I - Não pode ser tida em consideração a parte da motivação de recurso para o STJ quando o recorrente se limita a dar por reproduzida a motivação de facto e de direito do recurso que interpôs para o tribunal da Relação, esquecendo que agora se trata de um outro recurso, perante um outro tribunal e no qual tem – se assim o entender – que apresentar uma nova “motivação” concreta, não podendo aqui dar por reproduzida a motivação apresentada noutro tribunal.
II - Como decorre do estatuído no art. 374.º, n.º 2, do CPP, a fundamentação (da sentença) não se satisfaz com a simples enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, sendo necessário o exame crítico desses meios de prova. Tal exame servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral, da bondade da decisão, ou seja, que no caso em apreço foi feita uma correcta aplicação da justiça.
III -Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. Porém, “a fundamentação da sentença, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento” (cf. Ac. STJ de 07-02-2001, Proc. 3998/00 – 3.ª). Esse exame crítico das provas corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que determinaram que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão.
IV -A norma do art. 374.º, n.º 2, do CPP não tem aplicação em toda a sua extensão, quando aplicada aos tribunais de recurso. Nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo tribunal da Relação ou quando referida a acórdão do STJ funcionando como tribunal de revista. Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da primeira instância, é suficiente que do respectivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respectiva, não se descortinam razões para exercer censura sobre o decidido.
V - Alega o recorrente a omissão de pronúncia “sobre todas as questões colocadas e sobre a imputada incorrecção de julgamento da matéria de facto”. Só que, para além do tribunal não ter que se pronunciar sobre cada um dos argumentos invocados pelo recorrente, a verdade é que este não concretiza minimamente quais as questões colocadas e sobre as quais o tribunal não se pronunciou, sendo certo que não pode o recorrente limitar-se a dar por reproduzida na motivação deste recurso para o STJ a motivação de facto e de direito do recurso interposto para o Tribunal da Relação. Acresce que deve ter-se bem presente que mesmo no caso de recurso da matéria de facto para a Relação – como sucedeu no caso em apreço – a Relação não faz um segundo/novo julgamento.
VI -Por outro lado, o recorrente não concretiza neste recurso quais as partes ou segmentos do acórdão recorrido que não permitem perceber porque não explicitado o processo lógico-mental que esteve subjacente e presidiu à decisão. Antes se constata de forma manifesta que, na motivação e respectivas conclusões, o recorrente discorda da decisão do tribunal (quanto à matéria de facto) contrapondo a sua valoração e apreciação da prova àquela que foi feita pelo tribunal. Ou seja, o recorrente discorda da decisão da matéria de facto. Só que isso não constitui falta de fundamentação da decisão nem falta de exame (ou reexame) crítico da prova.
VII - Na verdade, resulta claro da motivação do recorrente que este, afinal, impugna a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo-se do princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP.
VIII - É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidas nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso. E o conhecimento oficioso pelo STJ verifica-se por duas vias: uma primeira que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP; e outra que poderá verificar-se em virtude de nulidade de decisão, nos termos do estatuído no art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
IX - Por outro lado, definindo os poderes de cognição do STJ, estatui o art. 434.º do citado CPP que, sem prejuízo do disposto no art. 410.º, nºs. 2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. Após a reforma de 1998, o STJ pode conhecer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, não a pedido do recorrente, isto é, como fundamento do recurso, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.
X - E a decisão recorrida, considerada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não indicia erro grosseiro na decisão da matéria de facto, erro patente, que não escapa à observação do homem de formação média. Do texto da decisão recorrida não resulta de forma evidente uma conclusão contrária àquela a que o tribunal chegou. Analisando o texto da decisão recorrida só por si, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam estranhos ou extrínsecos, não se indicia a existência de tal erro. E não integra esse vício a mera discordância do recorrente com a matéria de facto provada.
XI- No domínio dessa discordância estaremos, porventura, a falar de erro de julgamento, mas que não pode atacar-se com a invocação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP
XII - O vício da contradição insanável da fundamentação tem que resultar apenas do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer outros elementos exteriores.
XIII - Tendo o arguido agido, como agiu, com intenção de tirar a vida à vítima e tendo, na execução desse plano previamente planeado, preparado um encontro com a vítima, após o que a empurrou, derrubando-a, lançando sobre ela gasolina e pegando-lhe fogo, abandonando o local quando aquela tinha as roupas a arder, deixando-a indefesa e impossibilitada de evitar a combustão rápida das roupas que vestia e de evitar as queimaduras que daí advinham, trata-se, sem dúvida, de circunstâncias que revelam enorme crueldade e especial perversidade, pelo que tais factos devem ser subsumidos ao crime de homicídio qualificado, nos termos do art. 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c), g) e i), do CP.
XIV - O recorrente também expressa a sua discordância em relação ao que ficou provado, designadamente a propósito da intenção de matar que o tribunal a quo deu como provada. Estando em causa a determinação da intenção do agente, não cabe no âmbito do presente recurso uma tal reapreciação, por estar em causa matéria de facto.
XV - Para além disso, o recorrente entende que a interpretação que o tribunal recorrido faz dos arts. 70.º e 71.º do CP é inconstitucional, por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, entendendo que o tribunal valorou contra o arguido o facto de este não ter prestado declarações, violando o direito à não incriminação e violando os princípios da presunção da inocência e da verdade material. Contudo, o que resulta do acórdão recorrido é que este considera que o direito ao silêncio é uma verdadeira garantia constitucional do arguido e, optando o arguido por tal postura, é evidente que o tribunal deixa de ouvir da sua própria boca a versão dos factos que lhe são imputados e pelos quais está a ser julgado. E, esse mesmo silêncio, impede também que o tribunal possa obter do próprio arguido o seu percurso ou conduta posterior aos factos, incluindo a “eventual reflexão sobre a antijuricidade e a rejeição firme da conduta desviante”. Sendo assim, não se vê que o acórdão recorrido tenha valorado o silêncio do arguido, em prejuízo deste.
XVI -O acórdão recorrido (do tribunal da Relação) tinha que apreciar a pena aplicada e, caso discordasse da mesma, fixar a que entendesse adequada e proporcional, indicando os fundamentos desta e os daquela discordância. No caso de a pena aplicada não merecer censura – como não mereceu – o acórdão recorrido apreciou as razões da discordância do recorrente com a pena aplicada, decidiu-as de modo bem perceptível e fundamentado e concordou com a pena aplicada, tendo explicitado as razões desta discordância, não lhe competindo fazer mais do que isso.
XVII - Actualmente, todos estão de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis.
XVIII - No caso em apreço, considerando que a moldura penal correspondente ao crime em questão é de pena de prisão de 12 a 25 anos e ponderando:
- que a conduta do arguido se revela muito grave, sendo de enorme gravidade as consequências da mesma: provocou enorme sofrimento da vítima quer no dia em que os factos foram praticados, quer durante o tempo de internamento hospitalar e até à morte;
- o grau de ilicitude do faço é muito elevado, atendendo, designadamente, ao modo como o arguido actuou;
- o dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo directo, é de forte intensidade (atente-se na forma como foram pensados, preparados e executados os actos do arguido);
- os sentimentos manifestados na conduta do arguido, mesmo considerando um contexto passional, traduzem grande insensibilidade moral e completo desprezo pela vida humana, não podendo esquecer-se que é professor, com responsabilidades na formação de jovens;
- o arguido é considerado por familiares e amigos como uma pessoa boa, educada, calma e respeitadora;
- é professor e mostra-se inserido socialmente, tendo o apoio da mulher e familiares, sendo que a mulher ,à data dos factos, estava grávida, tendo nascido o filho do arguido já após a detenção deste, contando cerca de 2 anos de idade;
- o arguido não tem antecedentes criminais;
- não confessou os factos;
- e não ficou provado arrependimento, o que revela um desrespeito pelo valor fundamental e à volta do qual é constituído todo o direito e ordenamento social: a vida humana, bem primordial e único,
considera-se adequada a pena de 20 anos de prisão.
No 3º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, no processo comum nº 459/05.0GAFLG, foi submetido a julgamento perante Tribunal Colectivo, o arguido:
– AA, casado, professor do ensino básico, filho de BB e de CC, nascido a 18/02/1977, freguesia de Quinchães, Fafe, residente no Loteamento do ......., nº ......, S. Gens, Fafe.
Era-lhe imputada a prática de:
Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. c), g) e i), ambos do Código Penal
Deduziram pedido de indemnização civil contra o mesmo arguido:
1 - Hospital de São João; e
2 - DD, por si e em representação dos seus irmãos.
A final, foi proferida sentença/acórdão no qual:
1 - O arguido AA foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts.131.º e 132.º nº1 e nº2 alíneas c), g) e i) do C. Penal, na pena de 20 (vinte) anos de prisão;
2 Foi julgado procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Hospital de São João, e o arguido/demandado condenado a pagar-lhe a quantia de 359,80€ (trezentos e cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;
3 Foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente por si e em representação dos seus irmãos e, em consequência condenado o arguido a pagar-lhes uma indemnização no valor de 115.000€ (cento e quinze mil euros), «a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vincendos desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento, mais o valor que se vier a apurar em execução de sentença a título de lucros cessantes».
Inconformado com tal condenação, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 30 de Novembro de 2009 julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, decidiu:
a) - Modificar o §1º dos factos provados, que passará a referir:
Em data incerta do ano de 2003, o arguido conheceu profissionalmente EE, tendo desse conhecimento, resultado uma relação amorosa entre ambos.
b) - Acrescentar aos factos não provados:
Não se provou que o arguido conheceu profissionalmente EE em data distinta da constante dos factos provados.
c) - Modificar o §12º dos factos provados, que passará a dizer:
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, EE sofreu lesões das vias aéreas e queimaduras de 1º, 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total de 51% da superfície corporal.
d) - Acrescentar aos factos não provados:
Não se provou ainda que a superfície corporal queimada de EE atingiu 55%.
e) - Manter, no restante, a decisão recorrida.
De novo irresignado com essa decisão, o arguido AA, interpôs o presente recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pela sua absolvição ou, se assim se não entender, pela nulidade do acórdão ou ainda pela aplicação de uma pena situada entre os 12 e os 14 anos de prisão.
Termina a respectiva motivação com as seguintes - - - - - - - - - - - - - - -
CONCLUSÕES:
1. Afigura-se ao Recorrentes que, salvo o devido respeito, carece de fundamento o douto Acórdão de fls... dos presentes autos, prolatado em 30 de Novembro de 2009, e pelo qual foi apenas parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido do Acórdão final, mantendo a condenação do Recorrente AA na pena de vinte anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132, n.° 1 e n.° 2, alíneas c), g) e i) do Código Penal, bem como, no pedido de indemnização civil, na quantia de € 115.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas juros e, nas custas criminais do processo com taxa de justiça de 06 UC, acrescida de 1% e no mínimo de procuradoria,
2. Os recursos não passam de expedientes consagrados na lei e erigidos em ordem a reagir eficazmente perante as decisões desconformes com a mesma lei e os princípios estruturais e enformantes da própria comunidade, perfilando-se assim como garantias de defesa e de protecção de interesses em confronto, e em que é mister referenciar, na área do direito criminal, os interesses do próprio Estado na perseguição e punição do crime, e os dos particulares em assegurarem um processo justo, sem atropelo dos seus direitos de cidadão e de pessoa humana;
3. Ora, não foi o que aconteceu nos presentes autos. Desde logo e como foi suscitado em sede de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, foram violados, no douto Acórdão condenatório, uma série de princípios, nomeadamente os princípios da presunção de inocência, da verdade material, da legalidade e da livre apreciação da prova;
4. No tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material», o que não aconteceu no caso dos autos -, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo - cf. Figueiredo Dias, ob. cit, págs. 202-203;
5. Em idênticos termos aos acima consignados também a livre apreciação da prova está sujeita ao controlo do tribunal de recurso, ainda que este conheça somente de direito, sempre que a violação do princípio da objectividade for evidente, sem necessidade de outras indagações probatórias;
6. O Tribunal a quo e posteriormente o Tribunal da Relação ao convalidar a conduta do Tribunal de primeira instância violou o principio da presunção da inocência, o principio da verdade material, o principio da legalidade e o dever de imparcialidade, com graves prejuízos para as garantias de defesa constitucionalmente garantidas;
7. A convicção em que assentou a decisão não foi adquirida, como devia, através de um processo racional, ponderado e maturado, alicerçado e objectivado na análise crítica e concatenada dos diversos dados e contributos carreados pelas provas produzidas, no máximo respeito pelo principio da presunção da inocência e da verdade material, evitando a formulação de um juízo arbitrário ou intuitivo sobre a verificação, ou não, de um facto ou do próprio crime;
8. A verdade não poderá sair ou resultar da mera convicção, mas antes da certeza jurídica alicerçada em provas irrefutáveis da autoria do crime e da própria verificação do mesmo (crime). Não há questões morais, éticas ou de realização de justiça e de repressão do crime, que permita restringir ou comprimir, como se comprimiu neste processo, as garantias do processo criminal e os mais elementares dos direitos deste cidadão, constitucionalmente garantidos, e violar-se, como se violou, o princípio da legalidade, e da presunção da inocência e da verdade material. Tudo para que, alegadamente, na convicção do Tribunal a quo este "crime" hediondo não ficasse impune ou para que, alegadamente, este crime não deixe de ter responsáveis ou autores;
9. Quando assim é, como foi, salvo o devido respeito, o caso dos autos, a Justiça não se realiza e permite-se que campeie o erro judiciário e os mais primários e bárbaros sentimentos de (alegada) justiça e permite-se que estes se sobreponham ao ordenamento jurídico e ao Estado de Direito;
10. E ao fazê-lo estamos a abrir a "caixa de pandora" que permitirá todos os atropelos desde que alegadamente norteados por fins alegadamente "legítimos" de repressão e de eliminação da impunidade. Os fins nunca podem justificar os meios, mesmo que se esteja convicto, como está o Tribunal a quo, da culpa dos arguidos;
11. Antes de mais e por se afigurarem pertinentes e legais, damos aqui por reproduzida e integrada para todos efeitos legais, a motivação de facto e de direito do recurso interposto e respectiva impugnação de facto e de direito efectuada pelo arguido AA para o Venerável Tribunal da Relação de Guimarães sobre o qual recaiu o Acórdão aqui posto em crise;
12. Acresce que, sem prescindir o devido respeito e melhor entendimento, na douta decisão aqui posta em crise, sem prescindir o esforço argumentativo, há uma insuficiência de reexame crítico do caso sub Júdice e da prova produzida em audiência de julgamento, que inquina o douto acórdão do vício da nulidade, nos termos do disposto nos artigos 425°, n.° 4, 379°, n.° 1, alínea a), e 374°, n.° 2, todos do Código Processo Penal, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos;
13. 0 Tribunal ad quem limitou-se, com o devido e merecido respeito, a tentar desconsiderar e por em crise os fundamentos de facto e de direito suscitados pelo arguido - sem prescindir ter acolhido alguns dos fundamentos aduzidos pelo arguido/recorrente e ter sido, o recurso interposto, parcialmente procedente - e a tentar "descredibilizar" os meios de prova que o arguido/recorrente entendeu imporem uma decisão diversa em termos de matéria de facto e de direito;
14. Exemplo claro do que se vem de dizer - mas não único como infira se verá - verifica-se na reapreciação da prova gravada em que o Tribunal ad quem apenas reapreciou - erradamente no nosso entendimento - a prova testemunhal ou alguma dela, nomeadamente os depoimentos das testemunhas FF e GG, que de acordo com o recorrente imporia e impõe uma decisão diversa e a absolvição do arguido. Os depoimentos das testemunhas que o Tribunal a quo considerou credíveis e que serviram para fundamentar a condenação, não mereceram qualquer reapreciação e reexame numa manifesta parcialidade intelectual postergadora das garantias de defesa constitucionalmente garantidas no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos;
15. O Tribunal ad quem não se pronunciou efectivamente sobre todas questões colocadas e sobre a imputada incorrecção de julgamento da matéria de facto, numa clara omissão de pronuncia. Apenas se limita, com o devido respeito, o Venerável Tribunal ad quem a genericamente apreciar - apesar da profusão dos comentários sobre qualquer entendimento perfilhado pelo recorrente em sentido contrario ao do professado pelo Tribunal a quo — se a convicção formada pelo Tribunal a quo quanto tem suporte razoável naquilo que este último refere ter resultado da produção de prova;
16. Ora, vários dos factos dados como provados não têm qualquer suporte na prova produzida, pelo que se impunha, como veremos infra, modificar a decisão (se esse fosse
entendimento do Tribunal ad quem quanto a inexistência de suporte na prova produzida para qualquer facto dado como provado) nos termos do art. 431° e art. 428° do Código Processo Penal., nomeadamente no que se refere aos factos descritos nos parágrafos 4 a 14 da matéria de facto dada como provada que aqui se transcreve:
"Parágrafo 4. O arguido tomou, então, a resolução de tirar a vida à EE, utilizando para o efeito um líquido combustível inflamável.
Parágrafo 5. Na execução desse plano, no dia 01/05/05, no período nocturno, o arguido utilizando o cartão de acesso à rede TMN, com o número .........., telefonou para o número .............., utilizado pela EE, tendo combinado com esta um encontro no dia seguinte, por volta das 09h00, no monte de Santa Quitéria.
Parágrafo 6. Na manhã do dia 02/05/05, o arguido não foi trabalhar e foi tomar o pequeno almoço a um café, sito nas bombas Total, em Fafe, tendo depois, por volta das 09h/09hl5m, se dirigido ao referido local de encontro, conduzindo o veículo de marca Renault, modelo Mégane, de matrícula 00-00-00, pertencente a BB, levando gasolina que acondicionou numa garrafa de plástico. Parágrafo 7. Aí chegado, esperou alguns momentos pela EE , que se deslocou ao local de encontro, conduzindo o seu Jeep, de marca Mercedes, matrícula 00-00-00, tendo esta estacionado perto do veículo em que o arguido se fazia transportar. Parágrafo 8. De seguida, ambos saíram das suas viaturas e, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a EE para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da EE, que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía.
Parágrafo 9, De imediato, as peças de roupa que a EE vestia se incendiaram e esta começou a gritar de desespero e dor, enquanto despia o dito vestuário. Nessa altura e indiferente a esta situação, o arguido abandonou o monte de Santa Quitéria, conduzindo o veículo supra identificado.
Parágrafo 10, A EE, nua, calçando apenas umas botas, conseguiu alcançar o seu Jeep, tendo-o conduzido até ao Hospital de Felgueiras, tendo lá dado entrada por volta das 10 h00 m.
Parágrafo 12. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a EE sofreu queimaduras de 2o e 3o graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total aproximadamente de 55%, da superfície corporal.
Parágrafo 13. Estas lesões, para além de extremamente dolorosas, foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte.
Parágrafo 14. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a
sua conduta era proibida e punível por lei".
17. O aqui recorrente impugnou a decisão proferida do Tribunal a quo sobre a supra indicada matéria de facto indicando provas, que impunham decisão diversa, nos termos que supra já transcrevemos e demos por integrados e reproduzidos para todos os efeitos legais o que aqui também damos, novamente por reproduzidos para os devidos e legais efeitos;
18. Pronunciando sobre a impugnação desta matéria de facto o Tribunal ad quem diz, o entre outras coisas o seguinte:
"Começa por dizer [o recorrente] que não existe prova sobre o que aconteceu naquele dia 01/05/2005, porque ninguém presenciou os factos. Depois, sustenta ter sido feita prova - positiva - de que o arguido não foi o autor da conduta, porque estava no momento indicado nos factos provados noutro local.
Num primeiro momento, o arguido formula raciocínio em que, aceitando que tomou o pequeno-almoço na hora e local indicados nos factos provados e que saiu pelas 09.15h, ou seja, no final do intervalo referido como provado, conclui que a distância para o Monte de Santa Quitéria não lhe permitia chegar antes de 20 a 30 minutos depois. E, a partir dessa conclusão, considera que não era possível que o evento tivesse decorrido como provado, em termos da vítima entrar no hospital pelas 10:00h.
Ora, todo esse raciocínio assenta em premissas que temos por não demonstradas. Desde logo a duração do percurso, que o recorrente funda num trecho do depoimento de HH, seu amigo. Ouvido esse depoimento, fica uma simples estimativa, desprovida de segurança, e mesmo assim formulada com muita relutância, apenas ultrapassada pela insistência do mandatário do arguido. Isso mesmo resulta da interjeição «Sei lá...» e da reserva «Ao certo não sei...».
Acresce que, mesmo que se aceitasse como boa a distância sugerida pelo recorrente e o piso molhado, a experiência comum indica-nos que podemos apenas estimar uma duração média dos percursos e em velocidade regular. Em condução acelerada, como aquela desenvolvida por quem tem uma motivação forte para chegar a um local com a maior brevidade, ou então para dele fugir, o tempo de trajecto — qualquer trajecto - é susceptível de ser significativamente reduzido. (...)
Assim, persiste razoável, e não contrariada, a valoração do Tribunal Colectivo de que era perfeitamente possível ao arguido naquele lapso de tempo sair de Fafe, ir ao Monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe.
Nesse ponto do recurso, o arguido pergunta-se como chegou o Tribunal a essa conclusão mas, lendo o acórdão com o mínimo de atenção é fácil perceber que se teve em linha de conta a distancia, a orografia, as condições climatéricas, a duração previsível das condutas desenvolvidas no Monte de Santa Quitéria e do trajecto até ao Hospital valorados concertadamente com a prova pessoal produzida, mormente aquela incidente sobre o trajecto, salientando igualmente a circunstancia do arguido não ter efectuado chamadas entre as 9:15h. e as 10:10 h, ambas com activação de célula situada em Fafe, o que é perfeitamente compatível com o comportamento dado como provado ";
19. Lida e relida esta argumentação expendida pelo Tribunal ad quem afigura-se-nos cristalino que, apesar do esforço, para além de considerações genéricas e enunciação vagas dos meios de prova que alegadamente poderiam estar na base da convicção do Tribunal a quo para dar como provado os supra identificados factos e a possibilidade o crime e evento ter ocorrido e de particularmente ter sido "perfeitamente possível ao arguido naquele lapso de tempo sair de Fafe, ir ao Monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe ", o certo é que o Tribunal ad quem, tal como o Tribunal a quo, não foi capaz de concretizar e esclarecer devidamente o processo lógico mental e identificar devidamente a prova produzida que permitiria dar, com o mínimo de segurança e certeza, como provados os factos impugnados supra identificados - matéria de facto vertida nos parágrafos 4 a 14 supra transcritos - e concluir, como conclui o Tribunal a quo - agora reiterado pelo Tribunal ad quem - que "era perfeitamente possível ao arguido naquele lapso de tempo sair de Fafe, ir ao Monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe ";
20. Ora, se o Tribunal ad quem considera que sobre esta concreta matéria e esta concreta questão e impugnação o "raciocínio [do aqui recorrente] assenta em premissas que temos por não demonstradas " o certo é que o Tribunal ad quem e a quo não lograram demonstrar sequer a distância que o arguido/recorrente tinha que percorrer e o tempo que, em quaisquer condições, sejam climatéricas de tráfego ou de velocidade, que demoraria a realizar esse percurso entre Fafe/Monte de Santa Quitéria/praticar os factos de que foi acusado e que foram dados como provados/voltar a Fafe. Tanto este percurso poderá ser realizado no tempo indicado pelo recorrente, como em duas ou três horas e poderá implicar a realização de um percurso de 20 como de 100 km (não se trata de um facto notório), isto porque não foi produzida qualquer prova - para além da indicada pelo arguido e que quanto a nós sustenta a manifesta impossibilidade de o arguido poder ter realizado aquele percurso naquelas concretas condições de tempo, modo e de lugar e participado no evento criminógeno aqui em julgamento - em qualquer sentido (sem prescindir o entendimento perfilhado pelo arguido e que, segundo o Tribunal assenta em premissas não demonstradas) pelo que necessariamente, e sem prescindir ter-se verificado quanto a nós uma uma omissão de diligências que se reputam essenciais a descoberta da verdade, o que se suscitou e suscita para os devidos legais efeitos, sempre e de acordo com o principio do in dúbio pro reo, os factos identificados e transcritos supra - parágrafos 4 a 12 dos factos dados como provados - teriam que ter sido dados como não provados e que não se demonstrara que seria possível ao arguido naquele lapso de tempo sair de Fafe, ir ao Monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe;
21. O princípio in dúbio pró reo pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como deve ser aplicado sem qualquer restrição, não só nos elementos fundamentadores da incriminação, mas também na prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão susceptível de desfavorecer, objectivamente, o arguido;
22. Pelo exposto, não tendo sido produzida prova segura e inequívoca de que seria possível ao arguido naquele lapso de tempo sair de Fafe, ir ao Monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe, não poderiam terem sido dados como provados os factos supra transcritos, não sendo a fundamentação e meios de prova invocada pelo Tribunal ad quem e a quo susceptíveis de sustentar tal prova e permitir a formação da convicção dos ilustres julgadores. O citado vício resulta do texto do douto Acórdão (quer prolatado pelo Tribunal ad quem, quer pelo Tribunal a quo), configurando quando a nós, o que aqui se suscita para os devidos e legais efeitos, erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c), do n.° 2 do artigo 410° do Código Penal e uma manifesta violação também do princípio da verdade material;
23. Acresce que também não foi produzida qualquer prova segura e inequívoca do tempo, percurso e distância que a vítima EE demorou e percorreu entre o Monte de Santa Quitéria e o Hospital Agostinho Ribeiro, em Felgueiras, e da hora de entrada desta nas urgências dessa instituição e a duração do atendimento e percurso posteriormente efectuado até ao Hospital S. João, no Porto, onde a mesma chegou necessariamente, pelas regras da experiência e da normalidade de acontecer antes das ll:09h. Logo, nos termos e pelas razões supra transcritos os factos dados como provados teriam que ter sido dados como não provados, porque teriam, face a ausência de qualquer certeza, a não ser arbitrária, ter sido dados como não provados. O citado vício resulta do texto do douto Acórdão (quer prolatado pelo Tribunal ad quem, quer pelo Tribunal a quo), configurando também quanto a nós, o que aqui se suscita para os devidos e legais efeitos, um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c), do n.° 2 do artigo 410° do Código Penal e uma manifesta violação também do princípio da verdade material;
24. Acresce que o Tribunal ad quem, conforma supra referimos não fez uma correcta avaliação da prova produzida, particularmente e, para além da prova testemunhal, a prova documental nomeadamente o citado Apenso n.° 1 os documentos de fls. 926 a 933 e 934, o que se tivesse feito motivaria a absolvição do arguido e procedência integral da impugnação da matéria de facto. E fê-lo violando claramente o principio da verdade material e o principio da livre apreciação da prova e da presunção da inocência;
25. Exemplo disso é valoração que o Tribunal ad quem faz dos documentos de fls. 926 a 933 e 934, não valorados pelo Tribunal a quo, numa clara omissão de pronúncia e deficientemente valorados pelo Tribunal a quo, que os valorou sem conhecer a que os mesmos se reportavam e tecendo considerações não demonstráveis, sem que tivesse qualquer fundamento de facto e de direito que lhe permitisse apreciar aquele documento o qual era um inicio de trabalho e que, naquele fase resultava numa recolha de elementos que se fizeram de estudos realizados por um autor espanhol e que ainda iriam ter um tratamento e analise adequado. O Tribunal ad quem claramente desvalorizou o valor probatório deste de forma arbitraria e sem qualquer fundamento que o sustentasse;
26. Do que se vem de expor, e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, resulta que não se provou ou não se produziu qualquer prova segura e inequívoca de que o arguido AA praticou o crime de homicídio qualificado em que foi condenado;
27. Sem prescindir, mesmo que se tenha por certo que foi o arguido AA o agente do crime - o que só se refere para efeito de raciocínio -, nenhuma diligência de prova foi produzida no sentido de se apurar se a intenção deste era matar a vítima EE, ou se apenas era assustar a vítima com a prática de um alegado acto preparatório de um crime, que depois acidentalmente veio a ocorrer, ou se pelo contrário era sua intenção desfigurar ou marcar a vítima por esta tornar a sua vida num inferno e por esta ameaçar atacar e marcar a sua mulher II através do mesmo método (fogo) fazendo-a intencionalmente abortar - como a vítima EE chegou na realidade a ameaçar - e ainda por esta o ter tentado matar (como aconteceu em várias ocasiões, nomeadamente no dia 1 de Março de 2005 - cfr. participação e peças processuais junta aos autos com requerimento de abertura de instrução sob doc. n.° 2 e que aqui se dão por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais) e já o ter ameaçado que qualquer dia conseguiria concretizar essa ameaça, caso este não fosse "só seu", para além de o ter chantageado das mais diversas formas e com as acusações mais ignóbeis - desde acusações falsas sobre objectos furtados, violações ou assédio sexual ou ainda sobre gravidezes inexistentes (a EE chegou a referir, para reforçar essa mentira, a realização de exames na Ordem do Terço, no Porto) e abortos fictícios (que nunca, reitere-se, ocorreram, mas que esta ameaçava inventar, propalar e denunciar às autoridades);
28. E mesmo assim, sem que se tenha compreendido e comprovado a etiologia do crime, não teve o Tribunal a quo qualquer dúvida em condenar o arguido de um crime de homicídio qualificado, sem sequer ter recolhido provas ou identificado comportamentos que claramente revelassem intenção de matar, nem sequer a sua conduta e os factos dados como provados - que aqui se admitem para mero efeito de raciocínio - preenchem o tipo legal de homicídio qualificado, nos termos do n.° 1 e 2, alíneas c), g) e i) do artigo 132° do Código Penal, preenchendo quando muito, e sem prescindir o que se infra se dirá, o tipo legal de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 13100 do Código Penal;
29. Mais a mais, que a (alegada) utilização de gasolina e na diminuta quantidade que terá sido utilizada e que não se afigura um meio idóneo para matar alguém, independentemente de tal poder acontecer e que poderá ter acontecido nos autos. O que terá motivado aquela extensão de queimaduras e resultado terá sido a composição sintética e combustível do vestuário (body) utilizado pela vítima, que rapidamente se consumiu e aderiu ao corpo da vítima (verificando principal área queimada do corpo da vítima) provocando aquela concreta extensão de queimaduras. Acresce que se desconhece e não se fez prova alguma, nem o Tribunal a quo procurou fazer, se a gasolina utilizada (admitindo-se que foi gasolina para efeito de raciocínio) foi adquirida para aquele efeito ou se apenas existia num dos quaisquer veículos presentes no local do crime - de acordo com factos provados -, o que é usual e recorrente em muitos automóveis particularmente os utilizados pelos adeptos das provas de todo o terreno, como era e é o recorrente, e que, sem premeditação, foi utilizada, após uma discussão ou desentendimento;
30. Se efectivamente fosse intenção do arguido matar a vítima, e tendo o crime sido cometido num local ermo - como resulta da reportagem fotográfica -, facilmente teria o arguido - a admitir-se a pratica do crime o que se faz para mero efeito de raciocínio - concretizado essa sua intenção ou concluído o seu "objectivo", bastando recorrer à força física para impedir a vítima de abandonar o local e recorrer a auxílio médico, ou por exemplo poderia recorrer a um objecto contundente para bater na vítima e assim atordoar ou provocar perda de consciência até se concretizar ou ocorrer a morte;
31.Ou ainda poderia utilizar uma das viaturas presentes no local, e nas circunstâncias do crime descritas na acusação, para atropelar a vítima EE. O jipe da vítima era o meio ideal para um atropelamento, porque, para além da versatilidade para perseguir a vítima em qualquer terreno, a sua utilização permitiria garantir ao arguido que, se neste veículo resultassem quaisquer vestígios ou marcas resultantes de colisão com a vítima, dificilmente poderia ser a si associados, e nem a presença de vestígios biológicos dentro da viatura o poderiam comprometer muito, uma vez que era pública a sua relação com a arguida e quase diárias as suas incursões no monte e práticas sexuais de relevo naquela viatura, pelo que haveria naturalmente inúmeros vestígios, nomeadamente impressões digitais, cabelo, esperma e líquido seminal, etc, pelo que dificilmente os investigadores conseguiriam distinguir os vestígios anteriores ou contemporâneos do crime;
32. Pelo exposto, salvo o devido respeito e melhor opinião, não foi produzida qualquer prova segura e inequívoca que, admitindo-se a pratica dos factos para mero efeito de raciocínio, era intenção do recorrente matar EE, pelo que salvo o devido respeito nunca poderia ter o aqui arguido sido condenado de um crime de homicídio qualificado - crime este que o arguido aqui expressamente declara, novamente, não ter cometido, afigurando-se existir uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão sobre a meteria de fato, vício esse que resulta do próprio texto do Acórdão e que deverá ser conhecido por este Venerável Supremo Tribunal de Justiça, o que se requer e suscita para os devidos e legais efeitos;
33. Quanto muito deveria, nesse caso, e admitindo para efeito de raciocínio, a sua intervenção nos factos de que resultaram a lesões dos autos na vítima EE, ter sido condenado por um crime de ofensa à integridade física grave agravada pelo resultado, nos termos das disposições conjugadas do art. 144° e art. 145° do Código Penal, se não mesmo deveria antes ter sido condenado pelo crime de ofensa à integridade física privilegiada, p. e p. pelo art. 147° do Código Penal. Mais a mais que é nosso entendimento e conforme resulta dos autos e da própria matéria de facto dada por assente e ainda do depoimento da testemunha JJ, a vitima EE veio a morrer em virtude de uma infecção contraída por bateria multiresistente contraída durante o internamento nos Hospitais da Universidade de Coimbra, pelo que não há um nexo de causalidade entre a acção e a morte;
34. Pelas razões supra expostas, para além de não existir a prática de qualquer crime, também deveria improceder o pedido de indemnização civil deduzidos nestes autos;
35. Sem prescindir, a aplicação da pena visa a protecção dos bens jurídicos violados (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a medida concreta da pena exceder a culpa do agente (art 40° do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra e a favor do agente (n.° 2 do artigo 72° do Código Penal);
36. Sempre que forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 70° do Código Penal);
37. Ora, no caso dos autos, sem prescindir o supra referido quanto à inocência do arguido, sempre se dirá que, a pena concretamente aplicada é manifestamente exagerada e desajustada e contrária aos próprios fins das penas e as concretas exigências de prevenção geral e especial, não tendo o Tribunal a quo valorado nenhuma circunstância que depusesse a favor do arguido, nem sequer o facto de este ser primário, ter o comportamento ajustado ao ordenamento jurídico - com (hipotética) excepção no crime dos autos se se considerar o seu agente -, estar socialmente integrado e ser bem visto pela comunidade de origem, ter, a data da condenação, um filho de dois anos de idade já nascido após a sua detenção, ter apoio familiar da sua esposa e restante família alargada, ser querido por parte dos à altura seus alunos apesar do conhecimento concreto que estes têm dos factos imputados (conferir cartas que os seus alunos remeteram ao recorrente e que foram juntas ao processo durante o inquérito e que se encontram a fls. ... dos autos);
38. Acresce que o Tribunal a quo e ad quem para determinar aquela concreta dosimetria, e necessidades de prevenção geral e medida da pena - 20 anos de prisão - formou a sua convicção na existência de "uma tendência para delinquir que urge combater", sendo certo que não foi produzida qualquer prova nesse sentido, nem sequer dado como provado essa tendência delinquente, nem como provado qualquer facto que permitisse tirar essa conclusão, e nunca, de nenhuma forma, com o devido respeito, poderia o Tribunal ad quem, para caucionar e suprir essa ausência de prova e sancionar essa concreta escolha e dosimetria - que manteve - imputar ao arguido/recorrente a responsabilidade porque não prestou declarações e privou o Tribunal da descrição do sucedido na primeira pessoa e da percepção de quaisquer factores endógenos ou subjectivos. Tal redunda numa violação das mais elementares garantias de defesa constitucionalmente garantidas, nomeadamente no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa e consubstancia a violação dos princípios da presunção da inocência, da verdade material, do in dúbio pró reo, do direito a não auto-incriminação, o que aqui se suscita para os devidos e legais efeitos. Acresce essa interpretação efectuado pelo Tribunal ad quem do artigo 70°, 71° e seguintes do Código Penal nesse sentido é materialmente inconstitucional é materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 32°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa o que aqui se suscita para os devidos e legais efeitos;
39. Acresce ainda que, nos termos e pelas razões referidos, não tendo sido produzida qualquer prova nesse sentido de se verificar uma tendência para delinquir, nem sequer ter sido dado como provado essa tendência delinquente, nem como provado qualquer facto que permitisse tirar essa conclusão, verifica-se uma insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, nos termos do artigo 410°, n.° 2, alínea b) do Código Processo Penal, que resulta do próprio texto e que deve ser conhecida e declarada por este Venerável Supremo Tribunal de justiça, o que se requer para os devidos e legais efeitos;
40. Mais acresce que, sem prescindir, carece fundamento de facto e de direito a concreta escolha da pena aplicável, entendendo-se mesmo que o Tribunal ad quem não fundamentou devidamente a sua decisão ou fê-lo de forma muito deficiente, não concretizando esclarecendo suficientemente o processo lógico mental e as concretas opções e concreta dosemetria que motivou a aplicação de uma pena de 20 anos de prisão ao ora recorrente. E ao não o fazer o Tribunal a quo não permite, ao aqui recorrente e a este Venerável Supremo Tribunal de Justiça, fazer uma avaliação e reapreciação segura e cabal do porquê daquela concreta escolha e determinação da pena e não outra;
41.Pelo exposto é nosso entendimento que, sem prescindir o Tribunal ad quem ter discorrido sobre a teoria geral das penas, o douto Acórdão é nulo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 425°, n.° 4, 379°, nº 1, alínea a) e 374°, n.° 2 do Código Processo Penal, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos;
42. Sem prescindir ainda, salvo o devido respeito, é nosso entendimento que a pena aplicada ao arguido, ora recorrente, não é justa, adequada, nem proporcional, e a sua determinação não foi feita em função da concreta culpa do arguido e das exigências de prevenção sentidas, nem teve em conta a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime - mesmo não tendo confessado o crime num legítimo direito de defesa de que não abdica a sua conduta posterior ao crime pode e deve ser valorada -, não atendendo a todas às condições que depunham a favor do recorrente, como infra procuraremos demonstrar;
43. A aplicação da pena visa a protecção dos bens jurídicos violados (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a medida concreta da pena exceder a culpa do agente (art. 40° do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra e a favor do agente (n.° 2 do artigo 72° do Código Penal);
44. Sempre que forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 70° do Código Penal);
45. Ora, no caso dos autos, sem prescindir o supra referido, sempre se dirá que, a pena concretamente aplicada no que respeita ao presente crime e admitindo a prática do crime para efeito de raciocínio e sem esquecer a perda de uma vida, a pena de 20 anos de prisão é com devido respeito exagerada e desajustada, tendo em conta a concreta culpa do arguido e as concretas circunstâncias anteriores e posteriores ao factos em julgamento, e as concretas exigências de prevenção geral e especial sentidas, e tendo em conta a personalidade do arguido, o facto de ser primário, e atendendo a todas às condições que depunham e depõem a favor do recorrente e o facto de o arguido ter estado em prisão preventiva três anos e quatro meses, durante o qual teve no estabelecimento prisional um comportamento exemplar e, uma vez libertado por se ter esgotado o prazo de prisão preventiva, ter continuado a ter um comportamento conforme o direito - como resulta do relatório social junto aos autos no decurso da repetição do julgamento ordenado pelo Tribunal da Relação de Guimarães - e com um rigoroso e escrupuloso cumprimento da medida de coacção de apresentação diária no posto da GNR de Fafe e das demais medidas de coacção aplicadas, sem registar qualquer incidente, estando socialmente integrado e tendo um comportamento conforme ao direito;
46. O objectivo da política criminal que a lei perspectiva e que a justiça não pode subtrair-se é o afastamento do delinquente, no futuro da prática de novos crimes;
47. O conteúdo reeducativo das penas consagra, além do aspecto punitivo a reintegração social do delinquente na sociedade. A matriz humanista do nosso direito penal não bloqueia esta realidade, antes a promove. O Recorrente admitindo-se a pratica do crime para efeito de raciocínio terá necessariamente de ser punido. Mas esse castigo não lhe pode nem deve fechar as portas de uma ulterior vida honesta, nem resultar numa manifestação primitiva de lei de Talião, sem prescindir as concretas necessidades de prevenção geral e especial;
48. No caso em apreço, para além do supra referido e também tendo em conta os factos dados como provados, resulta que o Recorrente, tem um futuro e as concretas condições subjectivas e objectivas, endógenas e exógenas para recomeçar uma nova vida e ter um comportamento e conduta conforme o direito, sendo socialmente integrado e bem considerado pelas pessoas da sua área de residência, tendo o apoio familiar. Em reclusão, em cumprimento de pena longa próxima do máximo legalmente permitido, para além de ver coarctado um futuro e um caminho de rectidão e honestidade que tem pela frente, continuará a tomar contacto com a realidade das prisões que poderá vir a ter uma influência perniciosa e contrária aos interesses de reinserção social que o nosso ordenamento institui;
49. Sem prescindir do que se disse supra, tendo em conta todos os elementos constantes dos autos, a culpa do arguido e as concretas necessidades de prevenção geral e especial e tendo em conta todas as concretas circunstâncias que depõem a favor do recorrente e tendo ainda em conta que a conduta apurada, somos do entendimento que a pena concretamente aplicável deveria situar-se entre os 12 e os 14 anos de prisão.
50. Disposições violadas: As referidas supra e as demais que V. Ex.as suprirão, e os artigos 120°, n.°2, b), 124°, 127°, 129°, 131°, 151°, 154°, 159, 163°, 340°, 343°, 348°, 350°, 355°, 356°, 368°, 369°, 370°, 374°, 379°, 410°, 425°, 428° e 431° do Código Processo Penal, e 32° da Constituição da República Portuguesa e 70°, 71°, 72°, 131°, 132°, 144°, 145° e 147° todos do Código Penal.
Respondeu o Exmº Magistrado do MºPº junto da Relação, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção do decidido.
Na respectiva motivação, formula as seguintes conclusões:
1 - 0 recurso interposto, deverá ser rejeitado, porque carece de motivação, na medida em que é basicamente a reedição das questões suscitadas no recurso para a Relação e que transpõe para o presente acórdão.
2 - Além de que, os recursos interpostos para o STJ (salvo os interpostos do Tribunal da Relação em 1ª instância), não podem ter como fundamento matéria de facto nem os vícios do n° 2 do art. 410° CPP.
3 - Em matéria de direito, o recorrente insiste na defesa de soluções só sustentáveis se a matéria de facto fixada fosse diferente, isto é, se os factos provados fossem aqueles que ele continua a entender que resultaram da prova produzida em primeira audiência.
4 - Relativamente à dosiometria da pena, como no mais, carece o recorrente de qualquer fundamento, encontrando-se a pena fixada também exaustivamente fundamentada de facto e de direito e conforme às exigências preventivas e não superior ao nível da culpa.
Respondeu também o assistente DD, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção do decidido.
Para tanto, sem formular conclusões, alega (transcrição):
Como insistentemente vem sendo afirmado pelos tribunais de recurso - e assim, de facto, resulta expressivo do regime processual v,g. do artº 412% n° 1, 417º n° 3 e 420º nº 1 al. c) do CPP — a delimitação objectiva dos recursos é feita pelas suas conclusões.
Em matéria de recursos, sejam eles interpostos para as Relações ou para o STJ, importa ter presente que, constituindo meios de reacção a uma decisão desfavorável em que se pede uma reapreciação das questões suscitadas, por ser assim, tal implica que não sejam suscitadas questões novas, pois que somente é reapreciável o que se apreciou antes.
De fora ficam, porém, as questões que sejam do conhecimento de "oficcio", como as questões que apenas pudessem ser suscitadas em face da superveniência do seu conhecimento.
No que tange a matéria penal, visto que a conformação constitucional apenas impunha uma dupla instância de apreciação das decisões sobre a matéria de facto, mas não um duplo grau de jurisdição de recurso dessa matéria, no CPP( admite-se que as Relações apreciem a matéria de facto, permitindo-se-lhes modificá-la/alterá-la - cfr. art° 431° - aí se esgotando o poder jurisdicional no domínio da matéria de facto, reservando-se ao STJ - como tribunal de revista alargada - a reapreciação da matéria de Direito, quando estejam em causa crimes graves, com um máximo de pena de prisão aplicada superior a 5 anos - ainda que com a ressalva de, oficiosamente ou a requerimento, este poder conhecer dos vícios da previsão do art° 410°, n° 2 do CPP, como é decorrência do disposto no art° 434°.
Ainda em matéria de recursos, verificando-se que a decisão recorrida, v.g. no caso de acórdão da Relação, este enfermar do vício de omissão de pronúncia, tal nulidade carece de ser expressamente arguida em sede de recurso, como resulta expresso no artº 379°, n°s 1 al. c) e 3, também aplicável aos acórdãos da relação, nos termos do art° 425°, n° 4,
Ora,
da análise das conclusões recursórias, constata-se que o recorrente pretende ver alterada a matéria de facto com fundamento numa espécie de renovação da prova em razão de documentos juntos de prova livre e de passagens que transcreve de declarações prestadas por testemunhas e intervenientes processuais, fazendo apelo à gravação da prova produzida em audiência de julgamento - em violação clara ao art° 434°.
Por outro lado, apesar de falar em omissão de pronúncia - ainda que sem especificar qual a concreta questão ou questões que a relação deixou de se pronunciar - não argui a nulidade do acórdão com esse fundamento, o que invalida qualquer efeito útil ao recurso, desde logo, nessa parte.
Do atrás exposto resulta que naufragam, de imediato, sem necessidade de convocação de outros mais argumentos, as conclusões constantes dos pontos 16 e 24 do recurso.
Em rebate dos factos provados, mormente dos repetidos na conclusão 16" da motivação, o recorrente insurge-se alegando estar-se diante de erro notório na apreciação da prova, vício este, da decisão, da previsão do art° 410°, n° 1 al. c).
Como tem vindo a pronunciar-se os nossos tribunais superiores "erro notório " é o erro ostensivo, patente aos olhos do homem médio, de tal modo flagrante, fazendo uso das regras da experiência, que a ninguém é indiferente.
Tem de tratar-se de erro que se evidencia em face do texto da própria decisão recorrida por si ou conjugada com tais regras da experiência.
Por isso,
Se à luz dessas regras um facto provado pode ter acontecido ou se é plausível que tenha ocorrido considerando outros factos provados a partir dos quais o tribunal tomou em consideração para dá-lo como provado, não se está diante de "erro notório na apreciação
da prova", mas antes diante um facto que o tribunal valorou positivamente, de acordo as regras da prova, considerando os meios de probatórios em que se fundou para formar a sua convicção.
Daí que, se em relação a uma distância percorrida em determinado tempo se torna tão provável tal ter acontecido, como o seu contrário, não ocorre o tal "erro notório na apreciação da prova” se o tribunal deu o facto como provado
Como também não há violação do princípio da presunção de inocência nem o sub-princípio do "in dúbio pro reo" em matéria de prova se, como no caso, o tribunal optou em dar os factos como provados em função da conjugação dos meios de prova ao seu alcance, nomeadamente, documentais e depoimentos de testemunhas que convincentemente o fizeram ultrapassar a "dúvida razoável".
Falecem, por isso, as conclusões 17° a 22°,
Além de que nada invalida quanto à hora aproximada dada como provada a que a vítima chegou ao Hospital de Felgueiras em face da imprecisão horária em que esse registo foi feito - como ressalta do depoimento da testemunha KK -, igualmente a mesma não é posta em crise em face da hora de registo de entrada no Hospital de S. João por ser perfeitamente possível que, transportada de ambulância, neste tenha dado entrada à hora que consta do registo de Inscrição: llh09m.
Improcede, por isso, do mesmo modo, a conclusão 23ª
No que tange à prova documental constante de fls. 926 a 933, 934, 953, 954 e 955 e à testemunhal que o recorrente vinha já de relacionar com esta, o tribunal da Relação apreciou-as exaustivamente, embora valorando-a em moldes diferentes e em sentido diverso do analisado e pretendido pelo recorrente,
Caem, assim, as conclusões vertidas em 24ª, 25ª e 26ª da motivação de recurso.
Mas uma coisa é a diferente valoração feita pelo tribunal, outra é a discordância que o recorrente faz em relação a essa mesma (des)valoração e aos factos provados.
A diferente valoração, só por si} não determina que o tribunal tenha incorrido em erro notório na apreciação da prova ou que, numa outra perspectiva, o acórdão se encontre eivado deste vício se, como na situação em análise, do texto da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência, não resulta elementar haver de alterar-se os factos provados (ainda que a sanação do vicio esteja vedada a este STJ).
A respeito destes elementos de prova e da questão suscitada em redor deles pelo recorrente, o tribunal da Relação ateve-se detalhadamente - diríamos mesmo, quase sem exagero, até ao limite da exaustão sobre eles -, fazendo uma apreciação esgotante, pondo em evidência a razão da invalidação dos argumentos do arguido conforme promana dos pontos 157 A 171 do douto acórdão da Relação,
A respeito das conclusões 27ª a 33ª da motivação de recurso;
Valem aqui, pela capacidade de síntese e pela forma assertiva como atacou a questão, as considerações feitas pela Relação, nos pontos 187 a 190 do acórdão sob censura.
Dir-se-á mais o seguinte:
Não é pelo facto do arguido ter podido optar por outro meio para realização da acção pretendida - o decesso da vítima - que permite daí extrair-se a conclusão de que tendo a morte ocorrido na sequência das queimaduras sofridas com o atear do fogo, depois de ter sido regada com gasolina, se tem por excluída a autoria do comportamento criminoso do arguido nos termos que vem provada pelas instâncias.
Se é verdade que poderia ter usado outro meio, não menos seguro que utilizou um processo que implica uma acção devidamente pensada e capaz de causar à vítima, como efectivamente causou, um sofrimento atroz.
E considerando o local ermo e sem ninguém onde tal acção foi praticada não é menos certo que o resultado mais provável seria que dali a vítima não saísse com vida.
O facto de estar com queimaduras intensas em 51% da zona corporal e ainda nesse estado ter conseguido, sozinha, livrar-se das roupas coladas ao corpo e completamente nua ter entrado na viatura que conduziu até ao hospital de Felgueiras onde, nesse estado, se apresentou no serviço de urgência pedindo socorro, diz bem da vontade de resistir à morte por parte da vítima, e da sua enorme vontade de viver.
Também por aqui - se outro motivo não houvesse, como sobressai da perícia - "cai por terra" o insistente argumento do recorrente, de que a vítima tinha intenções suicidas.
Se o arguido dá mostras - vide conclusão 31ª da motivação de recurso - de saber como preparar um homicídio em moldes de poder ser executado sem deixar pistas à investigação para que não se descubra o seu autor, não menos certo é, nesse capítulo que o homicídio causado pelo fogo em corpo regado com gasolina, seria o melhor meio para os eliminar, acima de tudo porque previsível seria que a vítima não sobrevivesse, contrariamente ao que (inesperadamente ) sucedeu.
Como é também verdade que um tal meio empregue, que pressupõe uma acção "pensada ao milímetro" para impedir que o seu autor pudesse vir a ser responsabilizado, assenta que nem uma luva no perfil do arguido, em relação a quem, de acordo com o traço psicológico, tal como consta do relatório junto, se regista tratar-se de "pessoa reservada, defensiva, desconfiada, pouco tolerante ao stress e perfeccionista, tendo tendência para projectar as suas frustrações e falhas em causas externas, ".
À questão da falta de nexo de causalidade entre os factos provados e a morte da vítima decorrente da "septis " obviamente que não faz qualquer sentido.
A respeito disso, e da problemática relacionada com a concausalidade, dupla causalidade ou causalidades concorrentes, foi esclarecedora a retoma do pensamento do Prof. Figueiredo Dias quando ensina que a concorrência de várias condições para o resultado não afasta a causalidade, referindo, como se transcreve no texto do douto acórdão recorrido: " todas as condições que, de alguma forma, contribuíram para o resultado se tivesse produzido são causais em relação a ele e devem ser consideradas em pé de igualdade, já que o resultado é indivisível e não pode ser pensado sem a totalidade das condições que o determinaram "
Deverão, por conseguinte, improceder tais conclusões.
No tocante à dosimetria da pena:
Insurge-se o recorrente - como já antes - que na fixação da pena o tribunal tomou em consideração “uma tendência para delinquir que urge combater", sustentando que não foi produzida prova nesse sentido.
A este propósito não há que descartar - antes pelo contrário - que o traço psicológico do arguido se enquadra na escolha e reflexão do meio empregue com requintes de pormenor, como por exemplo, a atracção da vítima a um lugar ermo, a hora escolhida para o encontro, a execução fria e eficaz do crime, com contornos hediondos, deixando a vítima à mercê do tempo que um ser humano é capaz de resistir ao fogo em repleto sofrimento, usando de um instrumento e local de acção susceptível de não deixar vestígios do crime de forma a tornar um acto impune.
A tal pessoa "reservada, defensiva e perfeccionista" tendente a "projectar as suas frustrações em causas externas e de projectar as suas responsabilidades para terceiros que domina", redunda - como se fundou na sentença de 1ª instância - "num quadro de preocupação acrescida no domínio da prevenção especial" sobretudo quando tais características de personalidade possam ser postas (como foram) ao serviço de práticas tão repugnantes.
Considerando
• Que se trata da supressão do bem supremo - a vida - o direito absoluto mais importante na ordem jurídico-penal, tratando-se, por conseguinte, do grau máximo da ilicitude;
• O planeamento da acção e a execução da mesma, determinada a por termo à vida - dolo directo e intenso;
• O sofrimento imposto à vítima e a manifestação do desprezo total pela vida de outrem;
• A situação que sabia de dependência dos filhos da vítima em relação a esta, demais que sabia que o pai tinha sido assassinado há cerca de dois anos;
• As razões que determinaram a cometer o crime, não sabendo lidar com contrariedades normais na vida querendo manter uma relação amorosa, apesar de ser casado e ter a mulher grávida de um filho de ambos;
• O próprio meio empregue,
reconduz a questão da medida da pena, na vertente da necessidade de satisfação da prevenção especial, considerando a finalidade de ressocializaçao do agente - mas tendo como medida e limite a culpa, que é muito elevada - enquanto meio de neutralização do autor para que se conforme com ordem jurídica, ainda que suficientemente e em simultâneo, assegure a repressão do mal em termos de o afastar de futuros crimes - para se concluir que se afigura razoável a pena aplicada, ao arguido, de 20 anos de prisão.
Não pesa especialmente a seu favor, nem a circunstância de não possuir passado criminal, nem a de estar com a mulher e de ter um filho de pouca idade, pois que não tomou em devida conta essa situação ao tempo dos factos, altura que já pesava o facto de ser casado e de ter a mulher grávida, situação que totalmente descurou quando se decidiu pela acção delituosa.
Ao invés, sairia altamente desprotegida a prevenção geral deste tipo de crimes que se vêm intensificando, reclamando cada vez mais da comunidade, uma séria repressão deste tipo de comportamentos, em ordem a manter firme o propósito da sociedade em reprovar a criminalidade violenta, maxime, o homicídio, caso, como pretende o recorrente, a este lhe fosse reduzida a pena aplicada.
O sinal que os tribunais dariam, em tal situação, seria o de uma justiça branda perante um crime violento e hediondo, permissivo ao cometimento de crimes violentos, numa altura em que a sociedade espera da justiça uma maior severidade nas penas, de maneira a estancar a criminalidade e dar maiores garantias de segurança aos cidadãos.
Acresce que vivemos num momento conturbado, em que não menos frequentemente acontecem crimes associados a paixões e desamores, impondo-se, neste capítulo, que os tribunais respondam com penas que espelhem a censura da comunidade em relação a tais actos e que constituam verdadeira contramotivação da prática de futuros crimes por quem quer que seja.
A questão da inconstitucionalidade (conclusão 38ª da motivação de recurso ):
Alega, ainda o recorrente que, considerando a interpretação que a Relação faz dos art°s 70° e 71° do C. Penal e da consequência que retira do direito ao silêncio do arguido, torna materialmente inconstitucionais, aqueles normativos.
Em primeiro lugar, refira-se que não se extrai do acórdão recorrido uma interpretação destes dispositivos legais que fira o artº 32°, n° 1 da CRP. Nem o recorrente se atreve a referir que interpretação é essa relacionada com estas normas.
Em segundo lugar, o que a Relação diz, e bem, é que, constituindo o direito ao silêncio uma verdadeira garantia constitucional do arguido, optando ele por essa via, naturalmente deixa o tribunal de ouvir da própria pessoa acusada a versão dos factos que lhe são imputados, Por outro lado, o mesmo silêncio do arguido impede o tribunal de colher do próprio o seu percurso post facto "incluindo eventual reflexão sobre a antijuricidade e rejeição firme da conduta desviante".
O que vem de ser afirmado pela Relação é a óbvia tradução de quem opta por estar calado.
Quem cala torna impossível que da sua voz saia o que quer que seja, mormente sobre o seu pensar acerca do crime e o que o move para futuro.
Hoje, é cada vez mais comum ocorrerem crimes contra a integridade física e contra a vida entre pessoas que se enamoram, motivados por contrariedades da vida ou desencontros amorosos.
O que não vem dito é que o seu silêncio foi ajuizado em seu prejuízo!
Não se verifica, pois, a inconstitucionalidade invocada, que apenas servirá de alçapão a uma outra manobra dilatória que se seguirá.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal teve vista do processo nos termos do artigo 416º-1 do CPP e emitiu douto e muito bem fundamentado Parecer no sentido de que o recurso deve ser rejeitado na parte em que se questiona a matéria de facto dada como assente e no restante, deve improceder, pois o acórdão recorrido não enferma de qualquer das nulidades invocadas nem dos vícios a que se reporta o recorrente; o tribunal a quo conheceu de todas as questões suscitadas e das que devia conhecer oficiosamente, improcedendo a invocada omissão de pronúncia; da análise do acórdão recorrido não se indicia a existência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º-2 do CPP; a qualificação jurídica da matéria de facto assente não merece o mínimo reparo; a invocada interpretação inconstitucional dos artigos 70º e 71º do C Penal é destituída do mínimo suporte, sendo a opção por essa via, uma forma de retardar o cumprimento da pena aplicada; a pena aplicada mostra-se justa, adequada e proporcional á culpa do arguido e ás elevadíssimas exigências de prevenção que no caso se fazem sentir.
Foi cumprido o estatuído no artigo 417º-2 do CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
As questões suscitadas pelo recorrente e a decidir são as seguintes:
1 – Nulidade do acórdão recorrido por “insuficiência de reexame crítico do caso sub Júdice e da prova produzida em audiência de julgamento” e por omissão de pronúncia (“sobre todas as questões colocadas e sobre a imputada incorrecção de julgamento da matéria de facto”)? – conclusões 12ª a 23ª.
2 – Padece o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova? - conclusões 13ª a 26ª.
3 - Padece o acórdão recorrido do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão? - conclusões 27ª a 32ª.
4 - Não há nexo de causalidade entre a acção do arguido e a morte da vítima EE, pelo que não há crime nem o pedido cível pode proceder? – conclusões 33ª e 34ª.
5 – A interpretação que o tribunal recorrido faz dos artigos 70º e 71º do CP é inconstitucional por violação do artigo 32º-1 da CRP? – conclusões 35ª a 39ª.
6 – Será ainda o acórdão recorrido, nulo, por falta de fundamentação da escolha concreta da pena e da explicação do processo lógico mental que motivou a aplicação da pena de 20 anos de prisão? – conclusões 40ª e 41ª
7 – Medida da pena: a pena aplicada é exagerada e desajustada, devendo antes situar-se entre os 12 e os 14 anos de prisão? – conclusões 42ª a 50ª.
Vejamos então:
É a seguinte a matéria de facto provada (com as alterações determinadas no acórdão recorrido):
Em data incerta do ano de 2003, o arguido conheceu profissionalmente EE, tendo desse conhecimento, resultado uma relação amorosa entre ambos.
Essa relação amorosa, pelos menos nos meses que antecederam a prática dos factos, foi muito conturbada, tendo se sucedido vários episódios que resultaram em queixas judiciais. Não obstante, durante esse período de relacionamento amoroso, o arguido desenvolveu um amor obsessivo pela EE, chegando, no mês que antecedeu a prática dos factos, a contactá-la dezenas de vezes ao dia, através de chamadas ou mensagens telefónicas.
Como o arguido não se divorciasse da sua esposa, a EE decidiu terminar a relação amorosa entre ambos, o que aquele não aceitou.
O arguido tomou, então, a resolução de tirar a vida à EE, utilizando para o efeito um líquido combustível inflamável.
Na execução desse plano, no dia 01/05/05, no período nocturno, o arguido utilizando o cartão de acesso à rede TMN, com o número 000000000, telefonou para o número 000000000, utilizado pela EE, tendo combinado com esta um encontro no dia seguinte, por voltas das 09h00, no monte de Santa Quitéria.
Na manhã do dia 02/05/05, o arguido não foi trabalhar e foi tomar o pequeno-almoço a um café, sito nas bombas Total, em Fafe, tendo, depois, por volta das 09h/09h15m, se dirigido ao referido local de encontro, conduzindo o veículo de marca Renault, modelo Mégane, de matrícula 00-00-00, pertencente a BB, levando gasolina que acondicionou numa garrafa de plástico.
Aí chegado, esperou alguns momentos pela EE que se deslocou ao local de encontro, conduzindo o seu Jeep, de marca Mercedes, matrícula 00-00-00, tendo esta estacionado perto do veículo em que o arguido se fazia transportar.
De seguida, ambos saíram das suas viaturas e, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a EE para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da EE, que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía.
De imediato, as peças de roupa que a EE vestia se incendiaram e esta começou a gritar de desespero e dor, enquanto despia o dito vestuário. Nessa altura e indiferente a esta situação, o arguido abandonou o monte de Santa Quitéria, conduzindo o veículo supra identificado.
A EE, nua, calçando apenas umas botas, conseguiu alcançar o seu Jeep, tendo-o conduzido até ao Hospital de Felgueiras, onde deu entrada por volta das 10h00m.
Deste estabelecimento, veio a ser transferida para o Hospital de São João, no Porto, e daí para os Hospitais da Universidade de Coimbra.
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, EE sofreu lesões das vias aéreas e queimaduras de 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total de 51% da superfície corporal.
Estas lesões, para além de extremamente dolorosas, foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
Não tem antecedentes criminais.
É imputável, sendo uma pessoa reservada, defensiva, desconfiada, pouco tolerante ao stress e perfeccionista, tendo tendência a projectar as suas frustrações e falhas em causas externas.
O arguido é filho único, tendo concluído a licenciatura em Matemática e Ciências para ensino, exercendo a profissão de professor de ensino básico. Em virtude de se encontrar preso, aufere 5/6 do vencimento.
É casado, com um filho com cerca de 3 anos. No EP, enquanto esteve preso, adoptou uma postura adoptada às normas, colaborando no sector dos têxteis e no jornal.
É reputado por familiares e amigos, como uma pessoa boa, educada, calma e respeitadora.
A EE, apesar de já ter tido depressões e de ter sido assistida em consultas de psiquiatria até Setembro de 2003, revelava um funcionamento psíquico adequado às situações, não apresentando factores preditivos ou indicadores de eventual acto de suicídio.
Durante o período compreendido entre a prática dos factos até ser assistida e depois de ser assistida clinicamente até à sua morte, a EE sofreu fortes dores físicas e psicológicas, temendo a sua morte e temendo igualmente pelo futuro dos seus 3 filhos, um maior de idade (o assistente) e dois deles menores (Bruno e Ana), que já eram órfãos de pai.
A EE nasceu em 28/07/1963, era viúva e trabalhava na Psicofelgueiras, auferindo 750€ mensais. O filho mais velho, o assistente DD, estudava e estuda economia numa universidade privada no Porto.
O assistente e os irmãos viveram toda esta situação com muita angústia e tristeza.
Os serviços médicos prestados à EE no Hospital de São João importaram a quantia de 359,80€.
São os seguintes os FACTOS NÃO PROVADOS
Não ficaram provados outros factos com interesse para a boa decisão da causa, designadamente, e para além daqueles que estejam em contradição com os factos dados como assentes, que o arguido tenha adquirido no posto de abastecimento da Shell, sito em Silvares, Fafe, 1€ de gasolina.
Não se provou que o arguido conheceu profissionalmente EE em data distinta da constante dos factos provados.
Não se provou ainda que a superfície corporal queimada de EE atingiu 55%.
É a seguinte a MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Para formar a sua convicção o tribunal baseou-se em:
1 – Relatório pericial de autópsia psicológica efectuada a EE, esclarecimentos por escrito prestados posteriormente e esclarecimentos verbais prestados em audiência de julgamento pela perita médica subscritora desse relatório:
Esta perita confirmou o teor do seu relatório, afirmando que o método que utilizou é, na sua opinião, o mais adequado a este tipo de situações. Mais referiu que apenas através de informações colhidas a pessoas próximas da vítima é que poderia recolher informações, explicando que o facto de serem familiares próximos da vítima também foi tido em conta no tratamento dos resultados. Contudo, realçou o facto de não ter havido discrepâncias entre os resultados obtidos. Além disso, ainda salientou a personalidade adequada que a EE tinha, referindo que a depressão que a mesma sofreu, após a morte do seu marido, foi uma resposta funcional e natural e que o facto de ter entrado em depressão não significa, necessariamente, que tivesse tendências suicidas.
Reinquirida, conforme ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, reafirmou de um modo muito convicto que a examinada não apresentava qualquer patologia de foro psiquiátrico e que se tal se sucedesse era a primeira solicitar exame psiquiátrico, o que não o fez por ser totalmente desnecessário. Reafirmou também que o método que utilizou é o mais adequado e que a examinada não tinha quaisquer tendências suicidas, não apresentando qualquer patologia, por mais ínfima que fosse, que lhe pudesse sugerir tal possibilidade. Por outro lado e quanto confrontada com os alegados períodos de alucinação que a vítima poderá ter sofrido, a Sr.ª Perita esclareceu os estados em que uma pessoa pode estar, distinguindo o período de critica do período de delirium, referindo também que um profissional da área da saúde sabe distinguir tais estados, o mesmo se sucedendo com um familiar próximo ou até mesmo uma pessoa normal. Logo, concluiu que, se na altura em que contou a sua versão dos factos às mais variadas pessoas, a vítima mortal estivesse num denominado estado de delirium, estas saberiam identificar tal estado.
2 - Declarações do assistente DD, filho da vítima EE:
O assistente afirmou estar a estudar na faculdade no Porto, apenas se deslocando a casa aos fins-de-semana. Talvez por esse facto, afirmou não saber do relacionamento que a sua mãe mantinha com o arguido, embora suspeitasse que a sua mãe pudesse ter alguma relação com alguém. Questionado sobre o dia em que a sua mãe sofreu as queimaduras em causa nestes autos, afirmou que soube através do seu padrinho. Apenas cerca 2 semanas depois do sucedido é que foi visitar a sua mãe, afirmando que apenas os médicos e uma tia é que a viam. Quando visitou a sua mãe pela primeira vez, não lhe perguntou nada do que lhe tinha sucedido, apenas tendo tido uma conversa normal (como é que estava, se sentia dores, como estava a correr a escola, com estava ele e os irmãos, etc). Depois dessa ocasião afirmou visitar a mãe de 3 em 3 dias, confirmando que a mesma estava completamente lúcida. Na 3.ª visita que lhe fez e embora já soubesse do que tinha acontecido porque já lho tinham contado, perguntou à mãe quem lhe tinha feito aquilo, ao que ela lhe respondeu que foi o Prof. AA. A partir nunca mais tocou nesse assunto com a sua mãe, porque não queria que ela sofresse. Mais confirmou o veículo que a sua mãe possuía (Jeep Mercedes), bem como o carro do arguido (comercial Mégane), referindo que conhecia o arguido por ser companheiro de trabalho da sua mãe. Quanto ao que aconteceu na noite anterior ao que está em causa nestes autos, o assistente declarou que se encontrava a jantar com a sua mãe, a qual estava muito bem disposta. No entanto e a dado momento do jantar, por volta das 09h30m/10h00, a sua mãe recebeu um telefonema, não sabe de quem, tendo ficado irritada e mal disposta. Por fim, confirmou a força de viver da sua mãe, força essa que demonstrou aquando do seu internamento em Coimbra, querendo muito recuperar para não deixar os seus filhos abandonados.
3- Livre apreciação e segundo as regras da experiência dos depoimentos das testemunhas:
- JJ, médico, coordenador da Unidade de queimados do hospital da Universidade de Coimbra, afirmou que a vítima EE entrou naquele hospital transferida do Norte (Felgueiras – S. João), dado que Felgueiras não tem unidade de queimados e a do Hospital de São João apenas foi inaugurada em Abril do ano passado. Acrescentou que a EE vinha ventilada e com queimaduras graves em cerca de 55% do corpo, confirmando o teor do relatório de fls. 169 e 170. Mais referiu que a vítima apresentou algumas melhoras, durante o período em que esteve internada, mas que depois teve uma recaída vindo a falecer, vítima de Sepsis (infecção generalizada do corpo). Disse também que essa infecção só apareceu cerca de 30 e poucos dias depois dos factos, sendo própria das pessoas vítimas de queimaduras graves. Explicou ainda que, nos dias de hoje, já poucas pessoas morrem nas 48/72 horas a seguir a uma queimadura grave, sendo que a infecção generalizada do corpo é uma consequência própria e tardia de uma queimadura, só aparecendo algum tempo depois. Confrontada sobre a possibilidade de a vítima ter sido salva se tivesse sido logo assistida pelo seu departamento, a testemunha afirmou que “cada caso é um caso” e que “quando mais cedo fosse assistida, melhor seria”.
Por outro lado, explicou os tratamentos que foram prestados à vítima (incluindo apoio psicológico pela enf.ª LL), referindo que acompanhou diariamente a sua situação clínica, embora não estivesse todos os dias com ela. Quando contactou directamente com a vítima, nunca lhe perguntou o que lhe tinha acontecido, nem esta lho disse, apenas referindo que esta se apresentava lúcida e consciente, com um discurso coerente, tendo vontade de voltar à sua vida activa e de voltar para a beira dos filhos, dos quais falava muito. Além disso, referiu que as lesões que a EE apresentava eram compatíveis com queimadura provocada por gasolina incandescente e que, das conversas que teve com ela, não lhe parece que a mesma tivesse tentado o suicídio.
- LL, enfermeira da unidade de queimados do hospital da Universidade de Coimbra, confirmou que prestou cuidados médicos à vítima, sendo a sua especialidade saúde mental. Acrescentou que todos os doentes na unidade de queimados recebem apoio psicológico e que, nessa conformidade, prestou tratamento à EE durante cerca de 1 mês, 2 vezes por semana. Nas conversas que manteve com ela, afirmou que a EE apresentava um discurso orientado e coerente, não lhe parecendo que tivesse tendência para o suicídio, embora não lhe competisse fazer tal diagnóstico. Mais referiu que a EE era uma pessoa que lutava e que queria sair dali, sendo que para ela o desfiguramento não era importante, mas sim ir para a beira dos filhos, que afirmava precisarem muito dela. Acrescentou ainda que não se lembrava da EE ter tido atitudes menos agradáveis com ela, afirmando que, no período em que contactou com ela, a EE não teve alucinações. Quanto aos ferimentos apresentados, declarou que a EE tinha queimaduras na face, no tronco e nos braços referindo que a pele é uma barreira para as infecções, pelo que, estando a mesma queimada é normal que essas infecções apareçam. Por fim, referiu que nunca perguntou à EE nem ela lhe disse o que lhe tinha acontecido, realçando ainda as dores físicas e psicológicas que aquela situação e os tratamentos acarretavam para a vítima, não obstante os sedativos que lhe eram ministrados.
- MM, gestor de empresas, dono do Centro Psicofelgueiras e sobrinho da vítima, que era gerente dessa instituição. Sobre o arguido referiu que o mesmo trabalhou naquela instituição, num período de um ano, entre 2003 e 2004, sendo que em 2005 já lá não trabalhava.
Esta testemunha afirmou ter visitado a tia em Coimbra, sendo que inicialmente esta esteve ventilada, não falando. Mais referiu que cinco dias depois, voltou a visitá-la, tendo chegado a falar com a EE. Na conversa que manteve com ele, a EE apresentava-se bastante lúcida, mas triste, preocupada com o aspecto que iria ficar. Depois desta visita, a testemunha referiu ter ido várias vezes a Coimbra, visitar a sua tia, esclarecendo que, na 2.ª visita que lhe fez, perguntou-lhe o que se tinha passado. Nessa altura, a sua tia, que se apresentava bastante lúcida, contou-lhe que tinha um relacionamento com o arguido e que estava a tentar acabar com o mesmo. Depois de várias vezes ter terminado a sua relação, a sua tia disse-lhe que o arguido lhe telefonou e pediu-lhe para se encontrar com ela em Santa Quitéria, referindo que iria ser a última vez que se iam encontrar, prometendo que não a chatearia mais. Mais acrescentou que a sua tia lhe disse que, quando chegou ao encontro, o arguido já lá estava. Tendo parado o carro, a EE referiu que o arguido lhe pediu para ela sair do carro para conversarem ao que esta acedeu, não obstante lhe ter dito que não tinham mais nada para falarem. Mais lhe contou que, quando saiu do carro, o arguido agarrou-a e atirou-a para umas silvas, tendo ficado em pânico (EE). De seguida e segundo o que a EE lhe relatou, o arguido pegou numa garrafa com gasolina, da qual não se tinha apercebido, e derramou-lhe tal líquido sobre o corpo ao mesmo tempo que lhe dizia:
“Vais morrer. Não és para mim, não és para mais ninguém”.
Logo depois, o arguido pegou num isqueiro e ateou fogo ao corpo da EE, tendo havido uma explosão. Nessa altura e segundo o que a EE lhe disse, o arguido fugiu do local, abandonando a EE, que ficou a arder, tentando apagar o fogo que consumia o seu corpo. Com esse objectivo, a EE tirou a roupa que vestia, apenas tendo ficado com as botas que calçava, ao mesmo tempo que se atirou para o chão rebolando-se. Por fim, disse-lhe que conseguiu pegar no carro e se dirigiu ao Hospital de Felgueiras, pedindo ajuda.
Questionado sobre se tinha conhecimento do relacionamento amoroso entre o arguido e a sua tia, esta testemunha confirmou-o, referindo que suspeitava haver uma intimidade entre os dois a qual lhe foi confirmada pela sua esposa, a testemunha PP, que era muito amiga da EE. Acrescentou ainda que foi ele quem entregou à PJ a carta de fls. 194 dos autos, a qual estava numa secretária dentro de uma bolsa da EE, não tendo dúvidas que a caligrafia constante daquela carta é do arguido. Por outro lado, realçou a força interior da EE, referindo que ela nunca quis por termo à vida e que, quando se encontrava no hospital, a sua grande preocupação eram os seus filhos, sentindo que os mesmos ficariam desprotegidos sem ela. Referiu também que a sua tia trabalhava na Psicofelgueiras auferindo cerca de 750€ mensais, mais um prémio no final do ano, caso a empresa fosse rentável. Vivia com a mãe e com os 3 filhos, sendo que o filho mais velho estudava Economia numa Universidade Privada no Porto, apenas vindo a casa aos fins-de-semana. Por fim e quando confrontado sobre se estava zangado com o arguido, esta testemunhou afirmou que sim, pois está convencido que foi ele quem matou a sua tia.
- QQ, médico, exerce funções no Hospital de Felgueiras
Esta testemunha referiu que, no dia da prática dos factos, estava no Hospital de Felgueiras, juntamente com o Dr. RR, que também acudiu a doente. Acrescentou que a EE entrou despida no hospital, apenas com as botas calçadas, em aflição, a gritar por socorro, dizendo que ia morrer. Rapidamente foram ao seu encontro, tendo-a encontrado em pânico, mas não em estado de choque, estando plenamente consciente. De seguida, referiu que ela lhes repetiu por várias vezes, que aquele maroto incendiou-me e matou-me e que tinha filhos para criar, tendo-lhe também referido que tinha sido regada com gasolina, o que na opinião desta testemunha era compatível com o cheiro que apresentava.
Questionado sobre a parte do corpo onde a EE se apresentava com mais queimaduras, esta testemunha referiu a parte da frente, principalmente nos braços e mãos, sendo que o “cabelo saía em torresmas”. Declarou também que o discurso que a EE apresentava não era compatível com a possibilidade de ter sido ela a regar-se com gasolina e que a mesma esteve a falar com uns guardas da G.N.R, não tendo presenciado o teor da conversa. Por fim, confirmou que em Felgueiras não existia nem existe unidade de queimados e que a EE apenas lá esteve cerca de ½ hora, o tempo necessário para a sedarem, hidratarem as feridas e tratarem da sua transferência para o Porto.
- RR, médico do hospital de Felgueiras, que, em traços gerais, confirmou o que disse a anterior testemunha, QQ, realçando o discurso coerente que a EE apresentava, o qual não era compatível com alguém que quisesse pôr termo à vida. Referiu ainda que foi ele quem chamou a polícia e providenciou pela transferência da EE, confirmando ainda o teor da ficha clínica de fls. 209 e 210, tendo também afirmado que a mesma tinha conduzido um Jeep até ao hospital.
- SS, enfermeira no Hospital de Felgueiras, que prestou os primeiros cuidados de saúde à EE, confirmou que, a meio da manhã, aquela entrou desesperada na urgência, apenas com umas botas calçadas, com a parte de frente do corpo queimada, a pedir auxilio. Mais referiu que lhe prestou os primeiros cuidados de saúde, tratando as feridas (esterilizando-as) e aplicando-lhe sedativos para as dores. Enquanto esteve com ela, a EE contou-lhe que tinha sido regada com gasolina e queimada por um homem, em Santa Quitéria, ao mesmo tempo que dizia que não podia morrer porque os filhos já não tinham pai e precisavam dela. Além disso, confirmou que elementos da GNR se deslocaram ao local e estiveram a falar com a vítima, tendo ouvido parte da conversa, pois estava-lhe a prestar os primeiros socorros. Nessa conversa, recorda-se de ter ouvido a EE a contar que tinha sido regada com gasolina por um professor de Sernande, não tendo conseguido ouvir o nome dele. Por fim, esclareceu que não obstante não ter conhecimentos na área da psiquiatria nem da psicologia, reputou o discurso da EE como coerente.
- KK, auxiliar de acção médica, no Hospital de Felgueiras, afirmou que, a meio da manhã, a EE entrou completamente nua naquele Hospital a pedir ajuda, para não a deixarem morrer, porque tinha filhos, os quais já não tinham pai. Mais referiu, que desde que ele entrou até ter saído sempre a acompanhou, tendo afirmado que a mesma se deslocou para aquela unidade de saúde a conduzir um Jeep e que lhe contou que, em Santa Quitéria, um senhor a tinha regado com gasolina e lhe tinha chegado fogo. Na altura, também disse o nome da pessoa, o qual não se recorda, mas que era professor e que dava aulas na escola de Sernande.
Acrescentou também que a EE lhe contou que recebera uma chamada telefónica para se deslocar a Santa Quitéria e que tinha um relacionamento amoroso com essa pessoa.
Questionada sobre o discurso da EE, classificou-o como coerente e lúcido, tendo inclusivamente referido que foi a EE quem lhe deu a informação para poder preencher a ficha de fls. 209 (dados pessoais nome, morada, data de nascimento, etc.), pois que não tinha qualquer elemento identificativo com ela, tendo ainda dado o número de telemóvel do seu irmão. Quanto à hora de entrada da EE na urgência, referiu não se recordar, tendo apenas esclarecido que metidos os dados no computador, o mesmo insere automaticamente a hora e que pensa que a ficha pode ter sido preenchida até cerca de 20m depois da EE ter dado entrada no hospital de Felgueiras.
- TT, Cabo da GNR, foi ao hospital tomar conta da ocorrência. Afirmou que falou com a vítima questionando-a sobre o que tinha acontecido e quem lhe tinha feito aquilo, ao que ela respondeu que tinha sido o colega dela, professor na escola de Unhão, perto de Sernande, de nome de nome AA, com quem havia mantido uma relação amorosa, que lhe ligou para o telemóvel, a pedir um encontro ao que ela acedeu, tendo o mesmo sido marcado para Santa Quitéria. Quando chegou ao local, referiu que ele pegou numa garrafa, lançou-lhe gasolina e chegou-lhe lume. Questionado sobre a ficha de fls. 8, esta testemunha referiu que foi ele quem a preencheu, mas que o nome completo do arguido apenas lhe foi fornecido posteriormente por um colega que se deslocou à escola de Sernande e recolheu tal informação. Acrescentou ainda que o Jeep da EE se encontrava à porta do centro de saúde e que se apresentava queimado no banco da frente. Por fim, reputou o discurso da EE como coerente.
- UU, abastecedor de combustíveis, apenas soube adiantar que, no dia da prática dos factos, uma pessoa do sexo masculino, que não consegue identificar, se deslocou ao posto de abastecimento, no período do seu turno (07h às 12h), tendo abastecido numa garrafa de plástico.
- VV, companheira de trabalho do arguido e da EE na Psicofelgueiras, sendo que com esta última mantinha também uma relação de amizade. Inquirida sobre os factos, esta testemunha apenas falou sobre o conhecimento que tinha da relação amorosa entre o arguido e a EE, o qual lhe adveio daquilo que a EE lhe confidenciava. Dessa relação, o que a EE lhe transmitia era que o arguido era casado e por isso a mantiveram em segredo. Além disso, a EE também lhe transmitiu que terminou essa relação e que o arguido aceitou muito mal. Acrescentou que viu cartas enviadas pelo arguido à EE, identificando a sua caligrafia (do arguido) na carta de fls. 195 e 196. Mais referiu que, próximo do dia em que se sucederam os factos, assistiu a um telefonema onde o arguido e a vítima discutiram, tendo também referido que, na 6.ª feira anterior aos factos, almoçou com os 2, sendo que a EE tinha ido comprar uma camisa para oferecer ao arguido, pois que, segundo ela, eles tinham discutido e ele tinha rasgado a camisa. Por fim, contou que soubera das discussões que a EE e a esposa do arguido tinham tido, dos incidentes e das queixas que o arguido tinha apresentado contra a EE e ainda de uma carta que a EE enviou para os pais do arguido, para lhes dar conhecimento do relacionamento entre os dois.
- OO, inspectora da PJ que acompanhou o colega NN, nas várias diligências que efectuou.
Esta testemunha confirmou que, quando chegaram ao posto da GNR, por volta das 11h00, verificaram que o Jeep da EE se encontrava no parque da GNR e que encontraram, na viatura, vestígios de queimaduras. Além disso, encontraram também o telemóvel da EE, o qual não parava de tocar, aparecendo no visor o nome de AA. Mais referiu que, numa dessas chamadas, o seu colega NN atendeu o telefone, tendo falado com alguém que não soube identificar. Nessa altura, já na GNR circulava a notícia de que o agressor teria sido o arguido. Mais referiu que se deslocou ao local (Santa Quitéria) e que encontraram uma tampa de uma garrafa, além de vários papeis queimados, sendo que ainda cheirava gasolina. Questionado sobre os acessos ao local, esta testemunha afirmou que o mesmo era facilmente acessível por um ligeiro de passageiros, salientando o facto de se terem deslocado ao local numa viatura desse tipo. Além disso, também referiu ter encontrado vestígios dos rodados do Jeep da EE, o mesmo não podendo dizer acerca do veículo do arguido. Também referiu que no local não havia mata ardida e que pensa que a vítima terá andado de um lado para o outro quando estava a arder. Acrescentou ainda que chegaram a falar com o arguido tendo o mesmo autorizado que os agentes da PJ entrassem em sua casa e levassem camisas que alegadamente terá usado naquela manhã. Por outro lado, confirmou que as fotografias constantes dos autos a visores de telemóveis foram tiradas aos telemóveis da EE e do arguido, sendo que no telemóvel do arguido apenas havia 2 mensagens, tendo todas as outras sido apagadas. Por fim e das conversas que teve com a EE, achou-a uma mulher lúcida, ponderada e clarividente.
XX – inspector-chefe da PJ, que foi o responsável por esta investigação.
Esta testemunha confirmou o que disse a anterior, referindo que a GNR quando os alertou para o sucedido, já lhes tinha informado que recaíam suspeitas sobre o arguido, uma vez que a vítima o teria indicado como autor dos factos.
Quanto ao local da prática dos factos, confirmou que o mesmo era propício ao encontro de namorados, constituindo uma reentrância, referindo também que ainda havia um cheiro intenso a gasolina. Além disso, confirmou os objectos que encontraram (tampa de garrafa, rasto de pneus e tecidos queimados recentemente), referindo que não foi possível recolher mais vestígios dado ter começado a chover, sendo que os vestígios que encontrou no chão eram típicos de alguém que se rebolou. Acrescentou ainda que, no período compreendido entre as 12h e as 13h daquele dia, o telemóvel da EE tocou, aparecendo no visor o nome de AA. Nesse momento, atendeu o telefone e falou com o arguido solicitando-lhe que se dirigisse à GNR para conversarem, ao que o arguido, apesar de ofendido, acedeu tendo chegado pouco tempo depois, às instalações da GNR, conduzindo um Renault Mégane cinzento, vindo acompanhado da sua esposa. Mais confirmou que, juntamente com a sua colega, foram a casa do arguido recolher peças de roupa, com a devida autorização deste, e que procederam ao auto de leitura de mensagens dos telemóveis do arguido e da EE. Além disso, também solicitou a facturação detalhada dos 2 telemóveis, tendo constatado um tráfego intenso de chamadas entre arguido e EE.
- PP, esposa da testemunha AA, sobrinho da EE.
Esta testemunha, para além da relação de parentesco, afirmou ser muito amiga da EE, a qual lhe confidenciava muitos segredos. Um desses segredos foi a relação amorosa que mantinha com o arguido. Acerca dessa relação, a testemunha afirmou que mesma durou cerca de 1 ano e que a EE estava disposta a assumi-la, desde que o arguido se separasse da mulher. No entanto e como tal não acontecia, a relação entre eles foi-se degradando, tendo a EE terminado com a mesma, por volta de Fevereiro de 2005. Porém, o arguido não aceitou o fim dessa relação e começou a telefonar insistentemente para a EE, referindo-lhe que iria deixar a sua mulher e ameaçando que se matava. Questionada sobre alegados episódios de abalroamento e roubo em que foram protagonistas o arguido e EE, a testemunha afirmou desconhecer, não deixando, porém, de referir que a relação dos 2 sempre foi muito atribulada.
Quando a EE esteve internada, esta testemunha afirmou ter ido visitá-la, sendo que numa dessas visitas falou com a mesma sobre o que se tinha passado ao que esta. depois de ter dito “Olha o que o professor AA me foi fazer, Olha o que ele me fez, como ele me pôs”, lhe contou tudo o que sucedera. Assim, afirmou que o arguido, no dia anterior aos factos, lhe tinha telefonado, tendo combinado um encontro com ela, no dia seguinte, em Santa Quitéria, referindo que iria ser a última vez que iriam falar. Perante as insistências do arguido, a EE afirmou que acabou por ir. Chegada ao local, a EE referiu-lhe não querer sair do carro, ao que o arguido insistiu, tendo-lhe feito a vontade e saído do carro. Nessa altura, a EE afirmou que o arguido a empurrou para umas silvas e mostrou-lhe gasolina, dizendo-lhe que a ia matar, bem como que “se ela não era para ele não iria ser para mais ninguém”. De seguida, regou-a com gasolina e chegou-lhe fogo com um isqueiro, queimando-a da cabeça aos pés e abandonando rapidamente o local.
Questionada sobre o estado da EE no hospital, aquando desta conversa, esta testemunha achou-a lúcida. Além disso, confirmou as dores que a EE sofreu, não só físicas como também psicológicas, pois pensava muito nos filhos. Por outro lado, também confirmou o sofrimento destes ao verem a situação da sua mãe, confirmando ainda que a EE era gerente da Psicofelgueiras e que o seu filho mais velho estudava no Porto, numa Universidade Privada.
- ZZ, sobrinha da EE.
Esta testemunha declarou que a sua tia lhe contou do relacionamento amoroso que tinha com o arguido, tendo referido que o mesmo demorou algum tempo e que terminou quando a sua tia pôs fim ao mesmo, em virtude de não querer continuar a ser apenas amante do arguido e de ter concluído que o arguido apenas queria isso e nada mais. Na verdade e segundo esta testemunha, a EE gostava do arguido e estava disposta a assumir uma relação com este, algo que nunca aconteceu porque este não abandonava a esposa. Depois do relacionamento entre os 2 ter acabado, esta testemunha afirmou que o arguido telefonava muitas vezes à EE, tendo até chegado a presenciar um telefonema, onde os dois acabaram por discutir. Além disso, referiu também que a sua tia lhe mostrou a carta de fls. 196, dizendo-lhe que tinha sido escrita pelo arguido e mostrando-se assustada com o seu conteúdo. Por outro lado, também confirmou que após o terminus da relação o arguido e a EE discutiam constantemente. Referiu ainda que, nas visitas que fez à sua tia, apenas falou com ela pelo inter-comunicador, nunca tendo chegado a falar directamente do que aconteceu no dia 02/05. No entanto e das conversas que teve com a mesma, verificou que a mesma tinha plena consciência da fase que estava a atravessar, demonstrando uma enorme força de viver e uma grande preocupação com os filhos, os quais sofreram muito com toda esta situação, ficando desorganizados e desamparados.
- AAA, agente da GNR Fafe, afirmou apenas conhece o arguido por ele ter apresentado uma queixa na GNR de Fafe, nada mais sabendo.
- BBB Cabo da GNR Fafe, afirmou que apenas conhecer o arguido pela queixa que apresentou na esquadra. Mais referiu que elaborou o relatório constante a fls. 458 e que contactou ambas as partes, tendo achado a EE normal, do ponto de vista emocional.
- CCC, cabo da GNR, refere ter sido chamado ao local, em 1 de Março de 2005, onde terá havido um despiste. Acrescentou ainda que quando chegou estava lá a EE o arguido e mais algumas pessoas, sendo que arguido e EE discutiam. A dado momento, a EE recusou dar a carteira ao arguido e foi-se embora no seu Jeep, não lhe dando boleia e tendo ainda tentado atropelá-lo. Por fim, afirmou que, naquele dia, a EE estava muito exaltada e nervosa.
- DDD, soldado da GNR – Felgueiras confirmou o auto de fls. 501, referindo que a EE confessou ter abalroado, por 2 vezes, o veículo do arguido.
- EEE, agente da GNR, não se recorda de nada com relevância para o caso.
- FFF, amigo do arguido, afirmou ter presenciado um episódio em que a EE tentou atropelar o arguido, não o tendo conseguido pelo facto daquele se ter desviado. Além disso, confirmou ter estado com o arguido, no dia da prática dos factos, por volta das 9h00, 9h15m, no bar do posto de abastecimento da Total em Fafe, estando o arguido a tomar calmamente o seu pequeno-almoço. Mais referiu que considera o arguido uma pessoa calma e um bom amigo, tendo chegado a falar com o mesmo ao telemóvel nesse dia ou no dia seguinte de manhã.
- GGG, amigo do arguido, confirmou ter presenciado a EE a tentar atropelá-lo, referindo também que considera o arguido como uma boa pessoa.
- FF, amigo do arguido, afirmou que o mesmo esteve na sua oficina, na data da prática dos factos, por volta das 09h30m da manhã (filha já lá estava e entra ao serviço às 09h00m), sem hora marcada, tendo deixado o seu automóvel, um Renault Mégane de 2 lugares, acinzentado, para mudar o óleo. Mais referiu que não tinha clientes e que, por isso, acedeu a mudar o óleo ao carro do arguido tendo, tal operação, demorado cerca de ½ hora a efectuar. Nesse lapso de tempo, o arguido foi tomar um café. Esclareceu ainda que era agente Renault, mas que, na altura, não tinha computador, sendo que a Renault não o obrigava a isso. Acrescentou ainda que apenas emitiu a factura quando o arguido lhe pagou, ou seja cerca de 1 ano depois, referindo que é normal os clientes conhecidos da casa pagarem algum tempo depois. Por fim, afirmou que anotava sempre os Km, quando o carro do arguido mudava de óleo, referindo que era normal fazê-lo de 15 em 15 mil km.
- HHH, amigo da família do arguido há muitos anos, conhecendo o arguido desde pequeno, reputou-o como um rapaz honrado e educado, tendo por ele muita consideração.
- III, padre que baptizou o arguido, reputou-o como um rapaz educado, respeitador, bem integrado na sociedade, não sendo agressivo.
- JJJ, Presidente da Junta de Freguesia de São Gens, referiu que o arguido é uma boa pessoa, sociável, não sendo de se meter em confusões.
- KKK, amigo do arguido, com o n.º de tlm – 0000000, confirmou ter estado com o arguido, na data da prática dos factos, por volta as 09h, num café, numas bombas de gasolina em Fafe, onde também se encontrava a testemunha HH. Mais referiu que já tinham falado por causa da intenção do arguido em lhe adquirir máquinas de costura e que, nessa manhã, combinaram encontrar-se, tendo ficado o arguido de lhe ligar quando estivesse pronto, pois que o arguido tinha um trabalho qualquer para fazer (pensa que ia resolver um problema com a carrinha). Acrescentou também que, por volta das 10 horas, o arguido ligou-lhe a ver se ele já estava na oficina e que tendo ele respondido afirmativamente, o arguido, cerca de 15m, chegou à sua oficina, com a sua esposa, tendo lá estado cerca de 30m. Referiu também que o arguido e a esposa já lá tinham estado dias antes a ver as máquinas e que, no dia anterior a estes factos, já tinha combinado com o arguido irem ver as máquinas. Também declarou conhecer a oficina do Sr. FF, referindo que habitualmente paga na hora e que a mesma dispunha de maquinaria própria para efectuar uma revisão total ao veículo. Por outro lado, referiu que considera o arguido como uma boa pessoa e que o mesmo reside em São Gens, sendo que a oficina do Sr. FF fica no centro de Fafe. Por fim, afirmou que o negócio da venda das máquinas acabou por não se realizar, em virtude dos acontecimentos que estão em causa nestes autos, sendo que era intenção do arguido e da esposa adquirirem cerca de 4 máquinas.
- LLL, professora, exerce funções na Escola onde o arguido leccionava, referiu que o arguido tinha estado num colóquio no dia 28 de Abril, tendo tirado várias fotografias. Como o mesmo, naquele dia, não estava na escola (às 2.ªs feiras era habitual o arguido não estar) telefonou-lhe por volta das 10h30m (embora admita que possa ter sido às 10h58m) a pedir-lhe que aí se deslocasse para mostrar as fotografias, ao que o arguido acedeu dizendo “eu vou já aí”. Mais referiu que o arguido demorou uns vinte minutos a chegar, tendo-o feito por volta das 11 e 20, 11 e meia, apresentando-se excitado, agitado e eufórico. Confirmou também que o n.º do telefone da Escola era o 0000000 e que, às segundas-feiras de manhã, no período entre as 09h00 e as 12h00, o arguido costumava trabalhar na misericórdia (no Unhão), tendo faltado nesse dia, pois que alegadamente ia acompanhar a esposa, que estava grávida, a uma consulta médica.
- II, esposa do arguido, afirmou que o mesmo, no dia da prática dos factos, não foi trabalhar porque tinha assuntos a tratar, nomeadamente a mudança do óleo do carro, que já estava combinada, e o visionamento das máquinas de costura para uma futura compra. Referiu também que o mesmo saiu de casa por volta das 08h50m, tendo ela ido levar um sobrinho à escola por volta das 09 e pouco. Depois de ter levado o carro à revisão (não viu mas arguido disse-lhe, sendo que quando ia aquela oficina costumava pagar na hora), esta testemunha afirmou que o marido lhe terá ligado, por volta das 10h00, dizendo que tinha tudo combinado com o Noré (testemunha GG), tendo os dois se deslocado à oficina do mesmo para verem as máquinas de costura, com vista a uma compra (cerca de 5/6 máquinas) que acabou por não se concretizar por causa deste processo. Quando se deslocavam para a oficina ou quando lá se encontravam (não se recorda bem) o arguido telefonou para o Noré (não se recordando se foi para dizer que iam a caminho ou se foi para lhe transmitir que já tinha chegado). Além disso, afirmou que, nesse dia, tinha consulta marcada com a sua obstetra, Dr.ª MMM, a qual iria decorrer na parte da tarde, sendo intenção do arguido acompanhá-la a essa consulta.
Acrescentou ainda que, a dado momento dessa manhã, telefonaram da escola para o arguido a fim de o mesmo entregar material informático, tendo ambos ido a casa buscar esse material e depois se deslocado à escola de Sernande, onde o arguido esteve com várias colegas de trabalho. Mais referiu que, naquele dia, não notou nada de estranho, não cheirando as suas roupas a gasolina. Além disso, confirmou terem ido almoçar a casa dos pais do arguido, tendo depois estado a falar com elementos da PJ, os quais se faziam deslocar num Jeep verde. Por outro lado, confirmou que quando recaíram suspeitas sobre o arguido, várias pessoas, no próprio dia ou alguns dias depois, se disponibilizaram a depor em favor do arguido, pois tinham estado com ele naquela manhã.
Por fim e quanto à relação que o arguido mantinha com a EE afirmou ter tido conhecimento da mesma através do telemóvel (viu mensagens e chamadas), tendo tentado ignorar tal facto o mais que podia. Porém referiu que chegou a assistir a uma situação onde a EE abalroou o carro do arguido, sendo que não comentou as inúmeras chamadas e mensagens que o arguido enviou para a EE nos tempos que antecederam a prática destes factos, apenas referindo que a letra da carta constante a fls. 194 não é do arguido.
-OOO, perita PJ, que confirmou as conclusões do relatório pericial de fls. 218.
3 - relatórios de reportagem fotográfica de fls. 10 e sgs e 516 a 556, 889 a 923, embora quanto ao piso (foi aflorado pelo arguido no sentido de ser quase impossível um ligeiro deslocar-se para aquele local) não se pode concluir nada pois que não se sabe a data em que tais fotografias foram tiradas, sendo que as mesmas também não são conclusivas quanto à real impossibilidade de um veículo ligeiro por lá se deslocar.
4 – documentos de fls. 30, 38, 39, 1140 a 1142.
5 – auto de leitura de telemóvel de fls. 40 e 44 a 46, fotografias de fls. 42, 43 e 48 a 51, bem como detalhe de tráfego do telemóvel do arguido de fls. 104 a 151.
6 – relatórios médicos de fls. 168 e sgs. e 191 e sgs., episódios de urgências de fls. 208 e sgs., de fls. 408 e recibos de fls. 409 a 411.
7 – carta junta aos autos a fls. 194 e 195 e postal de fls. 924 e 925.
8- certidão de óbito e relatório de autópsia.
9 – exame pericial de fls. 218 a 220.
10 – avaliações psiquiátrico forenses de fls. 2193 a 2223.
11- relatório social do arguido e CRC do mesmo.
12 – parecer junto pelo arguido na última sessão de audiência de julgamento, bem como as várias participações penais referentes a incidentes alegadamente ocorridos entre arguido e vítima.
13- carta militar de fls. 951 e 952, livro de revisões, de fls. 953, e documentos de fls. 954 e 955
A convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados formou-se com base na apreciação crítica de tudo aquilo que supra indicamos, tendo também em conta o princípio da imediação e ainda a livre apreciação e segundo as regras da experiência dos depoimentos das testemunhas.
Por outro lado e desde logo, há algo que convém realçar e esclarecer. É que independentemente das possíveis tendências suicidas da vítima (pergunta suprema que se colocava na perícia efectuada), as quais foram peremptoriamente afastadas pela Sr.ª Perita - conforme relatório que elaborou e esclarecimentos que posteriormente prestou em audiência de discussão e julgamento - pelos familiares próximos e por profissionais da área da saúde que com ela conviveram durante o período de internamento, certo é que da prova produzida (conforme analisaremos mais aprofundadamente a seguir) resulta claramente que a EE foi assassinada e foi-o pelo arguido. Logo, essas alegadas e eventuais tendências suicidas da vítima que, repita-se e sublinhe-se, não existiam, passam para um plano secundário face à restante prova, pois que, mesmo que existissem, o que, repita-se novamente, não aconteceu, isso não implicaria necessariamente que a vítima se tenha suicidado, antes tendo sido provado o contrário.
Por seu turno, convém referir também que não houve qualquer testemunha presencial dos factos ocorridos no monte de Santa Quitéria, tendo o Tribunal apenas a versão da vítima mortal, contada por alguns familiares e por pessoas que contactaram com ela no período compreendido entre a prática destes factos e a data da sua morte, sendo tal depoimento admissível, nos termos do disposto no art.º 129.º, do C.P.P..
Já o arguido apresentou uma versão diferente dos mesmos, argumentando nunca lá ter estado e não ter praticado os factos de que vem pronunciado, referindo e tentando demonstrar um percurso diferente naquele dia.
No entanto e pelas razões que passamos a descrever de forma mais pormenorizada, entendemos que tal versão não se mostrou verosímil, ao contrário da apresentada pela EE e que foi relatada por familiares, profissionais de saúde e elementos da GNR que com ela contactaram, devendo ainda salientar-se, em obediência ao principio da imediação, que tais testemunhas apresentaram uma total disponibilidade para este Tribunal, (o que não é normal nos dias de hoje) revelando-se bastante chocadas e repugnadas com o caso concreto, situação que a quase totalidade afirmou nunca ter presenciado.
Assim e desde logo, há que referir que todas essas pessoas, conforme os depoimentos que supra resumimos, foram unânimes em realçar o discurso coerente que a EE apresentava (1). Além disso, também referiram em uníssono a vontade que a EE tinha em viver, estando muito preocupada com os filhos e o que seria deles se algo lhe acontecesse. A isto devemos acrescentar a forma como a EE entrou e se dirigiu ao Hospital de Felgueiras (sem roupa e a pedir por socorro), bem como a denominada autópsia psicológica para afastarmos totalmente o quadro de suicídio.
Por outro lado e pelas mesmas razões que já referimos, não vislumbramos qualquer motivo para a EE ter incriminado o arguido, não obstante a relação amorosa entre os dois ter terminado (2). após uma fase muito conturbada, com actos irreflectidos de ambas as partes. Além disso, há factos que confirmam e apontam para a veracidade das declarações da EE, nomeadamente os registos telefónicos e o auto de leitura do seu telemóvel, sendo que naqueles registos se pode constatar a quantidade de telefonemas e mensagens que o arguido lhe enviou no mês que precedeu estes factos, bem como o facto do arguido lhe ter telefonado no dia anterior pela noite, o que vai de encontro ao que a EE referiu, concretamente ao telefonema do arguido no dia anterior a combinar um último encontro. Por sua vez, as mensagens enviadas, bem como a sua quantidade e constância apontam claramente para um amor obsessivo por parte do arguido.
Já a versão do arguido, pelo menos na parte fundamental não apresentou credibilidade. Com efeito, não colocamos em dúvida que o arguido tenha estado com a testemunha HH no café das bombas, nem com a sua esposa, nem com a testemunha GG na oficina deste, nem que se tenha dirigido à escola e tenha conversado com colegas de trabalho. No entanto, já não se mostra minimamente verosímil e possível, o facto do arguido ter estado com a testemunha FF e de, nesse dia, ter mudado o óleo ao seu carro (Renaúlt Mégane), no período em que ocorreram os factos.
Com efeito e desde logo é óbvio que não tendo o arguido o dom da ubiquidade, não poderia estar ao mesmo tempo nos 2 sítios, sendo que pelas razões que já referimos temos a firme convicção que o mesmo esteve no monte de Santa Quitéria e praticou aqueles factos. No entanto, há ainda alguns pontos que convém esclarecer. Desde logo, o depoimento da testemunha FF foi totalmente desprovido de qualquer verdade, demonstrando uma enorme vontade de ilibar o arguido, tendo pensado em alguns pormenores para fortalecer o seu depoimento, mas esquecendo-se de outros. Assim e desde logo, juntou os documentos de fls. 953, 954 e 955, sendo que o primeiro, denominado carta de garantia e manutenção apresentava carimbos da sua oficina a comprovar a data e os serviços efectuados, bem como os km percorridos por tal veículo, na altura da prestação dos serviços. Ora, esse carimbo poderia ter sido aposto em qualquer altura, não estando acompanhado por qualquer ficha comprovativa dos serviços efectuados, o que deveria acontecer em qualquer agente oficial de uma marca, como o arguido afirmou ser, sendo que o documento de fls. 954 não constitui uma dessas fichas que acabamos de falar. Além disso e como é do conhecimento comum de quem tem um carro, uma das primeiras preocupações das oficinas (e muito mais de representantes de marcas) é anotar os km percorridos pelo carro em que vão intervir. No caso em apreço, os km constantes no livro constituem um número certo (103.000km) o que sucede nas últimas 3 mudanças de óleo, ao contrário das primeiras, o que aponta claramente para que tais números tenham sido apostos em data posterior. Porém e mesmo que nos acreditássemos nos km percorridos pelo veículo do arguido, o que não se sucedeu pelas razões que referimos, há que realçar que o mesmo ainda não precisava de mudar o óleo, pois ainda não tinha percorrido os 15 mil Km. Por outro lado, a assinatura constante nos carimbos referidos, não é, no referente à data em causa nestes autos, igual aos demais. A isto acresce ainda a existência de um recibo emitido mais de um ano depois e não na altura, como acontece em qualquer oficina. Para justificar esse facto, a testemunha argumentou que o arguido era cliente habitual e que apenas pagava quando quisesse e pudesse, apenas sendo nessa altura emitida a factura. Tais declarações não foram secundadas por outros clientes habituais daquela oficina, como sendo a esposa do arguido e a testemunha GG que afirmavam pagar na hora. Por fim, convém ainda realçar outro aspecto que nos faz retirar qualquer credibilidade a este depoimento e a esta versão dos factos. É que a testemunha FF afirmou que o arguido apareceu sem marcação e que lhe conseguiu uma vaga porque tinha poucos carros naquela hora, ao contrário da esposa do arguido que afirmou que o mesmo faltou ao trabalho naquele dia porque tinha várias coisas para fazer, entre as quais se incluía a mudança de óleo. Ora, faltar ao trabalho para mudar o óleo ao carro, não é minimamente normal, sendo ainda mais anormal, quanto a pessoa não tem qualquer marcação prévia. Também não é normal faltar ao trabalho para ir ver umas máquinas à oficina dum amigo, máquinas essas que já tinha visto anteriormente e que não teria qualquer dificuldade, visto ser um amigo, de as visitar em horário pós-laboral ou em dia que não tivesse horário preenchido.
Nesta conformidade, não consideramos verosímil que o arguido tivesse estado na oficina da testemunha FF no dia da prática dos factos, antes tendo estado no monte de Santa Quitéria e tendo sido o autor material dos factos dados como assentes.
Isto não significa que o arguido, como já referimos, não tenha praticado os outros factos que invocou na sua contestação. Na verdade e analisando o horário das chamadas por si efectuadas ou recebidas, o seu destinatário ou o emissor, bem como a célula activada, temos que é possível tudo o mais se ter sucedido tudo o mais se sucedeu (tomou o pequeno-almoço nas bombas, foi à oficina do GG e foi à escola), mas fora do horário compreendido entre as 09h15m e as 10h10m. Com efeito, o período em que o arguido não recebeu nem efectuou qualquer chamada foi o compreendido entre as 09h15m e as 10h10, sendo perfeitamente possível, nesse lapso de tempo sair de Fafe, ir ao monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe. Além disso, antes da última chamada efectuada às 09h15m, o arguido, naquele dia, já tinha telefonado 6 vezes à EE, não tendo telefonado a mais ninguém, o que apenas se sucedeu após as 10h10m. Por outro lado, a hora em que a EE deu entrada na urgência do Hospital de Felgueiras, por volta das 10h (essa hora já teve em conta o facto da ficha ter sido preenchida até cerca de 20m depois), é perfeitamente compatível com estes factos.
Por fim e quanto a estes factos, há ainda que realçar ser bastante estranho o facto do arguido ter estado em vários locais numa só manhã, o que nos aponta para uma clara preocupação do arguido em ser visto por o maior número de pessoas, com o intuito de arranjar um álibi para os factos que planeava executar e executou, não sendo também despiciendo o facto do arguido, aquando da sua ida à escola, se apresentar bastante nervoso e eufórico, conforme relatou a testemunha LLL.
Já a falta de prova na compra do combustível (vendedor não se lembra da pessoa que lá foi naquele dia) e a ausência de vestígios, pelo menos com algum significado, na roupa que alegadamente o arguido vestiu nesse dia, não assumem relevância suficiente, para colocar em dúvida a versão apresentada pela EE e dada como assente.
OS FACTOS E O DIREITO:
Cumpre agora apreciar e decidir as questões suscitadas neste recurso e atrás elencadas.
1ª Questão:
1 – Será o acórdão recorrido nulo por “insuficiência de reexame crítico do caso sub Júdice e da prova produzida em audiência de julgamento” e por omissão de pronúncia (“sobre todas as questões colocadas e sobre a imputada incorrecção de julgamento da matéria de facto”)? – conclusões 12ª a 23ª.
Antes do mais deve dizer-se que as conclusões 1ª a 10ª correspondem apenas a considerações genéricas do recorrente, alegando que foram violados no acórdão recorrido, os princípios da presunção de inocência, da verdade material, da legalidade e da livre apreciação da prova, alegadas violações essas que não são, ali, minimamente concretizadas e nas quais não é suscitada nenhuma questão concreta a apreciar e decidir.
E a conclusão 11ª não pode ser tida em consideração na medida em que nela, o recorrente se limita a dar por reproduzida a motivação de facto e de direito do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Guimarães, esquecendo que agora se trata de um outro recurso, perante um outro tribunal e no qual tem – se assim o entender – que apresentar uma nova “motivação” concreta não podendo aqui dar por reproduzida a motivação apresentada noutro Tribunal.
Apreciando então a questão supra enunciada:
Entende o recorrente que o acórdão recorrido não fez o exame crítico da prova.
Como decorre claro do estatuído no artigo 374º-2 do CPP a fundamentação (da sentença) não se satisfaz com a simples enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, sendo necessário o exame crítico desses meios de prova.
Tal exame crítico servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral, da bondade da decisão, ou seja, que no caso em apreço, foi feita uma correcta aplicação da justiça.
Esse exame crítico das provas a que faz referência o nº 2 do artigo 374º do CPP, em sede de fundamentação da sentença, consiste tão somente na indicação das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal (cfr. Ac. STJ de 24.06.1999, Proc. 457/99 – 3ª, in SASTJ nº 32, 88).
Como se refere no Ac. deste STJ in Processo nº 662/05:
“…A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de processo penal”, III, pág. 289).
A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32).
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do nº 2 do artigo 374º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei nº 58/98, de 25 de Agosto), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.
O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.
Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).
No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a que se refere especificamente a exigência da parte final do artigo 374º, nº 2 do CPP, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410º, nº 2 do CPP; o n° 2 do artigo 374° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cfr., nesta perspectiva, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998).
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência …”.
Ora, não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (cfr. Acs. STJ de 12.04.2000, Proc. 141/2000, in SASTJ nº 40, 48, de 11.10.2000, Proc. 2253/2000 – 3ª, in SASTJ nº 44, 70, de 26.10.2000, Proc. 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91 e de 07.02.2001, Proc. 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50).
O exame crítico da prova tem como objecto apenas e tão só, os factos essenciais para a qualificação jurídico-criminal do ilícito, para a definição do seu circunstancialismo relevante e para a determinação da responsabilidade do agente (cfr. Ac. STJ de 26.10.2000, Proc. 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91).
Porém, “A fundamentação da sentença, na parte que respeita á indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento (cfr. Ac. STJ de 07.02.2001, Proc. 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50).
Como se refere de forma bem clara no Ac. deste STJ de 30.01.02, Proc. 3063/01 – 3ª, SASTJ nº 57, 69 “A disposição do artigo 374º-2 do CPP sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas que foram produzidas e, muito menos, a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão. A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
Esse exame crítico das provas corresponde, no fundo, á indicação dos motivos que determinaram a que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substracto lógico-racional da decisão (neste sentido Ac. STJ de 17.03.2004, Proc. 4026/03 – 3ª).
Como também se diz no já citado Ac. deste STJ in Processo 662/05:
“A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” através dos elementos que lhes permitem dar sentido e funcionalidade intraprocessual conduz, porém, a que a dimensão a que se acolhem não se reduza à (ou sequer consista na) interpretação de princípios jurídicos ou de normas como operação prévia à respectiva aplicação a uma dada situação de facto preconstituída, mas. Em diverso, envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.
Mas, sendo assim, a vocação de tais critérios e elementos de ponderação para avaliar se foi adequadamente efectuado o exame crítico das provas no âmbito das exigências da lei, retira o plano da decisão do espaço de intervenção dos juízos de eleição, interpretação e aplicação de um princípio ou norma legal, subtraindo-o, consequentemente, do âmbito da matéria de direito.
Se é certo que no momento final está em questão a aplicação de uma norma processual (integração de uma nulidade da sentença – artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP), tal questão tem como base e pressuposto, a montante, a verificação sobre a suficiência dos módulos da expressão do”exame crítico” para satisfazer as condições e exigências da categoria da lei, que se não acolhe a critérios normativos, mas antes a juízos próprios da ponderação prudencial que intercede através de elementos retirados da experiência da vida e das coisas, excluídos da noção e do conteúdo da matéria de direito.
Deste modo, a decisão sobre a suficiência da fundamentação na referência ao “exame crítico” das provas não integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal, tal como definidos no artigo 434º do CPP, salvo quando tenha (deva) decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP.
Esta conclusão, tirada em perspectiva e construção conceptual, é confirmada por outro modelo de compreensão, da ordem das necessárias congruências sistémicas.
A exigência de exame crítico das provas, como momento essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto (exigência específica introduzida, como se salientou, pela Reforma de 1998) tem como finalidade processual permitir, no âmbito do recurso em matéria de facto, a reponderação pelo tribunal de recurso dos critérios usados na decisão recorrida para formar a convicção sobre os factos, ou, mais directamente, decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º,nº 2 do CPP, permitindo determinar se os procedimentos de apreciação das provas, tal como constam da decisão, encerram alguma incongruência que possa integrar os vícios em matéria de facto, nomeadamente o enunciado na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP.
As questões ligadas ao exame crítico, e a base ou os elementos necessários à decisão sobre a existência dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP identificam-se essencialmente, constituindo aquelas necessário antecedente para a decisão sobre estes; por isso, o tribunal de recurso que primeiramente deva conhecer dos referidos vícios tem também de conhecer da suficiência da respectiva base de decisão, mesmo quando tal questão apenas seja autonomamente submetida como objecto do recurso.
O recurso que verse, ou verse também, matéria de facto, designadamente os vícios referidos no art. 410°, terá sempre que ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação da matéria de facto e da consequente matéria de direito (cfr. jurisprudência constante do Supremo Tribunal: v. g., entre muitos outros, o acórdão de 21 de Junho de 2001, proc. 1295/01) …”.
Por outro lado, há que ter em atenção que o tribunal não está obrigado a indicar e fazer exame crítico das provas sobre factos que não foram alegados, nem resultaram da discussão da causa (cfr. Ac. STJ de 25.05.2005, Proc. 902/05 – 5ª, SASTJ nº 91, 152).
Além disso, a norma do artigo 374º-2 do CPP não tem aplicação em toda a sua extensão, quando aplicada aos tribunais de recurso. Nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação ou quando referida a acórdão do STJ funcionando como tribunal de revista.
Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da primeira instância, é suficiente que do respectivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respectiva, não se descortinaram razões para exercer censura sobre o decidido (neste sentido cfr. Ac. STJ de 13.11.02, Proc. 3214/02 – 3ª, SASTJ nº 65, 60).
Do que se deixa exposto resulta claro que a decisão sobre a suficiência da fundamentação na referência ao “exame crítico” das provas não integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal, tal como definidos no artigo 434º do CPP, salvo quando tenha (deva) decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP.
Trata-se, portanto, de questão atinente á matéria de facto de que este STJ não pode conhecer.
Daí que, nesta parte, o recurso tenha de ser rejeitado, por legalmente não admissível com este fundamento.
Por outro lado, alega o recorrente a omissão de pronúncia “sobre todas as questões colocadas e sobre a imputada incorrecção de julgamento da matéria de facto”.
Só que, para além do tribunal não ter que se pronunciar sobre cada um dos argumentos invocados pelo recorrente, a verdade é que este não concretiza minimamente quais as questões colocadas e sobre as quais o tribunal não se pronunciou, sendo certo que não pode o recorrente limitar-se a dar por reproduzido na motivação deste recurso para o STJ, “a motivação de facto e de direito do recurso interposto para o Venerável Tribunal da Relação de Guimarães”, como faz agora nas conclusões 11ª e 17ª.
Acresce que deve ter-se bem presente que mesmo no caso de recurso da matéria de facto para a Relação – como sucedeu no caso em apreço - a Relação não faz um segundo/novo julgamento integral.
Como se diz no Ac. STJ de 10.03.2009, Processo 112/08.2GACDV.L1.S1 – 3ª, “Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento parcelar, de via reduzida.
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente quaisquer eventuais erros.
Neste sentido podem ver-se os acórdãos de 09-01-2008, processo n.º 2075/07-3.ª e processo n.º 4457/07-3.ª; de 14-05-2008, processo n.º 1139/08-3ª; de 04-06-2008, processo n.º 1126/08-3ª; de 18-06-2008, processo n.º 1971/08-3ª; de 15-10-2008, processo n.º 2894/08-3ª; de 23-10-2008, processo n.º 2869/08-5ª.
Aliás, esta limitação de cognição sempre esteve presente como logo esclareceu o primeiro diploma onde se estabeleceu a documentação das declarações orais.
Com efeito, como foi afirmado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15-02, o registo da prova produzida em audiência visava assegurar um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, mas acrescentando-se que essa garantia “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
E que “o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)”.
A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra) decisão diversa indicadas pelo recorrente, uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e das razões de discordância.
Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, «Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o tribunal».
O que está em causa é no fundo a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que se propõe o recorrente, com um especial ónus a cargo do recorrente, impondo-se-lhe o dever de tomar posição clara nas conclusões sobre o que é objecto do recurso, especificando o que no âmbito factual pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação deve especificar as provas que devem ser renovadas (alínea c) do n.º 3 do artigo 412.º).
Como se diz no acórdão de 08-03-2006, processo n.º 185/06-3ª “O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto”, e como se sintetiza nos acórdãos de 10-01-2007, processo n.º 3518/06-3ª e de 15-10-2008, processo n.º 2894/08-3ª “A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso”- cfr. ainda acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-06-2005, processo n.º 1577/05-3ª; de 08-02-2006, processo n.º 2892/05- 3ª (no sentido de que não vale uma impugnação genérica); de 04-01-2007, processo n.º 4093/06-3ª; de 25-01-2007, processo n.º 4551/06-5ª; de 28-02-2007, processos n.ºs 4698/06 e 35/07, ambos da 3ª secção.
Como se refere no acórdão de 27-01-2009, processo n.º 3978/08, “O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar”.
Tendo isto em atenção, verifica-se que o acórdão recorrido teve a preocupação de apreciar todas as questões suscitadas e colocadas pelo recorrente, designadamente as relativas á alegada incorrecção do julgamento da matéria de facto.
Diz-se, expressamente, no acórdão recorrido:
“Compulsada a motivação apresentada, verifica-se que o recorrente concretiza os pontos de facto que reputa de incorrectamente julgados: pretende a modificação da decisão de dar como provados os factos constantes dos § 1 a 10, 12 a 14, 16, 20 e 21 dos factos provados, passando todos para o elenco dos não provados. Encontra-se, então, respeitado o ónus imposto pela al. a) do nº3 do artº 412º do CPP.
Verifica-se igualmente que, ainda que apenas no corpo da motivação, o recorrente indica provas que, no seu entender, impõem – esse é o critério legal – decisão diversa da recorrida, pelo que cumpre apreciar todos os argumentos apresentados. Para maior clareza, será seguida a mesma organização formulada pelo recorrente, ou seja, individualizada quanto ao §1º, 2º e 3º dos factos provados, em conjunto quanto aos § 4º a 10º e 12º a 14º e, por fim, quanto aos §20 e 21.
Porém, como veremos no decurso da apreciação, nem sempre essa indicação de prova, mormente da prova pessoal, encontra nas conclusões ou no corpo da motivação a menor delimitação das passagens concretas – das palavras ditas em audiência - em que se funda a impugnação. Quando assim acontece tais fundamentos para a impugnação alargada não podem ser conhecidos, pois não pode o julgador respingar no registo da prova os segmentos cuja concretização o recorrente omitiu. O recurso rege-se, neste plano da impugnação da prova gravada, desprovido de qualquer oficiosidade, pelo princípio do dispositivo.
Importa acrescentar que, porque estamos nessas situações perante inteira omissão de cumprimento das referidas exigências, não deve ter lugar convite ao aperfeiçoamento. De acordo com o disposto nos nºs. 3 e 4 do artº 417º, do CPP, o aperfeiçoamento pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso. Então, quando o corpo das motivações não contém especificações exigidas por lei já não encontramos insuficiência das conclusões mas sim insuficiência do recurso, com a cominação de não poder a parte afectada ser conhecida. A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso» (3).. Por outro lado, a conformidade constitucional deste entendimento, relativo à ausência de cumprimento do disposto no artº 412º, nº3, do CPP nas motivações e conclusões, e não apenas nas conclusões, face à norma do artº 32º, nº1, da CRP, tem sido unanimemente reconhecida pelo Tribunal Constitucional (4).”.
E prossegue o acórdão recorrido:
“(…)O arguido tomou, então, a resolução de tirar a vida à EE, utilizando para o efeito um líquido combustível inflamável. §5. Na execução desse plano, no dia 01/05/05, no período nocturno, o arguido utilizando o cartão de acesso à rede TMN, com o número 000000000, telefonou para o número 000000000, utilizado pela EE, tendo combinado com esta um encontro no dia seguinte, por voltas das 09h00, no monte de Santa Quitéria.§6. Na manhã do dia 02/05/05, o arguido não foi trabalhar e foi tomar o pequeno-almoço a um café, sito nas bombas Total, em Fafe, tendo, depois, por volta das 09h/09h15m, se dirigido ao referido local de encontro, conduzindo o veículo de marca Renault, modelo Mégane, de matrícula 00-00-00, pertencente a BB, levando gasolina que acondicionou numa garrafa de plástico.§7. Aí chegado, esperou alguns momentos pela EE , que se deslocou ao local de encontro, conduzindo o seu Jeep, de marca Mercedes, matrícula 00-00-00, tendo esta estacionado perto do veículo em que o arguido se fazia transportar. §8. De seguida, ambos saíram das suas viaturas e, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a EE para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da EE, que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía.§9. De imediato, as peças de roupa que a EE vestia se incendiaram e esta começou a gritar de desespero e dor, enquanto despia o dito vestuário. Nessa altura e indiferente a esta situação, o arguido abandonou o monte de Santa Quitéria, conduzindo o veículo supra identificado.§10. A EE, nua, calçando apenas umas botas, conseguiu alcançar o seu Jeep, tendo-o conduzido até ao Hospital de Felgueiras, onde deu entrada por volta das 10h00m. §12. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a EE sofreu queimaduras de 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical anterior e posterior, tórax, abdómen, dorso e membros superiores, num total de, aproximadamente, 55% da superfície corporal.§13. Estas lesões, para além de extremamente dolorosas, foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte. §14. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
Após, como vimos relativamente aos §1, 2 e 3, individualizar os pontos de facto impugnados e de os pôr em relação com as provas que considera fundarem a pretendida modificação da decisão, o recorrente escolheu outra via e aglutinou a impugnação dirigida ao cerne do evento que lhe foi imputado. Começa por dizer que não existe prova sobre o que aconteceu naquele dia 01/05/2005, porque ninguém presenciou os factos. Depois, sustenta ter sido feita prova - positiva - de que o arguido não foi o autor da conduta, porque estava no momento indicado nos factos provados noutro local.
Num primeiro momento, o arguido formula raciocínio em que, aceitando que tomou o pequeno-almoço na hora e local indicados nos factos provados e que saiu pelas 09.15h, ou seja, no final do intervalo referido como provado, conclui que a distância para o Monte de Santa Quitéria não lhe permitia chegar antes de 20 a 30 minutos depois. E, a partir dessa conclusão, considera que não era possível que o evento tivesse decorrido como provado, em termos da vítima entrar no hospital pelas 10:00h.
Ora, todo esse raciocínio assenta em premissas que temos por não demonstradas. Desde logo a duração do percurso, que o recorrente funda num trecho do depoimento de HH, seu amigo. Ouvido esse depoimento, fica uma simples estimativa, desprovida de segurança, e mesmo assim formulada com muita relutância, apenas ultrapassada pela insistência do mandatário do arguido. Isso mesmo resulta da interjeição «Sei lá...» e da reserva «Ao certo não sei...».
Acresce que, mesmo que se aceitasse como boa a distância sugerida pelo recorrente e o piso molhado, a experiência comum indica-nos que podemos apenas estimar uma duração média dos percursos e em velocidade regular. Em condução acelerada, como aquela desenvolvida por quem tem uma motivação forte para chegar a um local com a maior brevidade, ou então para dele fugir, o tempo de trajecto – qualquer trajecto - é susceptível de ser significativamente reduzido.
Por seu turno, não vemos que o registo e a duração das chamadas tenham significado neste particular. O recorrente alude a que se tratou de «toques para devolução de chamada» mas, na verdade, não oferece qualquer demonstração dessa realidade. É uma explicação possível, apenas isso, notando-se do registo de fls.104 e segs, muitas chamadas de voz com duração de poucos segundos e sem relevo no contexto geral da prova ponderada.
Assim, persiste razoável, e não contrariada, a valoração do Tribunal Colectivo de que era perfeitamente possível ao arguido naquele lapso de tempo sair de Fafe, ir ao Monte de Santa Quitéria, praticar os factos de que foi acusado e voltar para Fafe.
Nesse ponto do recurso, o arguido pergunta-se como chegou o Tribunal a essa conclusão mas, lendo o acórdão com o mínimo de atenção, é fácil perceber que se teve em linha de conta a distância, a orografia, as condições climatéricas, a duração previsível das condutas desenvolvidas no Monte de Santa Quitéria e do trajecto até ao Hospital, valorados concertadamente com a prova pessoal produzida, mormente aquela incidente sobre o trajecto, salientando igualmente a circunstância do arguido não ter efectuado chamadas entre as 9:15 h. e as 10:10 h, ambas com activação de célula situada em Fafe, o que é perfeitamente compatível com o comportamento dado como provado.
A certo passo, afirma o recorrente que a chamada efectuada pelas 9:15.18, que antes referira ter activado a célula Fafe 3 (ponto BB da motivação), activou afinal a célula de Margaride (ponto BE). Resulta, porém, de fls. 150 que estava certo na primeira afirmação e não na segunda. Por outro lado, não sendo registadas chamadas no período em que se dá como provado que a conduta desenvolvida no Monte de Santa Quitéria teve lugar, não se encontra valia no argumento de que nenhuma chamada feita pelo arguido activou a célula aí situada.
Prosseguindo, no ponto BF, em termos algo confusos, o recorrente afirma a sua discordância quanto à suficiência de prova quanto ao facto de ter comprado gasolina e aponta ao acórdão omissão na indicação das concretas circunstâncias de tempo e de lugar em que esse combustível teria sido adquirido. Para tanto, refere que a perícia realizada foi inconclusiva.
Com efeito, o exame de fls. 218 a 220 refere a detecção de resíduos de líquidos inflamáveis, sem tomar posição sobre a sua composição, mormente se correspondiam a gasolina. Porém, um dos objectos onde a detecção de combustível foi positiva corresponde à tampa de plástico recolhida no local, a mesma tampa de plástico que OO e NN referiram ainda cheirar a gasolina, odor bastante característico e de fácil identificação por qualquer pessoa, para mais por profissionais de investigação criminal. Também o Dr. QQ, médico que assistiu a vítima, referiu o cheiro a gasolina que dela emanava, o que suporta plenamente a convicção do Tribunal Colectivo nesse ponto.
Diz o recorrente, no âmbito do esforço de cálculo do tempo necessário para o trajecto da bomba de gasolina até ao Monte de Santa Quitéria e regresso a Fafe, que o arguido levaria no mínimo 5 a 10 minutos a adquirir esse produto. Simplesmente, não vem afirmado nos factos provados que a gasolina foi adquirida após a saída daquela bomba e das 09:15 h, o que deixa aquele cálculo sem sentido. Note-se que a versão constante da pronúncia – de que procedeu à aquisição daquele produto em Silvares – não ficou provada.
Na mesma linha, o recorrente procura convencer que o arguido chegou ao Monte de Santa Quitéria entre as 9:35 e as 9:45 e a vítima entre as 9:40 e as 9:50. Todavia, esse exercício não encontra qualquer suporte probatório, configurando mera conjectura ou palpite, claramente incapaz de contrariar minimamente a decisão recorrida. O mesmo deve ser dito relativamente à fixação de uma linha temporal para a acção decorrida no Monte de Santa Quitéria, mormente a acção de despejar a gasolina sobre a vítima e desencadear a sua ignição, pois toda essa conduta é perfeitamente compatível com o decurso de poucos minutos, em especial se corresponder, como aponta a prévia obtenção de uma garrafa de gasolina, a acção pensada e preparada.
O último plano de discordância apresentado no recurso relativamente ao aspecto temporal e a incompatibilidade, no entender do arguido, com o desenvolvimento de condutas dadas como provadas, prende-se com o trajecto da vítima do Monte de Santa Quitéria até ao Hospital Agostinho Ribeiro, em Felgueiras, e, em particular, o momento de chegada a esse estabelecimento hospitalar.
Como qualquer pessoa que já tenha tido a desdita de deslocar a uma urgência sabe, os procedimentos hospitalares de registo de entrada estão pensados em função das operações de inserção de dados e não com referência ao momento em que o paciente entra no Hospital, especialmente se chega pelo seu próprio pé. Ora, ouvidos os segmentos indicados no recurso dos depoimentos de KK e QQ, emerge indefinição total relativamente ao período de permanência da vítima até que fossem obtidos os seus dados identificativos e inscritos no sistema informático das urgências. Ambos foram claros na indicação de que não podem dizer com exactidão quanto tempo passou, o que até mereceu do mandatário do arguido o comentário aquiescente, dirigido a KK: «isso não lhe peço com rigor, a senhora não estava a olhar para o relógio...». Assim, face ao registado no sistema, apenas é possível afirmar com segurança que pelas 10:13h do dia 02/05/2005 a vítima EE já se encontrava naquele Hospital a ser assistida. Nessa medida, a indicação nos factos provados de que atingiu aquele local “por volta das 10:00h” mostra-se perfeitamente razoável e conforme com as regras da experiência comum. Acresce que a circunstância de ter registo de entrada no Hospital de S. João no Porto pela 11:09h não oferece qualquer valia na determinação do que se passou em Felgueiras, tanto mais que nas situações em que o doente segue em ambulância os dados colhidos acompanham-no, permitindo inscrição quase imediata no sistema informático de destino.
O argumento seguinte (alínea BN) versa os movimentos do arguido no dia 02/05/2005, que se considera demonstrados, mormente a deslocação a casa, em Fafe, e a permanência na garagem dirigida por FF durante o período em que se dá como provado ter sido praticada a conduta no Monte de Santa Quitéria. Em suporte, o recorrente pretende a reponderação do registo do seu telemóvel e dos depoimentos de PPP, QQQ e de FF, em conjunto com os docs. de fls. 926 a 933, 934, 953, 954 e 955. Será assim? Suporta essa prova a afirmação de que no período em que se dá como provado que despejou gasolina sobre EE e desencadeou a sua ignição com intenção de lhe causar a morte, o arguido encontrava-se noutro local, calmamente a aguardar pela finalização da mudança de óleo do seu veículo? Novamente, a resposta é negativa.
Como se disse, os registos telefónicos não indicam qualquer chamada entre as 9:15:18 e as 10:10 e as chamadas posteriores não permitem aquilatar onde estava o arguido naquele período. Dito isto, observe-se que o recorrente abandona aqui por completo a objecção que antes opuseram às mensagens de SMS, assumindo que toda a utilização daquele número de telefone espelhada das listagem foi da sua responsabilidade.
Relativamente aos depoimentos de FF e GG, que ouvimos na sua totalidade, considera o recorrente que o registo aposto no livro de manutenção é fidedigno, demonstra que esteve na oficina do primeiro durante a manhã do dia 2/05/2005 e que, por isso, não podia ter praticado a conduta reportada ao Monte de Santa Quitéria.
No que toca ao contributo probatório de GG, amigo e companheiro de lazer no «todo-o-terreno» do arguido, verifica-se que o seu relato quanto aos movimentos anunciados pelo arguido foi impreciso e contraditório. Começou por classificar o encontro nas bombas de breve - «estive lá um bocadito, mas rápido» - seguido da indicação: «ele disse que tinha que fazer um trabalho e ir resolver um problema qualquer na carrinha», transcrita na motivação. Porém, como é sabido, na avaliação de credibilidade do relato vale não só o que se disse mas também como se disse. Mesmo com todas as limitações que a ausência de imediação acarreta, designadamente relativamente à panóplia de elementos compreendidos na denominada linguagem corporal, a audição da gravação oferece sinais de menor credibilidade. Com efeito, a voz da testemunha tornou-se subitamente mais nervosa, arrastada e pastosa, diferente do normal fluir de ideias, denunciando falta de convicção na narração dos detalhes do evento. Esse factor de reserva marcou a referência à invocada frase do arguido - «Ponto, daqui a meia hora, se puderes, uma hora, quando puderes, ligas-me e eu vou lá ter ao armazém» - e adensou quando a testemunha referiu que afinal não foi ele – GG - que ligou mas sim o arguido e por volta das 10:00 ou 10:15. Ora, a listagem de fls. 150 permite dizer que não foi assim que se passou. Encontra-se não um mas dois telefonemas do arguido dirigidos ao nº de telefone 000000000 – aquele indicado pela testemunha – e, mais importante, nenhum pelas 10:00. O registo evidencia um telefonema às 10:34:17 e outro, quase de imediato, pelas 10:34:40. Ou seja, esse contacto, e a movimentação posterior relatada pela testemunha, situou-se bem depois do momento referido nos factos provados para a conduta. Refira-se ainda que GG recordou a presença de HH nas bombas de gasolina, e este negou peremptoriamente que o arguido tivesse anunciado onde ia, introduzindo outra dissonância na avaliação da credibilidade do contributo probatório.
Por outro lado, importa sublinhar – a traço grosso – que a referência à operação de mudança do óleo não surge espontaneamente no decurso do depoimento mas sim na formulação de questão colocada pelo defensor do arguido. Até então apenas aludira, vagamente, «ao problema qualquer na carrinha» e, note-se, essas referências são contraditórias. Uma mudança de óleo constitui operação regular de manutenção, não uma reparação e só no contexto de qualquer anormalidade de funcionamento do veículo pode compreender-se a alusão a «um problema». Mais. Convidado a concretizar qual era o problema, a resposta da testemunha foi peremptória: «não, não faço ideia». Mas, estranhamente, quando o defensor do arguido repetiu, minutos depois, a pergunta, obteve da testemunha resposta distinta. GG disse então que o arguido referiu que «ia aproveitar de passar na oficina», não sem, cautelarmente, acrescentar «Mas, isso, tanto tempo, já não me recordo...», altura em que foi interrompido pelo mandatário do arguido. Depois, quando questionado pela Srª Procuradora, voltou à frase inicial - «que tinha que ver um problema qualquer na carrinha». Finalmente (5), perguntado pelo mandatário do assistente se o arguido falou em «problema» ou na «mudança do óleo», recordou apenas a referência ao primeiro, não à segunda.
Temos, então, que o depoimento de GG foi logo marcado por pergunta sugestiva – a alusão à mudança do óleo – e é contraditório na referência à deslocação a oficina para reparação ou para mudança de óleo. Por isso, não lhe reconhecemos credibilidade para fundar a pretendida presença do arguido na oficina entre a saída da bomba de gasolina e o telefonema verificado pelas 10:35.
O recorrente refere ainda um segmento do depoimento de QQQ, com o que pretende demonstrar que o arguido tinha que ir ao médico com a esposa e que faltara ao serviço por esse motivo. Trata-se de aspecto inteiramente lateral e que em nada influi na decisão impugnada, sendo certo que não se refere a hora da consulta, nem existe outra comprovação desse facto. Por QQQ, sabemos apenas a justificação que o arguido lhe apresentou. Aliás, cumpre observar que o arguido não lhe referiu que estava ocupado com a tese, ou com a manutenção do veículo. Resta referir que a testemunha apenas esteve na presença do arguido após as 11 horas, muito depois do período em que se deu como provada a conduta no Monte de Santa Quitéria e na sequência de telefonema oriundo do nº 0000000000, verificado apenas pelas 10:58:41, como resulta de fls. 150. Importa ainda reter a indicação dessa testemunha de que o arguido apresentava sinais de muita excitação, o que, de acordo com a experiência comum, é compatível – não mais do que isso - com a conduta dada como provada.
Cabe, agora, apreciar o depoimento de FF, relativamente ao qual o recorrente especifica dois segmentos: um relativo aos procedimentos contabilísticos e outro relativamente à alusão a que o arguido levou uma «maletazeta» para o café, testemunho considerado não credível pelo Tribunal Colectivo. Ouvido o depoimento, impõe-se considerar que essa apreciação como correcta, sem violação de quaisquer princípios probatórios ou avaliação afastada dos ditames da experiência comum. Sublinhe-se que, para tanto, assentou a consideração de falta de isenção e de desmerecimento em elementos que não podemos sindicar, porque inteiramente fundados na imediação.
Ainda assim, a apreciação do registo sonoro oferece-nos uma testemunha inicialmente muito solícita, ciente da importância do que dizia, como aliás, lhe foi dito pelo mandatário do arguido. Alguém que tinha as respostas na ponta da língua, atitude bem distinta do que corresponde ao comportamento comum de quem comparece em julgamento para depor num caso de homicídio, em especial de quem atravessa toda a fase de inquérito e de instrução, com o arguido preso, sem ser chamado a depor, surgindo apenas no rol da contestação. Com o avançar do depoimento e sujeição ao contraditório, essa peremptoriedade foi-se esbatendo e revelou factores que põem fortemente em crise a sua credibilidade. A começar pela circunstância de se ter apresentado ao pai do arguido para testemunhar e facultar, a pedido deste, a documentação interna da oficina, capacidade de iniciativa que não se mostra conforme com o facto de ter aguardado cerca de um ano para facturar o serviço. Não colhe a explicação de que não teve coragem para exigir o pagamento, pois, então, não se percebe qual o factor de encorajamento que interveio para tomar ele próprio a iniciativa, na medida em que, como profissional experiente e informado dos seus deveres – bem demonstrado em audiência -, não ignorava que lhe seriam pedidos os documentos comprovativos do serviço e do pagamento, altura em que iria incontornavelmente dizer que permanecia credor do arguido. Do depoimento gravado não restam dúvidas que FF conhecia os seus deveres como agente da Renault e como empresário e contribuinte fiscal, mormente que obrigada a emitir factura, reter e declarar o IVA bem como guardar a documentação contabilística, como acontece com a generalidade das pequenas e médias empresas deste país, incluindo naturalmente as muitas que são dirigidas por uma família. Esse carácter familiar não é sinónimo de desorganização nem de ignorância.
O Tribunal Colectivo destacou igualmente a circunstância do carimbo no livro de revisão poder ser aposto em qualquer data, memo posterior, e também o arredamento fora do comum da quilometragem. A primeira asserção constitui uma evidência, enquanto a segunda emerge do depoimento da testemunha. Com efeito, quando questionada se a aposição efectuada no livro de revisões correspondia à quilometragem real, respondeu pela afirmativa, explicando que essa era uma imposição da Renault, de que era agente. Mais tarde, a referência ao «arredondamento» da inscrição quilométrica surge novamente pela voz do mandatário do arguido, em termos fortemente sugestivos, como se demonstra por esta sequência:
Depois de a testemunha ter sido questionada pelo Sr. Juíz presidente e demais sujeitos processuais, o mandatário do arguido pede novamente a palavra e diz:
Eu penso que não percebeu completamente a pergunta do Sr. Juiz. Vocês normalmente apontam os quilómetros exactos. Mas às vezes também arredondam. Às vezes arredondam.
E, quando a testemunha se limita a aderir a essa afirmação, exclama:
Pois.
A testemunha ensaia então uma resposta, mas o mesmo mandatário prossegue:
Pelo menos eu arredondo.
A testemunha volta a ensaiar a resposta: trinta e nove e qualquer coisa, ponho..., mas é de novo interrompida pelo mesmo mandatário, que remata, com total inversão de papéis:
Depende de quem aponta. Há quem aponte bem, vai ao conta-quilómetros e aponta o número exacto...
Aí ouve-se a testemunha observar:
O óleo em si dá margem para, se jogar ...
Mas logo o mandatário do arguido sobrepõe a sua voz à da testemunha e conclui, com ênfase:
E há quem arredonde porque assim é mais fácil, até para o cliente é mais fácil para fazer o cálculo.
No recurso, o arguido prossegue essa senda e afirma que o arredondamento é comum nas oficinas portuguesas, para concluir que depende do rigor de quem a faz. Todavia, esse mesmo argumento só confirma a reserva manifestada pelo Tribunal Colectivo, na medida em que admite que se trata de manifestação de falta de rigor. Falta de rigor que, no exercício da livre apreciação da prova, é razoável comunicar a todo o relato efectuado em audiência.
Na verdade, essa falta de rigor, ou melhor, a ligeireza como se declara em Tribunal a certeza absoluta sobre algo que não se sabe com exactidão, manifesta-se igualmente noutras passagens do depoimento. A certa altura, FF é questionado o que vestia o arguido no dia 2/05/2005 e responde, sem a menor hesitação, que usava calças de ganga. Logo que confrontado com a inverosimilhança dessa recordação tão viva e detalhada, acabou por reconhecer que não sabia o que o arguido vestia nesse dia e que respondera em função da convicção de que o arguido usava sempre aquele tipo de vestuário. Outra incidência dessa ligeireza, encontra-se na referência ao momento de chegada do arguido. Rápido, logo no início do seu depoimento referiu que esteve na oficina às 9.30 da manhã, «com certeza absoluta». Mas, no desenvolvimento das suas declarações, compreendeu-se que a testemunha não tinha qualquer segurança nessa indicação horária a não ser a circunstância da sua filha entrar, por regra às 9:00 h., e naquele dia já se encontrar na oficina. Só que, perguntado como podia acomodar o arguido sem marcação, foi vago relativamente ao número de marcações que assegurara na manhã e como pudera atender, praticamente de imediato, a solicitação que era efectuada.
Por outro lado, a testemunha admitiu que a mudança do óleo havia acontecido antes do que seria de esperar, atento o tipo de óleo empregue, ocorrendo apenas 11.000 Kms depois da última intervenção, e não 15.000 Kms. Note-se que nenhuma alusão foi feita a que o veículo apresentava funcionamento anormal, mormente por consumo excessivo de óleo – hipótese suscitada na motivação -, o que certamente seria referido pelo cliente a quem assegurava a respectiva manutenção e motivaria mais do que um mero «serviço rápido». A sua condição de praticante de provas de todo o terreno seguramente levaria o arguido a não negligenciar sinal de degradação tão importante em qualquer motor. Certo é que a operação sempre foi apresentada como de rotina, quando, em função da periodicidade seguida anteriormente, representava uma antecipação importante.
Mais, como refere o assistente, a mudança do óleo é apenas parte daquele procedimento de revisão. Como resulta da fls. 25 do manual de fls. 953, as revisões de manutenção inscritas no respectivo livro incluem um conjunto de operações, com destaque para a substituição do filtro de óleo, bem como várias verificações. Ora, resulta do depoimento de FF que nada disso teve lugar mas, ainda assim, foi preenchido o livro de revisões, o que acrescenta mais um elemento de inverosimilhança aos antes apontados.
O recorrente apela ainda para a ponderação dos documentos de fls. 926 a 933 e 934. Nesse ponto dos autos encontra-se a impressão de dois textos, ambos não assinados, um intitulado «O caminho mais adequado para a aprendizagem para leitura» e outro «Educação perceptiva», acompanhados de uma impressão do ambiente gráfico da aplicação Microsoft Word, usualmente designada por print screen. Será, ao que nos parece, pois o arguido não é claro nesse particular, o trabalho ou tese que, sustenta, iria defender no dia seguinte.
Ora, não é preciso ser perito informático – basta integrar as centenas de milhões de utilizadores de aplicações informáticas – para não conceder particular fidedignidade à inscrição horária em ficheiros informáticos sem certificação externa e independente, pois o sistema pode ser facilmente manipulado de forma a passar a considerar um dia e hora diferente da real, por exemplo o dia 02/05/2005, pelas 9:34, a qual é depois reflectida nos ficheiros criados pelas diferentes aplicações. E não só. A referida impressão incide sobre as propriedades de um ficheiro Word com a designação «educação perceptiva (estudo)», o que remete para o texto impresso a fls. 935 a 949, constituído por 15 páginas A4, na sua quase totalidade em espanhol, o qual, a fazer fé no «print screen» junto, foi criado pelas 9:34:45 do dia 2/05/2005 e sofreu a última modificação 14 minutos depois. Ou seja, com aqueles elementos, o arguido quer convencer que esperou para começar a escrever o texto de um trabalho com relevo internacional e que iria apresentar no dia seguinte pela deslocação a uma oficina para mudar o óleo do seu veículo, fazendo-o num café enquanto esperava que ficasse concluída a operação. Temos essa versão sobre o que aconteceu como inteiramente inverosímil.
Pelos motivos expostos, consideramos que o recorrente falha, também aqui, na apresentação de prova que imponha decisão diversa da recorrida, ou seja, na demonstração do erro de julgamento, antes mesmo do confronto desses contributos probatórios com aqueles ponderados pelo Tribunal Colectivo para afirmar o que se passou no Monte de Santa Quitéria”.
Do que se deixa transcrito, é fácil constatar que, como se disse, o acórdão recorrido teve a preocupação de apreciar – e apreciou - todas as questões suscitadas e colocadas pelo recorrente, designadamente as relativas á alegada incorrecção do julgamento da matéria de facto.
Por outro lado, o recorrente não concretiza neste recurso, quais as partes ou segmentos do acórdão recorrido que não permitem perceber porque não explicitado o processo lógico-mental que esteve subjacente e presidiu á decisão.
Antes se constata de forma manifesta que, na motivação e respectivas conclusões respectivas, o recorrente discorda da decisão do tribunal (quanto á matéria de facto) contrapondo a sua valoração e apreciação da prova àquela que feita pelo tribunal.
Ou seja, recorrente discorda da decisão da matéria de facto.
Só que isso não constitui falta de fundamentação da decisão nem falta de exame (ou reexame) crítico da prova.
Na verdade, resulta claro da motivação do recorrente que este, afinal, impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ela adquiriu em julgamento, esquecendo-se do princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP.
Com efeito, estamos no domínio da livre apreciação da prova – artigo 127º do CPP – que não se confunde com apreciação arbitrária da mesma e que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
E é dentro destes pressupostos que o julgador deve colocar-se ao apreciar livremente a prova (cfr. Alberto dos Reis in CPC anotado e comentado, III, 246; Cavaleiro de Ferreira in Curso de Processo Penal, II, 288; Eduardo Correia, Les Preuves em Droit Penal Portugais, RDES, XIV; e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 107).
E o CPP instituiu sistemas de motivação e controle em sede de apreciação da prova, com realce para a consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controle da sua motivação (cfr. Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal, 228).
Ora, no caso em apreço, está bem explícita na decisão recorrida a forma como o Tribunal adquiriu e formou a sua convicção, que está bem fundamentada, objectivada e logicamente motivada, sendo que os elementos de prova produzidos, foram apreciados pelas instâncias de acordo com as regras legalmente estabelecidas.
E o acórdão recorrido é bem claro ao afirmar de forma clara e inequívoca “Confrontado o acórdão na parte relativa à «motivação da decisão de facto», constata-se que foi correctamente enunciado o exame crítico da prova e que a decisão recorrida não merece essa crítica do recorrente”.
Apesar disso, o acórdão recorrido explicitou muitos aspectos pontuais da matéria de facto assente – que manteve praticamente inalterada – designadamente no que respeita á intenção de matar e ao nexo de causalidade entre a conduta ou acção do arguido e a morte da vítima (EE).
Inexiste, portanto, a arguida nulidade.
2ª e 3ª Questões:
Padece o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova? (conclusões 13ª a 23ª e 24ª a 26ª) e/ou do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão? (conclusões 27ª a 32ª) e/ou insuficiência para a decisão da matéria de facto provada? (conclusões 38ª e 39ª).
Como decorre do artigo 412º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido, que se define o âmbito do recurso.
É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.
E o conhecimento oficioso pelo STJ verifica-se por duas vias: uma primeira que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º-2 do CPP; e outra que poderá verificar-se em virtude de nulidade de decisão, nos termos do estatuído no artigo 379º-2 do mesmo diploma legal.
Por outro lado, definindo os poderes de cognição deste STJ, estatui o artigo 434º do citado CPP que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º-2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.
Na verdade, enquanto antes de 01.01.1999 estava estabelecido um sistema de “revista ampliada”, após a reforma da Lei 59/98, de 25 de Agosto, deixou de ser possível recorrer para o STJ com fundamento da existência de qualquer dos vícios referidos nas várias alíneas do artigo 410º-2 do CPP.
Anteriormente, o Supremo tinha poderes de intromissão em aspectos fácticos, mesmo nos casos em que o conhecimento se restringia a matéria de direito, embora de forma mitigada pois o reexame da matéria de facto apenas poderia ter lugar através da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e podendo o recorrente invocar como fundamento do recurso os vícios referidos.
Após a reforma de 1998, o STJ pode ainda conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP, não a pedido do recorrente, isto é, como fundamento do recurso, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios – cfr. Acs. deste STJ de 12.09.2007 (que aqui seguimos de perto) in Proc.2583/07 – 3ª; de 17.01.2001, de 25.01.2001, de 22.03.2001, in CJSTJ 2001, I, pág 210, 222 e 257; de 04.10.2001 in CJSTJ 2001, III, 182, de 24.03.2003 in CJSTJ 2003, I, 236, de 27.05.2004 in CJSTJ 2004, II, 209, de 30.03.2005 in Proc. 136/05 – 3ª, de 03.05.2006 in Processos 557/06 e 1047/06, ambos da 3ª secção, de 20.12.2006 in CJSTJ 2006, III, 248, de 04.01.2007 in Proc. 2675/06 – 3ª, de 08.02.2007 in Proc. 159/07 – 5ª, de 15.02.2007 in Processos 15/07 e 513/07, ambos da 5ª secção, de 21.02.2007 in Proc. 260/07 – 3ª, de 02.05.2007 in Processos 1017/07, 1029/07 e 1238/07, todos da 3ª secção e ainda Simas Santos e Leal Henriques, CPP anotado, 2ª edição, II volume, pág. 967, onde se refere: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do artigo 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.
Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ, de 19.09.1995, in DR I Série-A, de 28.12.1995 e BMJ 450, 71 (acórdão 7/95) que no âmbito do sistema de revista alargada decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º-2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
Como se disse, o arguido/recorrente invoca, na respectiva motivação e conclusões (designadamente 13ª a 23ª e 24ª a 26ª e 27ª a 32ª) a violação do disposto no artigo 410º-2 do CPP ou seja, neste segmento, invocou os vícios da matéria de facto – erro notório na apreciação da prova e contradição insanável na fundamentação - previstos naquele normativo.
Porém, como decorre claramente do atrás se expôs, o recurso para este Supremo Tribunal é restrito á matéria de direito, embora o STJ possa conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP nos termos (supra) referidos: por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.
Ora, da análise do acórdão recorrido, do respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo (designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo, designadamente em julgamento ou, como diz Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 339 “ … vedada a consulta a outros elementos do processo, nem é possível a consideração de quaisquer outros elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida. …”) não se indicia a existência de qualquer um daqueles vícios.
Na verdade, daquele texto considerado nos termos referidos e indicados no citado artigo 410º-2 do CPP, não se indicia quer a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, quer erro notório na apreciação das provas ou seja erro de que todos se apercebam directamente ou que a decisão esteja eivada de clara contradição insanável na fundamentação.
Isto é, da decisão recorrida, considerada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum não se indicia erro grosseiro na decisão da matéria de facto, erro patente, que não escapa à observação do homem de formação média (neste sentido, cfr. entre muitos outros, os Acs. deste STJ de 06.04.1994 in CJSTJ, II, Tomo 2, pág. 186; de 17.12.1997 in BMJ 472, pág. 407; de 03.06.98 in Proc. 277/98 e de 15.07.2004 in Proc. 2150/04 – 5ª).
Do texto da decisão recorrida considerada nos termos referidos não resulta de forma evidente uma conclusão contrária àquela a que o tribunal chegou.
Aliás, resulta claro da motivação do recorrente que este afinal impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre certos factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo-se o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP, sendo ainda certo que, no caso em apreço, está bem explícita na decisão recorrida a forma como o Tribunal adquiriu e formou a sua convicção que está bem fundamentada, objectivada e logicamente motivada.
Como resulta do texto da decisão recorrida, o tribunal criou e fundou a sua convicção nas provas produzidas em audiência, provas essas que enumera e cuja análise crítica faz e valora quer em função do seu valor legal probatório (caso da prova pericial) quer das regras normais da experiência e da livre convicção (do tribunal).
O raciocínio lógico que serviu para o tribunal formar a sua convicção consta da motivação, de forma clara e sem contradições, tendo o tribunal concluído que, a (vítima) EE decidiu terminar a relação amorosa entre ela e o arguido, o que este não aceitou, e “tomou, então (o arguido) a resolução de tirar a vida à EE, utilizando para o efeito um líquido combustível inflamável”.
Na execução desse plano, na noite de 01/05/05, o arguido telefonou para a EE, tendo combinado com esta um encontro no dia seguinte, por voltas das 09h00, no monte de Santa Quitéria, e, na manhã seguinte (02/05/05), o arguido por volta das 09h/09h15m, dirigiu-se ao referido local de encontro, conduzindo o veículo de marca Renault, modelo Mégane, de matrícula 00-00-00, pertencente a BB, levando gasolina que acondicionou numa garrafa de plástico.Aí chegado, esperou alguns momentos pela EE, que chegou e estacionou o veículo em que se deslocara.
“De seguida, ambos saíram das suas viaturas e, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a EE para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da EE, que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía.
De imediato, as peças de roupa que a EE vestia se incendiaram e esta começou a gritar de desespero e dor, enquanto despia o dito vestuário. Nessa altura e indiferente a esta situação, o arguido abandonou o monte de Santa Quitéria, conduzindo o veículo supra identificado.
E o tribunal deu ainda como provado que “Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a EE sofreu queimaduras de 2.º e 3.º graus “ e que essas lesões “foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte.
Considerou igualmente provado que “O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei” e também que o arguido “É imputável, sendo uma pessoa reservada, defensiva, desconfiada, pouco tolerante ao stress e perfeccionista, tendo tendência a projectar as suas frustrações e falhas em causas externas”.
Ora, como atrás se disse, do texto da decisão recorrida, por si só e/ou conjugada com as regras da experiência, não se indicia a existência de qualquer dos vícios previstos no artigo 410º-2 do CPP, designadamente os invocados pelo recorrente: erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a decisão e a fundamentação.
O recorrente fundamenta a alegação da existência de erro notório na apreciação da prova no facto de o tribunal ter valorado certas provas e não outras, que no entendimento daquele deviam ter sido valoradas e no facto de se terem dado como provados certos factos que no entender do recorrente não ficaram provados e ainda no facto de não se terem dado como provados certos factos que, segundo ele, se provaram.
Já atrás se disse em que consiste o erro notório na apreciação da prova: erro de que todos se apercebam directamente; erro grosseiro na decisão da matéria de facto, erro patente, que não escapa à observação do homem de formação média.
Ora, analisando o texto da decisão só por si, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam estranhos ou extrínsecos, não se indicia a existência de tal erro.
E, não integra esse vício, a mera discordância do recorrente com a matéria de facto provada.
E é esse o fundamento invocado pelo recorrente que, no fundo, impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre certos factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento.
Porém, não integra o vício de erro notório na apreciação da prova o facto de o tribunal ter valorado e apreciado a prova produzida e fixado os factos, de modo diferente daquele que o recorrente considera que seria o correcto e deveria (na sua óptica) ter sido feito.
No domínio dessa discordância estaremos, porventura, a falar de erro de julgamento, mas que não pode atacar-se com a invocação dos vícios previstos no artigo 410º-2 do CPP, mas antes pela via do artigo 412º-3 e 4 do mesmo diploma legal (de que o recorrente terá lançado mão oportunamente, como se refere a fls. 80 do acórdão recorrido).
Relativamente á alegada contradição insanável da fundamentação, o recorrente fundamenta essa alegação no facto de não ter sido produzida prova segura e inequívoca de que era intenção do arguido matar a vítima EE, pelo que nunca o arguido poderia ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, mas, quando muito, pela prática de um crime de ofensa á integridade física grave agravada pelo resultado, p. e p. pelos artigos 144º e 145º do CP, se não mesmo, um crime de ofensa á integridade física privilegiada, p. e p. pelo artigo 147º do CP.
Ora, o vício da contradição insanável da fundamentação tem que resultar também, apenas do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer outros elementos exteriores.
Aquela contradição é somente a intrínseca da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo, para o efeito, consideradas eventuais contradições entre a decisão e o que do processo consta em outros locais (cfr. Ac. STJ de 29.11.89, Proc. 40255 – 3ª).
Ou, como se diz no Ac. deste STJ de 22.05.96, in Proc. 306/96, “Para se verificar contradição insanável de fundamentação, têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis”.
Da análise do texto da decisão recorrida não vemos que exista contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Na verdade, estando provado – como está – que “tomou, então (o arguido) a resolução de tirar a vida à EE, utilizando para o efeito um líquido combustível inflamável”; que na execução desse plano, na noite de 01/05/05, o arguido telefonou para a EE, tendo combinado com esta um encontro no dia seguinte, por voltas das 09h00, no monte de Santa Quitéria; que na manhã seguinte (02/05/05), o arguido por volta das 09h/09h15m, dirigiu-se ao referido local de encontro, conduzindo o veículo de marca Renault, modelo Mégane, de matrícula 00-00-00, pertencente a BB, levando gasolina que acondicionou numa garrafa de plástico.Aí chegado, esperou alguns momentos pela EE, que chegou e estacionou o veículo em que se deslocara; que “De seguida, ambos saíram das suas viaturas e, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a EE para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da EE, que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía.
De imediato, as peças de roupa que a EE vestia se incendiaram e esta começou a gritar de desespero e dor, enquanto despia o dito vestuário. Nessa altura e indiferente a esta situação, o arguido abandonou o monte de Santa Quitéria, conduzindo o veículo supra identificado; que “Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a EE sofreu queimaduras de 2.º e 3.º graus “; que essas lesões “foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte; e que “O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei”, não vemos a existência da invocada contradição insanável.
Resulta claro da matéria de facto assente - ao contrário do que refere o recorrente - que o arguido tomou a resolução de tirar a vida á EE. Isto significa que o arguido decidiu matar a EE.
E ficou também provado que na execução desse plano, isto é, dessa sua intenção e vontade, o arguido marcou um encontro com ela no monte de Santa Quitéria e ali, após uma breve troca de palavras, o arguido atirou a EE para cima de uns arbustos e, munido da garrafa que continha o combustível, despejou o seu conteúdo para cima da cabeça e tronco da EE, que ainda se encontrava caída, e ateou fogo à roupa que ela trazia vestida, com um isqueiro que possuía.
Está portanto provado que o arguido agiu com a intenção de matar a EE.
Aliás, neste segmento, refere o acórdão recorrido:
“Também na parte de direito, encontramos nova manifestação de discordância dirigida verdadeiramente à decisão quanto aos factos – intenção de matar(6) compreendida nos parágrafos §4 a 10 e 12 a 14. Trata-se da argumentação de que nenhuma prova foi produzida que permita concluir que a sua intenção era provocar a morte de EE, dizendo, «para efeito de raciocínio», que poderia apenas querer assustar a vítima. Considera ainda que a utilização de gasolina, nos termos provados, não era meio idóneo a matar alguém e argumenta que, se fosse essa a sua intenção, poderia ter escolhido o atropelamento ou só abandonaria o local depois de se assegurar que havia falecido.
Recorde-se aqui que o legislador apenas consente a modificação da decisão em matéria de facto quando ficar demonstrada prova que impõe sentido diverso, não bastando oferecer razões que apenas consintam outro entendimento. Como salienta o STJ, casos há em que, «face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção» (7).
Ora, a acção de despejar líquido combustível sobre a cabeça e tronco de alguém, cobrindo a roupa, e a respectiva ignição num local afastado e desprovido de ajuda, mostra-se claramente idónea a provocar a morte, como efectivamente causou. Quanto aos meios alternativos evocados pelo recorrente, não passam, novamente, de hipóteses e não resistem à demonstração de que houve escolha prévia e concreta do instrumento a utilizar. A experiência comum diz-nos que qualquer pessoa reconhece os perigos associados a líquido combustível acondicionado numa garrafa e só assume o risco de o trazer num veículo automóvel se estiver na disposição de o utilizar, o que suporta a consideração de que o arguido, professor do ensino básico, licenciado em Matemática e perfeccionista, seleccionou, entre os meios possíveis – e, para além dos referidos pelo recorrente, muitos mais podem ser hipotisados - aquele que queria empregar para o desiderato perseguido. Como efectivamente empregou.
Estas considerações valem igualmente quanto à comprovação da intenção de matar. Enquanto facto psicológico, interno, a sua apreensão nunca acontece de forma directa, sensorial, decorrendo da avaliação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência. No caso, mostra-se inteiramente razoável considerar, como considerou o Tribunal a quo, que quem despeja líquido combustível sobre a cabeça e tronco de uma pessoa, trazido para esse efeito, assegura a ignição do vestuário e depois abandona o local enquanto a vítima luta para extinguir as chamas, não só quis o resultado-lesões, como, pela extensão, intensidade e ausência de socorro próximo, quis o resultado-morte”.
Provada, portanto, a intenção de matar e tendo também ficado provado – como ficou – que “Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a EE sofreu queimaduras de 2.º e 3.º graus “; que essas lesões “foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte; e que “O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei”, não se vislumbra a existência do alegado vício de contradição insanável da fundamentação.
Por isso, dos factos provados e não provados não resulta, nem qualquer contradição entre si ou entre eles e a respectiva fundamentação, nem a existência de erro notório na apreciação da prova, sendo correcta a conclusão extraída dos factos provados, pelo tribunal a quo, de que o arguido praticou um crime de homicídio voluntário.
E crime de homicídio qualificado nos termos do artº 132º-1 e 2-c), g) e i), do C.P (e não homicídio simples, p. e p. pelo artº 131º do CP ou crime de ofensa á integridade física grave agravada pelo resultado, p. e p. pelos artigos 144º e 145º do CP, se não mesmo, um crime de ofensa á integridade física privilegiada, p. e p. pelo artigo 147º do CP, como pretende o recorrente).
Na verdade, como se diz no acórdão recorrido:
“ … Ficou provado que o arguido matou EE, agindo com vontade dirigida ao resultado efectivamente verificado, pelo que a verificação dos elementos essenciais do crime de homicídio, tipificado no artº 131º do CP, não suscita quaisquer dúvidas. Acrescente-se que o arguido não coloca em crise a verificação dos exemplos-padrão tipificadas nas als. c), g) e i) do nº2 do artº 132º do CP, na versão anterior à Lei nº 59/2007, de 4/9, aspecto em que a decisão recorrida mostra-se correcta, assim como na afirmação de especial censurabilidade – «presente quando as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores» - e perversidade – enquanto «atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade» (8)
. Provocar a morte através do fogo integra acto de grande crueldade, por desencadear sofrimento muito forte, e é pesadamente repugnante, para mais quando executado de forma reflectida e preparada. Constitui, ainda, conduta que, no local e circunstâncias em que ocorreu, coloca a vítima em situação de profunda indefesa, incapaz de evitar a combustão rápida das roupas e as queimaduras profundas e, nessa medida, especialmente perversa”.
Tendo o arguido agido, como agiu, com intenção de tirar a vida á EE e tendo, na execução desse plano previamente planeado, preparado um encontro com a vítima no Monte, após o que a empurrou derrubando-a, lançando sobre ela gasolina e pegando-lhe fogo, abandonando o local quando aquela tinha as roupas a arder, deixando-a indefesa e impossibilitada de evitar a combustão rápida das roupas que vestia e de evitar a queimaduras que daí lhe advinham, trata-se, sem dúvida, de circunstâncias que revelam enorme crueldade e especial perversidade, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida ao subsumir os factos provados ao crime de homicídio qualificado nos termos supra referidos.
Relativamente ao alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
O recorrente sustenta tal alegação no facto de o tribunal ter formado a sua convicção na existência de “uma tendência para delinquir que urge combater” sendo certo que não ficou provada essa tendência delinquente.
Vejamos:
O acórdão recorrido, ao apreciar esta questão, diz textualmente o seguinte:
“ … o primeiro argumento esgrimido pelo recorrente prende-se com a discordância relativamente o segmento da decisão em que se afirma a presença e ponderação de «tendência para delinquir», com o que pretende fundar a consideração de que o Tribunal recorrido incorreu em erro ou em «absoluta incompreensão do alegadamente sucedido e da personalidade do arguido». Importa desde logo apontar a contradição em que se enreda o arguido, pois põe em causa a sua participação, e responsabilidade, nos factos dados como provados e, ao mesmo tempo, diz que tais factos – os mesmos que rejeita – não foram compreendidos, sem cuidar de reflectir em que medida ele próprio contribuiu ou não para a revelação de todas as dimensões da conduta. Tendo em atenção que as condutas humanas acontecem sempre em função de um contexto e de uma atitude concreta, e que esta é modulada por factores afectivo-emocionais, com mutua interacção entre os aspectos cognitivos e emocionais próprios do comportamento humano, importa reconhecer o arguido vedou inexoravelmente o conhecimento pleno de todo complexo envolvido na conduta provada, para mais com intersecção de factores passionais (9). O respeito pela escolha do silêncio do acusado e a proibição de se retirar do exercício desse direito qualquer prejuízo constitui uma das traves mestras do respeito pelas garantias de defesa constitucionalmente consagradas, mas a escolha dessa via não é isenta de consequências, pois priva o Tribunal da descrição do sucedido na primeira pessoa, como também da percepção directa do trajecto post facto, incluindo eventual reflexão sobre a antijuridicidade e rejeição firme da conduta desviante. Nessa medida, admite-se que o arguido que não presta declarações em audiência se sinta, depois de condenado, incompreendido pelo Tribunal, contudo, em boa verdade, esse sentimento deve-se primacialmente a escolha – legítima, repita-se – dele próprio e da gestão da sua defesa.
Deixadas estas considerações prévias, importa considerar que o arguido tem razão quando aponta a ausência de suporte factual para considerar demonstrada tendência para o crime. O arguido não regista passado criminal e, mesmo tendo em atenção a caracterização psicológica a que foi sujeito, vazada em boa medida nos factos provados – pessoa reservada, defensiva, desconfiada, pouco tolerante ao stress e perfeccionista, tendo tendência para projectar as suas frustrações e falhas em causas externas – não encontramos motivo bastante para apontar muito acentuada facilidade na passagem ao acto e inexistente contramotivação perante conduta tão profundamente enraizada no dever-ser colectivo como o comando que proíbe tirar a vida a outro ser humano, fora de legítima defesa. Não obstante, permanecem válidas as premissas que conduziram o Tribunal Colectivo a essa indevida - excessiva - afirmação de tendência, a saber, a escolha e reflexão sobre o meio empregue e a capacidade revelada na arquitectura e execução, a um tempo fria e proficiente, de um planeamento de matar, e matar em circunstâncias particularmente repugnantes, o que remete para capacidades intelectuais acima do mediano e que quando postas, como foram, ao serviço de prática desviante tão importante, fundam quadro de preocupação acrescida no domínio da prevenção especial. Nesse sentido depõe igualmente a tendência de projecção de responsabilidades para terceiros que domina, como provado, a sua personalidade, pela transferência de culpas e auto-desculpabilização que acarreta”.
Daqui resulta de forma clara que o acórdão recorrido reconheceu que “o arguido tem razão quando aponta a ausência de suporte factual para considerar demonstrada tendência para o crime”.
E, mais adiante, esclarece que, apesar disso, permanecem válidas as premissas que levaram o Tribunal Colectivo àquela excessiva afirmação de tendência.
E prossegue dizendo quais são essas premissas: “a escolha e reflexão sobre o meio empregue e a capacidade revelada na arquitectura e execução, a um tempo fria e proficiente, de um planeamento de matar, e matar em circunstâncias particularmente repugnantes, o que remete para capacidades intelectuais acima do mediano e que quando postas, como foram, ao serviço de prática desviante tão importante, fundam quadro de preocupação acrescida no domínio da prevenção especial”.
E acrescenta: “Nesse sentido depõe igualmente a tendência de projecção de responsabilidades para terceiros que domina, como provado, a sua personalidade, pela transferência de culpas e auto-desculpabilização que acarreta”.
Do exposto resulta que o acórdão recorrido, no que toca á dosimetria da pena, tomou em consideração, não aquela tendência para delinquir mas antes, o traço psicológico do arguido que se enquadra na escolha e reflexão sobre o meio empregue, e na capacidade demonstrada na concepção e execução fria e eficiente do planeamento de matar em circunstâncias particularmente repugnantes o que revela capacidade intelectual acima da média e que ao serviço de práticas tão desviantes e repugnantes, fundam uma preocupação acrescida no domínio da prevenção especial.
Do exposto resulta claro que a decisão de direito – constante do acórdão recorrido - está fundamentada apenas nos factos provados, pelo que não ocorre aquele alegado vício que, como é sabido, não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, o que é coisa bem diferente (cfr. Ac. STJ de 13.02.1991, AJ nºs 15/16, 7).
Concluímos, portanto, pela inexistência, no douto acórdão recorrido, dos vícios previstos no artigo 410º-2 do CPP, designadamente os alegados pelo recorrente.
E, porque, como se disse, o recurso para este Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, não sendo possível recorrer-se para o STJ com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, o recurso não é admissível com este fundamento.
Por isso, neste(s) segmento(s), o recurso é manifestamente improcedente, pelo que terá de ser rejeitado.
4ª Questão:
Nexo de causalidade entre a acção do arguido e a morte da vítima EE, pelo que não crime nem o pedido cível pode proceder? – conclusões 33ª e 34ª ou 27ª a 34ª.
Alega o recorrente que inexiste nexo de causalidade entre a acção do arguido e a morte da vítima, EE.
Fundamenta tal alegação no facto de, por um lado, não ter ficado provado que o arguido agiu com intenção de matar; por outro lado porque”conforme resulta dos autos e da própria matéria de facto dada por assente e ainda do depoimento da testemunha JJ, a vítima EE veio a morrer em virtude de uma infecção contraída por bactéria multiresistente contraída durante o internamento nos Hospitais da Universidade de Coimbra”pelo que “também deveria improceder o pedido de indemnização civil formulado nestes autos” – conclusões 33ª e 34ª
Ora, como acabou de se dizer aquando da apreciação da anterior questão, está claramente provado que o arguido agiu com intenção de tirar a vida á vítima EE.
Dispensamo-nos de repetir aqui as considerações atrás expostas na decisão ponto anterior.
Portanto, o primeiro fundamento invocado pelo recorrente para alicerçar a alegação de falta de nexo de causalidade entre a conduta ou acção do arguido e a morte daquela EE, não se verifica.
Antes pelo contrário.
Da matéria de facto assente resulta, como se disse, que o arguido agiu com intenção de matar.
E dizemos isto, não obstante o recurso, neste segmento, respeitar a matéria de facto e, por isso, não ser admissível e ter de ser rejeitado.
Na verdade, como atrás se disse, resulta claro da motivação do recorrente que este, afinal, impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ela adquiriu em julgamento, esquecendo-se do princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP.
Neste segmento do recurso o recorrente expressa a sua discordância em relação ao que ficou provado, designadamente a propósito da intenção de matar que o tribunal a quo deu como provada.
Ora, estando em causa a determinação da intenção do agente, não cabe no âmbito do presente recurso uma tal reapreciação, por estar em causa matéria de facto, como a jurisprudência tem entendido, indicando-se alguns dos acórdãos em que tal posição tem sido assumida:
03-05-1991, BMJ 407, 130 – A indagação da intenção do agente, no que respeita à amplitude das ofensas corporais, é essencialmente matéria de facto, que se impõe ao STJ.
05-05-1993, CJSTJ 1993, tomo 2, pág. 220 - A determinação da intenção do agente é matéria de facto, encontrando-se por isso subtraída aos poderes de cognição do STJ.
21-04-1994, processo n.º 46310 – Pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo.
30-05-1996, processo n.º 208/96, BMJ 457, 144 – A questão da intenção de matar é matéria de facto que o Supremo não pode sindicar (artigo 433º do CPP).
04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222 - A intenção criminosa constitui matéria de facto, pelo que não tendo sido invocado nem se vislumbrando qualquer dos vícios enumerados no n.º 2 do artigo 410º do CPP há que respeitar integralmente a decisão do colectivo.
2-10-1996, processo n.º 46679-3ª, in SASTJ, Outubro 1996, n.º 4, pág. 69 - Sendo a intenção criminosa matéria de facto, compete à 1ª instância apurá-la, para que o STJ ao reexaminar a matéria de direito possa decidir se a matéria de facto está ou não bem integrada penalmente.
06-11-1996, processo n.º 724/96 - 3ª – A intenção é um acontecimento do foro interno do agente e não um acontecimento do mundo que lhe é exterior; não deixa, por causa disso, de ser matéria de facto, susceptível de ser apreendida com recurso a factos indiciários a partir dos quais se possam extrair presunções judiciais geradoras de uma suficiente convicção positiva sobre a sua verificação.
13-11-1996, processo n.º 48510-3ª, SASTJ, Novembro 1996, n.º 5, pág. 70 - A intenção criminosa integra matéria de facto, sendo o respectivo apuramento da competência exclusiva dos tribunais de instância.
18-12-1997, processo n.º 930/97-3ª, BMJ 472, 185 – A intenção de matar constitui matéria de facto subtraída aos poderes de cognição do STJ. Como matéria de facto que é pode o veredicto do tribunal recorrido quanto a essa intenção, sofrer de algum dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP e nessa medida ser objecto de recurso.
21-01-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 201 – A intenção de matar constitui matéria de facto da competência das instâncias.
10-10-2007, processo 3315/07-3ª - A intenção de matar, enquanto matéria de facto, captada através dos meios de prova que desfilaram perante o tribunal da 1ª instância, com os quais manteve imediação e oralidade, escapa à sindicância deste STJ.
17-01-2008, processo n.º 607/07-5ª - A intenção de matar é matéria de facto que escapa à censura do STJ enquanto tribunal de revista, pois pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo. A intenção de matar constitui matéria de facto a apurar pelo tribunal face à diversa prova ao seu alcance e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
03-04-2008, processo n.º 132/08-5ª – neste ponto … da intenção de matar estamos em pleno campo de discussão de matéria de facto, o que fica de fora da competência cognitiva do STJ.
12-06-2008, processo n.º1782/08-3ª - A intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira a sua verificação, o mesmo acontecendo para integração da intenção de defesa.
16-10-2008, processo n.º 2851/08-5ª - O apuramento de existência ou não de intenção de matar é matéria de facto. Não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto.
22-10-2008, processo n.º 3274/08-3ª – Se o recorrente nas conclusões que formula, discorda da factualidade assente, nomeadamente de ter sido considerada provada a intenção de matar, encontramo-nos no domínio da matéria de facto, cujo conhecimento está excluído dos poderes do STJ.
E ainda acórdãos do STJ de 16-01-1990, processo n.º 40296, de 30-10-1991, processo n.º 42061, 11-02-1993, processo n.º 43146, de 06-05-1993, processo n.º 43503, de 21-05-2008, processo n.º 678/08-3ª.
Relativamente ao segundo fundamento – o de que aquela EE veio a morrer em virtude de uma infecção contraída por bactéria multiresistente contraída durante o internamento nos Hospitais da Universidade de Coimbra”, também o mesmo não está provado.
Como refere o acórdão recorrido, “o mesmo relatório de autópsia de fls. 346 a 352 não deixa qualquer dúvida quando indica que o mecanismo da morte – falência multiorgânica – constituiu complicação directamente decorrente das lesões por queimadura, tanto no hábito interno, como no hábito externo. A 2ª conclusão é peremptória: «Tal processo mórbido constitui causa adequada da morte»”
E, por isso, ficou provado que “Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a EE sofreu queimaduras de 2.º e 3.º graus “; que essas lesões “foram determinantes de um quadro de choque séptico, com falência multiorgânica, que lhe provocaram, em 15/07/05, paragem cardiorespiratória, determinante da sua morte”.
Tanto basta para se concluir que existe o apontado nexo de causalidade não tendo fundamento, neste aspecto, a alegação do recorrente.
Acresce, como bem refere o acórdão recorrido: “Importa desde logo dizer que as situações de concausalidade, de dupla causalidade ou de causalidades concorrentes, não afastam a verificação do crime. Como ensina Figueiredo Dias, a concorrência de várias condições para o resultado não afasta a causalidade: «todas as condições que, de alguma forma, contribuíram para o resultado se tivesse produzido são causais em relação a ele e devem ser consideradas em pé de igualdade, já que o resultado é indivisível e não pode ser pensado sem a totalidade das condições que o determinaram» (10)..
No caso, decorre dos factos provados que o processo causal desencadeado pela acção do arguido não sofreu qualquer interrupção ou intersecção, mormente por acção de terceiro ou de circunstância extraordinária ou imprevisível. Ao invés, a morte surgiu em resultado de uma complicação, com falência multiorgânica, a qual tem como conditio sine qua non as lesões provocadas pela inalação de ar sobreaquecido e as queimaduras sofridas em resultado da ignição do combustível e da roupa onde foi derramado pelo arguido. Nenhuma dúvida existe de que o arguido deu causa à morte de EE”.
Por isso, face á existência do nexo de causalidade e á existência do crime e á (demais) prova produzida, o(s) pedido(s) cível/cíveis formulado(s) não poderia(m) deixar de proceder
Resta dizer que, também neste segmento, estamos em sede de matéria de facto e mais uma vez perante a discordância do recorrente quanto a essa matéria.
Sendo assim, como é, também neste segmento o recurso é legalmente inadmissível, pelo que terá de ser rejeitado.
5ª Questão:
A interpretação que o tribunal recorrido faz dos artigos 70º e 71º do CP é inconstitucional por violação do artigo 32º-1 da CRP? – conclusões 35ª a 39ª.
O recorrente entende que a interpretação que o tribunal recorrido faz dos artigos 70º e 71º do C.P é inconstitucional por violação do artigo 32º-1 da CRP.
E fundamenta esta alegação desde logo no facto de o tribunal ter valorado contra o arguido o facto de este não ter prestado declarações, violando o direito à não auto-incriminação e violando os princípios da presunção da inocência e da verdade material.
Também aqui não assiste razão ao recorrente.
Com efeito, basta ler o acórdão recorrido para de verificar que o silêncio do recorrente não foi considerado na decisão recorrida em prejuízo ou contra o mesmo.
Aliás, deve dizer-se desde já que o recorrente, muito embora alegue que no acórdão recorrido faz uma interpretação dos artigos 71º e 72º do CP que viola o artigo 32º-1 da CRP, não esclarece que interpretação é essa, isto é, que interpretação é que foi feita no acórdão recorrido daqueles preceitos do CP que viole a citada norma constitucional.
Depois, há que notar que o acórdão recorrido, quanto ao facto de o arguido não ter prestado declarações e se ter remetido ao silêncio (direito que lhe assiste) refere expressamente o seguinte:
“Na ponderação concreta da pena, cumpre achar a medida da sanção tendo como limite e suporte axiológico a culpa do agente e em função das exigências da prevenção de futuros crimes, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal reside na reinserção social do delinquente, sendo incompatível com o Estado de direito democrático a finalidade retributiva (11). No modelo que enforma o regime penal vigente, norteado, como decorre do artº 40º do CP, pelo binómio prevenção-culpa, cumpre encontrar primeiro uma moldura de prevenção geral positiva, determinada em função da necessidade de tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada (12). Fixada esta, correspondendo nos seus limites inferior e superior à protecção óptima e protecção mínima do bem jurídico afectado, deve o julgador encontrar a medida concreta da pena em conjugação com as exigências de prevenção especial de socialização do agente, sem ultrapassar a culpa revelada na conduta antijurídica. Aí chegados, os critérios do artº 71º do CP «têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha e medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente)» (13).
Como se disse, o primeiro argumento esgrimido pelo recorrente prende-se com a discordância relativamente o segmento da decisão em que se afirma a presença e ponderação de «tendência para delinquir», com o que pretende fundar a consideração de que o Tribunal recorrido incorreu em erro ou em «absoluta incompreensão do alegadamente sucedido e da personalidade do arguido». Importa desde logo apontar a contradição em que se enreda o arguido, pois põe em causa a sua participação, e responsabilidade, nos factos dados como provados e, ao mesmo tempo, diz que tais factos – os mesmos que rejeita – não foram compreendidos, sem cuidar de reflectir em que medida ele próprio contribuiu ou não para a revelação de todas as dimensões da conduta. Tendo em atenção que as condutas humanas acontecem sempre em função de um contexto e de uma atitude concreta, e que esta é modulada por factores afectivo-emocionais, com mutua interacção entre os aspectos cognitivos e emocionais próprios do comportamento humano, importa reconhecer o arguido vedou inexoravelmente o conhecimento pleno de todo complexo envolvido na conduta provada, para mais com intersecção de factores passionais (14. O respeito pela escolha do silêncio do acusado e a proibição de se retirar do exercício desse direito qualquer prejuízo constitui uma das traves mestras do respeito pelas garantias de defesa constitucionalmente consagradas, mas a escolha dessa via não é isenta de consequências, pois priva o Tribunal da descrição do sucedido na primeira pessoa, como também da percepção directa do trajecto post facto, incluindo eventual reflexão sobre a antijuridicidade e rejeição firme da conduta desviante. Nessa medida, admite-se que o arguido que não presta declarações em audiência se sinta, depois de condenado, incompreendido pelo Tribunal, contudo, em boa verdade, esse sentimento deve-se primacialmente a escolha – legítima, repita-se – dele próprio e da gestão da sua defesa”.
Resulta portanto, do acórdão recorrido que este considera que o direito ao silêncio é uma verdadeira garantia constitucional do arguido e, optando o arguido por tal postura, é evidente que o tribunal deixa de ouvir da sua própria boca, a versão dos factos que lhe são imputados e pelos quais está a ser julgado.
E, esse mesmo silêncio, impede também que o tribunal possa obter do próprio arguido o seu percurso ou conduta posterior aos factos, incluindo a “eventual reflexão sobre a antijuridicidade e a rejeição firme da conduta desviante”.
Sendo assim, não se vê que o acórdão recorrido tenha valorado o silêncio do arguido, em prejuízo deste.
Nem se vê que tenha sido violado o princípio do in dubio pro reo pois que o Tribunal não ficou com qualquer dúvida que devesse resolver em favor do arguido.
Antes se verifica que o Tribunal não teve dúvidas nem na fixação da matéria de facto que fundamentou devidamente, nem na condenação do arguido.
Não vemos, pois, que o acórdão recorrido tenha retirado quaisquer direitos ao arguido e/ou violado qualquer preceito constitucional, designadamente o artigo 32º-1 da CRP.
Razão por que o recurso improcede com este fundamento.
6ª e 7ª Questões:
Será o acórdão recorrido, nulo, por falta de fundamentação da escolha concreta da pena e da explicação do processo lógico mental que motivou a aplicação da pena de 20 anos de prisão? – conclusões 40ª e 41ª
E a pena aplicada é exagerada e desajustada, devendo antes situar-se entre os 12 e os 14 anos de prisão? – conclusões 42ª a 50ª.
Assente a qualificação jurídica dos factos provados como integrando a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132º nº 1 e 2-c), g) e i), do Código Penal, há que apreciar a medida da pena respectiva
O crime de homicídio supra referido é punível, em abstracto, com pena de prisão de 12 a 25 anos.
Quanto a este crime foi aplicada a pena concreta de 20 anos de prisão.
Vejamos, então.
Quanto á arguida nulidade:
Diz-se no acórdão recorrido:
“A questão seguinte reside na consideração de que a pena fixada é «manifestamente exagerada e desajustada». O arguido apela à ponderação acrescida da sua primariedade criminal e das circunstâncias de estar socialmente integrado, ter um filho de dois anos de idade, apoio familiar e «ser querido por parte dos seus alunos apesar do conhecimento concretos que estes têm dos factos imputados». Insurge-se contra a referência a que possui «tendência para delinquir» e considera que se tratou de «crime passional, isolado, não repetível». Conclui pela aplicação de pena situada entre os 12 e 14 anos de prisão.
Vejamos como motivou o Tribunal a quo a medida da pena:
Efectuado pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido debrucemo-nos sobre a natureza da pena a aplicar.
Assim para determinar a medida concreta da pena há que recorrer aos critérios orientadores fornecidos pelo art.º 71.º do Código Penal.
De acordo com esse preceito legal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial), devendo ter-se sempre em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido.
A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez.
Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do arguido, o que significa que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide os limites mínimo e máximo para a pena que, em caso algum, podem ser ultrapassados.
Dentro destes limites e para fixar a medida concreta da pena intervêm os demais fins da pena, designadamente a prevenção geral e prevenção especial.
Com efeito, e segundo o disposto no art.º 40.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a aplicação de uma pena visa “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Protecção de bens jurídicos essa que se consubstancia na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade se reporta à denominada prevenção especial.
A prevenção geral, dita de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido e assume a “função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, no mínimo, fornecidos pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico” [Nota: vide Acórdão do S.T.J. de 10/04/96, in CJ, Ac. do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 168].
Por sua vez, a prevenção especial está ligada à neutralização do agente e à necessidade de reinserção social do delinquente, da sua conformação com o quadro de valores vigentes na sociedade, especialmente aqueles que tutelam o bem jurídico atingido e que aquela norma visava proteger, cabendo-lhe “encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, que melhor sirva às exigências da socialização” [Nota: vide Acórdão supra identificado].
Assim sendo e dentro destas duas balizas fixadas pela culpa, a medida da pena deve considerar o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir.
Nunca podendo, porém, a pena “ultrapassar em caso algum a medida da culpa”( art.º 40.º, n.º2 do Código Penal).
Depois desta breve alocução acerca da determinação da medida da pena convém aplicar estes conceitos ao caso em apreço.
In casu, as necessidades de prevenção especial, apesar da ausência de antecedentes criminais do arguido, são elevadas, pois que o meio empregue, a formulação de um plano e o crime praticado, demonstram uma tendência para delinquir que urge combater.
Também as necessidades de prevenção geral são muito prementes e se fazem sentir com muita acuidade, sendo que este tipo de crime é o mais grave do nosso ordenamento jurídico e causa grande repugnância na nossa sociedade, pois a vida humana é sempre o valor supremo.
Por seu turno, a ilicitude dos factos é muito elevada, atento o meio utilizado e as consequências que provocou (não só a morte, mas também o elevado sofrimento). Além disso, o arguido agiu com dolo directo.
Por fim, há que referir que o arguido não confessou os factos de que vem acusado.
Todos estes factos ponderados, afigura-se-nos como necessário, adequado e suficiente aplicar ao arguido AA a pena de 20 anos de prisão.
Na ponderação concreta da pena, cumpre achar a medida da sanção tendo como limite e suporte axiológico a culpa do agente e em função das exigências da prevenção de futuros crimes, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal reside na reinserção social do delinquente, sendo incompatível com o Estado de direito democrático a finalidade retributiva (15). No modelo que enforma o regime penal vigente, norteado, como decorre do artº 40º do CP, pelo binómio prevenção-culpa, cumpre encontrar primeiro uma moldura de prevenção geral positiva, determinada em função da necessidade de tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada (16) Fixada esta, correspondendo nos seus limites inferior e superior à protecção óptima e protecção mínima do bem jurídico afectado, deve o julgador encontrar a medida concreta da pena em conjugação com as exigências de prevenção especial de socialização do agente, sem ultrapassar a culpa revelada na conduta antijurídica. Aí chegados, os critérios do artº 71º do CP «têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha e medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente)» (17).
E, depois de apreciar a questão da discordância do recorrente relativamente ao segmento da decisão do tribunal a quo em que afirma a presença e ponderação de «tendência para delinquir», e de apreciar o segundo argumento do recorrente “traduzido na evocação de que se tratou de crime «isolado» e «não repetível», e o terceiro argumento de que de que se tratou de «crime passional», o acórdão recorrido prossegue:
Assim, verifica-se que a imagem global da conduta sub judice aponta para forte gravidade, em nada afectada pelas decididas modificações dos factos provados, e a moldura de prevenção comporta perfeitamente a pena fixada, sendo o apelo do arguido para a sua redução para 14 anos de prisão claramente desajustado às exigências do caso. Com efeito, tendo em atenção o disposto no artº 71º, nºs 1 e 2 do Código Penal, sendo certo que a violação do bem jurídico – vida de EE - não comporta graduações, dado o valor absoluto da vida humana, encontra-se no desenvolvimento da conduta dolo directo e particularmente intenso, dada a forma como foi preparada e executada a conduta. Por outro lado, os sentimentos manifestados na conduta, mesmo em contexto passional, remetem para a insensibilidade moral, desprezo pela vida humana e pela observação das elementares regras de convivência, capazes de forte impacto no tecido social. O papel essencial do professor na formação dos jovens e, inerentemente, no futuro da sociedade, significa também que essa maior consideração social – o arguido diz-se querido dos seus alunos, o que não ficou provado; tão-somente que é reputado por familiares e amigos como uma pessoa boa, educada, calma e respeitadora -, quando imerecida, desencadeia preocupações acrescidas no domínio da prevenção geral positiva, nas três vertentes referidas por Roxin, a saber, confiança no Direito e na sua aplicação pela máquina judicial; efeito de aprendizagem; e tranquilização do conflito da sociedade com o agente, também designada por “prevenção integradora” (18).. Releva ainda a gravidade das consequências desencadeadas na vítima: forte sofrimento, não só no dia em que sofreu a conduta como também ao longo do internamento hospitalar.
O arguido aponta ainda a sua integração social e recente paternidade bem como apoio da família e ex-mulher, o que não oferece relevo particular. A inserção social, nos termos invocados, já se encontrava presente no momento dos factos e, sem a demonstração de que o arguido reflectiu sobre a sua conduta, não se vê em que medida o nascimento do filho contribuiu para fundar ou reforçar a recusa da recaída criminal e facilitou a socialização. Recorde-se que a então esposa do arguido encontrava-se grávida do filho de ambos na altura dos factos, o que não constituiu contramotivação à conduta desenvolvida.
Aqui chegados, cumpre dar resposta final à queixa do excesso da pena de 20 (vinte) anos de prisão fixada. Tendo em atenção as circunstâncias apontadas e a censura fixada pela jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça em casos de contexto aproximado (19)
-
, entendemos que a pena fixada pelo Tribunal a quo não merece censura, porque conforme às fortes exigências preventivas e não superior ao nível da culpa - muito elevada - do arguido, sem inviabilizar a sua ressocialização: o arguido conta 32 anos de idade.
Apreciando, dir-se-á que também aqui não assiste razão ao recorrente.
Na verdade, o acórdão recorrido tinha que apreciar a pena aplicada e, caso discordasse da mesma, fixar a que entendesse adequada e proporcional, indicando os fundamentos desta e os daquela discordância.
No caso de a pena aplicada não merecer censura – como não mereceu – o acórdão recorrido apreciou as razões da discordância do recorrente com a pena aplicada, decidiu-as de modo bem perceptível e fundamentado e concordou com a pena aplicada, tendo explicitado as razões desta concordância, como resulta evidente e claro da simples leitura da decisão em causa.
Que mais era necessário consignar no acórdão recorrido?
O recorrente, aliás, não o concretiza, limitando-se á alegação vaga e genérica de que não está esclarecido suficientemente o processo lógico mental do tribunal.
Porém – e na falta da concretização dessa alegação – entendemos que o raciocínio seguido pelo tribunal está devidamente explicitado e bem justificada a razão da não censura da pena aplicada ao arguido.
Ao contrário do alegado pelo recorrente, verifica-se, pois, que o processo lógico mental do tribunal está bem explicitado na decisão, com indicação clara das razões da sua concordância com a pena aplicada pela 1ª instância.
Não ocorre, pois, a arguida nulidade.
Quanto á dosimetria da pena:
Alega o recorrente que o tribunal não valorou a favor do arguido o facto de este ser primário, de ter bom comportamento, de estar socialmente integrado, de ter á data da condenação um filho com 2 anos de idade, nascido já depois da sua detenção, o facto de ter apoio familiar e o facto de ser querido pelos seus alunos.
Quid juris?
Actualmente, todos estão de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis.
Porém, há quem defenda que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista.
Outros ainda, distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa, estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção.
Mas a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum de pena, o recurso de revista seria inadequado.
Só assim não será – e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, p.ex, tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada (cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, pág.211; e Ac. deste STJ, 3ª Secção, in Proc. 2555/06)
Na verdade, nos termos do artigo 71º nº 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
Daí que não haja pena sem culpa - nulla poena sine culpa.
Mas, por outro lado, a culpa constitui também o limite máximo da pena – (cfr. Ac STJ de 26.10.00 in Proc. 2528/00, desta 3ª Secção: “a culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura que funciona, a um tempo, como um fundamento e um limite inultrapassável da medida da pena”).
Isto mesmo resulta claro do estatuído no artigo 40º-2 do C.P.: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Além disso, há que atentar nas exigências de prevenção, quer geral, quer especial.
“Com o recurso à prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.
Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente delitivo em ordem a uma sua integração digna no meio social” (Cfr. Ac. desta 3ª Secção deste Supremo Tribunal, de 26.10.00, in processo nº 2528/00).
Citando Figueiredo Dias (obra supra citada, pág. 214) “ … a culpa e prevenção são, assim, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena”.
E, mais adiante (pág. 215) “ …a exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção …”.
A este respeito, é pertinente citar aqui o acórdão do STJ de 1/03/00, in processo nº 53/2000, desta 3ª Secção “ … a culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, os seus limite mínimo e máximo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade da protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo, este logicamente não pode ser outro que não o mínimo da pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção … se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e, se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena legal aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social …”.
Por seu turno, estatui o nº 2 do mesmo artigo 71º do CP que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Ora, da leitura do acórdão recorrido, maxime da parte supra transcrita, logo se verifica que nele foram consideradas as circunstâncias mencionadas pelo recorrente, designadamente apreciada a situação social e familiar do mesmo.
Relativamente ao segmento em causa – dosimetria da pena - importa ter em atenção, desde logo, a moldura penal correspondente ao crime em questão, praticado pelo arguido/recorrente:
- 1 crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132º-1 e 2-c),g) e i), do C.P.: pena de prisão de 12 a 25 anos de prisão (como atrás se disse).
Por outro lado, importa também considerar:
- A conduta do arguido, que se revela muito grave, sendo de enorme gravidade as consequências da mesma: provocou enorme sofrimento da vítima quer no dia em que os factos foram praticados, quer durante o tempo do internamento hospitalar e até á morte;
- O grau de ilicitude do facto é muito elevado atendendo, designadamente, ao modo como o arguido actuou;
- O dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo directo, é de forte intensidade (atente-se na forma como foram pensados, preparados e executados os actos do arguido);
- Os sentimentos manifestados na conduta do arguido, mesmo considerando um contexto passional, traduzem grande insensibilidade moral e completo desprezo pela vida humana, não podendo esquecer-se que é professor, com responsabilidades na formação de jovens;
O arguido é considerado por familiares e amigos como uma pessoa boa, educada, calma e respeitadora; (não ficou provado, ao contrário da alegação do recorrente, que fosse “querido pelos seus alunos”);
É professor e mostra-se inserido socialmente, tendo o apoio da mulher e familiares, sendo que a mulher, á data dos factos, estava grávida, tendo nascido o filho do arguido já após a detenção deste, contando cerca de 2 anos de idade.
O arguido não tem antecedentes criminais.
Não confessou os factos.
E não ficou demonstrado arrependimento, o que revela um desrespeito pelo valor fundamental e à volta do qual é constituído todo o direito e ordenamento social: a vida humana, bem primordial e único.
Na verdade, há salientar que o recorrente não assumiu a responsabilidade na prática dos factos, havendo falta de interiorização da culpa e se é verdade que remeter-se ao silêncio é um direito, não menos é que ao prescindir de dar um contributo para a descoberta da verdade, depois não poderá esperar o tratamento que tem quem assume as suas responsabilidades. Sendo certo que a falta de assumpção dos factos cometidos e consequentemente a ausência de qualquer arrependimento não pode, atentos os princípios da legalidade e da presunção de inocência, ser valorada contra o arguido, pois este nem sequer é obrigado a falar sobre os factos que lhe são imputados, sem que o seu silêncio o possa desfavorecer, a verdade é que tal comportamento processual não pode reverter em seu favor, como se o silêncio tivesse a virtualidade de alcançar benefício idêntico ou semelhante à assumpção do acto praticado, o que manifestamente não pode ocorrer (cfr. Ac. STJ de 25.11.2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª Secção).
Há que ponderar, ainda, as exigências de prevenção geral e especial, sendo as necessidades de prevenção geral, muito elevadas, numa sociedade em que se assiste a um constante aumento da criminalidade, que conduz, necessariamente a um incremento da insegurança que se verifica actualmente, com todas as consequências e sequelas daí decorrentes.
Por isso, é legítima a expectativa da sociedade na reafirmação da vigência das normas violadas pelo arguido, através de uma punição rigorosa e firme.
As necessidades de prevenção especial afiguram-se elevadas pois não obstante o arguido não ter antecedentes criminais, os factos provados revelam uma personalidade não respeitadora de valores elementares e fundamentais, quer de natureza jurídica, quer de natureza moral.
Como se disse, na medida da pena aplicada ao arguido no acórdão recorrido, foram considerados os elementos acima mencionados e, por isso, foi fixada a pena em 20 anos de prisão pela autoria do crime de homicídio qualificado.
E, ponderando, pois, tudo o exposto – designadamente a culpa do arguido, as exigências de prevenção especial e geral, a elevada ilicitude dos factos, o modo de execução dos mesmos, a gravidade das suas consequências, a forte intensidade do dolo (directo), a respectiva moldura penal abstracta, a personalidade do arguido manifestada nos factos e as condições pessoais e económicas daquele – considera-se adequada e justa a pena aplicada, de prisão de 20 anos (relativa ao crime de homicídio qualificado, consumado), que não merece censura.
Por isso, mantém-se tal pena.
Por isso, recurso improcede, também neste segmento.
DECISÃO
Nos termos expostos acorda-se em:
1 – Rejeitar o recurso nos segmentos respeitantes á matéria de facto (e referidos ao longo deste acórdão).
2 – No mais, negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 Ucs.
Lisboa, 19 de Maio de 2010
Fernando Fróis (Relator)
Henriques Gaspar
_______________________
(1) A este propósito nunca nos podemos esquecer do que foi dito pela Sr.ª Perita, nomeadamente de que é fácil distinguir o denominado período de delirium do período de crítica (estado normal), pelo que a análise dos depoimentos das testemunhas que contactaram com a vítima mortal deverá ser feita com base no parâmetro, por elas referido, de que a EE estava no seu estado normal.
(2) O facto de o arguido e a EE, segundo a testemunha Sandra Santos, terem almoçado juntos na 6.ª feira que antecedeu a prática dos factos aqui em causa, não é suficiente para se poder concluir que os mesmos já tivessem reatado a relação, tudo apontando para o contrário, ou seja que a mesma tinha terminado essa relação e que o arguido tentasse reatá-la.
(3) Ac. do STJ de 31/10/2007, P07P3218, relator Conselheiro Armindo Monteiro.
(4) Ac.do TC nº 140/2004, de 10/3 e decisão sumária nº274/06, de 22/05.
(5)A testemunha foi confrontada sucessivamente com as mesmas perguntas, sem a devida correcção.
(6) Como o STJ tem repetidamente salientado. Refira-se, dentre os mais recentes, cfr. o Ac. do STJ de 22/04/2009, Pº 303/06.0GEVFX, relator (6) Conselheiro Fernando Fróis, e as decisões que nele se indicam.
(7) Ac. do STJ de 17/02/2005, Pº04P4324, relator Conselheiro Simas Santos, www.dgsi.pt.
(8) As definições encontram-se em Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de culpa e Medida da Pena, págs. 63 e 64.
(9) Sem postergar a dificuldade que sempre acompanha a avaliação da motivação
(10) Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Coimbra Ed., 2ª Ed., 2007, pág. 324.
(11) Figueiredo Dias, Fundamento, sentido e finalidades da pena criminal, Temas básicos da doutrina Penal, Coimbra Ed., 2001, pág. 104 e segs.
(12) Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Ed. Notícias, 1993, pág. 227.
(13) Ac. do STJ de 28/09/2005, Pº 05P2537, relator Conselheiro Henriques Gaspar, www.dgsi.pt.
(14) Sem postergar a dificuldade que sempre acompanha a avaliação da motivação
(15) Figueiredo Dias, Fundamento, sentido e finalidades da pena criminal, Temas básicos da doutrina Penal, Coimbra Ed., 2001, pág. 104 e segs.
(16) Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Ed. Notícias, 1993, pág. 227.
(17) Ac. do STJ de 28/09/2005, Pº 05P2537, relator Conselheiro Henriques Gaspar, www.dgsi.pt.
(18) Derecho Penal – Parte General, Tomo 1, Ed. Civitas, 1997, pág. 91.
(19) Destacam-se as seguintes decisões, ambas acessíveis em www.dgsi.pt:
- Ac. do STJ de 11/02/2009, Pº 08P292, relator Conselheiro Maia Costa: Condenação em 20 anos de prisão por homicídio qualificado da esposa e mãe dos seus cinco filhos; arguido primário e com tendência para o ciúme doentio;
- Ac. do STJ de 21/10/2009, Pº 589/08.6PBVLG.S1, relator Conselheiro Pires da Graça: Condenação em 18 anos de prisão por homicídio qualificado da ex-companheira, depois desta recusar retomar a vida em comum; arguido primário, com 50 anos de idade, e marcado por perturbação emocional, o que remete para culpa inferior à presente no caso em análise.