INJÚRIA
Sumário

Mesmo no âmbito de relações conflituosas, o recurso às expressões “filho da puta”, “mamão”, “vai mamar na piça do cavalo”, consubstancia uma forma adequada e apta a insultar e ofender na sua honra e consideração, a pessoa a quem foram dirigidas.

Texto Integral

(proc. n º 813/09.8PJPRT.P1)

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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
1. No 1º Juízo Criminal do Porto, 1ª secção, nos autos de processo comum (Tribunal Singular) nº 813/09.8PJPRT, foi proferida sentença, em 2.6.2011 (fls. 264 a 269 do 2º volume), constando do dispositivo o seguinte:
Por todo o exposto, decido:
a) julgando a acusação particular improcedente, por não provada, dela absolver a arguida B…;
b) julgando o pedido de indemnização civil improcedente, por não provado, dele absolver a demandada B….
Condena-se o assistente em taxa de justiça, que se fixa em 2UC, e demais encargos – artºs 515, nº1, al. a) e 518 do CPP e art. 8, nº1 do RCP.
Custas do pedido de indemnização civil a cargo do demandante.
Notifique.
(…).
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2. O assistente C… não se conformou com essa sentença, razão pela qual dela interpôs recurso (fls. 275 a 281), formulando as seguintes conclusões:
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Termina pedindo a revogação da decisão sob recurso.
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3. O Ministério Público respondeu ao recurso (fls. 291 a 296), concluindo pela sua procedência.
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4. A arguida respondeu ao recurso (fls. 297 a 303), pugnando pela sua improcedência.
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5. Nesta Relação, o Ministério Público limitou-se a apor visto (fls. 310 do 2º volume).
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6. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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7. Na sentença sob recurso:
7.1. Foram considerados provados os seguintes factos:
A) A arguida B… é sobrinha do assistente C…, existindo, desde há alguns anos, relações familiares conflituosas entre a família alargada, designadamente, entre o pai da arguida e alguns irmãos, entre eles, o ofendido, por motivo de partilhas;
B) No dia 10.Setembro.2009, pelas 10h30m, o ofendido dirigiu-se a uma casa que tem arrendada na Rua …, nesta cidade, local onde também se situava a residência da arguida e onde viveu seu pai, e à qual não se dirigia há 8 meses;
C) Ao deparar com o ofendido, a arguida, dirigindo-se-lhe, proferiu as seguintes expressões “filho da puta”, “mamão”, “vai mamar na piça do cavalo”;
D) A arguida não tem antecedentes criminais;
E) A arguida aufere o vencimento mensal de €250,00; seu companheiro aufere o salário mínimo nacional; tem dois filhos de 5 e 3 anos de idade; vive em casa arrendada, pela qual paga €450,00/mês; possui o 9º ano de escolaridade.

7.2. Quanto aos factos não provados, consignou-se o seguinte:
1) Que ao proferir as referidas expressões, a arguida tenha agido com o propósito de ofender o assistente na sua honra e consideração;
2) Que as expressões proferidas pela arguida visassem ofender a honra e consideração do assistente;
3) Que em consequência da sua conduta, a arguida tenha causado ofensas ao ofendido no âmbito da sua vida pessoal, afectiva, familiar, social e profissional;
4) Que em consequência da conduta da arguida, o ofendido tenha passado noites sem dormir;
5) Que em consequência da conduta da arguida, o ofendido se tenha sentido vexado, humilhado e envergonhado;
6) Que em consequência da conduta da arguida, o ofendido tenha sentido tristeza.

7.3. Da respectiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto consta:
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7.4. A nível da fundamentação de direito escreveu-se:
A arguida vem acusada pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181, nº1 do CP.
De acordo com este normativo, comete o crime de injúria “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
Pode definir-se injúria como a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que encerrem em si uma reprovação ético-social, ofensivos da reputação do visado, dirigida ao próprio. A injúria compreende comportamentos lesivos da honra (vista como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, dizendo respeito ao património pessoal e interno de cada um) e consideração (vista como o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva) de alguém.
Para a consumação de tal crime basta a existência de dolo genérico e já não do chamado dolo específico: tem de se verificar o dolo em qualquer uma das suas modalidades, mas já não é exigível que haja a especial intenção, o propósito de ofender, sendo bastante a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém.
Para efeitos de tutela penal, cujo fundamento se busca na protecção do direito fundamental ao bom nome e reputação constitucionalmente consagrado no artº 26, nº1 da Constituição da República Portuguesa, a honra traduz-se num bem jurídico multiforme, que mistura uma concepção fáctica, subjectiva e objectiva, com uma concepção normativa, pessoal e social, incluindo, desta forma, por um lado, o valor e dignidade pessoal e interior de cada indivíduo, e, por outro, a sua integração e consideração na comunidade em que se insere. Ou seja, a honra deve ser entendida como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1º da CRP) e, nessa medida, como um conceito normativo, cuja concretização não dispensará a convocação de uma dimensão fáctica ou existencial do homem enquanto ser social.
Nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações susceptíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado.
“Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, atentos os múltiplos factores que concorrem para a identificação das condutas ofensivas da honra, apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efectivamente, comportam uma carga ofensiva da honra de um indivíduo. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são” (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/12/07).
“Não se pode pretender que as conversas discordantes tenham todas um discurso sereno, com adjectivação civilizada e detentoras de uma argumentação racional: isso seria privar do direito de manifestar o seu desagrado aos menos dotados do ponto de vista retórico, das boas maneiras, até da capacidade de raciocínio, recorrendo-se aos tribunais para punir tais excessos e ficando a discordância confinada ao grupo das pessoas polidas.
Apenas há um limite: não pode ser atingida a honra do visado – um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior” (vide Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 607).
No caso em apreço resultou provado que a arguida, ao deparar com o ofendido, seu tio, no referido local, ao qual já não se dirigia há oito meses, dirigiu-lhe as seguintes expressões “filho da puta”, “mamão”, “vai mamar na piça do cavalo”.
Igualmente resultou provado que existem relações familiares conflituosas entre a família, designadamente, entre o pai da arguida e alguns irmãos, entre eles, o ofendido, por motivo de partilhas.
Ora, o proferir e dirigir ao ofendido tais expressões, naquele circunstancialismo, não tem a virtualidade de ser considerada acção típica de um crime de injúrias, sendo mais uma expressão de falta de civismo, grosseria e mesmo de falta de educação ou cultura.
Tais expressões, que apontam para a existência do referido conflito familiar decorrente de partilhas (veja-se o significado das expressões “mamar” e “mamão” na linguagem popular), resultam da animosidade existente entre a família da arguida e o ofendido e decorrem numa situação de provocação e de exaltação.
Citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/12/05, “Como ensinou o Ilustre Penalista Quintano Ripolles - “Tratado de la parte especial del Derecho Penal”, I, tomo II, a pág.1198, (Editorial Revista de Direito Privado, 1972, Madrid) deve sempre distinguir-se, no que diz respeito à gravidade das expressões proferidas, as que podemos denominar de imprecativas, das que perseguem um fim referido a factos ou condutas de carácter concreto. Aquelas, a maior parte das vezes, não constituem mais que um simples desafogo verbal, que pode incomodar ou perturbar alguém mas intranscendentes para abalar a ordem jurídica”.
Deste modo, entende-se que as expressões proferidas pela arguida não encerram qualquer carga ofensiva da honra e consideração do assistente, pelo que se conclui pelo não preenchimento do tipo legal de crime àquela imputado e, em consequência, pela sua absolvição.
Improcedendo desta forma a acusação, improcede igualmente o pedido de indemnização civil formulado.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
Deduz-se da motivação de recurso interposto da sentença proferida nestes autos, que o assistente pretende que se analisem as seguintes questões:
1ª- Averiguar se existe erro notório da apreciação da prova (art. 410º, nº 2, alínea c) do CPP);
2ª- Verificar se há errada interpretação da lei (por os factos dados como provados integrarem o crime de injúria p. e p. no art. 181º, nº 1, do CP imputado à arguida, para além de justificarem a condenação no pagamento da indemnização a que se refere o pedido cível formulado nos autos).
Passemos, então, a apreciar o recurso ora em apreço.
1ª Questão
Começa o recorrente por alegar que as expressões que lhe foram dirigidas pela arguida, sua sobrinha, são objectivamente ofensivas da sua honra e consideração, havendo erro evidente na apreciação da prova quando foram dados como não provados factos relativos ao dolo alegados na acusação particular e factos relativos ao estado emocional em que ficou, por virtude de ter sido daquela forma injuriado, alegados no pedido cível.
Não tendo impugnado em sentido amplo a decisão sobre a matéria de facto (art. 412º, nº 3 e nº 4 do CPP), a argumentação do recorrente integra a alegação do vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, alínea c), do CPP).
Ora, dispõe o art. 410º, nº 2, do CPP:
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, alínea a), do CPP) “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”[1]
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2, alínea b), do CPP) “é somente aquela que é intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”.
O erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, alínea c), do CPP) “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”[2]
Pois bem.
Para sustentar a existência do vício do erro notório na apreciação da prova, o recorrente apela aos factos dados como provados, particularmente os indicados nos pontos A) a C), considerando que as expressões que lhe foram dirigidas são (para qualquer pessoa) objectivamente injuriosas, razão pela qual o tribunal teria de concluir, por um lado, pela existência de dolo, em qualquer das suas modalidades e, por outro lado, pela verificação dos factos relativos aos danos não patrimoniais que alegou no pedido cível.
Por isso, considerando até a motivação de facto da sentença sob recurso, concluiu que o tribunal da 1ª instância teria que dar como provados os respectivos factos alegados na acusação particular relativos ao dolo e, bem assim, os que foram articulados no pedido cível relativos aos danos não patrimoniais sofridos em consequência da conduta da arguida.
Ora, perante o circunstancialismo apurado que consta dos pontos A) e B) dados como provados (dos quais resulta que a arguida é sobrinha do assistente - que é irmão de seu pai -, que há alguns anos existiam relações familiares conflituosas, por motivos de partilhas, designadamente, entre o pai da arguida e o assistente, seu irmão e que, em 10 de Setembro.2009, pelas 10h30m, o assistente dirigiu-se a uma casa que tem arrendada na Rua …, nesta cidade, onde já não ia há 8 meses, local onde também se situava a residência da arguida e onde viveu seu pai), não há dúvidas que as expressões dirigidas pela arguida ao tio, descritas no ponto C) também dado como provado – “Ao deparar com o ofendido, a arguida, dirigindo-se-lhe, proferiu as seguintes expressões “filho da puta”, “mamão”, “vai mamar na piça do cavalo” – são objectivamente injuriosas para qualquer cidadão médio que estivesse no lugar do assistente.
Naquele contexto (relações familiares conflituosas por motivos de partilhas, ainda que envolvessem directamente o pai da arguida e o irmão, aqui assistente) chamar ao tio “mamão” e “vai mamar na piça do cavalo” é objectivamente ofensivo da honra e consideração devidas àquele familiar da arguida (ainda que esta também tivesse relação conflituosa com o tio ou tivesse tomado o “partido” do pai), traduzindo a formulação de juízos depreciativos em relação ao carácter do assistente, uma vez que foi dado a entender que este viveria indevidamente à custa de outrem (de familiares que estariam “fartos” de o sustentar e que, por isso, o tratavam como “mamão”, mandando-o ir “mamar” noutro lado, no caso, “na piça do cavalo”).
Igualmente chamar ao tio “filho da puta” é objectivamente insultuoso, tanto mais que nem se apurou o tipo de linguagem que a arguida e o assistente usavam habitualmente nas relações diárias, v.g. com outras pessoas e em circunstâncias de conflito ou desentendimentos (nem sequer foi averiguado se aquele tipo de expressão – “filho da puta” – era utilizado com o mesmo significado, independentemente de ser dirigido a familiar com quem se dessem bem ou a familiar com quem estivessem desentendidos).
Como é do conhecimento comum, no âmbito de relações conflituosas (como era o caso dos autos), chamar “filho da puta” não significa utilizar uma expressão neutra, nem traduz um “mimo” ou forma carinhosa de se dirigir a alguém com quem se está em conflito, antes significando uma forma de insultar essa pessoa, que é adequado e apta a ofender a sua honra e consideração.
A utilização daquelas expressões (“filho da puta”, “mamão”, “vai mamar na piça do cavalo”), no referido contexto, como diz o Ministério Público na resposta ao recurso, por um lado não se confundem com liberdade de expressão e, por outro lado, “ultrapassam os limites da falta de civismo, grosseria e falta de educação e cultura”, tanto mais que não se provou “a veracidade das imputações feitas”, nem que a arguida “tivesse uma qualquer razão para, em boa-fé, as reputar como verdadeiras”.
O cidadão médio (mesmo não tendo aquele “polimento” a que se refere a sentença na fundamentação de direito), sem necessidade de efectuar qualquer tipo de raciocínio elaborado, atento o contexto em que tudo se passou (sendo certo que nem sequer se provou que o assistente tivesse de alguma forma contribuído para que a arguida lhe dirigisse aquelas expressões), considerava aquelas expressões (“filho da puta”, “mamão”, “vai mamar na piça do cavalo”) insultuosas e com “carga ofensiva da honra e consideração” devidas a qualquer pessoa.
Nessa medida há também erro notório na apreciação da prova quando o tribunal por um lado não se pronuncia sobre se a arguida actuou com dolo e, por outro lado, parece afastar, dando como não provado, o tipo subjectivo, embora apenas na modalidade do dolo directo (apesar de misturado com um “dolo específico” que o tipo legal não exige).
Repare-se que na acusação particular (fls. 198 e 199 do 1º volume) foram alegados factos relativos ao dolo.
Por isso, não bastava ao tribunal afastar o dolo directo para concluir pela absolvição da arguida.
De qualquer modo, afastado o dolo directo, havia que averiguar se a arguida agiu com dolo necessário ou com dolo eventual, não esquecendo que as expressões por ela dirigidas ao assistente, naquele circunstancialismo, são objectivamente injuriosas.
Ora, o tribunal da 1ª instância não fez essa averiguação fáctica, quanto à questão de saber se a arguida teria agido com dolo necessário ou com dolo eventual.
Chegamos a tal conclusão uma vez que, os respectivos factos pertinentes não constam sequer dos dados como não provados na decisão sob recurso[3].
O texto da decisão sob recurso (v.g. o teor da decisão sobre a matéria de facto, inclusive a sua fundamentação) mostra que não foi feita essa indagação, como decorre, desde logo, da circunstância de o tribunal a quo não se pronunciar sobre essa concreta questão.
Esses factos, que não foram investigados pelo Tribunal da 1ª instância, como lhe competia, ao abrigo do art. 340º do CPP, são essenciais (além do mais) para se apurar se afinal a arguida cometeu ou não o crime que lhe era imputado.
Há, por isso, também uma insuficiência na decisão proferida sobre a matéria de facto, uma vez que só afastando os factos integradores de qualquer das modalidades do dolo é que o tribunal da 1ª instância poderia concluir pela absolvição da arguida.
Tão pouco se percebe, olhando para a motivação de facto, qual foi o raciocínio seguido pelo julgador para proferir aquela decisão sobre a matéria de facto, designadamente, quanto aos dados como não provados.
É que, para além da descrição do que a arguida, o assistente e as testemunhas teriam dito, não há qualquer exame crítico daquelas provas enunciadas na motivação de facto da sentença sob recurso.
Nem se percebe o que levou o tribunal a dar como não provados os factos relativos ao estado emocional do assistente, em consequência da conduta da arguida, quando é certo que sobre essa matéria se terão pronunciado, além do próprio assistente, as testemunhas D… e E….
Nessa perspectiva dir-se-á que há manifesta contradição entre os factos dados como provados (na medida em que não se pronuncia sobre o estado emocional da assistente) e a fundamentação/motivação de facto (uma vez que aí se alude – embora sem qualquer especificação – aos depoimentos do assistente e das testemunhas D… e E… seus irmãos, quanto ao estado emocional do primeiro).
Igualmente não se percebe (pela falta de exame crítico da prova) qual a relevância que o julgador deu às declarações da arguida e aos depoimentos das testemunhas F… e G… (respectivamente companheiro e vizinha da arguida) quando referiram que antes da arguida se ter dirigido ao tio, aquele teria danificado objectos que lhe (à arguida) pertenciam.
Afinal em que contexto é que a arguida se dirigiu ao assistente?
Haverá alguma causa que exclua a ilicitude ou culpa da arguida?
Simultaneamente há contradição entre a decisão proferida sobre a matéria de facto e a fundamentação de direito, quando a dado passo nesta última parte da decisão sob recurso se afirma que as referidas expressões dirigidas pela arguida ao assistente resultavam “da animosidade existente entre a família da arguida e o ofendido e decorrem numa situação de provocação e de exaltação”.
Essa contradição é manifesta uma vez que dos factos dados como provados nem sequer resulta que tudo se tivesse passado “numa situação de provocação e de exaltação”.
Incumbe lembrar que, na decisão sobre a matéria de facto, deverá constar todo o circunstancialismo fáctico concreto com relevo face ao objecto do processo para, depois, no momento oportuno (ou seja, no momento da subsunção dos factos ao direito), efectuar as respectivas interpretações (com base nos factos que se apurarem e não de forma meramente abstracta, como sucedeu na sentença sob recurso, onde se fizeram considerações de direito genéricas que não encontram apoio nos factos que se apuraram).
E, quanto às expressões dirigidas pela arguida ao assistente, o julgador formou a sua convicção com base nas declarações prestadas pelo assistente e testemunhas H…, D… e I… e, em caso afirmativo, porquê?
É que nada se refere a esse respeito sobre a prova que convenceu o julgador (precisamente por falta de exame crítico da prova), sendo certo que a versão da arguida e das testemunhas F…, G… e J… é diferente da que foi dada como provada.
Ora, com a prova produzida em julgamento, o tribunal poderia ter esclarecido as questões que acima foram colocadas e sanado os vícios apontados.
Assim, perante os indicados vícios relativos à decisão proferida sobre a matéria de facto, é evidente que fica prejudicada a declaração de nulidade da sentença sob recurso, por omissão de pronúncia quanto a factos alegados com interesse para a discussão da causa (v.g. articulados na acusação particular) e quanto à falta de exame crítico da prova produzida em julgamento.
Apesar de, no âmbito dos seus poderes de cognição, as Relações poderem conhecer de facto e de direito (art. 428º do CPP), a verdade é que, no presente caso, como se percebe pelo que já se deixou dito, perante as questões que não foram averiguadas, nem decididas (para além das apontadas contradição e erro notório na apreciação da prova), este tribunal não dispõe dos necessários elementos de prova (até pela ausência da imediação e da oralidade e, bem assim, pela necessidade de produção de novas e complementares provas), para, de alguma forma, poder superar os vícios apontados.
Há, pois, que cumprir a lei que, em casos como o destes autos, manda que se anule o julgamento e se reenvie o processo, nos termos do art. 426º do CPP, para que, o tribunal da 1ª instância (art. 426-A do CPP), desfaça os vícios apontados relativamente às questões concretas acima indicadas (reenvio que, portanto, é parcial).
Feito o novo julgamento, haverá que retirar as respectivas consequências.
No mais, mostra-se naturalmente prejudicado o conhecimento das restantes questões (invocado erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, quer quanto à acção penal, quer quando ao pedido cível) suscitadas pelo recorrente.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
a)- conceder parcialmente provimento ao recurso (embora em parte com fundamentação diversa) interposto pelo assistente C…, ordenando nos termos do disposto nos arts. 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) e 426º, nº 1, do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento (cf. art. 426-A do CPP), com vista a serem supridos os vícios apontados, relativamente às questões concretas acima indicadas, proferindo-se a final nova sentença;
b)- no mais, face ao determinado reenvio do processo, fica prejudicado o conhecimento da restante questão suscitada pelo recorrente.
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Sem custas.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
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Porto, 20-12-2011
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
José Alberto Vaz Carreto
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[1] Assim, entre outros, Ac. do STJ de 13/7/2005 (consultado no site do ITIJ).
[2] Ibidem.
[3] Neste sentido, conferir, entre outros, Acórdãos do STJ de 4/4/91, proferido no proc. nº 041576 (relatado por Ferreira Dias) e de 15/6/1994, proferido no processo nº 046235 (relatado por Teixeira do Carmo), ambos consultados no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais.