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RAPTO
VIOLAÇÃO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COACÇÃO SEXUAL
MENOR
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONCURSO APARENTE
CONSUMPÇÃO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
AGRAVANTE
VIOLÊNCIA
Sumário
I -Na estruturação do CP, no que diz respeito à liberdade e autodeterminação sexual, o legislador introduziu uma importante distinção entre a protecção pura e simples da liberdade sexual, ou seja, do direito de cada um participar em qualquer actividade de cariz sexual, como sujeito activo ou passivo, apenas se e quando o quiser, e a protecção, para além desta liberdade, do livre desenvolvimento dos menores, na área sexual. II -Ali protege-se a liberdade do adulto em tudo quanto se reporta à área sexual, enquanto que aqui se protege o menor, para além do mais, da sua própria imaturidade em relação à sexualidade. III -Na circunstância de existir um crime contra a autodeterminação sexual imediatamente antecedido de um crime de rapto, coloca-se a questão de saber se este estará consumido por aquele ou se deverá ser objecto de uma punição autónoma. IV -Com a mesma resolução o agente pode decidir assumir um comportamento que preenche mais do que um tipo legal, protegendo bens jurídicos diferentes, ou um comportamento que viole várias vezes o mesmo tipo de crime que proteja um bem jurídico eminentemente pessoal; nestes casos, porém, a distinção entre a unidade ou pluralidade criminosa terá que se socorrer de critérios que não a unidade de resolução. V - Para além das hipóteses em que se está perante uma pura progressão criminosa, em que, sem se sair dos actos de execução de um tipo legal de crime, esses actos constituem já, só por si, outro crime (“crimes de passagem”), outros há em que se fala de “factos tipicamente acompanhantes”, “concomitantes”, “factos prévios não puníveis”, ou “crimes meio”. VI -Em relação a estes últimos, a nota comum é a de que a consumpção aparece quando “os sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se interceptam e se cobrem mutuamente, de tal modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição da dupla valoração” – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, I, pág. 1020. VII - Poder-se-ia defender que um “crime meio”, ou “crime instrumento”, fosse deixado impune, desde que se tratasse de crime menos grave e que protegesse o mesmo bem jurídico do “crime fim”. Crê-se, porém, que não será essencial à possibilidade da unidade criminosa a mesmeidade do bem jurídico atingido – v.g., furto da chave para furtar o veículo automóvel –, podendo ela ter lugar mesmo em face de bens jurídicos violados diferentes. VIII - No entanto, o “crime meio” tem sempre que surgir numa relação com o crime fim, tão estreita em termos normativos, que o desvalor do primeiro acto se possa encarar como razoavelmente compreendido no desvalor do acto principal. Ora, esta possibilidade exige que a gravidade do ilícito do crime meio se revele muito significativamente menor do que a do crime fim, tudo avaliado com referência às respectivas molduras penais. IX -A configuração da situação em apreço nos autos não permite prescindir do desvalor do comportamento do agente, que se analisou no rapto de uma menor, com 8 anos de idade, que foi presa na bagageira do carro, e levada para longe de casa, num percurso de, ao todo, 8 Km, até se imobilizar e tirá-la da mala da viatura. Esse comportamento não está coberto pela punição da coacção sexual e, para além de se protegerem bens jurídicos diferentes, está-se perante uma gravidade do “crime meio” (punido com a pena de 3 a 15 anos de prisão), ao lado da punição do crime fim (de 1 ano e 6 meses a 12 anos de prisão), que reclama a sua autonomização. X -Não procede a alegação do recorrente de que “os factos que poderiam agravar o crime de rapto foram os mesmos que fizeram a actuação do arguido subsumir-se no crime de violação, designadamente a violência utilizada pelo arguido para com a vítima”: a agravação do rapto resulta do facto do crime ser praticado “contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”, sendo patente a sua superioridade em razão da idade, que colocou a vítima sem possibilidade de qualquer defesa. XI -A partir do momento em que se autonomizou o crime de rapto do de coacção sexual, procedem as circunstâncias típicas qualificativas que a lei preveja para cada um. O cometimento do crime de rapto corresponde a uma momento da actuação do agente, em que a superioridade física em razão da idade foi um facto. O facto da vítima ser menor de 14 anos, independentemente do mais, torna-a por si só merecedora de maior protecção da violação. Daí a qualificação separada dos dois crimes.
Texto Integral
AA, solteiro, operário fabril, nascido a …/…/19…, residente antes de preso em Cantanhede, foi julgado a 24/11/2009 por tribunal colectivo do Círculo Judicial da Figueira da Foz, no Pº 544/08.6 JACBR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, e condenado pela prática do crime de rapto qualificado, p. e p. no art. 161º n.os 1 al. b) e nº 2 al. a) do C P, por referência ao art. 158º n.° 2 al. e) do mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, e do crime de violação agravado, p. e p. nos termos conjugados dos arts. 164º n.° 1 al. b) e 177º n.° 6, ambos C P, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Em cúmulo, foi condenado na pena única de 8 (oito) anos de prisão.
Foi ainda condenado ao pagamento de indemnização cível, à vítima, aos pais desta, ao Centro Hospitalar de Coimbra E. P. E., e à Administração Regional de Saúde do Centro, respectivamente, das quantias de 20.000 €, 2.500 €, 143,50 € e 30 €, com os acréscimos legais devidos.
A - DECISÃO RECORRIDA
1) Foram os seguintes, os factos considerados provados, na decisão recorrida:
“1 - no dia 6 de Novembro de 2008, cerca das 9 horas, o arguido encontrava-se junto a uma pequena praça situada no topo da rua Maria Amélia Magalhães Carneiro, em Cantanhede, no exterior do seu automóvel de marca "BMW" e modelo "318 TDS", de cor preta e matrícula …, ali estacionado, quando se aproximou a menor BB, na altura com 8 anos de idade, provinda de um caminho de terra batida que fazia a ligação do prédio onde a mesma reside à aludida praça;
2 - a menor circulava a pé e sozinha, efectuando o trajecto que diariamente percorria desde a sua residência até à Escola Básica do 1º Ciclo de Cantanhede, na rua Professor Mota Pinto, onde estudava;
3 - à aproximação da BB, o arguido procurou encetar uma conversa com ela, questionando-a sobre a identificação dos pais, o seu local de trabalho e horário, sem que a mesma tivesse respondido às suas perguntas;
4 - já com o propósito formulado de com ela satisfazer os seus instintos libidinosos, o arguido agarrou-a para a levar consigo para outro local;
5 - como a BB tentou resistir e começou a gritar, o arguido segurou-a pelo pescoço com força, tapou-lhe a boca e introduziu-a na bagageira do referido veículo automóvel, ordenando-lhe que se calasse;
6 - de imediato o arguido encetou a marcha pela rua Maria Amélia Magalhães Carneiro até virar à esquerda, entrando na avenida 25 de Abril, e depois à direita, para a avenida do Brasil;
7 - chegado ao fim da avenida do Brasil, o arguido virou à esquerda, prosseguindo pela rua Antero de Quental e pela Estrada de Coimbra até entrar na Estrada Nacional n.° 234-1;
8 - depois de percorrer alguns quilómetros, junto ao restaurante "A Pedreira", situado entre as localidades de Pena e de Portunhos (local onde actualmente existe uma rotunda), o arguido virou à direita no sentido de Outil, prosseguindo por uma estrada nova até alcançar novamente a Estrada Nacional n.° 584, no sentido de Outil, tudo sempre na área da comarca de Cantanhede;
9 - percorridos mais alguns quilómetros, em frente à pedreira da empresa "J. Batista Carvalho, Lda.", o arguido virou à direita, entrando em um caminho de terra batida, local com grande densidade de árvores e vegetação;
10 - percorreu mais 100 metros, aproximadamente, até virar à esquerda, e, finalmente, depois de novos 100 metros, parou o automóvel;
11 - ao longo de todo este percurso de cerca de 8 quilómetros a menor esteve sempre fechada na bagageira do veículo do arguido, sem conseguir libertar-se, não obstante ter procurado encontrar algum mecanismo que lhe permitisse abrir a mala do automóvel;
12 - assim que terminou a marcha, o arguido saiu do automóvel em direcção à bagageira, abriu esta e pegou na menor ao colo para a tirar do veículo;
13 - a BB, tentando mais uma vez libertar-se, acabou por cair em uma zona de silvas e o arguido voltou a pegar nela, obrigando-a a entrar no banco traseiro da viatura;
14 - aí, descalçou-a, despiu-lhe completamente as calças de fato de treino que trazia vestidas e as cuecas e ordenou-lhe que se deitasse, o que a menor assentiu, com medo;
15 - seguidamente, o arguido despiu as suas calças e cuecas e, colocando-se sobre a barriga da menor, de costas e com os joelhos flectidos, prendendo-a com o seu próprio corpo, friccionou a vagina da mesma com a mão, colocando os seus dedos no interior daquela;
16 - não obstante a menor lhe ter pedido para parar porque o arguido a estava a magoar, este prosseguiu na sua acção, durante mais alguns segundos;
17 - acto seguido, colocou a sua boca junto à vagina da menor e, introduzindo a língua, lambeu-lhe a vagina e o clitóris;
18 - prosseguindo nos seus intentos, o arguido começou a friccionar a vagina da menor com o seu pénis, no intuito de conseguir excitar-se e obter uma erecção, o que não conseguiu, pelo que cessou a sua acção sobre a BB;
19 - o arguido vestiu-se, então, e a BB fez o mesmo a si própria;
20 - seguidamente, foi à bagageira do automóvel buscar a mochila da BB que lá tinha ficado, entregou-a e disse-lhe para não contar nada do que se tinha passado, entregando-lhe para o efeito uma nota de € 5, duas moedas de € 1 e um rebuçado;
21 - entrou para o lugar do condutor e inverteu a marcha em direcção a Cantanhede, fazendo o percurso de regresso pelo mesmo trajecto até chegar à rua Antero de Quental, já na cidade de Cantanhede;
22 - chegado a Cantanhede, virou à direita para a rua de Santo António e, no final desta, em uma zona de terra batida, virou à esquerda, percorrendo cerca de 50 metros até imobilizar o veículo;
23 - quando o arguido se dirigiu à menor, pegando nela ao colo para a tirar do automóvel, esta deu-lhe um pontapé nos testículos e pôs-se em fuga em direcção a casa, na rua …, tendo passado primeiro pela linha do caminho de ferro paralela àquela rua, que dista cerca de 50 metros do local onde o arguido imobilizou o veículo;
24 - sempre a correr, a BB entrou em casa e, vendo que aí não se encontrava ninguém e o arguido também já não estava nas imediações, saiu depois em direcção à Escola;
25 - dos factos supra descritos, praticados pelo arguido na pessoa da menor BB, resultou, como consequência directa e necessária dos mesmos, um traumatismo a nível perinial, com vermelhidão e esfoliação entre a fúrcula posterior e a inserção do hímen;
26 - O arguido praticou os aludidos factos de forma premeditada, com o intuito de concretizar as suas fantasias sexuais na pessoa da BB, pois bem conhecia o percurso que a mesma fazia todos os dias para ir para a acima referida Escola Básica do 1º Ciclo de Cantanhede e, designadamente, que o único dia em que ia sozinha era precisamente à quinta-feira (dia da semana em que ocorreram os factos), quando o irmão mais velho, que habitualmente a acompanhava, iniciava as suas aulas mais cedo;
27 - com efeito, nos dias antecedentes o arguido rondou por várias vezes as instalações do estabelecimento escolar frequentado pela menor, circulando de um lado para o outro com o veículo automóvel acima identificado e parando nas suas imediações;
28 - o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, tendo perfeito conhecimento da idade da BB e bem sabendo que a sua conduta cerceava a liberdade de movimentos e ofendia a liberdade, dignidade e autodeterminação sexual da menor e, igualmente, punha em causa o normal e livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;
29 - o arguido sabia também que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;
30 - o arguido é solteiro e vive actualmente em casa de seus pais;
31 - é o mais novo de três irmãos, tendo os dois mais velhos já agregados familiares constituídos;
32 - completou o 8º ano de escolaridade;
33 - começou a trabalhar aos 18 anos de idade, primeiramente na agricultura e, depois, como empregado fabril;
34 - desde 2005 que vinha sendo acompanhado no Serviço de Neurologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, por queixas de cefalias recorrentes;
35 - detém capacidade adaptativa para pensar lógica e coerentemente, sendo capaz de chegar a conclusões razoáveis acerca das previsíveis consequências de determinados factos;
36 - no entanto, por vezes não se "esforça" para dar as respostas tidas como correctas às situações com que se confronta;
37 - por outro lado, tende sempre a não criar ligações estreitas nas suas relações com as pessoas que consigo interagem, mostrando-se na "defensiva" e sem grande interesse no que os outros poderiam esperar de si;
38 - até ao momento da realização da audiência de julgamento nunca expressou ou disse o arguido aos pais da BB (quer pessoalmente, quer por via telefónica, ou através de interpostas pessoas) o que quer que fosse quanto aos factos por si praticados em relação à menor;
39 - 0 arguido não tem antecedentes criminais;
40 - em consequência dos factos praticados pelo arguido (e acima descritos), a BB passou a viver em estado de agitação psicológica permanente, muito sobressaltada e assustada;
41 - assim, durante cerca de dois meses após o sucedido, não conseguiu dormir sozinha, no seu quarto, nem, tão-pouco, encetar qualquer tipo de conversação - mesmo na presença dos pais - com outras pessoas;
42 - ao mesmo tempo, apoderou-se da menor uma sensação de vergonha por tudo aquilo que consigo se passou;
43 - ao nível escolar (frequentava, à época, o 3º ano .da escolaridade básica) denotou algum abaixamento de rendimento, com uma menor prontidão na realização dos trabalhos de casa e uma menor capacidade de intervenção e integração nas actividades a decorrerem na sala de aula;
44 - devido a estas alterações comportamentais, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Cantanhede pediu ao Hospital de Cantanhede o acompanhamento psicológico da menor, iniciando esta consultas em Fevereiro de 2009 e mantendo-se ainda a decorrer tal acompanhamento;
45 - não obstante algumas progressivas melhorias no modo como consegue já pautar as suas relações com os outros no quotidiano (não vendo já necessariamente em cada estranho um potencial agressor), a BB ainda sente um enorme medo de que lhe possa acontecer, de novo, episódio factual similar ao perpetrado pelo arguido;
46 - ainda sente também, por vezes, grande dificuldade em conciliar o sono e de lidar com a circunstância de, mesmo em locais "seguros" (com familiares ou conhecidos por perto) estar momentaneamente sem alguém de confiança (maxime, os seus pais) ao seu lado;
47 - também em consequência dos factos praticados pelo arguido e as consequências daí advindas à menor, os pais da BB, CC e DD, passaram a sentir-se em sobressalto, revoltados e envergonhados, muito preocupados com o estado comportamental da filha;
48 - têm, igualmente, receio do exacto alcance dos efeitos futuros de todo o sucedido para a saúde e personalidade da menor;
49 - além disso, mantêm um estado de insegurança sempre que a sua filha tem de ficar mais longe de si;
50 - não mais permitiram que, em situação alguma, a BB se dirigisse sozinha para as aulas;
51 - com os tratamentos médico-hospitalares dispensados à menor BB no dia 6 de Novembro de 2008 no Centro de Saúde de Cantanhede, em consequência dos factos praticados pelo arguido, teve a Administração Regional de Saúde do Centro, I..P. uma despesa de € 30;
52 - por seu turno, com os tratamentos médico-hospitalares dispensados à mesma menor BB no dia 6 de Novembro de 2008, igualmente em consequência dos factos praticados pelo arguido, teve o Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. uma despesa de € 143,50.”
B - RECURSO
Foram as seguintes as conclusões da motivação do recurso interposto pelo arguido:
“I - O douto Acórdão recorrido padece, em nosso entendimento e salvo o devido respeito por opinião diversa, do vício de violação do disposto no artigo 30° do Código Penal, por condenar em concurso real e não aparente nos crimes de rapto qualificado e violação agravada, fazendo uma dupla valoração dos mesmos factos.
II - Das incorrecções supra descritas e do modo como o Meritíssimo Colectivo interpretou o artigo 30° do CP, resulta a violação do n°5 do artigo 29° da Constituição da República Portuguesa, pois, esta dupla valoração fará o arguido ora recorrente ser duplamente julgado pelos mesmos factos, violando-se o princípio in bis in idem.
III - In casu, acontece que a reacção contra a valoração concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos lato (rapto), se efectiva já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicas mais extensas (violação), ocorrendo uma relação de consumpção em que a norma que mais extensamente protege o complexo jurídico-penal em presença (violação) consome a norma que em menor amplitude o faz (rapto).
IV - No caso em apreço, existe um único tipo de resolução criminosa (violação), tendo a ofendida ficado privada do seu direito ambulatório pelo período de tempo estritamente "necessário" para que o arguido tivesse satisfeitos instintos libidinosos, sendo para tal imprescindível a sua limitação da liberdade.
V - Consequentemente, pela verificação da aludida violação do artigo 30° do CP, deverá o douto Acórdão recorrido ser revogado, com todas as devidas e legais consequências.
VI - Concomitantemente, foi violado o tipo legal de crime de rapto, previsto no artigo 161°, n°l, al.b), quer por esta norma ser consumida pela norma onde se insere o tipo legal do crime de violação, quer porque o Tribunal a quo não poderia condenar o arguido à luz do vertido na al. a) do n°2 do artigo 161° do CP, pois, os factos que poderiam agravar o crime de rapto foram os mesmos que fizeram a actuação do arguido ora recorrente subsumir-se no crime de violação, designadamente a violência utilizada pelo arguido para com a vítima no sentido de a constranger e conseguir violá-la.
VII - Pugnamos, ainda, que o douto Acórdão recorrido viola os artigos 40°, 71° e 50°, todos do CP, pois da hipotética imputação ao arguido ora recorrente da prática dos crimes em causa não poderia, de modo algum, resultar uma pena de prisão efectiva.
VIII - O douto Acórdão recorrido violou os critérios dosimétricos do artigo 71° do CP, nomeadamente, as alíneas c) d) e) e f), por não ter valorado devidamente as circunstâncias que depõem a favor do arguido, e que oferecem verdadeiro peso atenuativo.
IX - De facto, o douto Acórdão recorrido não valorou, como supra foi alegado, o facto do arguido ter confessado grande parte dos factos a si imputados, ter colaborado na descoberta da verdade material, ter desistido da sua acção contra a vítima, vir a ser acompanhado pelos serviços de neurologia dos HUC, necessitar de acompanhamento psicoterapeuta, ser um jovem de 31 anos e ser tido como uma pessoa de pacatez comportamental, recatado e trabalhador, factos que constituem uma relevante atenuação da sua culpa.Não foi valorado, ainda, o facto do arguido não ter antecedentes criminais, nunca ter praticado em toda a sua vida factos desconformes ao direito, sendo que este foi a única excepção, tratando-se de um caso isolado.
X - Tudo visto, deverá o arguido ser absolvido da pratica do crime de rapto qualificado, sendo o douto Acórdão revogado em conformidade ou, se esse não for o vosso mui douto entendimento ( o que não se espera), deve o arguido ser sujeito a uma pena não privativa da liberdade, suspendendo-se a pena que lhe vier a ser aplicada a qual não deverá ser superior a 5 anos de prisão, por se encontrarem preenchidos os pressupostos do artigo 50° do CP.
XI - Tal suspensão da execução da pena de prisão, poderá ficar sujeita ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta ou tal suspensão ser acompanhada de regime de prova.”
O Mº Pº respondeu, considerando que o recurso deve ser considerado improcedente e dever manter-se na íntegra a decisão recorrida, dizendo nas suas conclusões:
“1. O que está sob recurso é o douto acórdão de 24 de Novembro de 2009, constante dos autos com Processo Comum Colectivo n.° 544/08.6JACBR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede.
2. O recurso vem movido pelo arguido AA que foi condenado na pena de 4 (quatro) anos de prisão, pelo crime de rapto qualificado, do artigo 161°, n° l - b) e n° 2 - a), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 158°, n° 2 - e), do mesmo diploma legal; 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de violação agravado, dos artigos 164°, n° l - b) e 177°, n° 6, ambos do Código Penal e, em cúmulo jurídico, de acordo com os critérios dos artigos 30°, n°l e 77°, n°s 1 e 2, ambos do Código Penal, na pena única de 8 (oito) de prisão.
3. O recurso é de direito - artigo 434° do Código de Processo Penal.
4. Inexistem vícios dos previstos no artigo 410°, n°s 2 e 3 do Código de Processo Penal, pelo que a matéria de facto apurada na instância está definitivamente fixada.
5. Sucede que nenhuma das razões invocada pelo recorrente é a nosso ver procedente, não se vislumbrando, por outro lado, fundamentos para invalidar o douto acórdão recorrido, no todo ou em algum dos seus segmentos,
6. Com efeito, não se vislumbra que tenham sido violados quaisquer preceitos legais, nomeadamente os indicados pelo recorrente.
7. O douto acórdão ora em recurso apresenta-se devidamente motivado,
8. Tendo operado uma sábia subsunção jurídica e aplicação do direito.
9. Na verdade, tem sido entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça, que se perfilha, que sucedendo o crime de violação ao de rapto, como ocorreu no caso dos autos, se verifica concurso real entre estes ilícitos criminais.
10. Desde logo, são distintos os bens jurídicos protegidos por cada uma das incriminações.
11. Com efeito, a punição do rapto protege a liberdade pessoal, a violação do " ius ambulandi " de uma pessoa, com determinada intenção: a elencada nas diversas alíneas do n° l (cfr. Actas da Comissão Revisora, acta n° 24, pág. 241);
12. Ao passo que a punição da violação protege a liberdade sexual de cada um.
13. Ademais, o rapto de menor do artigo 161° do Código Penal pode ser praticado com várias intenções, entre as quais a de satisfazer as intenções libidinosas do agente. Mas seguramente que daí não resulta a impossibilidade de coexistência desses dois crimes de forma autónoma, se, posteriormente, por via de violação, se vierem a concretizar as intenções libidinosos.
14. De resto, a matéria de facto provada, segundo nos parece, não consente sequer a afirmação de que o rapto não se manteve para além do estritamente necessário à prática do crime de violação.
15. Também as penas aplicadas ao arguido se nos afiguram justas, necessárias e adequadas.
16. O tribunal recorrido ponderou em conjunto não apenas os factos e a personalidade do recorrente, bem como a ausência de antecedentes criminais, mas também as exigências de prevenção geral e especial, a gravidade da sua conduta, a segurança da sociedade em geral e a tutela dos bens jurídicos em causa.
17. A medida das penas determina-se em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.
18. A esta luz, impõe-se concluir que nada justifica que as penas concretas se situem num patamar inferior às fixadas.
19. É que os crimes praticados pelo arguido são dos mais hediondos que se podem cometer.
20. Se os crimes de rapto e de violação são repugnantes, independentemente do ser humano que os sofre, no caso dos autos há que ter em conta que a ofendida era uma criança com apenas oito anos de idade, forçada a descobrir do modo mais aterrador e brutal, como doutamente se refere na decisão ora em recurso, "em tempo e por forma absolutamente anormais, o mundo da sexualidade”.
21. Por outro lado, nos crimes contra a liberdade sexual, as exigências de prevenção geral são intensas, já que a comunidade sente fortemente a ofensa aos valores da liberdade e da autodeterminação sexual, cujo respeito constitui uma referência essencial para o livre desenvolvimento da personalidade de cada um.
22. Também as necessidades de prevenção especial, não obstante a ausência de antecedentes criminais do arguido, são prementes, uma vez que os crimes por ele praticados revelam personalidade muito desajustada à vida em sociedade.
23. Tudo isso para concluir que se entende ser impensável aplicar ao arguido em cúmulo jurídico, face à gravidade dos factos por ele praticados e à sua personalidade, pena única inferior a 8 (oito) anos de prisão, mostrando-se consequentemente prejudicada, sem necessidade de mais considerações, a questão da suspensão da execução da pena de prisão.”
Já neste S T J, e no douto parecer que emitiu, o Mº Pº considerou que o arguido AA cometeu, não o crime de violação agravada e sim o de abuso sexual. Referiu a propósito:
“Questão prévia
O arguido AA foi condenado por autoria de um crime de violação agravada p.p. pelos arts. 164º, al. a), nº 1, al. b) e 177º, nº 6.
Parece-nos, no entanto que os factos dados como provados integrarão o crime de abuso sexual de crianças p. no art. 171º, nºs 1 e 2 do CP.
Os pressupostos do crime de violação e de abuso sexual p. no nº 2 do art. 171º são idênticos aos p. no art. 164º, mas sem violência e cópula e a medida das penas é também de 3 a 10 anos; por outro lado a agravante p. no nº 6 do art. 177º - ter menos de 14 anos, já faz parte do tipo de crime/abuso sexual de crianças.
Os factos dados como provados e resultantes da acção do arguido e essenciais para o cometimento do crime são os seguintes 1 - “BB na altura com 8 anos de idade, provinda de um caminho de terra batida que fazia a ligação do prédio onde a mesma reside à aludida praça; 5 - como a BB tentou resistir e começou a gritar, o arguido segurou-a pelo pescoço com força tapou-lhe a boca e introduziu-a na bagageira do referido veículo automóvel, ordenando-lhe que se calasse: 11 – ao longo de todo este percurso de cerca de 8 quilómetros a menor esteve sempre fechada na bagageira do veículo do arguido, sem conseguir libertar-se; 13 – a BB, tentando mais uma vez libertar-se, acabou por cair em zona de silvas e o arguido voltou a pegar nela, obrigando-a a entrar no banco traseiro da viatura; 15 – seguidamente, o arguido despiu as suas calças e cuecas e, colocando-se sobre a barriga da menor, de costas e com os joelhos flectidos, prendendo-a com o seu próprio corpo, friccionou a vagina da mesma com a mão, colocando os seus dedos no interior daquela; 16 - não obstante a menor lhe ter pedido para parar porque o arguido a estava a magoar, este prosseguiu na sua acção, durante mais alguns segundos … acto seguido, colocou a sua boca junto à vagina da menor e, introduzindo a língua, lambeu-lhe a vagina e o clítoris; 18 - prosseguindo nos seus intentos, o arguido começou a friccionar a vagina da menor com o seu pénis no intuito de conseguir excitar-se e obter uma erecção, o que não conseguiu, pelo que cessou a sua acção sobre a BB; 25 - dos factos supra descritos praticados pelo arguido na pessoa da menor BB resultou, como consequência directa e necessária dos mesmos, um traumatismo a nível perinial, com vermelhão e esfoliação entre a fúrcula posterior e a inserção do hímen”.
É certo que o crime de violação se encontra uma relação de especialidade face ao crime de coacção sexual, embora ambas sejam tuteladas pelo mesmo bem jurídico-liberdade sexual.
Mas se na violação é protegida a autodeterminação sexual e direito à saúde da vítima, no caso do abuso sexual de crianças estas são complementadas pelo desenvolvimento natural da sexualidade e personalidade da criança.
Como diz Figueiredo Dias (Com. Conimbricense, CP, TI, 541) a prática de actos sexuais com menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor.
Parece-nos, pois que os factos dados como provados poderiam/deveriam ser requalificados por integrarem o crime de abuso sexual p.p. pelo art. 171º, nºs 1 e 2 do CP (neste sentido o ac. STJ de 28.05.08, p. 1129/08, 3ª sec).
Quanto ao pretendido cometimento de um só crime pelo arguido refere:
“1. – O arguido pretende defender que apenas pode ser condenado pelo crime de violação e ser absolvido do crime de rapto, mas para que tal pudesse acontecer o arguido teria de só ter privado de liberdade a menor BB para poder abusar sexualmente dela no local em que a esperou, sem ter necessidade de sair de Cantanhede, depois de metê-la na bagageira e de conduzir o veículo cerca de 8 Km para encontrar um lugar ermo mas “abrigado” para o poder fazer.
“O crime rapto(consumado) não exige a consumação do “crime-fim” (isto é, não exige a realização da intenção do raptor) nem sequer o inicio da tentativa deste crime, basta-se com a finalidade ou intenção de o praticar. Deste modo se o raptor concretiza a sua intenção, responderá em concurso efectivo, pelo crime de rapto e pelo crime sexual (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbrissence, Código penal, T.1, fls. 430)
Os pressupostos de cada um dos crimes não são coincidentes e o arguido/recorrente privou a menor BB de chegar á escola metendo-a na bagageira porque ela não aceitou entrar no carro e só depois de chegar a um sítio isolado e a despir já no interior do veículo a sujeitou, obrigou a suportar o seu contacto sexual.
O arguido AA privou de liberdade de movimentos a vítima BB para depois poder privá-la da liberdade de autodeterminação sexual.
A duração da privação da liberdade de movimento ultrapassou pois o tempo e modo suficiente para a prática do abuso sexual.
Há sem dúvida um concurso real entre os dois crimes de rapto e abuso sexual pois as acções sucederam-se sem terem ocorrido simultaneamente pelo que, segundo nos parece o arguido/recorrente deverá manter-se condenado pela autoria de dois crimes que cometeu (neste sentido os acórdãos do STJ de 04.10.2007, p. 3232/07, 5ª sec., de 26.03.2008, p. 104/08, 3ª, entre outros).
E quanto às penas aplicadas:
“2. – O arguido/recorrente AA apenas impugna a medida da pena por autoria do crime de violação ao entender que devia ser absolvido pelo crime de rapto e por isso defende que a mesma não deverá ser superior a 5 anos e suspensa na sua execução.
Como questiona apenas uma das penas parcelares, a pena de 4 anos a que foi condenado, dever-se-á manter, até devido à proibição de reformatório “in pejus” (art. 409º) quando o crime de rapto foi cometido contra uma criança de 8 anos particularmente indefesa.
2.1. – A questão da correcta medida da pena tem a ver com a problemática dos fins das penas, muito debatida na doutrina.
Se por um lado a pena é uma reacção prática que, ao dizer de Anabela Rodrigues (in Determinação da Medida da pena Preventiva de Liberdade, fls. 151):
“é o meio mais enérgico ao dispor do poder instituído para assegurar a convivência pacífica dos cidadãos em sociedade, mas é simultaneamente o que toca de mais perto a sua libertação, segurança e dignidade”.
Por outro lado, também constitucionalmente, a pena tem por finalidade a prevenção - quer preventiva geral quer especial.
Também tem sido a orientação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que tem considerado quanto "à medida da pena que é susceptível de revista de correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis; a falta de indicação dos factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas já não a determinação dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (Ac. STJ de 03.11.2005, p. 2952/05,5ª sec.).
Na graduação da pena deve, pois, olhar-se para as funções de prevenção geral especial das penas, não se podendo perder de vista a culpa do arguido.
E só depois de estabelecidos os parâmetros da culpa e da prevenção na maneira de determinar em concreto a pena, é que é possível passar à sua dosimetria.
As exigências de prevenção especial e a culpa do agente, é que estão na base da graduação das penas entre o mínimo e o máximo estabelecidos.
As penas a aplicar não deverão pois ultrapassar a satisfação das exigências da culpa sendo o limite máximo, as exigências de prevenção, no caso concreto há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta ás necessidades da sua reintegração social (acs. do STJ de 07.06.2000, proc. n.º 295/00 e de 02.02.05, 3ª sec, 3ª sec.).
2.2. – O crime de abuso de menor é um crime de perigo abstracto porque é posta em causa a autodeterminação sexual, havendo um prejuízo grave para o livre desenvolvimento da personalidade dos menores, ainda que presumido.
E por isso as exigências de prevenção geral deverão ter uma finalidade muito relevante para preservar estes valores de desenvolvimento atendendo à incapacidade do menor devida à idade.
Mas também é certo que outros elementos, designadamente os de prevenção especial e as relativas ao arguido, não podem deixar de se analisar para a medida da pena a determinar quanto o crime de violação ou abuso sexual da criança.
2.3. – O tribunal da 1ª instância apesar de doutrinariamente muito fundamentar a fixação da(s) pena(s) em concreto considerar apenas que: - o dolo do arguido (que se revela directo, pois provado ficou ter actuado ele de modo consciente, determinado e lúcido, orientado por uma evidente voluntas de preenchimento dos tipos de ilícito em questão); - a personalidade do arguido (que parece apontar para uma certa falta de consciencialização do sentido dos seus actos), e as suas condições de vida (cabendo aqui uma nota quanto ao seu enquadramento familiar e comunitário); - a ausência de antecedentes criminais.
2.3.1 – Na determinação concreta da pena a aplicar por autoria do crime de violação ou abuso sexual de crianças não se podendo atender às circunstâncias que fazem parte do tipo de crime, dever-se-ía ter atendido à culpa e à ilicitude e demais circunstâncias a favor ou contra o arguido.
Uma vez que haverá ausência de fundamentação que tenha esta abrangência especialmente quanto à ilicitude o modo de execução e a gravidade das consequências, parece-nos que, oficiosamente deveria ser anulado o douto acórdão recorrido apenas e só quanto à medida da pena pelo crime que o arguido foi condenado ou vier a ser condenado, pois, o dolo e as circunstâncias pessoais são insuficientes perante a matéria de facto dada como provada.
2.3.2 – Segundo nos parece a medida da pena aplicada 6 anos e 6 meses mesmo quanto no crime de abuso sexual de crianças estará entre a realização das necessidades preventivas gerais e especiais, se se atender não só à actividade preparatória do arguido – de carro ter rondado a escola e parando nas imediações mas também à gravidade das consequências na criança BB – ter passado a viver em estado de agitação psicológica permanente, muito sobressaltada e assustada, durante cerca de dois meses não ter conseguido dormir sozinha, ter denotado algum abaixamento de rendimentos e só depois de acompanhada psicologicamente ter melhorada apesar de continuar a ter medo do que lhe possa acontecer de novo e de estar momentaneamente sem alguém de confiança.
Por tudo isto ao contrário do que o arguido/recorrente pretende as circunstâncias pessoais foram valoradas pelo tribunal recorrido e a idade d 31 anos e a ausência de antecedentes criminais, o tratamento neurológico desde 2005 por “queixas de cefalias recorrentes” mostrando-se na “defensiva” com os outros, a trabalhar desde os 18 anos, viver com os pais nunca ter expressado qualquer arrependimento conjuntamente com os sentimentos manifestados no crime, as suas consequências, ilicitude e culpa, não poderão levar a fixar a pena em 5 anos.
O arguido/recorrente foi condenado como autor de crime de violação (abuso sexual de menor, segundo nos parece) agravado na pena de 6 anos e seis meses, na moldura de 4 anos a 13 anos e 4 meses, podendo quanto muito ser fixada mais próxima dos 6 anos, atendendo aos graus da ilicitude e à culpa.
3. – O douto acórdão recorrido entendeu fixar a pena de crime de rapto/qualificado em 4 anos e a pena de crime de violações agravada em 6 anos e 6 meses, em cúmulo já fixada a pena única de 8 anos.
Nos termos do n.º 2 do art. 77º em cúmulo a pena unitária tem como limite mínimo 4 anos e limite máximo 10 anos e 6 meses, mas o arguido/recorrente não impugna directamente a pena única de 8 anos que foi fixada e devido ao conjunto dos factos, as consequências e a sua personalidade parece-nos que não deveria ser alterada, a menos que a pena mais grave seja diminuída.
Por fim quanto à questão da suspensão da pena:
4. – A hipótese de suspensão da execução da pena só poderia questionar-se nos termos do disposto no art. 50º do CP, se a pena fosse fixada até 5 anos, mas o arguido não poderá vir a ser condenado nessa medida da pena pois em concurso das penas que lhe foram ou vierem a ser aplicadas, a pena única não poderá ser inferior pelo menos a 7/8 anos de prisão efectiva.
Assim, e por tudo isto somos do parecer que oficiosamente poderá ser conhecida a questão da requalificação dos factos em abuso social de crime(s) mas o recurso interposto pelo arguido AA, apenas quanto à medida da pena aplicada pelo crime de violação não poderá merecer provimento a menos que seja considerada insuficiente a fundamentação da medida das penas e por omissão o acórdão recorrido seja julgado nulo (art.º 379º e 71º do C.P.P.).”
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se a julgamento em conferência.
C - APRECIAÇÃO
As questões a apreciar são:
1) Qualificação do comportamento do arguido como crime de violação ou de abuso sexual.
2) Cometimento de dois crimes em concurso real ou tão só aparente.
3) Qualificação do crime de rapto
4) Medida das penas.
5) Eventual suspensão da pena.
Vejamos então.
1) Como se viu, o Mº Pº, já neste S T J, pretendeu que a correcta qualificação do comportamento do arguido passasse pela imputação do crime p. e p. no art. 171º, nºs 1 e 2 do CP, e não, como fez a decisão recorrida, do crime p. e p. no art. 164º, nº 1, al. b) e 177º, nº 6, do C P. No entanto, sem razão.
É sabido que, na estruturação do nosso C P, no que diz respeito à liberdade e auto determinação sexual (Livro II, Título I, Capítulo V), o legislador introduziu uma importante distinção entre a protecção pura e simples da liberdade sexual, ou seja, do direito de cada um participar em qualquer actividade de cariz sexual, como sujeito activo ou passivo, apenas se e quando o quiser (Secção I), e a protecção, para além desta liberdade, do livre desenvolvimento dos menores na área sexual (Secção II). Ali protege-se a liberdade do adulto em tudo quanto se reporte à área sexual. Aqui protege-se o menor, também, da sua própria imaturidade em relação à sexualidade. Como aponta Figueiredo Dias, “se na Secção II o bem jurídico protegido é também, como na Secção I, a liberdade e autodeterminação sexual, é-o quando ligado a outro bem jurídico, a saber, o do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual” (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pag. 442).
Só que, por assim ser, nem por isso terão que relegar-se para a Secção dos crimes contra a auto determinação sexual, todos os comportamentos em que a vítima seja menor, e, claro, relevem da área sexual. Sublinhe-se que nos “Crimes contra a auto determinação sexual” a vontade do menor de 14 anos é considerada de nenhum ou escasso relevo (atente-se, na verdade, no facto de o menor de 14 anos ter que ser “importunado”, com o sentido de contrariado, para preenchimento do crime da al. a) do nº 3 do artº 171º do C P ), porque o que o que verdadeiramente se protege não é um contrariar da vontade da vítima. Mas, pelo contrário, nos crimes contra a liberdade sexual, essa vontade ligada às coisas do sexo, que se quer livre, constitui exactamente o bem protegido.
Assim sendo, estando em causa uma vítima menor de 16 ou 14 anos, de crime de coacção sexual ou de violação, em que sobressai um constrangimento forte da vontade, o crime é o do artº 163º ou 164º do C P, consoante os casos, do mesmo modo que se tratasse de pessoas com idade superior àquelas. E a protecção do outro interesse envolvido, por em estar em causa um menor de 16 ou 14 anos, é atendida através da agravação dos nºs 5 ou 6 do artº 177º do C P. Daí, também, que a pena sofra uma agravação de metade, em ambos os seus limites, concretamente se a vítima tiver menos de 14 anos (como é o caso dos autos).
Assim estando em causa o crime do artº 171º, nºs 1 e 2 do CP, que prescinde de qualquer constrangimento, a pena é de 3 a 10 anos. Mas se tiver lugar o crime p. e p. no art. 164º, nº 1, al. b) e 177º, nº 6, do C P., porque se exige essa componente da violência, ameaça grave, colocação no estado de inconsciência ou impossibilidade de resistência, juntamente com o factor idade, a pena passa para 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão.
No caso dos autos, a factualidade configura uma situação de clara violência (ou colocação em estado de impossibilidade de resistência).
“(…) a BB, tentando mais uma vez libertar-se, acabou por cair em uma zona de silvas e o arguido voltou a pegar nela, obrigando-a a entrar no banco traseiro da viatura; 14 - aí, descalçou-a, despiu-lhe completamente as calças de fato de treino que trazia vestidas e as cuecas e ordenou-lhe que se deitasse, o que a menor assentiu, com medo; 15 - seguidamente, o arguido despiu as suas calças e cuecas e, colocando-se sobre a barriga da menor, de costas e com os joelhos flectidos, prendendo-a com o seu próprio corpo, friccionou a vagina da mesma com a mão, colocando os seus dedos no interior daquela;
6 - não obstante a menor lhe ter pedido para parar porque o arguido a estava a magoar, este prosseguiu na sua acção, durante mais alguns segundos;”
Aliás, bem se alcança essa situação de violência face ao facto de o arguido ser um homem de 30 anos, à data, e a vítima ser uma rapariga de 8 anos. Sendo certo que, como resulta do que se disse, tal superioridade física, enquanto tal, não é o que é atendido pela agravação do artº 177º, nº 6, do C P.
Importa no entanto ter em conta outra questão, que é esta:
O afastamento, no caso, do crime do art. 171º do C P, nem por isso nos leva, ipso facto, para o cometimento do crime de violação do art. 164º do mesmo C P.
Importa ter em atenção o teor do exame pericial médico-legal de fls. 126, a que a menor foi submetida após os factos, e que revela que não teve lugar penetração vaginal, e a BB permaneceu virgem depois do abuso a que foi submetida. Aí se diz, de facto, que a menor apresentava "Hímen anular, de coloração rosada uniforme, sem soluções de continuidade”. Acrescentando-se que “O ostíolo himenial apenas permitia a introdução do dedo mínimo do médico forense que procedeu ao exame".
Assim sendo, quando no ponto 15 da matéria de facto dada por provada se diz que o arguido “friccionou a vagina da mesma com a mão, colocando os seus dedos no interior daquela”, deveria ter-se referido que o recorrente praticou esses actos na vulva e não na vagina da menor. O que também está em consonância com as lesões apresentadas: “25 - dos factos supra descritos, praticados pelo arguido na pessoa da menor BB, resultou, como consequência directa e necessária dos mesmos, um traumatismo a nível perinial, com vermelhidão e esfoliação entre a fúrcula posterior e a inserção do hímen;” Sabido que a fúrcula é, na vulva, “a prega cutânea formada pela reunião da extremidade posterior dos pequenos lábios (comissura posterior dos pequenos lábios)” [cf. Manuila, Lewalle e Nicoulin “Dicionário Médico”, Cilmepsi Editores, pag.280].
Do mesmo modo, em rigor, o que se deveria dizer no ponto 18 dos factos provados é que “prosseguindo nos seus intentos, o arguido começou a friccionar, [não a vagina, mas] a vulva da menor com o seu pénis, no intuito de conseguir excitar-se e obter uma erecção, o que não conseguiu, pelo que cessou a sua acção sobre a BB”.
Houve, portanto, uma mera confusão de termos em relação aos órgãos do aparelho genital feminino.
E assim, onde nos pontos 15 e 18 da matéria de facto se lê “vagina” terá querido dizer-se “vulva”, daí tendo que se retirar as devidas consequências. Vejamos então quais são.
A imputação do crime de violação (agravado) ao recorrente, reclamaria, no caso, “introdução vaginal (…) de partes do corpo” (cf. art. 164º, nº 1, al. b) do C P), concretamente dedos ou pénis do arguido. Essa ocorrência, não tendo tido lugar, afasta o cometimento do crime de violação. Diga-se ainda, ex abutandi, que nunca integraria hoje o crime de violação, a mera cópula vulvar, caso a mesma tivesse ocorrido (cf. v. g. P. P. Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, pag. 450, e referências aí citadas). Portanto, o recorrente cometeu o crime de coacção sexual agravado das disposições combinadas dos art.s 163º nº1 e 177º nº 6 do C P.
2) O recorrente entende que o crime contra a liberdade sexual da vítima, para ele ainda violação, foi cometido em concurso meramente aparente com o de rapto. Mas também não tem razão.
A questão é a de se saber se o rapto, a considerar “facto prévio não punível”, está consumido pelo crime de coacção sexual, ou se, pelo contrário, deverá ser objecto de uma punição autónoma.
O funcionamento do disposto no nº 1 do artº 30º do C.P., manda aferir o número de crimes pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, para além da hipótese, que não vem ao caso, de haver o preenchimento pela conduta do agente, várias vezes, do mesmo tipo de crime. Ora, crimes efectivamente cometidos, tem também o sentido, de que os crimes se não encontram numa mera relação de concurso aparente ou de normas.
A questão colocada pelo recorrente inscrever-se-ia, a seu ver, numa situação de consunção:
“(…) a reacção contra a valoração concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos lato (rapto), se efectiva já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicas mais extensas (violação), ocorrendo uma relação de consumpção em que a norma que mais extensamente protege o complexo jurídico-penal em presença (violação) consome a norma que em menor amplitude o faz (rapto)”.
O recorrente põe além disso alguma ênfase, na unidade de resolução criminosa, como determinante, no caso, da unidade criminosa. E diz: “(…) No caso em apreço, existe um único tipo de resolução criminosa (violação), tendo a ofendida ficado privada do seu direito ambulatório pelo período de tempo estritamente "necessário" para que o arguido tivesse satisfeitos instintos libidinosos, sendo para tal imprescindível a sua limitação da liberdade”.
Quanto a esta última questão, ela não fornece, em princípio, critério prestável de aferição da unidade ou pluralidade de infracções, porque, com a mesma resolução, o agente pode decidir assumir um comportamento que preenche mais do que um tipo legal, protegendo bens jurídicos diferentes, ou um comportamento que viole várias vezes o mesmo tipo de crime que proteja um bem jurídico eminentemente pessoal. Nestes casos, a distinção entre a unidade ou pluralidade criminosa passa por outras razões que não a unidade de resolução.
Não se esquece que a unidade de desígnio criminoso pode, num certo condicionalismo, servir de apoio à conclusão de que se está perante “um sentido fundamentalmente unitário do ilícito” que aponte para a consunção (cf. Figueiredo Dias in “Direito Penal - Parte Geral” Tomo I, pag. 1020). Não será porém essa unidade de desígnio ou resolução, em si, que sustentará a opção pela unidade criminosa.
È sabido que a consunção surge nas situações em que “a condenação pelo ilícito-típico mais grave exprime já de forma bastante o desvalor de todo o comportamento” (cf. Figueiredo Dias, loc. cit. pag. 1001), ou, nas palavras de Jescheck/Weigend, nos casos em que “o conteúdo da ilicitude e da culpa de uma acção típica inclui também outro facto, ou se for o caso, outro tipo; deste modo, a condenação, a partir do ponto de vista tomado, esgota e expressa o desvalor do ocorrido, no seu conjunto” (in “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, pag. 792).
Para além dos casos em que se está perante uma pura progressão criminosa, em que, sem se sair dos actos de execução de um tipo legal de crime, esses actos constituem já, só por si, outro crime (“crimes de passagem”, “durchgangdelikte” na doutrina alemã), outros há em que se fala de “factos tipicamente acompanhantes”, “concomitantes”, “factos prévios não puníveis”, ou “crimes meio”. Em relação a estes, a nota comum é a de que a consunção aparece quando “os sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se interceptam e se cobrem mutuamente, de tal modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição de dupla valoração” (cf. Figueiredo Dias, loc. cit. pag.1002).
Poder-se-ia defender que um “crime meio” “ou crime instrumento”, fosse deixado impune, desde que se tratasse de crime menos grave e que protegesse o mesmo bem jurídico do “crime fim” (neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Português”, tomo 1º, pág. 339). Cremos porém que não será essencial à possibilidade da unidade criminosa a mesmeidade do bem jurídico atingido (v. g. furto de chave para furtar o carro, dano na porta para assaltar a casa, furto de cartão para levantar dinheiro numa caixa multibanco), podendo ela ter lugar, mesmo em face de bens jurídicos violados diferentes (danos na roupa ou em adereços da mulher, ofensas corporais leves, tudo no contexto de uma violação). Assim v. g. Palma Herrera in “Los actos Copenados”, Madrid Dykinson, pag. 184 ).
O crime meio tem porém que estar numa relação com o crime fim, que se revele estritamente instrumental, no condicionalismo (e não, evidentemente, em abstracto). Ou seja, não pode ultrapassar o que se mostre normalmente necessário para cometer o crime principal, tendo em conta a estratégia escolhida pelo agente.
E o crime meio tem também que surgir numa relação com o crime fim, tão estreita em termos normativos, que o desvalor do primeiro acto se possa encarar como razoavelmente compreendido no desvalor do acto principal. Ora, esta possibilidade exige que a gravidade do ilícito do crime meio se revele muito significativamente menor do que a do crime fim, tudo avaliado com referência às respectivas molduras penais.
Nas palavras de Jescheck/Weigend, não poderemos estar perante um comportamento que “fica fora do curso regular do acontecimento”, ou que, por outro lado, apresenta inegavelmente “um conteúdo de ilícito próprio” (loc. cit. pag.794).
Analisando agora os factos dados por provados verificamos que o arguido teve sempre só o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos (pontos 4 e 50). Como a BB tentou resistir e começou a gritar, quando o arguido a agarrou para a levar para outro local, então aquele segurou-a pelo pescoço com força, tapou-lhe a boca e introduziu-a na bagageira do carro mandando-a calar (ponto 5). Os factos revelam a ocorrência de um dolo subsequente, em relação ao rapto, e surgido quando o arguido ficou confrontado com a resistência da menor.
Sem que este facto seja só por si decisivo, o que é certo é que depois de encerrar a BB na bagageira do seu carro, o recorrente andou às voltas em Cantanhede, saiu da localidade, e percorreu ao todo oito quilómetros, até se imobilizar e tirar a vítima da mala da viatura. Para que o crime meio, aqui o crime de rapto, entre em concurso real com o crime de coacção sexual, crime fim, seria preciso, em primeiro lugar, que se tivesse dado por provado que o recorrente excedeu aquilo que era razoavelmente necessário, no condicionalismo, para atingir o objectivo de satisfazer os seus propósitos libidinosos. A matéria de facto é omissa a tal propósito, e ficamos pois sem saber se o crime de coacção sexual poderia ter sido praticado num local mais perto do sítio do rapto, por existirem, nessas condições, outros locais suficientemente isolados, do conhecimento do arguido, ou não. Na dúvida, ter-se-ia que decidir agora em favor do recorrente, o que implicaria que se aceitasse que o mesmo não se afastou do “curso regular do acontecimento”. No caso, levar a BB para um sítio que lhe propiciasse, com a segurança suficiente, satisfazer-se sexualmente.
Acontece, porém, que não basta para a configuração da unidade criminosa, como se viu, que o crime meio se considere estritamente necessário ao cometimento do crime fim. É preciso que o crime meio tenha uma gravidade de tal modo diminuta, para, na imagem global do facto, poder prescindir-se da sua valoração autónoma. O cerne da consunção parte exactamente deste dado.
Ora, a configuração de todo o episódio em apreciação, não permite prescindir do desvalor do comportamento do agente, que se analisou no rapto de uma menor, com oito anos, que foi presa na bagageira do carro, e levada para longe de casa. Esse comportamento não está coberto pela punição de coacção sexual. Para além de se protegerem bens jurídicos diferentes, estamos perante uma gravidade do crime meio (punido com a pena de 3 a 15 anos de prisão, ao lado da punição do crime fim que é 1 anos e 6 meses a 12 anos de prisão), que reclama a sua autonomização.
A jurisprudência do S T J conta com inúmeras decisões que recusaram o concurso aparente de crimes em situações semelhantes (cf. v. g. Ac. de 11/11/2004, Pº 3259/04, e decisões aí recenseadas).
3) Pretende também o recorrente que não poderia ter sido condenado nos termos da al. a) do n°2 do artigo 161° do CP, “pois os factos que poderiam agravar o crime de rapto foram os mesmos que fizeram a actuação do arguido ora recorrente subsumir-se no crime de violação, designadamente a violência utilizada pelo arguido para com a vítima no sentido de a constranger e conseguir violá-la”.
Recorde-se que o normativo citado manda agravar a pena do crime de rapto se se verificar alguma das circunstâncias do nº 2 do artº 158º do C P. E, de facto, de acordo com a al. e) desse nº 2, a agravação resulta do facto de o crime ser praticado “contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez”. É patente, no caso, a superioridade em razão da idade, que colocou a vítima, evidentemente, sem possibilidade de qualquer defesa. Ora, a partir do momento em que se autonomizou o crime de rapto do de coacção sexual, procedem as circunstâncias típicas qualificativas que a lei preveja para cada um. O cometimento do rapto corresponde a um momento da actuação do agente, em que a superioridade física em razão da idade foi um facto. Na altura da coacção sexual, por certo que o agente usou de violência física contra a vítima, e também não oferece dúvida que o simples facto de esta ter menos de 14 anos, independentemente do mais, a torna merecedora de maior protecção. Daí a qualificação. Não ocorre qualquer repetição da mesma circunstância agravativa, e em relação ao mesmo crime.
4) O recorrente insurge-se contra a dosimetria da pena aplicada pelo crime de violação (já que entende que deveria ter sido absolvido do crime de rapto), e porque a pena correcta a aplicar nunca poderia exceder os 5 anos de prisão, deveria ser suspensa na sua execução. Alega que não foram valorizadas devidamente as circunstâncias que militam a seu favor. Vejamos então.
O artº 40º do C P assinala no seu nº 2 uma função da pena que se analisa na protecção de bens jurídicos e na reinserção social do delinquente. A cumulação destes dois desideratos tem-nos feito ver, no primeiro, designadamente objectivos de prevenção geral positiva, e no segundo de prevenção especial também positiva. Neste contexto, o caminho a seguir cifrar-se-á em procurar encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, a partir da moldura penal abstracta, a qual terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cf., sobretudo, F. Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.).
Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir.
O nº 2 do artº 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
No caso, são evidentemente fortes as necessidades de prevenção geral. O crime cometido é dos que maior alarme público causa, e a comunidade tem que manter a confiança na actuação da justiça.
Os traços da personalidade do arguido que foram apontados também reclamam algumas exigências ao nível prevenção especial: “por vezes não se "esforça" para dar as respostas tidas como correctas às situações com que se confronta”; “por outro lado, tende sempre a não criar ligações estreitas nas suas relações com as pessoas que consigo interagem, mostrando-se na "defensiva" e sem grande interesse no que os outros poderiam esperar de si”.
Acresce que, o facto de um homem de trinta anos procurar uma miúda de oito para satisfazer os seus apetites sexuais, e do modo como o fez, pode denunciar uma parafilia, responsável por impulsos dificilmente controláveis, e, no entanto, perfeitamente compatível com uma vida social e familiar, aparentemente normal.
A culpa mostra-se elevada em consonância com o facto de ao arguido ter sempre actuado com dolo directo. A ilicitude apresenta-se também com um grau alto, quer no tocante ao desvalor de acção quer de resultado.
Na verdade, em matéria de circunstâncias não compreendidas nos tipos legais de crime, serão de apontar com valor agravativo a forma premeditada como o arguido preparou a sua actuação, bem patente nos factos provados 26 e 27, e as consequências muito gravosas para a menor da actuação do arguido, como se vê dos factos provados 40 a 50.
Não têm que ser consideradas atenuantes a confissão e um possível arrependimento, que não são sequer aflorados na matéria de facto dada por provada. Também a circunstância de o arguido ter 30 anos ser solteiro e viver com os pais não assume especial relevo atenuativo. Tal como, aliás, não lhe serem conhecidos outros crimes, já que não cometer crimes é exactamente o que se exige ao comum dos cidadãos. Está, no entanto, inserido familiar e socialmente.
A moldura penal do crime de rapto qualificado, p. e p. no art. 161º n.os 1 al. b) e nº 2 al. a) do C P, por referência ao art. 158º n.° 2 al. e) do mesmo diploma legal, é de 3 a 15 anos de prisão e por tal crime foi aplicada a pena de quatro anos de prisão. Muito próxima, portanto, do limite mínimo. Não existe qualquer motivo para alterar esta pena.
A moldura penal do crime de coacção sexual agravado, p. e p. nos termos conjugados dos arts. 163º n.° 1 e 177º n.° 6, ambos C P, é de 1 ano e 6 meses a 12 anos de prisão. Importa então encontrar a pena concreta a aplicar por este crime. Situar-se-á, também, na metade inferior da moldura, e é de quatro anos e seis meses de prisão.
Quanto ao cúmulo a operar, importa ter em conta que, à luz do nº 1 do artº 77º do C.P., na escolha da medida da pena única, se deverá avaliar “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E é apenas isto que directamente a lei nos dá como critérios de individualização.
Vem-se entendendo que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer de Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” (in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 291).
Não nos esqueçamos que a opção legislativa por uma pena conjunta pretendeu, por certo, traduzir, também a este nível, a orientação base ditada pelo artº 40º do C.P., em matéria de fins das penas, e a que já nos referimos atrás: propósitos de prevenção (geral e especial), atribuindo à culpa, tão só, uma função garantística, de medida inultrapassável pela pena.
Sem que nenhum destes vectores se constitua em compartimento estanque, é certo que para o propósito geral-preventivo interessará antes do mais a imagem do ilícito global praticado, e para a prevenção especial contará decisivamente o facto de se estar perante uma pluralidade desgarrada de crimes, ou, pelo contrário, perante a expressão de um modo de vida.
Interessará à prossecução do primeiro propósito a gravidade dos crimes, a frequência com que ocorrem na comunidade e o impacto que têm na sociedade, e à segunda finalidade a idade, o percurso de vida, o núcleo familiar envolvente, as condicionantes económicas e sociais que rodeiam o agente, tudo numa preocupação prospectiva, da reinserção social que se mostre possível.
A gravidade do comportamento do arguido foi por certo conhecida e comentada, não podendo deixar-se ficar na população a sensação de um sistema penal demasiado brando. Mas a ilicitude global do conjunto dos crimes cometidos não revela uma carreira criminosa. Pelo contrário, os dois crimes em foco estão unidos, como se viu, por uma relação de crime meio e crime fim.
Por todo o exposto e feita a pertinente ponderação, consideramos justa a aplicação em cúmulo, da pena conjunta de seis anos de prisão. O que, obviamente, afasta qualquer possibilidade de substituição desta pena pela de suspensão da sua execução.
D - DELIBERAÇÃO
Tudo visto, se decide no S T J, e em conferência da 5ª Secção, considerar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, embora por razões diversas das por si invocadas, e assim: 1) É revogado o acórdão recorrido, na parte em que se condenou o arguido pelo crime de violação agravado dos art.s 164º n.° 1 al. b) e 177º n.° 6, ambos C P, ficando o recorrente condenado no crime de coacção sexual dos art.s 163º n.° 1 e 177º n.° 6, ambos C P. 2) Aplica-se por este último crime a pena de quatro anos e seis meses de prisão. 3) Feito o cúmulo desta pena com a de quatro anos de prisão, que lhe foi aplicada pelo crime de rapto agravado do art. 161º n.os 1 al. b) e nº 2 al. a) do C P, por referência ao art. 158º n.° 2 al. e) do mesmo diploma, e que se mantém, fica o recorrente condenado na pena única de seis anos de prisão.
Taxa de justiça: 6 U. C.
Lisboa 25 de Março de 2010
Souto Moura (Relator)
Soares Ramos