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DIREITO DE PREFERÊNCIA
DIREITO DE PASSAGEM
SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO LEGAL
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
USUCAPIÃO
Sumário
O proprietário do prédio onerado com uma servidão legal de passagem, constituída por destinação do pai de família, tem direito de preferência em caso de venda do prédio dominante.
Texto Integral
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA instaurou contra BB, CC, DD e EE, titulares da Herança Ilíquida e Indivisa de FF, GG e mulher, HH, e II e mulher, JJ, uma acção na qual pediu a sua condenação no reconhecimento de que o prédio misto identificado no artigo 1º da petição inicial, situado em Riomaior, freguesia de Paços de Brandão, é “única e exclusivamente propriedade da A”, e de que é titular do direito de preferência sobre o prédio que identifica no artigo 8º, contíguo àquele, devendo substituir-se aos respectivos adquirentes, os terceiros réus, no contrato de compra e venda celebrado, por escritura pública, a 31 de Janeiro de 2003.
Em síntese, alegou ter adquirido o primeiro prédio por usucapião; e ser titular do direito de preferência que pretende exercer por ser proprietária de prédio confinante, por o seu prédio estar onerado por servidão legal de passagem (“de pé, bois, carro de bois e tractor”) em benefício do prédio alienado, que não tem comunicação directa com a via pública, constituída por usucapião e por destinação de pai de família; e não lhe ter sido comunicado o projecto de venda.
A fls. 60 contestaram os réus II e mulher, JJ, por impugnação e por excepção. Por entre o mais, alegaram a ilegitimidade da ré, por ser casada com o réu em regime de separação de bens e ter o prédio sido comprado apenas por este, que o autor não tinha qualquer direito de preferência, que a alegada servidão de passagem (cuja existência impugnaram) era desnecessária ao seu prédio e que, de qualquer forma, se teria extinto por renúncia do réu marido, operada por escritura pública de 24 de Maio de 2004.
A fls. 84, contestaram os réus GG e mulher, HH, também por impugnação e por excepção, sustentando que não se verificava nenhum dos fundamentos alegados pela autora (cuja ilegitimidade invocaram) para vir exercer a preferência.
Houve réplica, a fls. 123.
No despacho saneador, a fls. 150, JJ foi absolvida da instância, por ilegitimidade.
Pela sentença de fls. 427, a acção foi julgada parcialmente procedente. Os réus foram condenados a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial e, sendo reconhecido o direito de preferência que invocou, foi declarada a substituição do 3º réu, II, pela autora na aquisição do segundo prédio.
Para assim decidir, a sentença considerou estar provada a constituição, por destinação do pai de família, de uma servidão legal de passagem sobre o prédio da autora, em benefício do prédio vendido (artigos 1549º e 1555º do Código Civil), que não tem comunicação com a via pública; e que, não tendo sido judicialmente declarada extinta, era irrelevante a alegação de que a servidão se tornou desnecessária, tal como eram irrelevantes a renúncia ou a constituição de servidão sobre outros prédios, verificadas na pendência desta acção.
A sentença foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 532, proferido em recurso interposto por II.
2. II recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi recebido como revista, com efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentou, e que rematou com extensas conclusões, o recorrente sintetiza desta forma a questão que pretende seja apreciada: “A questão fulcral que se coloca neste processo e que, por meio deste recurso, se submete à apreciação (…), é a de se determinar e decidir se a servidão de passagem constituída por destinação do pai de família que onera o prédio da recorrida a favor do prédio adquirido pelo recorrente, para lá do ónus da servidão de passagem, preenche os requisitos legais que integram a sua qualificação como servidão legal de passagem a favor do prédio adquirido pelo recorrente ou não”.
Está pois assente que esta é a única questão em causa neste recurso, já que mais nenhuma é colocada nas referidas conclusões.
Para a sustentar, expôs os seguintes argumentos
– que “uma servidão constituída por destinação do pai de família não é uma servidão legal de passagem” (concl. 6ª);
– que, em alteração do regime definido pelo Código Civil de Seabra, “o Cód. Civil de 1966 estabeleceu que a preferência não surge sempre que um prédio encravado esteja dotado de uma servidão de passagem, seja qual for a sua forma de constituição, mas, pelo contrário, exige e requer uma servidão legal de passagem, independentemente de qual seja o seu modo de constituição” (concl. 12ª);
– Que, portanto, “não goza do direito de preferência o proprietário do prédio que está onerado com uma qualquer servidão de passagem, mas sim aquele cujo prédio está onerado com uma servidão legal de passagem, consignada no art. 1555º do Cód. Civil” (concl. 13ª);
– Que, “face ao Cód. Civil de 1966, para que haja o direito para exercer preferência tem que existir a prévia constituição da servidão legal de passagem” (concl. 14ª);
– Que, “no caso concreto do encrave do prédio da recorrente, porque os efeitos da posse, por ele, recorrente, se retrotraiem à data do início da posse (art. 1.288º do Cód. Civil), e a posse sobre o prédio adquirido por ele, recorrente e os sinais visíveis e permanentes reveladores da passagem de um para o outro prédio, por si e antepossuidores, é anterior ao encrave, o seu prédio, dele recorrente, sempre teve ‘comunicação suficiente com a via pública por terreno alheio” (concl. 22ª);
– Que, “desta forma, não se aplica o regime de servidões legais, por falta de encrave, porque este resulta da separação dos prédios de um mesmo proprietário para diferentes proprietários, que, em simultâneo, constituíram a servidão por destinação do pai de família” (concl. 23ª);
– que “o regime próprio das servidões legais de passagem previsto nos artºs 1.550º (prédio encravado), 1.551º (possibilidade de afastamento da servidão), 1.552º (encrave voluntário), 1.553º (lugar da constituição da servidão), 1.554º (indemnização) e 1.569º, nº 3 (extinção) não se aplica, em nenhum dos seus pontos, às servidões por destinação do bom pai de família” (conl. 24ª);
– que “por tal motivo, as servidões por destinação do pai de família relativas ao prédio adquirido pelo recorrente, porque não gozam do regime das servidões legais, não são elas próprias, servidões legais” (concl. 25ª);
– que, não sendo “aplicável às servidões constituídas por destinação do pai de família, o regime das servidões legais” , “constituiria um contra-senso” , “como excepção, já ser-lhe aplicada a regra da preferência legal” do artigo 1550º do Código Civil (concl. 26ª);
– Que “a finalidade da preferência legal do titular serviente é pôr cobro a situações em que se possa recorrer a meios de soberania para constituir servidões ou em que a ameaça deste recurso conduza, ou possa conduzir, a a uma contratação não inteiramente livre (…)” (concl. 28º);
– Que o nº 2 do artigo 1547º do Código Civil deve ser interpretado no sentido “de não admitir como servidões legais, as servidões constituídas por destinação do pai de família”, mas só “a constituição de servidões legais por contrato ou testamento ou, na sua falta, por sentença judicial ou por decisão administrativo” (concl. 30ª);
– Que “uma servidão de passagem que é constituída ope legis´, como é o caso da servidão de passagem constituída por destinação do pai de família constante dos presentes autos, e que surge independentemente da vontade e quem quer que seja alienante ou adquirente, é uma servidão que não pode ser imposta coercivamente e que não obedece aos requisitos legais para a sua imposição, o que significa que não é nem pode ser servidão legal” (conl. 37ª);
– Que “atentos os factos provados em L), M), O), P), Q), R), S), T) e U) resulta que: - o mesmo proprietário dos dois prédios, antes da separação do mesmo proprietário deixou neles sinais visíveis e permanentes reveladores de servidão de passagem pelo prédio referido em A) a favor do prédio B); - tanto o prédio da recorrida como o prédio adquirido pelo recorrente situam-se, de acordo com o PDM, em zona de construção preferente; - o recorrente adquiriu o seu prédio para nele construir, de acordo com o PDM, uma habitação unifamiliar ou geminada; - o prédio da recorrida é composto por um pavilhão e terreno que não contém nem sementeiras nem nunca foi agricultado” (concl. 39ª);
– Que “se não se tivesse constituído ‘ope legis’ uma servidão de passagem por destinação do pai de família a favor do prédio adquirido pelo recorrente, este nunca poderia constituir a favor do seu prédio uma qualquer servidão legal de passagem sobre o prédio da recorrida, pois o prédio da recorrida situa-se em zona de construção preferente, não sendo, por isso, prédio rústico, pouco interessando saber se na matriz predial das Finanças figura, por enquanto, com a denominação de prédio misto composto por um artigo urbano e um artigo rústico” (concl. 40ª), ou seja “não preenche os requisitos necessários à constituição de uma servidão legal de passagem sobre o prédio da recorrida (…) (concl. 41ª);
– Que “uma servidão de passagem constituída por destinação do pai de família, embora seja legal no sentido da sua existência estar legalmente prevista e ser regulada ela lei e, nesse sentido, ser ou constituir uma servidão legal, não é, contudo, nem preenche os requisitos legais previstos e exigidos no Capítulo III, Secção I do Código Civil e, por tal, não é uma servidão legal de passagem apara efeitos do exercício do direito de preferência em caso de alienação do prédio dominante” (concl. 42ª);
– Que o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 1.549º, 1.550º e 1.551º do Código Civil, devendo portanto ser revogado.
A recorrida contra-alegou, sustentando a manutenção do decidido.
Em síntese, opôs que os factos provados revelam que a constituição de uma servidão de passagem, por destinação de pai de família, sobre o seu prédio e em benefício do prédio alienado; que este último é encravado; que “só mediatamente a servidão é imposta por lei”, já que “a fonte imediata resulta da vontade das partes, da sentença ou do acto administrativo”; que a servidão constituída por destinação do pai de família nasce “com a separação dos prédios, não se exigindo nenhuma relação negocial entre o antigo e o novo proprietário”, e “assenta num facto voluntário – colocação de sinais visíveis e permanentes – e os efeitos deste são determinados por lei”; que o terreno da recorrente, não obstante encontrar-se em “zona de construção preferente”, “continua a ser de mato e pinhal, cuja comunicação para a via pública se faz e fez exclusivamente através do terreno da recorrida (…)”; que lhe assiste “o direito de exercer como exerceu o direito de preferência” , já que existe “servidão legal por destinação do pai de família”.
3. Vêm provados os seguintes factos:
A) Está inscrita a favor da autora na Conservatória do Registo Predial a aquisição do prédio misto composto por edifício de rés-do-chão para indústria com a área coberta de 490 m2 e terreno de mato e pinhal, com a área de 3533 m2, sito no lugar de Rio Maior, freguesia de Paços de Brandão, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rústica sob o artigo ..., o qual confina de norte com LL e outro, do nascente com estrada, do sul com caminho-de-ferro e do poente com os terceiros réus, descrito na Conservatória sob o n° 00.../... .
B) Por escritura denominada de compra e venda, outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Santa Maria da Feira em 31/01/2003, II, casado no regime de separação de bens com JJ, na qualidade de procurador de MM e mulher, BB, e GG e mulher, NN, declararam vender a II, que declarou aceitar a venda, pelo preço de vinte mil euros, o prédio rústico composto de terreno de pinhal e mato, situado no lugar de Rio Maior, freguesia de Paços de Brandão, concelho de Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória sob o número ... .
C) Os terceiros réus pagaram a quantia de € 1.600,00 de sisa e de € 313,83 pela escritura.
D) FF faleceu em 11/12/2001.
E) O prédio referido em A) confronta, de poente, com o prédio referido em B).
F) O prédio referido em B) tem a área de 4.022 m2.
G) De todos os prédios confinantes com o prédio referido em B), o prédio referido em A) é o que tem a maior área.
H) Por escritura pública outorgada em 28/02/2007, OO mulher PP, QQ e mulher RR,
declararam constituir sobre os prédios rústicos aí identificados uma servidão de passagem de pé, carro de bois e tractor com 2,5 m de largura, a favor do prédio rústico pertencente ao réu II e melhor identificado na alínea B) da matéria de facto assente (cfr. certidão constante de fls. 282 a 287 e cujo teor aqui dá se por integralmente reproduzido).
I) O prédio pertença de OO veio à sua posse através de doação celebrada por escritura de 18/10/1996 outorgada no 1 ° Cartório Notarial de Santa Maria da Feira (cfr. certidão de fls. 295 a 304, cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido).
J) A autora, por si e antepossuidores, há mais de cinquenta anos que arrendou, derrubou pinheiros, colheu mato, apanhou caruma e pagou encargos fiscais relativamente ao prédio referido em A).
K) Tais factos ocorreram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção do exercício de um direito próprio.
L) O prédio referido em B) não tem comunicação directa com a via pública.
N) Desde há mais de 50 anos que os antepossuidores do 3° Réu acediam, desde a via pública ao prédio referido em B), a pé e de carro de bois, através do prédio referido em A), continuando a fazê-lo o 3° Réu a pé.
N) Tais factos ocorreram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção do exercício de um direito próprio.
O) Nos prédios referidos em A) e B) existiam, antes da sua aquisição pelos herdeiros de SS e TT, sinais de pés de pessoas, patas de animais e rodados de carros de bois e tractores, resultantes da passagem para o prédio em B) através do prédio referido em A), existindo ainda hoje sinais de pés de pessoas nos prédios referidos em A) e B), resultantes da passagem para o prédio aludido em B) através do prédio referido em A).
P) O restante terreno que faz parte do prédio referido em A), para além do pavilhão, não contém sementeiras.
Q) E nunca foi agricultado.
R) O prédio referido em B) insere-se em área de construção preferente.
S) E permite, segundo o PDM, construir uma habitação unifamiliar ou geminada.
T) O réu II adquiriu o prédio referido em B) para nele construir.
U) O prédio referido em A) insere-se em zona de construção preferente.
V) O prédio propriedade do casal OO e mulher não confronta com a travessa da Sobreira, existindo de permeio vários prédios pertencentes a UU, VV e XX, todos irmãos.
W) As quais não constituíram qualquer servidão de passagem sobre os seus prédios através de escritura pública.
X) Nunca o réu II ou os antepossuidores do seu prédio por aí passaram, não havendo sinais de passos, patas de animais, rodados de carros de bois ou tractor.
Y) E de igual forma nunca existiu e ainda hoje não existe qualquer passagem assinalada no solo de pés de pessoas, patas de animais, rodados de veículos ou carros bois através do prédio de eucaliptal, pinhal e mato de QQ e mulher, prédio este a que faz referência a escritura aludida na alínea H).
Z) E nem o prédio dos referidos QQ e mulher confronta com o prédio dos 3° Réus.
AA) O prédio hoje é da autora e o dos terceiros réus foram em tempos pertença do mesmo dono, o casal de SS e mulher TT.
BB) E já no tempo em que os referidos prédios eram pertença de SSe mulher existiam assinalados no solo, com carácter de permanência, sinais de pés de pessoas, patas de animais e rodados de carros de bois, resultantes da passagem para o prédio que hoje pertence aos terceiros Réus.”
Não releva agora a eventual consideração do documento junto pelo recorrente com o recurso de apelação, porque não está em causa a constituição da servidão por usucapião.
4. Na anotação ao acórdão deste Supremo Tribunal de 23 de Março de 1995, em Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 129º, pág, 187 e segs., Manuel Henrique Mesquita escreveu: “segundo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, o direito de opção que o artigo 1555º atribui ao proprietário do prédio serviente pressupõe apenas a existência de uma servidão legal de passagem – isto é, de uma servidão estabelecida em benefício de um prédio encravado, seja qual for o título por que se tenha constituído. Como é sabido, uma servidão legal pode constituir-se por qualquer dos títulos de constituição das servidões voluntárias e, além disso, por sentença e, no caso de certas servidões de águas, por decisão administrativa”.
O mesmo entendimento se encontra, por exemplo, em Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ªed., Coimbra, 1984, pág. 644 e segs., onde se sustenta que a redacção do nº 1 do artigo 1555º – “qualquer que tenha sido o título constitutivo” – pôs termo à dúvida, que se colocava face ao direito anterior, “de saber se a preferência só existia no caso de a servidão de passagem se ter constituído mediante sentença ou se estendia aos próprios casos em que ela nascera de destinação do pai de família ou de negócio entre as partes” (pág. 645).
Não sendo na verdade tão indiscutível como se poderia retirar destas afirmações, como se dá nota, por exemplo, nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 15 de Dezembro de 1998 (www.dgsi.pt, proc. nº 98A971) ou de 24 de Fevereiro de 1999 (www.dgsi.pt, proc. nº 98A1016), que citam, além de jurisprudência, a opinião de António Menezes Cordeiro (cfr. parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência., 1992, 1º, pág. 63 e segs.), é este entendimento o que aqui se reitera, em consonância com estes acórdãos e com os que neles se citam no mesmo sentido.
Com efeito, resulta do disposto no nº 1 do artigo 1555º do Código Civil que “o proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência, no caso de venda (…) do prédio dominante”.
Para tanto, exige-se que a servidão de passagem que onera o seu prédio seja imposta por lei, isto é, que o prédio que dela beneficia se encontre numa situação à qual corresponda a atribuição ao seu proprietário do direito (potestativo) de constituir uma servidão de passagem, pela via judicial se necessário. A servidão que, nessa situação, se constitua é uma servidão legal.
Em termos práticos, e como decorre no nº 1 do artigo 1550º do Código Civil, é necessário, mas não suficiente, que o prédio se encontre encravado (no sentido dos nºs 1 e 2 deste mesmo artigo); para além do encrave, é imprescindível que a servidão tenha sido constituída em data anterior ao exercício do direito de preferência.
Mas é irrelevante, para o efeito da atribuição do direito de preferência, o modo concreto como se constituiu a servidão legal de passagem (nºs 1 e 2 do artigo 1547º do Código Civil).
O recorrente discorda desta afirmação, como se viu. No entanto, a relevância da situação de encrave e da constituição da servidão, por um lado, e a irrelevância do título constitutivo, por outro, é o que resulta da letra da lei e da sua razão de ser.
É desde logo este o sentido que se retira da conjugação do nº 1 do artigo 1555º do Código Civil, quando se refere a qualquer título constitutivo, com os nº 1 e 2 do artigo 1547º, dos quais resulta que as servidões legais podem ser constituídas, “conforme os casos”, por sentença judicial ou por decisão administrativa, ou ainda por qualquer uma das formas previstas no nº 1 (contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família). A distinção entre os dois números explica-se, naturalmente, pela circunstância de só poderem ser exercidas coactivamente as servidões impostas por lei.
E aponta diversos preceitos do regime das servidões legais que não são aplicáveis às servidões constituídas por destinação de pai de família, para apoiar a interpretação de que estas não podem ser consideradas servidões legais e, portanto, não são aptas a preencher os requisitos de atribuição do direito de preferência.
No entanto, e para além de lhes ser aplicável o nº 3 do artigo 1659º do Código Civil – as servidões constituídas por destinação de pai de família podem ser declaradas extintas por desnecessidade –, a insusceptibilidade de aplicação dos outros preceitos (que não do artigo 1550º, nos termos já expostos) nada demonstra, já que prevêem hipóteses que se não colocam, no caso.
Ora é manifesto que a forma de constituição de uma servidão de passagem é irrelevante para averiguar se ocorre ou não a razão que levou a lei a reconhecer ao proprietário de um prédio onerado com uma servidão de passagem o direito de preferência, em caso de venda do prédio dominante.
Como se escreveu já no acórdão de 10 de Julho de 2008 (www.dgsi.pt, proc. 07B1994), “traduzindo-se na atribuição ao preferente, por lei, da faculdade de, em igualdade de condições, se substituir ao adquirente de uma coisa, em certas formas de alienação, o direito legal de preferência afecta significativamente o poder de disposição que integra o direito de propriedade, já que retira ao proprietário o direito de escolha do outro contraente. A sua criação resulta, portanto, da verificação da existência de razões de interesse público que se sobrepõem àquela liberdade de escolha, enquanto integrante dos poderes do proprietário.
A verdade, todavia, é que essas razões de interesse público acabam, em regra, por se reconduzir à protecção da mesma plenitude do direito de propriedade, considerada, agora, do ponto de vista da situação resultante do acto de alienação.
Com efeito, deixando de lado o direito de preferência atribuído a proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura (cfr. artigo 1380º do Código Civil), cuja razão é a de permitir uma mais eficiente exploração agrícola, o exercício dos direitos legais de preferência leva à concentração numa só pessoa, ou num número mais restrito de pessoas, dos poderes que integram o direito de propriedade plena sobre uma determinada coisa.
Assim, no caso da compropriedade, a atribuição do direito de preferência aos comproprietários, em caso de venda ou dação em cumprimento a terceiros (artigo 1409º do Código Civil), tem em vista a redução progressiva do número de proprietários, de acordo com a ideia de que a propriedade singular permite o melhor aproveitamento da coisa, desde logo porque elimina diversos conflitos que frequentemente se travam entre comproprietários.
Nos casos da preferência conferida ao proprietário do prédio onerado com uma servidão de passagem (artigo 1555º do Código Civil), com o direito de superfície (artigo 1535º do Código Civil) ou com um arrendamento (…) o objectivo é o de reunir numa mesma pessoa as faculdades que, contidas no direito de propriedade plena, se encontravam repartidas entre diversos titulares: entre o proprietário e o titular do direito real menor, nas duas primeiras hipóteses, entre aquele e o arrendatário na terceira (não interessando agora a discussão quanto à natureza do seu direito, já que o arrendamento onera o direito de propriedade de forma quase tão intensa como os direitos reais menores).”
Justifica-se, assim, que a lei o reserve às situações que ela própria considera exigirem a servidão, com a consequente sobreposição de direitos reais; por isso o restringe, no nº 1 do artigo 1555º, às servidões legais.
No caso de um prédio encravado, é pois a sua situação de encrave que justifica, primeiro, que se conceda ao seu proprietário o direito de constituir uma servidão de passagem sobre os prédios vizinhos e, depois, caso a servidão se constitua, que se compense os proprietários dos prédios onerados com a possibilidade de provocarem a extinção dessa oneração preferindo na venda do prédio dominante (mas já não na hipótese inversa). Mas é indiferente, neste quadro, o título constitutivo do direito de servidão.
O recorrente objecta que, na verdade, não ocorre encrave; mas a construção que apresenta para o justificar é incompatível com a circunstância de a servidão só surgir com a separação dos prédios (artigo.1549º do Código Civil).
5. Como se viu, resulta dos factos provados:
– que o prédio alienado não tem comunicação directa com a via pública (cfr. facto L. da lista respectiva); tanto basta para a lei atribua ao proprietário o direito de constituir servidão de passagem “sobre os prédios rústicos vizinhos” (nº 1 do artigo 1550º do Código Civil);
– que, para efeitos de preferência, o prédio alienado tem de ser qualificado como prédio rústico (artigo 204º, nº 2, do Código Civil e descrição feita em B.), não alterando essa qualidade os factos provados em R, S ou T. Nomeadamente, não releva aqui ter ficado provado o destino que lhe pretende dar o comprador, pois não é aplicável a al. a) do artigo 1381º do Código Civil (exclusão do direito de preferência dos proprietários de prédios confinantes);
– que se constituiu, por destinação do pai de família (nº 1 do artigo 1547º e artigo 1549º do Código Civil) e no momento da separação, uma servidão de passagem, em benefício do prédio alienado e sobre o prédio da autora, como aliás o recorrente não contesta (o que dispensa a análise da verificação dos respectivos requisitos).
Não estando em discussão que o prédio dominante foi vendido a terceiros, nem tão pouco o preenchimento das demais condições do exercício, pela autora, do direito de preferência, resta negar provimento ao recurso.
6. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.