CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DE IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
ESCRITURA PÚBLICA
HIPOTECA
DISTRATE
Sumário

I - A cláusula, habitual nos contratos-promessa, de que o imóvel será vendido “livre de ónus, direitos ou encargos” não deixa de ser respeitada, salvo estipulação em contrário, se, no acto de venda, momento da transmissão da propriedade, for exibido documento comprovativo do distrate.
II - À luz da doutrina da impressão do destinatário (art. 236.º do CC) aquela cláusula não impõe o entendimento de que a escritura apenas deve ser outorgada depois do cancelamento dos registos de ónus ou encargos incidentes sobre o imóvel.
III - Não sendo suscitadas dúvidas fundadas que ponham em causa a validade do documento ou a sua relevância tendo em vista o cancelamento do registo, susceptíveis de importar o adiamento do acto, não pode eximir-se justificadamente o promitente comprador a outorgar a escritura de compra e venda.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA e BB, promitentes vendedores, demandaram o promitente-comprador CC e mulher, DD,  deduzindo os seguintes pedidos:

1. Que seja decretada a resolução do contrato -promessa de compra e venda com fundamento no incumprimento definitivo e gravemente culposo por parte dos réus e ainda a perda do interesse dos autores na prestação em dívida por parte dos réus e, em consequência, reconhecer aos autores o direito de fazer sua a quantia entregue como sinal no montante de 20.000€.
2. Que sejam condenados os RR a pagar aos AA a título de indemnização pelo interesse contratual negativo a quantia de 14.210.47€.
3. Que sejam condenados os réus a pagar aos AA, a título de indemnização por danos morais, a quantia de 2.500€.
4 Que os valores indemnizatórios referidos nos antecedentes 2) e 3) no montante de 16.710,47€ sejam acrescidos de juros desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.

Os réus deduziram reconvenção nestes termos:

1- Devem os AA reconvindos ser condenados a reconhecer que, culposa e exclusivamente, faltaram ao cumprimento das obrigações que assumiram através da celebração do contrato-promessa identificado na petição inicial e, em consequência, declarar-se o incumprimento definitivo e culposo.
2- E, em consequência do incumprimento definitivo e culposo dos reconvindos, devem os mesmos ser condenados a pagar a título de indemnização ao réu reconvinte a quantia de 40.000€ correspondente ao dobro do sinal entregue por este.

Foi proferida decisão nestes termos:

- Julgo a presente acção parcialmente procedente e, por via disso, declaro validamente resolvido o contrato-promessa referido em 3 dos factos provados e reconheço aos AA o direito de fazerem sua a quantia recebida a título de sinal no montante de 20.0000€, absolvendo os réus do demais peticionado.
- Julgo a reconvenção integralmente improcedente e absolvo os AA do pedido.

Interposto recurso principal pelos réus e recurso subordinado pelos AA, o Tribunal da Relação negou-lhes provimento.

Recorrem os réus, de revista, para o Supremo Tribunal concluindo a minuta nos seguintes termos:

1- Não existe, no ordenamento jurídico, nenhuma norma legal que preveja a obrigatoriedade de aceitação, por parte doso contraentes, de uma prática usual, totalmente desajustada à realidade negocial, violando o acórdão o disposto no artigo 3.º/1 do Código Civil.
2- Ao entender que os recorrentes não deviam ter recusado, como recusaram, celebrar escritura pública, o acórdão violou o princípio da pontualidade e confiança dos contratos (artigo 406º do Código Civil).
3- Ao entender que o contrato-promessa celebrado pelos contraentes tinha sido pontualmente cumprido pelos recorridos, violou o princípio da segurança jurídica (princípio da legítima confiança - artigo 406.º do Código Civil e artigo 2.º da CRP). O não cumprimento da cláusula primeira do contrato-promessa coloca em causa o referido princípio, pois cria na esfera jurídica da parte não faltosa o desconhecimento do desfecho negocial e os efeitos que dele possam eventualmente decorrer.
4- O acórdão devia ter considerado admissível e legítima a recusa, por parte dos recorrentes, em celebrar o contrato definitivo uma vez que estão preenchidos todos os pressupostos da excepção do não cumprimento do contrato, violando-se, assim, o artigo 428.º do Código Civil.
5- Com efeito, a não reciprocidade das obrigações dos contraentes possibilita a recusa de celebração do contrato, mormente em situações, como a que cumpre decidir, em que aquele se encontra sujeito a deveres laterais que integram as suas cláusulas contratuais e que garantem os deveres principais adjacentes ao contrato. Portanto, dúvidas não restam  que houve uma clara violação dos deveres laterais (secundários) de conduta, nos termos gerais de direito.
6- O acórdão, ora em recurso, ao não assacar as responsabilidades pelo não cumprimento do contrato-promessa aos recorridos fez uma errada interpretação e, em consequência, violou o disposto no artigo 2º da CRP, artigos 3º/1 , 406º/1 e 813º do Código Civil.
7-  O acórdão violou ainda o preceituado no artigo 442.º do Código Civil uma vez que deveria ter condenado os recorridos no pagamento aos recorrentes do dobro do sinal por estes prestado, corolário do incumprimento definitivo e culposo por parte daqueles do contrato-promessa.

2. Factos provados:

1. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o n.º ..., na ...ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia.
2. Tal prédio é constituído por uma habitação T3, com garagem individual e logradouro na frente e traseiras, identificada pela letra “...”, situa-se à Rua M... dos S..., n.º ..., .../..., S... M..., Vila Nova de Gaia.
3. Por contrato-promessa celebrado em 03.09.2004, os Autores prometeram vender ao Réu marido, e este prometeu comprar-lhes a referida habitação pelo preço global, então, de 127.194,00€ e demais condições que se encontram exaradas no documento de fls.27 e seguintes, com as seguintes cláusulas:
A) - Pelo presente contrato-promessa de compra e venda, a primeira outorgante na dita qualidade promete vender à segunda outorgante e esta por sua vez promete comprar livre de quaisquer ónus ou encargos uma habitação T3,com garagem individual e logradouro na frente e traseiras, identificada pela letra “...”, sita na Rua M... dos S..., n°..., na freguesia de S... M..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na ... Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n°... e inscrita na matriz sob o n°... na ...ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia.
B) - A compra e venda ora prometida será realizada pelo preço de 127.194,00€ (cento e vinte e sete mil cento e noventa e quatro euros), o qual será liquidado pela segunda outorgante da seguinte forma:
1) Nesta data será entregue o valor de 20.000,00€ (vinte mil euros), como sinal e principio de pagamento, à qual será dada a respectiva quitação.
2) O restante valor ou seja 107.194,00€ (cento e sete mil cento e noventa e quatro euros), será entregue no acto de escritura de compra e venda.
C) A escritura definitiva de compra e venda será realizada após a venda do apartamento da segunda outorgante.
D) Todas as despesas inerentes a esta transacção e relativas à escritura, registos e pagamento de sisa, se houver lugar a ela, serão da responsabilidade exclusiva da segunda outorgante.
E) Qualquer alteração ao presente contrato só produzirá efeitos se for realizada mediante documento particular assinado por ambas as partes.
F) Este contrato fica sujeito ao regime de execução específica, nos termos do artigo 830° do Código Civil.
G) Ambos os contraentes declaram que aceitam prescindir do reconhecimento notarial das assinaturas.
4. Na data da celebração do C.P., os RR. entregaram aos AA., a título de sinal e início de pagamento, a quantia de 20.000,00€;
5. Os AA., por carta registada em 10-08-2005 e remetida pelo seu mandatário, interpelaram o aqui R. marido, fixando-lhe um prazo para outorga da citada escritura – até 30-09-2005.
6. Transcorrido que foi este lapso de tempo, os AA. intentaram contra os RR., uma “acção especial de fixação judicial de prazo”, que correu termos no 6.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, sob Processo n.º 9975/05.2TBVNG.
De tal processo resultou, em 05.04.2006, sentença que fixou em 6 (seis) meses, o prazo, para outorga da referida escritura pública.
7. Decorreu tal prazo sem que a dita escritura tenha sido celebrada até 15.11.2006.
8. Os AA. decidiram marcar a referida escritura pública, desta feita no 1º Cartório Notarial de José António Resende Oliveira, sito à Rua do Almada nº 269 -3º, 4050-038 Porto.
9. Deram conhecimento de tal facto ao réu-marido, através de ”Notificação Judicial Avulsa”, nos termos da qual lhe foi comunicado:
Deve este, para outorga da supracitada escritura pública, comparecer no dia 20 de Dezembro de 2006, às 15,00 horas, no Cartório Notarial (Dr. José António Resende Oliveira) sito à Rua do Almada, 269, 3º andar, 4050-038 Porto, havendo no acto que proceder ao pagamento do respectivo preço;
Deve ainda, e para tal fim, entregar aos aqui Requerentes, nos oito (8) dias antecedentes à data fixada para a outorga da referida escritura, os seus elementos identificativos, nomeadamente, fotocópia de Bilhete de Identidade e número de contribuinte, bem como, e ainda, o comprovativo do pagamento do IMT respectivo;
Deve também, o mesmo Requerido, desde já, ficar advertido de que qualquer omissão de sua parte, a impedir a outorga da referida escritura, o fará incorrer na inerente responsabilidade civil.
10. A tal notificação respondeu o R marido nos termos que constam de fls.171/172.
11. A tal responderam os AA., através de carta nos termos que constam de fls.41/42.
12. Em 20 de Dezembro de 2006, às 15;00 horas, os AA. compareceram no referido Cartório Notarial do Dr. José António Resende Oliveira, sito à Rua do Almada, 269, 3º andar, 4050-038 Porto, aí apresentando ao Ex.mo Notário, Dr.... EE..., a documentação necessária para a outorga da respectiva escritura de compra e venda, nomeadamente a Caderneta Predial devidamente actualizada, Certidão da Conservatória do Registo Predial, e Licença de Habitabilidade.
Ainda, aí exibindo documento bastante de distrate das duas hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A., na posse do legal representante desta, o Senhor Dr. ...FF..., para o efeito, presente.
Tudo conforme resulta do documento de fls. 45 a 47 aqui dado por integralmente reproduzido.
13. O R marido não apresentou no acto o comprovativo do pagamento do IMT respectivo e recusou-se a outorgar a dita escritura pública por não se mostrarem canceladas as hipotecas que sobre a fracção incidiam

Apreciando:

3. A questão que está aqui em causa é a de saber se, face à estipulação constante da Cláusula Primeira - que o imóvel seria vendido livre de ónus ou encargos - o promitente comprador pode recusar-se a outorgar a escritura por não se encontrar, previamente à sua outorga, cancelado o registo de hipoteca.

4. Entenderam as instâncias que não pode, argumentando assim a decisão de 1ª instância:

Em face dos referidos factos, importa primeiro averiguar se era lícito à ré recusar-se a celebrar a escritura em causa.
A resposta a tal questão só pode ser negativa ou seja, no sentido de que o A. não tinha o direito a recusar-se a celebrar a escritura com fundamento na ausência de cancelamento das hipotecas que incidiam sobre a fracção em causa na medida em que  a existência e entrega, contra o pagamento, dos documentos do distrate das mesmas equivaleria, para todos os efeitos, ao dito cancelamento.
De facto, na posse de tais documentos o réu marido poderia, sem mais, promover o dito cancelamento junto da competente Conservatória do Registo Predial.
Se, porventura, se entendesse o contrário, ou seja, que a falta do efectivo cancelamento dos ónus ( não obstante a existência e entrega dos documentos aptos ao distrate) conferia ao réu marido o direito de se recusar a celebrar a escritura, sempre o exercício de tal direito, nas circunstâncias descritas, configuraria manifesto abuso por flagrante violação das mais elementares regras de boa fé contratual.
Efectivamente,  o artigo 334.º do Código Civil prescreve como sendo ilegítimo  o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.
É consabido por todos que o pagamento dos créditos garantidos pela hipoteca é geralmente ( em situações como a presente de crédito à habitação) efectuado com o dinheiro proveniente do pagamento do preço tendo, por isso, que ser efectuado em simultâneo com aquele.

5. No acórdão da Relação mais se referiu que

na hipótese dos autos somos também de entendimento que o réu […] ao recusar-se, como se recusou, a celebrar o contrato definitivo na data aprazada pelos autores e da qual tivera válido e atempado conhecimento exprimiu de forma categórica e inequívoca a sua recusa em não cumprir o contrato prometido […]
Provando-se que no acto estava presente o representante legal da instituição bancária credora, no caso a CGD, circunstância que permitiria ao réu, na posse dos documentos de distrate das hipotecas, proceder ao imediato e subsequente cancelamento de tais ónus, nenhuma razão valida tinha para se recusar, como se recusou, a celebrar a escritura em questão.

6. Com efeito, importa salientar que , face aos termos da cláusula primeira, não resulta qualquer vontade assinalada no sentido de o cancelamento do registo das hipotecas dever estar efectuado antes da outorga da escritura nem é apresentado pelo recorrente razão alguma para que assim se deva entender.

7. Tal questão não se vê que tenha sido suscitada alguma vez durante todo o período que decorreu até ao momento em que os AA designaram data e local para outorga da escritura de compra e venda, sendo certo que o contrato-promessa  foi celebrado no dia 3-9-2004 e a escritura apenas foi designada para o dia 20-12-2006; isto depois de sucessivas diligências dos promitentes vendedores tendo em vista abrir-se a possibilidade de eles próprios designarem data para escritura visto que, no contrato-promessa, tinha sido clausulado que “ a escritura definitiva será realizada após a venda do apartamento da segunda outorgante” que é o promitente comprador, não se mostrando até hoje que tal venda tenha sido realizada.

8. Por outro lado, verifica-se que o promitente comprador  se recusou a efectuar o pagamento do IMT sem prévio cancelamento do registo de hipoteca, mas uma tal atitude é injustificada, pois se ele entendia que não era lícito ao promitente vendedor efectuar a escritura, ainda que distratando em acto a hipoteca, por não ter sido efectuado previamente o cancelamento do registo hipotecário, então cumpria-lhe comparecer no acto da escritura habilitado para a sua outorga, designadamente comprovando o pagamento do IMT solicitando o seu adiamento até se juntar documento comprovativo do cancelamento dos registos hipotecários. E isso não sucedeu. No mínimo, expressão da boa fé que deve animar as relações contratuais e muito em particular num momento em que o promitente comprador não lograra vender o seu apartamento, cumpria-lhe, a não querer pagar o IMT enquanto o cancelamento da hipoteca não se mostrasse efectuado, comparecer no acto, solicitando o cancelamento do registo de hipoteca e explicando o motivo por que pretendia outorgar escritura já com o cancelamento da hipoteca efectuado. Mas nem isto sucedeu.

9. Por isso, ficou assim consignado  em instrumento notarial:

“ Que sobre aquela supra identificada fracção autónoma se encontram registadas duas hipotecas […] cujo cancelamento se encontra assegurado conforme documento de distrate exibido pelo representante daquela instituição de crédito […] Todavia tal  acto não foi realizado por culpa imputável exclusivamente ao comprador alegando que a fracção objecto deste negócio jurídico estava onerada pelas hipotecas supra citadas, pese embora os vendedores apresentarem o documento de distrate e se responsabilizarem pelo pagamento dos respectivos cancelamentos (72€ por cada um)”.

10. Ora, não tendo sido estipulado que a aquisição do imóvel “ livre de ónus ou encargos” implica uma aquisição em que o cancelamento dos registos deva já estar efectuado previamente à outorga de escritura, a aludida disposição, tal como está elaborada, deve ser entendida à luz do disposto no artigo 236.º do Código Civil com o sentido que lhe daria o declaratário normal, ou seja, que a aquisição livre de ónus e encargos se verifica desde que, no acto de compra e venda, que é o momento da transmissão da propriedade (artigo 874.º do Código Civil), seja apresentado documento pelo representante da instituição credora renunciando à hipoteca constituída a seu favor e declarando liquidada a dívida, permitindo-se, assim, o cancelamento do registo  cujos custos serão suportados pelo vendedor.

11. Pode dar-se o caso de se suscitarem dúvidas quanto ao alcance do distrate apresentado justificativas de um adiamento do acto, podem ocorrer situações outras em que haja motivo para pensar que o cancelamento da hipoteca não venha a ser realizado, mas, no caso, não foi apresentada nenhuma razão.

12. Não estamos, portanto, diante de um uso ou de uma violação de quaisquer deveres acessórios de conduta, como infundadamente alegam os recorrentes;  trata-se apenas de ponderar o alcance de uma determinada cláusula, tanto na sua expressão abstracta, como à luz de uma concreta realidade negocial.

Concluindo:
I- A cláusula, habitual nos contratos-promessa, de que  o imóvel será vendido “ livre de ónus, direitos ou encargos” não deixa de ser respeitada, salvo estipulação em contrário, se, no acto de venda, momento da transmissão da propriedade, for exibido documento comprovativo do distrate.
II- À luz da doutrina da impressão do destinatário (artigo 236.º do Código Civil) aquela cláusula não impõe o entendimento de que escritura apenas deve ser outorgada depois do cancelamento dos registos de ónus ou encargos incidentes sobre o imóvel.
III- Não sendo suscitadas dúvidas fundadas que ponham em causa a validade do documento ou a sua relevância tendo em vista o cancelamento do registo, susceptíveis de importar o adiamento do acto, não pode eximir-se justificadamente o promitente comprador a outorgar a escritura de compra e venda

Decisão: nega-se revista.

Custas pelos recorrentes.


Supremo Tribunal de Justiça

Lisboa, 19 de Maio de 2010.


Salazar Casanova ( Relator)
 
Azevedo Ramos
 
Silva Salazar