativa da alínea b) do n.º 2 do mencionado normativo, quando é certo que os sentimentos de confiança, de respeito, de amizade, subjacentes à relação conjugal não existiam no caso em apreço face á ruptura efectiva que se verificava. Do mesmo passo que, não subsistindo embora qualquer dúvida, a nosso ver, de que o modo como o arguido agrediu reiteradamente a sua cônjuge, utilizando um instrumento com as características que possui um martelo de pedreiro e numa zona tão sensível do corpo como o rosto, não pode deixar de considerar-se cruel, face ao acervo factual provado não resulta líquido que com essa actuação o agente tivesse concretamente por escopo aumentar o sofrimento da vítima. Finalmente quanto à qualificativa da alínea j), aqui já as coisas parecem ocorrer de forma diversa. E isto na medida em que revelador de indiscutível firmeza, tenacidade, irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada e, como assim, de uma arrepiante, enraizada e persistente vontade criminosa há-de entender-se o comportamento do arguido, consubstanciado não apenas na circunstância de reiterada e violentamente haver desferido marteladas no rosto da infeliz BB, sua cônjuge (quando esta, recorde-se, se encontrava deitada na cama, às escuras, logo incapaz de esboçar prévia reacção defensiva à agressão) mas ainda e sobretudo radicado no facto de, depois disso e admitindo a possibilidade de a vítima não ter sucumbido aos seus propósito homicidas, manifestar, por duas vezes, a intenção de regressar ao local onde a mesma jazia ensanguentada e ferida de morte a fim de consumar essa sua intenção. De todo o modo, considere-se ou não ajustado o enquadramento jurídico-penal dos factos efectuado pelo tribunal recorrido, crê-se que demonstrativa de uma particular perversidade por parte do arguido e como assim reclamadora de uma especialíssima censura não poderá deixar de ter-se a sua conduta, o que vale dizer que com ela sempre incorreu o mesmo na prática do crime de homicídio qualificado, objecto de previsão nos art.ºs 131° e 132° do C. Penal).
- É adequada a fixação da pena em 22 anos de prisão.

Não foi requerida audiência, pelo que os autos foram a os vistos e vêm agora à conferência para conhecimento do recurso.

2. A matéria de facto fixada pelas instâncias é a seguinte:
1. O arguido e BB, nascida a 1 de Janeiro de 1972 – doravante designada como BB, ou vítima – viveram, desde 1989, em comunhão de vida derivada de casamento celebrado em 15 de Abril desse ano, residindo na Rua da ..., n. ..., Cabouco, área desta Comarca de Ponta Delgada.
2. No decurso da relação conjugal e, praticamente, desde o seu início, o arguido e a BB, sua mulher, desentenderam-se muitas vezes com as inerentes e frequentes discussões entre ambos sendo que, nos últimos tempos, a BB e o arguido já não dormiam no mesmo quarto e aquela perspectivava divorciar-se deste.
3. (não provado, conforme decidido pela Relação)
4. Em 26 de Abril de 2008 o arguido, por desconfiar que BB queria iniciar uma separação de facto, e por ciúme desmotivado, decidiu tirar a vida à sua mulher, para o que se muniu de um martelo de pedreiro, com um cabo de madeira circular com 2 cm de diâmetro e 30 cm de comprimento, e uma peça de ferro com 16 cm de altura, de base quadrada, com 4 cm de lado e um gume com 5 cm de comprimento na extremidade oposta, e com 2,480 quilos de peso.
5. BB encontrava-se deitada na cama do quarto de um dos seus filhos, tendo o arguido ali entrado, cerca das 22:00 horas daquele dia e, empunhando o martelo descrito no número anterior, com o mesmo desferiu sucessivas e fortes pancadas na cara da sua mulher; designadamente na zona da testa e olhos.
6. A vítima tentou defender-se, pelo menos com a mão direita, onde sofreu lesões, ainda conseguindo gritar ou gemer alto, acordando então a filha de ambos, CC, não só com a voz da mãe, como também com o barulho das pancadas na cabeça da ofendida.
7. Entrando CC no quarto, deparou com o pai e ora arguido a desferir marteladas violentas na cabeça da vítima, que estava prostrada na cama, dizendo o arguido: “olha o que faço à tua mãe”, estando a vítima a gemer, com a cabeça e a cama ensanguentadas.
8. A CC fugiu de imediato para a rua, a pedir socorro, tendo uma das vizinhas, L...R..., acorrido à casa de BB e deparado com a vítima naquele estado e com o arguido, que empunhava o martelo, dizendo: “ainda estás viva? isso não vai ficar assim” – ao que se dirigiu de novo para o quarto onde estava prostrada BB, sendo porém impedido de o fazer por aquela vizinha.
9. Entretanto, chegada a PSP, deparou com a vítima a agonizar, estando o arguido com vestígios evidentes de sangue na camisa e calças, dizendo: “ela teve o que merece. Já está morta? Se não eu volto lá dentro para a matar, outra vez”.
10. O arguido indicou, passados momentos, no quintal, o local tinha deixado o martelo.
11. A vítima foi conduzida ao Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada, ali chegando pelas 22:30 horas, já cadáver, em consequência das graves lesões crânio-meningo encefálicas provocadas pelo arguido, com grave compromisso ósseo, afundamento craniano e extravasamento da massa encefálica.
12. Efectuado exame ao quarto onde a vítima se encontrava, verificou-se que nele existiam os seguintes vestígios, de que foram recolhidas amostras:
A1 – grande massa hemática no chão, no lado esquerdo da cama;
A2 – grande mancha hemática na zona superior esquerda do colchão;
A3 – salpicos hemáticos e de massa encefálica na parede e cabeceira da cama;
A4 – vestígios hemáticos no lado esquerdo da cama;
A6 – salpicos hemáticos na madeira do tecto do quarto;
A7 – salpicos hemáticos na parede esquerda do quarto;
A8 – salpicos hemáticos nas cortinas da janela;
A9 – pingos hemáticos junto aos pés da cama.
13. Verificou-se que também existiam pingos hemáticos no chão do corredor, em frente à porta do quarto.
14. Foi encontrado, do lado direito da cama onde a vítima se encontrava, um relógio, com a correia solta, que o arguido tinha perdido por virtude da violência das pancadas que desferiu.
15. Efectuados exames laboratoriais ao martelo e roupas do arguido, deles resultou:
a) o sangue existente no chão, lado esquerdo, da cama era da vítima;
b) o martelo, na peça de ferro, tinha sangue da vítima;
c) a manga direita da camisa, e perna direita das calças que o arguido vestia na altura, tinham sangue da vítima.
Efectuada autópsia à vítima, constataram-se:
a) equimoses arroxeadas no dorso da mão direita, região tenar, dorsos dos dedos e pratos ungeais; múltiplas escoriações dispersas pelo dorso da mão, medindo a maior, localizada na 1ª falange do 2º dedo, 1 cm de diâmetro;
b) esmagamento do crânio, com extenso ferimento lacero contuso abrangendo a face frontal, temporal, parietal direitos, perda de fragmentos da abóbada craniana e perda da massa encefálica (regiões frontal, temporal e parietal direito, ossos próprios do nariz, cavidade orbitaria direita, e concretamente:
c) fractura cominutiva e multiesquirolosa de todos os ossos da abóbada craniana;
d) fractura cominutiva e multiesquirolosa a nível dos três andares da base, com infiltração sanguínea; fractura do osso esfenóide, crista de gali, do osso etmóide;
e) nas meninges, ausência de dura mater à direita, hemorragia subdural, hemorragia subaracnoideia a nível dos lobos frontal, temporal, parietal, e occipital; sangue no seio longitudinal superior;
f) perda de grande parte da massa encefálica, com laceração do hemisfério direito, e amolecimento do parênquima;
g) perda do globo ocular esquerdo e destruição dos globos oculares;
h) fractura cominutiva e multiesquirolosa dos três andares do maciço facial, com infiltração sanguínea; esfacelo dos ossos próprios do nariz e do osso malar.
16. A actuação do arguido foi adequada a causar a morte, dada a área do corpo atingida, e a sede, natureza, e características das lesões; morte que sobreveio quase de imediato.
17. O arguido, determinado pelo ciúme, agiu com o intuito de tirar a vida a BB, seu cônjuge, mediante o uso de instrumento que impossibilitou qualquer defesa, causando sofrimento brutal à vítima, o que conseguiu.
18. Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo que o seu comportamento era proibido por lei.
19. O agregado familiar era financeiramente sustentado pelos ganhos auferidos pelo arguido com a sua profissão, bem como pelo que a falecida BB ganhava em trabalhos a dias.
20. Os requerentes CC, DD e EE são filhos do arguido e da falecida BB.
21. Aquando da morte de sua mãe, a CC tinha 14 anos, o DD 13 anos e o EE 18 anos de idade.
22. A BB contava 36 anos.
23. A morte não foi imediata, tendo-se ela apercebida da sua iminência.
24. Sofreu violentas dores e grande desespero.
25. Era saudável, alegre e boa mãe.
26. Os requerentes tinham grande amor e carinho por ela.
27. Sofreram um profundo desgosto.
28. A CC assistiu ainda a parte da agressão de que a sua mãe foi vítima.
29. Ficou em estado de choque.
30. Nos dias seguintes, a CC não conseguia conciliar o sono, acordando sobressaltada.
31. Vem sendo seguida por médicos e psicólogos.
32. Perdeu grande parte da sua alegria de viver.
33. As circunstâncias em que a sua mãe morreu só dificilmente poderão ser pelos requerentes esquecidas.
34. Actualmente, os requerentes CC e DD vivem com os tios J... e L....
35. O arguido não tem antecedentes criminais.
36. É bem considerado.

E como não provados os seguintes factos:
1. O arguido, ingeria, há anos, bebidas alcoólicas sem moderação.
2. A vítima contribuía para o sustento, educação e demais encargos dos menores com uma importância não inferior a 150 € mensais.
3. Que o arguido ameaçava a sua mulher dizendo “se ela não é para mim não é para mais ninguém».
4. Que a agressão descrita no ponto 5 da matéria de facto provada tenha ocorrido sem qualquer aviso.

3. As questões a decidir no recurso são as seguintes:
1ª- O crime cometido pelo arguido é o de homicídio privilegiado ou o de homicídio qualificado?
2ª- Qual a medida da pena?

4. Condenado pela prática de crime de homicídio qualificado, previsto no art. 131º e 132º nº1 e 2 als. b), d) e j) do Código Penal, o arguido continua a defender, agora no recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que os factos por si praticados devem ser qualificados como integradores do crime de homicídio privilegiado do art. 133º do mesmo Código.
Dispõe este artigo que «quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos».

Trata-se de um tipo especialmente atenuado do crime base, que encontra fundamento «no estado emotivo ou de afecto em que se encontra o agente, que torna a sua conduta menos exigível e diminui sensivelmente a sua culpa. Portanto, o fundamento do privilegiamento reside na menor exigibilidade da conduta do agente em qualquer um dos casos previstos no tipo» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 356).

Sustenta o recorrente que o privilegiamento a atribuir à a sua conduta resulta de a mesma se ter ficado a dever a uma compreensível emoção violenta.


No Comentário Conimbricense do Código Penal, (tomo I, pág. 50), em anotação ao art. 133º, diz o Prof. Figueiredo Dias: “Compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível.” Será, pois, uma situação paralela à da “provocação suficiente” que o Prof. Eduardo Correia (Direito Criminal, II, pág. 278, nota 1) caracterizava da seguinte forma: “na provocação, do que se trata é de um conjunto de disposições normais, que, em face do estímulo da provocação, levam à prática do facto criminoso. A não exigibilidade, neste sentido, tanto abrange a ausência de censurabilidade dos motivos, como dos pressupostos de uma livre determinação, traduzida na perturbação provocada por um acto que exclui a apreciação ou o controlo dos instintos ou afirmações normais da personalidade”. O requisito da “compreensibilidade” representa uma exigência adicional ao critério da menor exigibilidade, que está subjacente ao preceito, devendo ter um cunho objectivo.

Independentemente de outras considerações que pudéssemos tecer sobre o que é a compreensível emoção violenta, ou a compaixão, ou o desespero ou o motivo de relevante valor social ou moral que tornam a conduta menos exigível e diminuem sensivelmente a conduta do agente, certo é que, no presente recurso, o recorrente pretende discutir questões de facto que já estão ultrapassadas e que não pertencem aos poderes de cognição do Supremo Tribunal.

Argumenta o recorrente que, para se entender como pôde um cidadão pacato e considerado, como é ele próprio, praticar um acto tão desmesurado como o que resulta dos factos provados, é necessário que se considere provado o que sempre alegou, que foi ao encontro da vítima para "fazerem as pazes" e que esta terá retorquido abruptamente, dizendo que já não queria nada com o mesmo e que, naquela mesma tarde, teria estado com um homem, "muito mais homem" do que ele próprio.

E diz ainda o recorrente que a Relação, ao não ter dado como provado, ao contrário da 1ª instância, que a agressão perpetrada pelo arguido ocorreu sem qualquer aviso, devia ter inferido que houve uma discussão prévia entre o arguido e a vítima nos termos apontados.
Cai o recorrente aqui, portanto, numa discussão sobre a matéria de facto e não se pode deixar de censurar esta sua insistência, pois é sabido que o STJ tem poderes de reexame exclusivamente de direito (art.º 434.º do CPP), o que pressupõe a prévia fixação da matéria de facto pelas instâncias. E tal matéria ficou efectivamente fixada pela Relação.
Esta, no acórdão recorrido, analisou a pretensão do recorrente nos seguintes termos:
A partir destas questões concretas do recurso em matéria de facto, procurou o recorrente, invocando doutrina, – cfr. 8.ª a 13.ª conclusões – significar que teria ficado emocionalmente muito perturbado com uma declaração da mulher quando a ela se dirigiu no quarto com vista a fazer as pazes.
E qual foi essa declaração? Que a BB lhe teria dito que a deixasse em paz, não queria nada com ele, pois, até tinha estado toda a tarde com um homem, bem mais homem do que ele.
Ora, com o devido respeito, da prova produzida o que ressaltou é que o arguido desconfiava da sua mulher e tal desconfiança assentava em “curadores” (expressão usada pela testemunha M...L...) e “cartomantes” (expressão usada pela testemunha J...P...) mas ao comportamento desta nenhum reparo foi feito, pelo que a expressão «ciúme desmotivado» inserta no facto provado sob o n.º 4 tem pleno cabimento e razão de ser.
Não resultou provada qualquer factualidade que pudesse ser subsumida ao crime de homicídio privilegiado da previsão normativa do art. 133.º do CP.
O que resultou provado (mesmo já tendo em conta a modificação da matéria de facto) é que o arguido, por ciúme desmotivado, matou a sua mulher usando para tal de uma violência inaudita.
Tal violência foi exercida quando a mulher estava deitada na cama, num quarto às escuras e sem possibilidade de qualquer prévia reacção defensiva à agressão.
O arguido não desconhecia que no interior da residência se encontrava a filha menor de ambos.
Não se mostrava emocionalmente exaltado e/ou perturbado, nem mostrou qualquer arrependimento pelo acto acabado de praticar – cfr. o depoimento do agente da PSP M... G... «Ele à minha frente disse que se ela não estava morta voltava lá (ao quarto) para a matar

A resposta que pode ser dada ao recorrente sobre a sua primeira questão – a do homicídio privilegiado – é, assim, a de que não se verifica esse tipo criminal, pois não se provaram os factos que alega e que, eventualmente, o poderiam caracterizar.

5. Pelo contrário, os factos provados integram o tipo de homicídio qualificado.
Segundo a definição do Código Penal, o homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada do homicídio simples previsto no art.º 131.º do C. Penal.
Não há, pois, diversos tipos de crimes contra a vida, mas apenas um, que é o crime base, ao qual acrescem circunstâncias que especialmente o agravam (crime qualificado) e outras que especialmente o atenuam (crime privilegiado).
Na qualificação do crime prevista no art.º 132.º, o legislador penal optou por uma fórmula aberta, embora cingida a certos parâmetros, a qual deixa ao aplicador uma margem de ponderação das circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito legal de homicídio qualificado. Para tanto, após fazer no nº 1 uma afirmação genérica de um especial tipo de culpa (Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos), no nº 2 enunciou, a título meramente exemplificativo, um conjunto de circunstâncias susceptíveis de revelarem aquela especial censurabilidade ou perversidade, a chamada técnica dos exemplo-padrão.
A respeito deste crime, refere Figueiredo Dias (op. cit., I, pág. 26) que “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente”, conceitos a que se acede através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
Considerando que o qualificativo “especial” diz respeito tanto à censurabilidade como à perversidade, Teresa Serra (Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63) densifica os conceitos de seguinte modo: “A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indicio de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. ... Especialmente perversa, especialmente rejeitável será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente.”

5.1 Volvendo ao caso a analisar, verifica-se que a acusação imputou ao arguido a prática de um homicídio qualificado, fundada nas als. b), d) e e) do n.º 2 do art.º 132.º do CP
A 1ª instância condenou-o por esse crime com base na debilidade da vítima (estava a dormir), alguma premeditação, crueldade e surpresa (traição), sem, no entanto, apontar a que alíneas do n.º 2 do art.º 132.º se estava a reportar.
A Relação fundou-se nas als. b), d) e j) para chegar à mesma conclusão (homicídio qualificado). Vejamos, pois, se se verificam estas circunstâncias.

5.2 A al. b) do n.º 2 do art.º 132.º diz respeito ao homicídio praticado contra cônjuge tendo o respectivo exemplo-padrão o seguinte conteúdo: “praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do memo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1ª grau”.
Socialmente, os casos de “violência doméstica”, isto é, os exercidos contra a pessoa do cônjuge, quer de direito quer de facto, ainda que já tenha havido separação ou divórcio, encontram uma crescente reprovação, não só pela consciência do seu elevado número e frequência, como também pela interiorização de que o cônjuge maltratado é normalmente uma pessoa indefesa e economicamente dependente e, portanto, merece a mais ampla protecção humanitária e jurídica.
A introdução da actual alínea b) pela reforma do Código Penal de 2007, ao criar um novo exemplo-padrão, procurou responder à censurabilidade social das situações de violência doméstica, na consideração de que, como anota Paulo Pinto de Albuquerque (Código Penal Anotado, pág. 349), os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”, mesmo se tiverem cessado as relações matrimoniais, pois os laços familiares devem continuar a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram (Cfr. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal – Anotado e Comentado, pág. 344). Tal não pode, de modo algum, significar que esta circunstância venha a ser de funcionamento automático.
O facto de estar provado que “nos últimos tempos, a BB e o arguido já não dormiam no mesmo quarto e aquela perspectivava divorciar-se deste”, não altera a especial censurabilidade que a lei encontra nos homicídios entre cônjuges ou ex-cônjuges, pois, conforme expressamente se prevê no exemplo-padrão, a pessoa da vítima pode ser aquela com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação conjugal ou análoga, ainda que sem coabitação, o que significa que este aspecto é irrelevante, mesmo que tenha terminado a relação sexual ou afectiva entre ambos.
A relação conjugal que no caso presente existia entre o homicida e a vítima, mesmo que pudesse encontrar-se em vias de cessar, confere ao crime uma especial censurabilidade, determinante para qualificar o homicídio, tanto mais que as agressões mortais tiveram origem na vontade legítima, manifestada pela vítima, de se querer separar do arguido, isto é, na própria natureza da relação.

5.3 A al. d) do n.º 2 do art.º 132.º, tida como verificada no acórdão da Relação, respeita aos casos em que o homicida emprega tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima, isto é, quando são usados meios de provocação da dor cuja intensidade ou duração ultrapasse a necessária para causar a morte. “Com a precisão”, segundo anota Figueiredo Dias (op.cit., pág. 31), “que o acto de crueldade tem de ter lugar para aumentar o sofrimento da vítima: relação meio/fim.” Ou seja, o agente pretende, desse modo, agravar o sofrimento da vítima, comprazendo-se com a ver sofrer até sobrevir a morte.
O emprego de tortura ou actos de crueldade constava já das circunstâncias que agravavam especialmente o homicídio no Código Penal de 1852, referindo Luís Osório (Notas ao Código de Penal Português, vol. 3, pág. 70) que “esses actos … não devem ser necessários para a prática do crime, mas devem ser destinados … a aumentar o sofrimento do ofendido. Não é preciso que entre os actos de crueldade e a morte haja uma relação de causa para feito, basta uma relação de simultaneidade”.
Por isso, conforme refere Maia Gonçalves (Código Penal Português - Anotado e Comentado18, pág. 514) não integram este exemplo padrão “uma simples repetição de golpes, os actos, embora cruéis para abreviar a morte nem tão pouco os actos praticados post mortem sobre o cadáver ou para impedir ou dificultar a prova do crime”.
No caso em apreço, apesar de o arguido ter usado como instrumento de agressão um martelo de pedreiro, um objecto duro, pesado e pontiagudo que os pedreiros usam para abrir roços no tijolo ou no cimento, apesar também de o ter desferido na cara da vítima e por várias vezes, atingindo-a, designadamente, na testa e nos olhos, não há sinais de tortura ou de crueldade, pois não resulta dos factos provados que o arguido tenha querido aumentar o sofrimento da vítima para além do que já é próprio de qualquer acto homicida.
O arguido terá atacado a vítima usando de surpresa, pois a mesma ainda estava deitada na cama e desferiu-lhe sucessivas pancadas, muito fortes, em zona vital e sensível do corpo, provocando esmagamento do crânio, com extenso ferimento lacero-contuso abrangendo a face frontal, temporal, parietal direitos, perda de fragmentos da abóbada craniana e perda da massa encefálica (regiões frontal, temporal e parietal direito, ossos próprios do nariz, cavidade orbitaria direita, e, concretamente, fractura cominutiva e multiesquirolosa de todos os ossos da abóbada craniana e fractura cominutiva e multiesquirolosa a nível dos três andares da base, com infiltração sanguínea e fractura do osso esfenóide, crista de gali, do osso etmóide”.
A repetição do gesto agressor visou assegurar que tinha sido atingido o desiderato da morte do seu cônjuge, a qual sobreveio quase de imediato. O comportamento do arguido posterior à brutal agressão e as palavras que dirigiu à vizinha L... R... e aos agentes da Policia de Segurança Pública que foram chamados, mostra bem que o seu desígnio era provocar a morte da sua mulher, nada se tendo provado no sentido de que procurou prolongar o sofrimento da vítima até ela sucumbir.
Daí que se deva ter por não verificada a circunstância da al. d) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.

5.4 Relativamente à al. j) - agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas – é circunstância que efectivamente se verifica, pois o recorrente foi ter com a sua mulher ao quarto de dormir, já munido do instrumento que iria usar na prática do crime, escolheu um momento em que a mesma já estava deitada, prestes a dormir, e usou-o da forma mais letal possível, com fortes e repetidas pancadas na cara e na testa. Ainda que tenha havido alguma discussão prévia – o que não está de todo provado e nem sequer é provável, dado o facto da vítima ainda estar deitada quando foi atingida – o recorrente sabia de antemão o que lá ia fazer, pois não é explicável de outro modo o facto de já levar consigo o martelo de pedreiro.
O recorrente reflectiu, pois, com alguma antecedência, friamente, sobre o acto que queria cometer e escolheu para matar um objecto especialmente vocacionado para tal finalidade. Ainda que sentisse ciúme, o mesmo era “desmotivado”, isto é, sem fundamento plausível, pelo que não havia nenhum motivo próximo ou remoto que o impulsionasse irreflectidamente ao assassínio. A sua escolha foi, pois, pensada e não obra de momento.
Em suma, nenhum reparo merece a decisão recorrida na parte em que considerou o homicídio como qualificado, nos termos do disposto nos art.ºs 131º e 132º, n.º 2, als. b) e j) do Código Penal. Com efeito, para além da especial censurabilidade decorrente de ter morto o próprio cônjuge e de ter reflectido sobre os meios utilizados, a crueldade com que o agente actuou globalmente considerada, a sua motivação e a circunstância de a vítima ter deixado três filhos, de 13, 14 e 18 anos, levam a que o homicídio praticado tivesse de ser sempre considerado especialmente censurável.

6. Resta apreciar a questão da medida da pena.

“...A pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, pág. 570).
“É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica (mesma obra, pág. seguinte).
A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes.
“Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...” (ainda a mesma obra, pág. 575). “Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado” (pág. 558).
Estas orientações doutrinais estão espelhadas na lei, pois o art.º 40.º do CP indica, no n.º 1, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, no n.º 2, que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Por sua vez, o art.º 71.º do CP dispõe que «1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».

Ora, no caso em apreço, sendo o crime punível, em abstracto, com prisão de 12 a 25 anos, as instâncias fixaram a pena em 22 anos de prisão, isto é, muito para além do limite médio entre o mínimo e o máximo da pena.
Como se sabe, as circunstâncias que já serviram para a qualificação do crime não podem ser novamente consideradas na graduação da pena, por força do princípio “ne bis in idem”.
São circunstâncias agravantes para o efeito da graduação da pena, dentro da moldura já de si especialmente agravada do crime, a surpresa com que o recorrente agiu, a sua superioridade física, o meio de agressão utilizado, bem como a reiteração das pancadas e a presença local da filha de 14 anos de ainda os sentimentos revelados nas frases que proferiu durante e já depois dasua actuação.
Como atenuantes tem apenas os factos de não ter antecedentes criminais e de ser uma pessoa considerada no seu meio social.
A avaliação destas circunstâncias agravantes e atenuantes conduzem-nos a uma pena que se situa acima da média entre o máximo e o mínimo. Todavia, o Supremo Tribunal de Justiça, em casos similares de homicídio qualificado entre cônjuges, tem fixado a pena aplicada com uma oscilação média entre os 16 e os 20 anos de prisão, reservando as penas superiores a 20 anos de prisão para aquelas situações em que o agente é julgado por vários crimes (por exemplo, múltiplos homicídios ou casos em que, simultaneamente, há vários crimes graves sobre a mesma vítima, como rapto, roubo, violação e homicídio). Ora, competem ao Supremo Tribunal de Justiça funções de uniformização de critérios da medida da pena, com vista a um tratamento tão igualitário quanto possível, opu seja, sem deixar de atender à especificidade dos diversos casos.
Num sistema punitivo em que o máximo da pena, mesmo para um homicida em série, é de 25 anos de prisão, seguramente que a pena de 22 anos de prisão aplicada pelas instâncias se revela excessiva, entendendo-se, por isso, adequado fixar a pena em 20 (vinte) anos de prisão.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso do arguido, pelo que, mantendo a qualificação jurídica dos factos como crime de homicídio qualificado, mas na previsão dos arts. 131º e 132º, als. b) e j), do Código Penal, fixam a pena em 20 (vinte) anos de prisão.
Fixa-se em 6 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2010

Arménio Sottomayor (Relator)
Souto de Moura