IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
PATERNIDADE BIOLÓGICA
FILHO NASCIDO FORA DO CASAMENTO
EXAME LABORATORIAL
PROVA TESTEMUNHAL
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
Sumário


I - A regra do pater is est quem nuptiae demonstrant contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal para o estabelecimento da paternidade, de natureza iuris tantum, por se basear num juízo de probabilidade e não de certeza, que consente a correcção do erro, com a consequente possibilidade de se fazer prova do contrário do facto presumido.
II - Na acção de impugnação de paternidade proposta pelo marido da mãe, o autor defende um direito próprio à verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade atentória da mesma.
III - Jogando-se a sorte da relação jurídica de paternidade na certeza da prova científica, em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado, fora do sortilégio da prova testemunhal, não se compreenderia que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo art. 1826.º, n.º 1, do CC.
IV - Se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também, a impugnação da paternidade pelo presumido progenitor pode ser intentada, sem incorrer em caducidade, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial.
V - A impugnação deduzida pelo autor, relativamente à paternidade presumida do réu menor, no que concerne à substância de um casamento que não chegou a durar sete anos e de uma coabitação inferior a quatro, não agride um estado jurídico e social prévio, dotado de uma longevidade e densidade consideráveis, capaz de justificar uma particular censura jurídico-constitucional.
VI - A norma constante do art. 1842.º, n.º 1, al. a), do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do progenitor e marido da mãe propor, a todo o tempo, acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva e bem assim como do preceituado pelos arts. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.

Texto Integral




ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



AA, residente na Rua dos Pinheiros, nº …, Cernache do Bonjardim, propôs a presente acção, sob a forma de processo ordinário, contra BB e CC, ambas residentes no Bairro Municipal, nº …, em Figueiró dos Vinhos, pedindo que, na sua procedência, se declare que o autor não é o pai da ré CC, devendo, em consequência, ser ordenado o cancelamento no assento de nascimento daquela da menção de paternidade que no mesmo lhe está atribuída, invocando, para o efeito, e, em síntese, que, sendo casado com a ré BB, mãe da ré CC, esta nasceu a 16 de Fevereiro de 1997 e está registada como sua filha, o que não corresponde à realidade biológica, por se encontrar separado da ré BB, desde Março/Abril de 1996, data a partir da qual jamais mantiveram qualquer relacionamento de ordem sexual.
Na contestação, que apenas a ré BB apresentou, esta, no que interessa à apreciação e decisão do objecto da revista, invoca a caducidade do direito do autor impugnar a paternidade, por ter decorrido, largamente, o prazo de dois anos, consagrado pelo artigo 1842º, nº 1, do Código Civil, uma vez que aquele teve conhecimento do nascimento do menor, pelo menos, desde 10 de Julho de 1998.
Na réplica, o autor invoca a inconstitucionalidade da norma do artigo 1842º, nº 1, do Código Civil.
Conhecendo sob a forma de saneador-sentença, o Tribunal de 1ª instância julgou procedente a excepção da caducidade do direito de impugnação da paternidade, pelo decurso do prazo invocada pela ré BB, e, em consequência, absolveu as rés dos pedidos contra si formulados.
Deste saneador-sentença, o autor interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a respectiva apelação, confirmando a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação de Coimbra, o mesmo autor interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e, em consequência, que se ordene o prosseguimento dos autos para julgamento, condensando o essencial das suas conclusões na invocação de que o seu direito de acção não caducou, tendo aquela decisão violado o disposto nos artigo 12º, nº 1, 1801º, 1826º e 18420, nº 1, a), todos do Código Civil, porque não conforme à Constituição da República, considerando o teor dos artigos 25º, nº 1, 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2, deste último diploma legal.
Nas suas contra-alegações, as rés concluem no sentido de que o recurso de revista deve ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, o acórdão recorrido.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. AA e BB casaram um com o outro, em 5 de Maio de 1994 – fls. 129.
2. CC nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1997 – fls. 126.
3. Consta do assento de nascimento da CC que é filha de AA e de BB – fls. 126.
4. O casamento de AA e BB foi dissolvido, por divórcio, decretado por sentença de 29 de Março de 2001, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da Sertã – fls. 129.
5. Nos autos de regulação do poder paternal relativos à menor CC, cuja sentença data de 10 de Julho de 1998, transitada em julgado, está exarado o facto provado, “o requerido nunca teve qualquer contacto com a menor; está convicto que a menor não é sua filha” (folhas 74).
6. O autor declarou, na oposição que formulou à execução especial de alimentos devidos à menor CC, que correu termos nesse Tribunal, sob o nº 10016-D/97, entrada em Juízo em 31 de Janeiro de 2005, não ser o pai da CC – fls. 132.
7. A presente acção foi instaurada, em 11 de Abril de 2007 – fls. 01.

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir, na presente revista, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, consiste em saber se deve ser julgado inconstitucional o prazo de caducidade para a propositura da acção de impugnação de paternidade intentada pelo pai.

DA CONSTITUCIONALIDADE DO PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE INTENTADA PELO PAI

Entroncando as raízes mais profundas da sociedade na instituição familiar, como célula essencial da sua organização, a determinação do estado civil de pai ou de filho exerce um papel do maior relevo, convindo a todos os membros do agregado social, de modo muito particular, o conhecimento do vínculo jurídico de filiação ou da paternidade, com vista a que, uma vez definido, se mantenha para segurança e certeza das relações jurídico-sociais.
Na hipótese de filho nascido dentro do casamento, ou seja, tratando-se de mãe conhecida e casada, a paternidade fica, automaticamente, estabelecida, sendo, então, o pai o marido da mãe, de acordo com o princípio clássico do «pater is est quem nuptiae demonstrant», consagrado pelo artigo 1826º, nº 1, do Código Civil (CC).
A regra do «pater is est…», em que se sustenta a presunção de paternidade oriunda do normativo legal acabado de citar, seria um efeito pessoal do casamento, derivado do dever de coabitação e fidelidade recíproca entre os cônjuges, enquanto essência da instituição matrimonial monogâmica, mesmo nos casos em que esta base de sustentação não está presente, como acontece, por exemplo, na hipótese de adultério da mulher.
Trata-se de uma visão clássica da regra em apreço, em homenagem a valores ditados por um conceito de moral que, em nome da defesa da instituição familiar, fecha os olhos à realidade da vida, ignorando a verdade biológica quando esta lhe é incómoda (1).
Quando o Direito presume como pai o marido da mãe, desinteressando-se pela verdade biológica, assenta no entendimento de que a paternidade do marido é um efeito do casamento (2).
Esta regra do «pater is est…» contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal, que actua sem necessidade de recurso a qualquer decisão judicial para o estabelecimento da paternidade, de natureza “iuris tantum”, por se fundar num juízo de paternidade e não numa certeza que, a constatar-se que não aconteceu, isto é, que o pai não é o marido da mãe, consente a correcção do erro com a consequente possibilidade de se fazer prova do contrário do facto presumido (3).
Revertendo ao caso decidendo, importa reter que a menor CC nasceu, no dia 16 de Fevereiro de 1997, tendo sido registada como filha do autor e da ré BB, que haviam casaram um com o outro, em 5 de Maio de 1994, sendo certo que, na sentença proferida na acção de regulação do poder paternal relativa aquela menor, datada de 10 de Julho de 1998, está exarado o facto provado de que “o requerido nunca teve qualquer contacto com a menor e está convicto de que esta não é sua filha”, enquanto que a presente acção foi instaurada, em 11 de Abril de 2007.
Dispõe o artigo 1842º, nº 1, a), do CC (4), que “a acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pelo marido, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade;”
Assim sendo, tendo o autor conhecimento, pelo menos, desde 1998, que a sentença que regulara o poder paternal da menor o considerava pai da mesma e havendo proposto a presente acção, em 11 de Abril de 2007, verifica-se a excepção da caducidade do direito da sua instauração, conforme foi entendimento das instâncias, porquanto a norma do artigo 1842º, nº 1, a), do CC, exige que a acção de impugnação da paternidade proposta pelo marido da mãe seja intentada, no prazo, agora ampliado de três anos, a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se pela sua paternidade, o que, na pior das hipóteses, aconteceu, no caso em apreço, na data em que a sentença de regulação do poder paternal chegou ao seu conhecimento.
Porém, a questão crucial que a presente revista suscita tem antes a ver com a pretensa inconstitucionalidade deste prazo de caducidade da propositura da acção de impugnação da paternidade, na consideração de que o mesmo possa estabelecer um limite desproporcional ao significado que o exercício do direito de acção em causa pretende salvaguardar, na acepção de poder não garantir, adequadamente, esse valor constitucional.
No âmbito da acção de investigação de paternidade, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 1817º, nº 1, do CC, que prevê a extinção, por caducidade, do direito de investigar a paternidade, a partir dos 20 anos de idade do filho, em conformidade com o disposto pelo artigo 26º, nº 1, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”, na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem, a que se reportam os artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1, ambos da Constituição da República (CRP), que não seria, devidamente, acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade (5).
Estipula o artigo 1817º, nº 1 (6), aplicável à acção de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, por força do preceituado pelo artigo 1873º, ambos do CC, que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos (7) posteriores à sua maioridade ou emancipação”.
Assim sendo, a questão que se coloca, no fundo, está em saber se esta doutrina é aplicável, com base no princípio ou argumento do paralelismo ou da identidade de razão, por interpretação extensiva, às acções de impugnação de paternidade, que o artigo 1842º nº 1, a), b) e c), do CC, sujeita a prazos distintos de caducidade, consoante sejam propostas pelo marido, pela mãe, ou pelo filho, respectivamente.
A propósito da hipótese concreta de a acção de impugnação de paternidade ser movida pelo filho maior ou emancipado, foi decidido, neste particular, pelo Tribunal Constitucional, que “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artigo 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código, não se antevendo que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições”.
Nesta decisão, o direito constitucional que se procurou salvaguardar foi, por isso, também, o direito à identidade, mas sem distinguir entre as situações de investigação e as de impugnação, ou seja, como aí se refere, «sempre que uma questão de filiação é colocada»”(8), sendo certo, outrossim, que a limitação temporal não encontra grande apoio na natureza, predominantemente, moral e pessoal, do estado civil, com larga repercussão de interesse geral.
Relativamente à hipótese paralela da acção de impugnação de paternidade, intentada pelo marido da mãe, decidiu, por seu turno, o Tribunal Constitucional, que “há inevitavelmente uma diferença de grau entre a investigação da paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação da paternidade, em que releva a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal”, acrescentando-se que “...não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação da paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de auto-conformação da identidade que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai...”.
Seria, pois, como que se o direito à identidade do filho, apesar de questionado na acção, não fosse o seu objecto directo ou imediato, porquanto o processo destinar-se-ia, sobretudo, a fazer prevalecer o direito à auto-conformação da identidade do pai.
Por outro lado, diz-se, igualmente, nesta decisão, que se justificaria uma restrição à verdade biológica, que deixaria de assumir um «valor absoluto», em detrimento de outros princípios, tais como o da protecção da família conjugal, e ainda que não esteja em causa o direito à identidade do filho, justificar-se-iam os limites a esse direito, na acção de impugnação, com a prevalência de determinados outros valores (9).
De todo o modo, importa indagar se as razões aduzidas para a declaração de inconstitucionalidade do prazo de caducidade, reportada, unicamente, à modalidade da acção de impugnação de paternidade proposta pelo filho maior ou emancipado, devem valer, igualmente, para o caso de o autor da impugnação da paternidade ser o pai.
É que, também, agora, para além do autor defender um direito próprio à verdade biológica, em matéria de paternidade, e pretender esclarecer a sua posição social e jurídica, quer em relação ao filho presumido, quer em relação ao agregado familiar, quer ainda ao meio social em que se insere, está, igualmente, a garantir o direito à identidade do presumido filho, em especial, tratando-se de menor, apesar deste assumir a posição processual de réu, sendo, portanto, uma questão de filiação.
Efectivamente, o Código Civil Português entende a relação paterno-filial, no sentido restrito de filiação, exclusivamente, biológica, senão real, pelo menos, presumida (10).
Na acção de impugnação de paternidade, é, sempre, o direito à identidade da filiação, o direito a ter um pai, que está em causa, embora repartido pelo direito de o pai presumido ilidir a presunção de paternidade que sobre ele incide, enquanto duas faces opostas de uma mesma realidade.
E, nem se diga, em sentido contrário, em nome da defesa de valores como a da segurança das relações familiares que, uma vez estabelecida uma paternidade, por presunção legal, já não é assim tão relevante saber da sua correspondência com a realidade biológica, como se à tranquilidade da boa consciência apenas interessasse a paternidade, independentemente da fonte de onde a mesma provenha.
Nem, por outro lado, se afirme, como argumento adverso, que a caducidade da acção de impugnação proposta pelo pai não impede que o filho venha, mais tarde, a instaurar a sua própria acção de impugnação, agora sem qualquer prazo de caducidade a limitá-lo.
É que este não pode constituir um argumento decisivo, devendo antes funcionar em favor da tese da imprescritibilidade, porquanto se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também, a impugnação do presumido progenitor pode sempre ser intentada, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial.
Efectivamente, as razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social.
Numa altura em que a sorte da relação jurídica de paternidade se joga na certeza da prova científica, e em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado para alcançar esse fim, fora do sortilégio da prova testemunhal, constituiria fonte de incompreensão e de surpresa social que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo artigo 1826º, nº 1, do CC.
Veja-se a situação inquietante em que o marido, sujeito a um acto de infidelidade da esposa, gerador de um filho, abdica de impugnar a paternidade deste, preferindo a defesa do casamento e da estabilidade familiar futura, mas é surpreendido por um novo adultério, anos depois, que o determina, então, a impugnar aquela paternidade.
Trata-se de uma nova ética, mas que, no fundo, se reconduz à ética primordial do primado da família ou da comunidade natural, que sobreleva o escândalo de uma situação familiar com, porventura, dezenas de anos, poder vir a ser abalada, por uma acção de impugnação tardia, quando os interessados na destruição da paternidade presumida entendam não dever continuar a manter a discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica, devendo, então, “a perempção ceder perante alterações excepcionais e graves da vida familiar que tornem injusta e inútil a subsistência do vínculo”(11).
É que a permanência de um vínculo que o impugnante não quer pode trazer mais inconvenientes do que vantagens para o filho, em virtude da presença de um pai contrafeito e da impossibilidade de investigar a paternidade verdadeira (12), prejudicando o marido a quem a mulher foi infiel e o próprio filho, que fica com um pai que impugnou a paternidade (13).
Com efeito, os desenvolvimentos da genética vêm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, tendo o “direito fundamental à identidade pessoal” e o “direito fundamental à integridade pessoal” adquirido uma dimensão mais nítida, associados ao “direito ao desenvolvimento da personalidade”, introduzido pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, oriundo da revisão constitucional de 1997, consubstanciando-se num direito de conformação da própria vida, num direito de liberdade geral de acção, cujas restrições têm de ser, constitucionalmente, justificadas, necessárias e proporcionais (14).
É, por isso, que, valendo o direito ao livre desenvolvimento da personalidade (15), quer para o pretenso filho, como para o suposto progenitor, aquele princípio constitucional significa que para o primeiro o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família e a sua “localização” no sistema de parentesco (16), enquanto que para o pai se traduz no direito de ilidir a presunção de paternidade atentatória da verdade biológica que se impunha afastar.
De facto, os tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, por imperativo da verdade biológica, não tendo sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas, nem da insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a paternidade, a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade (17).
Efectivamente, os prazos de caducidade nas acções de estabelecimento de filiação estão em crise ou tornaram-se menos sedutores, sobretudo quando a caducidade não visa proteger uma realidade com consistência familiar efectiva, um vínculo de filiação “social” que desempenhe as suas funções, um vínculo que se exprima por «posse de estado», apesar de lhe faltar o fundamento biológico, tornando-se a previsão de um prazo com os fins típicos e abstractos da defesa e segurança, pouco convincente nestas matérias (18).
Deste modo, o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere, claramente, a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do direito de impugnar.
Enquanto a ordem jurídica nacional continuar a ser de matriz, essencialmente, biologista, é espectável que o direito de pesquisar a verdade não caduque, devendo o Direito da Filiação adequar-se à verdade biológica, por, apesar de tudo, ser ainda a “mais verdadeira”(19), ou, então, dito de outro modo, a menos imprevisível, que busca a coincidência entre o Direito e as realidades do sangue, em vez de procurar garantir o estatuto de filho “legítimo” e um certo entendimento da “paz das famílias”.
Esta é a solução que está de acordo com a tendência moderna e dominante, embora não pacífica, em direito comparado, de sobrepor às exigências da segurança jurídica, da eficácia das provas e da estabilidade das situações familiares adquiridas aquele interesse público da procura da verdade biológica, quando, não obstante a subsistência jurídica da família conjugal e do vínculo da paternidade, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afectiva (20).
Assim sendo, as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, estão, outrossim, presentes na disposição contida no artigo 1842º, nº 1, a), ambos do CC.
Ora, não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, seja necessário e proporcional, face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada, e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade, em homenagem a essas restrições.
O prazo para o exercício do direito de impugnação traduz mais uma hora de reflexão para a opção a tomar pelo interessado do que o tempo de preparação da prova para lograr em juízo o triunfo da verdade (21).
A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, tais como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, prevalecem sobre a ideia da existência de prazos de caducidade nas acções de estabelecimento da filiação.
Por seu turno, a impugnação deduzida pelo autor, relativamente à paternidade presumida da ré menor, no que concerne à substância de um casamento que não chegou a durar sete anos e de uma coabitação inferior a quatro, não agride um estado jurídico e social prévio, dotado de uma longevidade e densidade consideráveis (22), não se mostrando sujeito a uma particular censura jurídico-constitucional, face à justificação de fundo apresentada, em que não releva sobremaneira a inércia ou o desinteresse daquele (23).
O único interesse que poderia invocar-se em contraponto ao direito fundamental do marido da mãe em determinar, juridicamente, a verdadeira paternidade biológica da menor CC, seria o da «harmonia e estabilidade da vida e da família conjugal», se o mesmo, porém, devesse prevalecer, face ao princípio da proporcionalidade, pois que tais limitações específicas ao direito de agir contra os supostos filhos de progenitores casados, ao tempo do nascimento ou apenas no momento do seu reconhecimento, não se traduzem em efeitos discriminatórios, constitucionalmente, vedados.
Efectivamente, as desvantagens que advêm para a menor da perda da possibilidade de vir a ter a paternidade fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o autor de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação à menor, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez, biológica, e não já por presunção.
Caso procedesse a caducidade do direito de impugnação, por parte do marido da mãe, cercear-se-ia, em definitivo, o direito fundamental do autor à identidade pessoal e, correlativamente, do filho a ver reconhecida a paternidade biológica.
Aliás, face à pluralidade das pessoas a quem a lei hoje confere legitimidade para impugnar a paternidade presumida e à diversidade de prazos dos vários titulares da legitimidade activa para o efeito, isto é, três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, para o marido da mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento, para a mãe, e até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou, posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, para o filho, por força do disposto pelo artigo 1842º, nº 1, a), b) e c), do CC, a opção pela paternidade presuntiva não poderá ter-se como consolidada antes de terem caducado todos os direitos de impugnação atribuídos aos seus diferentes titulares.
E, a aceitar-se, tão-só, a inconstitucionalidade do prazo de caducidade da acção de impugnação de paternidade, por parte do filho, então, jamais se perfeccionaria a opção pela paternidade presuntiva.
Escoam-se, assim, com o devido respeito, os argumentos que ainda pretendem sustentar a constitucionalidade do prazo de impugnação da paternidade presumida nas acções intentadas pelo marido da mãe.
Conclui-se, pois, que a norma prevista no artigo 1842º, n.º 1, a), do CC, na dimensão interpretativa explicitada, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva, na parte em que prevê o prazo de três anos para o marido da mãe intentar a acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era o pai biológico, e bem assim como do estipulado pelos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da CRP.
Logo, o prazo do artigo 1842º, nº 1, a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de o presumido progenitor impugnar, a todo o tempo, a sua paternidade, constituindo uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação, por períodos, excessivamente, longos, face à defesa do direito constitucional à identidade, consagrado pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, é inconstitucional, razão pela qual não ocorre a caducidade da acção (24).

CONCLUSÕES:

I - A regra do «pater is est quem nuptiae demonstrant» contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal para o estabelecimento da paternidade, de natureza “iuris tantum”, por se basear num juízo de probabilidade e não de certeza, que consente a correcção do erro, com a consequente possibilidade de se fazer prova do contrário do facto presumido.
II – Na acção de impugnação de paternidade proposta pelo marido da mãe, o autor defende um direito próprio à verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade atentatória da mesma.
III – Jogando-se a sorte da relação jurídica de paternidade na certeza da prova científica, em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado, fora do sortilégio da prova testemunhal, não se compreenderia que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo artigo 1826º, nº 1, do CC.
IV - Se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também, a impugnação da paternidade pelo presumido progenitor pode ser intentada, sem incorrer em caducidade, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial.
V - A impugnação deduzida pelo autor, relativamente à paternidade presumida do réu menor, no que concerne à substância de um casamento que não chegou a durar sete anos e de uma coabitação inferior a quatro, não agride um estado jurídico e social prévio, dotado de uma longevidade e densidade consideráveis, capaz de justificar uma particular censura jurídico-constitucional.
VI - A norma constante do artigo 1842º, n.º 1, a), do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do progenitor e marido da mãe propor, a todo o tempo, acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era o pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva e bem assim como do preceituado pelos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, n.º 2, da CRP.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista, e, em consequência, revogam o acórdão recorrido, devendo os autos prosseguir a sua tramitação, em sede de 1ª instância, com a elaboração dos «factos assentes» e a organização da base instrutória.

Custas, a cargo das rés.

Notifique.

Lisboa, 25 de Março de 2010
Hélder Roque (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

_________________________________
(1) Pereira Coelho, Filiação, Apontamentos das Lições revistos pelo Professor, no âmbito da cadeira de Direito Civil, Curso Complementar, FDUC, 1978, 19 e ss., 76 e 77.
(2) Guilherme de Oliveira, Impugnação da Paternidade, Separata do volume XX do suplemento do BFDUC, Coimbra, 1979, 25 a 28.
(3) Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 94.
(4) Na redacção dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, com início de vigência, no dia seguinte ao da sua publicação, mas que se aplica, por força do respectivo artigo 3º, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
(5) TC, Acórdão nº 23/06, de 10 de Janeiro de 2006, publicado no DR, Iª série-A, de 28 de Fevereiro de 2006.
(6) Na redacção dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, com início de vigência no dia seguinte ao da sua publicação, mas que se aplica, por força do respectivo artigo 3º, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
(7) Na altura, “nos dois primeiros anos”.
(8) TC, Acórdão nº 609/07, de 11 de Dezembro de 2007, publicado no DR, IIª série, de 7 de Março de 2008, proferido no Processo nº 563/2007.
(9) TC, Acórdão nº 473/07, de 28 de Novembro de 2007, publicado no DR, IIª série, de 18 de Janeiro de 2008, proferido no Processo nº 589/2007.
(10) Pereira Coelho, Filiação, Apontamentos das Lições revistos pelo Professor, no âmbito da cadeira de Direito Civil, Curso Complementar, FDUC, 1978, 5 e nota (1).
(11) Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, Almedina, 2003, 390.
(12) Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 182 e 183.
(13) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, V, 1995, 109 e 110.
(14) Guilherme de Oliveira, Caducidade das Acções de Investigação, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, 53; e Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 1, 2004, 7 a 13; TC, Acórdão nº 589/07, de 28 de Novembro de 2007, publicado no DR, IIª série, de 18 de Janeiro de 2008, proferido no Processo nº 437/2007, 2519 a 2525.
(15) Paulo Mota Pinto, O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade, Stvdia Jvridica, nº 40, Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra Editora, 1999, 149 e ss.
(16) Guilherme de Oliveira, Caducidade das Acções de Investigação, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, 53; e Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 1, 2004, 7 a 13, citados.
(17) Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 139.
(18) Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 137 e 190.
(19) Jean Carbonnier, Droit Civil, 11ª edição, T2, Paris, PUF, 1979, 317 e 318.
(20) Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 68, 88, 133,140 e 190.
(21) Franchi, Commentario de Cian, Oppo e Trabucchi, tomo IV, 64, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, V, 1995, 210.
(22) Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, II, TI, 2006, 139 e 140.
(23) Remédio Marques, Jurisprudência Constitucional, 2004, T4, Outubro-Dezembro, 2004, 49.
(24) STJ, de 21-2-2008, Processo nº 07B4668; STJ, de 31-1-2007, Processo nº 06A4303; e de 14-12-2006, Processo nº 06A2489, in www.dgsi.pt