INVERSÃO DO TITULO DE POSSE
ALIENAÇÃO
QUINHÃO HEREDITÁRIO
Sumário

I – Para que haja inversão do título de posse determinante do início do prazo necessário para que ocorra usucapião, importa, quando o imóvel detido se integre numa herança indivisa, que a oposição do detentor seja feita mediante actos positivos (materiais ou jurídicos) praticados contra e perante todos ou com o consentimento de todos e cada um dos herdeiros.
II – A cessão de quinhão hereditário não implica cessão de bens determinados, nomeadamente imóveis, que integrem a herança, apenas originando o direito á aquisição desses bens se vierem a preencher o quinhão dos cedentes.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 16/03/00, AA instaurou acção com processo ordinário contra BB e mulher, CC, os quais, em face do seu óbito, foram substituídos pelos seus sucessores para tanto habilitados na pendência do processo, pedindo que fossem os Réus condenados a reconhecê-lo (ao autor) como legítimo proprietário dos prédios rústicos identificados no art.º 3º da p. i., (denominados “Regedouro” ou “Rijadouro”, e “Vilela”) por os mesmos lhe terem sido adjudicados no processo de inventário facultativo que correu termos pelo T.J. de S. João da Pesqueira sob o n.º 7/87, que fossem em consequência considerados sem efeito os registos de aquisição efectuados a favor dos Réus relativamente aos mesmos prédios e ordenado o seu cancelamento, e que fossem os Réus condenados a entregar-lhe (a ele autor), livres e desocupados, aqueles referidos prédios.

Para o efeito e em síntese, alegou o Autor que os mencionados imóveis, integrando a herança deixada por óbito de DD e mulher, EE, foram objecto de partilha no processo de inventário que correu termos pelo decesso daqueles DD e EE, vindo a ser-lhe adjudicados, adiantando que apesar dessa adjudicação não logrou tomar posse efectiva dos aludidos prédios por os mesmos serem detidos pelos Réus, tão pouco conseguindo o registo da titularidade a seu favor, posto encontrar-se registada a favor daqueles a aquisição desses imóveis com base no decidido em acção intentada pelos referidos Réus, na qual lhes foi reconhecido o direito de preferência na venda (cedência) efectuada por alguns dos herdeiros dos referidos DD e EE(com excepção do próprio autor e de uma sua irmã) a um tal FF de todos os seus direitos hereditários sobre os bens deixados pelos referidos DD e EE, com referência aos ditos bens imóveis, os quais foram detidos pelos Réus na qualidade de arrendatários, mais acrescentando que a decisão proferida na aludida acção de preferência não lhe era (a ele autor) oponível, por nela não ter intervindo, o mesmo sucedendo na dita alienação, assim também esta última sendo ineficaz em relação a si.

Citados, os Réus apresentaram contestação, no essencial defendendo-se por excepção, contrapondo serem eles os donos dos mencionados imóveis em face de disporem de título bastante, resultante, por um lado, do reconhecimento por sentença do falado direito de preferência oportunamente exercido, como arrendatários dos ditos prédios, sentença essa que sustentou o registo a seu favor de aquisição de tais prédios, com a inerente presunção registral quanto à titularidade do direito, a tudo acrescendo, por outro lado, por via do instituto da usucapião, terem adquirido a propriedade sobre os identificados imóveis.

Replicou o Autor, rejeitando a procedência da matéria da excepção deduzida nos termos assinalados, concluindo em conformidade com o inicialmente peticionado, mais requerendo a condenação dos Réus, como litigantes de má fé, no pagamento de multa e da competente indemnização.

Findos os articulados, proferiu-se despacho saneador, que decidiu não haver excepções dilatórias nem nulidades secundárias, tendo nomeadamente apreciado a defesa por excepção baseada na invocação da titularidade da propriedade sobre os aludidos prédios por efeito do sentenciado na também mencionada acção de preferência, concluindo-se que tal decisão não era oponível ao Autor, por a alienação que motivou a instauração daquela acção ser ineficaz em relação a ele (autor), sendo certo que o mesmo nessa alienação não interveio, assim aquela decisão não titulando por si o direito de propriedade a favor dos Réus quanto aos ditos imóveis.

Determinou-se, porém, o prosseguimento da acção para indagação da matéria de excepção a contender com o invocado direito de propriedade sustentado no instituto da usucapião, para tanto se fixando a factualidade tida como assente entre as partes, bem assim organizando-se a base instrutória, peças estas que não sofreram reclamação.

Recorreram os réus do despacho saneador na parte em que decidira que a sentença proferida na acção de preferência não era oponível ao ora autor e não titulava a aquisição do direito de propriedade a favor deles, tendo esse recurso sido admitido para subir a final. Não apresentaram eles, porém, as respectivas alegações, o que origina a deserção de tal recurso, face ao disposto nos art.ºs 291º, n.º 2, e 690º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.

Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento e, após proferida decisão sobre a matéria de facto, foi elaborada sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus dos pedidos.

Apelou o Autor, tendo a Relação decidido julgar parcialmente procedente a apelação e, nessa medida, alterando o sentenciado, julgou procedentes os pedidos formulados na acção, enquanto relacionados com o prédio designado por “Rijadouro”, com a identificação constante nomeadamente dos Pontos 1º-a/ e 14 da factualidade dada como apurada,

mas improcedentes, ainda que por razões diferentes das ponderadas pela 1ª instância, os pedidos relativos ao prédio denominado por “Vilela”, identificado nos Pontos 1º-b/ e 16 da materialidade acima enunciada.

Do acórdão que assim decidiu interpuseram revista o autor, por um lado, e o habilitado GG, por outro. O recurso interposto por este último, porém, foi julgado deserto por falta de alegações, conforme despacho de fls. 634.

Os factos em que o acórdão recorrido, considerando-os assentes, se baseou, são os seguintes:

1º - No processo especial de inventário que no Tribunal Judicial da Comarca de S. João da Pesqueira correu termos com o n.° 7/87, por óbito e para partilha dos bens deixados por DD e EE, falecidos, respectivamente, a 24.11.1931 e 13.6.1970, foram relacionados em 23.4.1987, entre outros bens, e no que ora interessa, os seguintes:

como verba n° 5, uma propriedade denominada “Rijadouro”, sita na Freguesia de Vilarouco, a confrontar do norte com HH, do sul com II, do nascente com JJ e do poente com LL, inscrita na respectiva matriz rústica sob o art.º ... - (a), e

como verba n.º 6, uma propriedade denominada “Vilela”, sita na Freguesia de Vilarouco, a confrontar do norte e do nascente com Herdeiros de MM, do sul com NN e do poente com OO, inscrita na respectiva matriz rústica sob o art.º ... - (b).

2º - Por sentença proferida a 11.4.1985, na acção declarativa com forma sumária que no mesmo Tribunal correu termos sob o n.° 32/76, confirmada por doutos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 1.7.1986 e do Supremo Tribunal de Justiça de 8.4.1987, concluiu-se que os ali autores, BB (ora réu) e mulher, CC (inicialmente ré nestes autos, entretanto falecida e relativamente à qual foram habilitados como sucessores aquele seu marido e as suas filhas PP e QQ) gozavam de preferência na aquisição dos prédios então descritos na respectiva matriz sob os art.ºs ... e ... da Freguesia de Vilarouco, à data omissos na competente Conservatória do Registo Predial, prédios esses correspondentes aos imóveis descritos em 1º supra, relativamente aos ali Réus compradores, FF e RR, e reconheceu-se aos referidos ali autores, ora réus, o direito de haverem para si os mencionados prédios, sob a condição de depositarem o seu preço em 20 dias após o trânsito daquela decisão.

3º - Nos referidos autos de inventário, na sequência de requerimento dos ora Réus, deduzido com base na aludida sentença da acção de preferência, foi ordenada a exclusão das mencionadas verbas nºs. 5 e 6.

4º - O autor nestes autos recorreu dessa decisão.

5º - Por douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.1990, foi concedido provimento a tal recurso, pelo que foi revogado o despacho de exclusão das mencionadas verbas nºs. 5 e 6 e substituído por decisão de indeferimento de exclusão de tais verbas.

6º - No inventário n.º 7/87, os ora réus requereram, a 2.11.1994, a sua intervenção nesses autos.

7º - Tal requerimento foi indeferido.

8º - Os ora réus recorreram desse despacho que os não admitiu a intervir no inventário.

9º - Por douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.12.1995, foi negado provimento a tal recurso.

10º - Os ora Réus recorreram desse douto acórdão.

11º - Por douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.19.1996, foi negado provimento ao recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.12.1995.

12º - Nos termos do mapa da partilha elaborado nos referidos autos de inventário n.º 7/87, as verbas nºs. 5 e 6, ali relacionadas e atrás descritas, foram licitadas por AA, aqui autor, para preenchimento do seu quinhão.

13º - A partilha constante desse mapa foi homologada por sentença, nos termos da qual foram adjudicados a cada um dos herdeiros os quinhões ali atribuídos.

14º - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de S. João da Pesqueira, com o n.° 00.../0... da Freguesia de Vilarouco, um prédio rústico denominado “Rijadouro“, composto de pastagem e oliveiras, com a área de 8.750 m2, confrontando a norte com HH, a sul com II, a nascente com JJ e a poente com LL, inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º ..., prédio esse que corresponde ao imóvel descrito como verba n.° ..., referido em 1º supra.

15º - Relativamente a este prédio, encontra-se inscrita a aquisição, por acção de preferência, a favor de BB, ora Réu, então casado sob o regime de comunhão gera de bens com CC, inicialmente Ré nesta acção, tendo entretanto sido habilitados como seus sucessores o réu, seu marido, e as suas filhas já identificadas.

16º - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de S. João da Pesqueira, com o n.° 00.../0... da Freguesia de Vilarouco, um prédio rústico denominado “Vilela”, composto de terra de batata, trigo, pastagem e amendoeiras, oliveira e vinha, com a área de 12.400 m2, confrontando a norte e a sul com Herdeiros de MM, a nascente com NN e a poente com OO, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., prédio este que corresponde ao imóvel descrito como verba n.° ..., referida em 1º supra.

17º - Relativamente a este prédio, encontra-se inscrita a aquisição, por acção de preferência, a favor de BB, ora Réu, então casado, sob o referido regime de bens, com CC.

18º - Pelo menos a partir de 15.6.1988, os Réus cultivaram todos os anos o prédio descrito em 1º-b/, denominado “Vilela”, granjeando a respectiva vinha e olival e colhendo os frutos nele produzidos.

19º - Os Réus praticaram os factos descritos no Ponto anterior à vista e com o conhecimento das pessoas residentes no lugar de Vidigal, na Freguesia de Vilarouco, concelho de S. João da Pesqueira.

20º - Sempre as pessoas residentes no Lugar de Vidigal respeitaram, consideraram e consideram os réus como proprietários do prédio indicado em 18º.

21º - Os factos descritos nos Pontos 18º a 20º deram-se, pelo menos, a partir de 9.6.1989 e prolongaram-se até 16.3.2000.

22º - Os Réus colheram a azeitona do prédio referido no Ponto 1º-a/, denominado “Rijadouro”.

23º - Desde, pelo menos, 9.6.1989, os réus procedem à guarda e vigilância do prédio denominado “Rijadouro”.

24º - Antes de 16.3.2000, os réus mandaram saibrar o terreno do prédio denominado “Vilela”, nele implantaram vinha nova, mandaram serrar o olival e a vinha, ordenaram que outrem, às suas ordens, com uma máquina, retirasse os toros que haviam ficado enterrados, e regularizasse o terreno, lavraram esse terreno com um tractor e plantaram cerca de 3.000 bacelos.

25º - Na acção de preferência referida em 2º supra, os aqui Réus alegaram que os prédios indicados em 1º supra faziam parte da herança deixada por DD e mulher, EE, e, no ponto 3º dos factos dados como provados na sentença ali proferida, consta que os bens deixados por este casal consistiam nos dois prédios em apreço.

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O autor, recorrente, apresentou oportunamente alegações na presente revista, nas quais formulou as seguintes conclusões:

1ª - O A. propôs a presente acção contra os primitivos RR. pedindo que fossem condenados: (i) a reconhecer a sua qualidade de proprietário e (ii) a entregar-lhe dois prédios rústicos sitos na Comarca de S. João da Pesqueira;

2ª - Alegou o A. que o direito de propriedade dos dois prédios lhe havia sido atribuído no processo de inventário aberto por óbito de DD e mulher EE, a cujo património pertenciam aqueles imóveis;

3ª - Os RR. contestaram, afirmando serem eles - e não o A. - os proprietários dos prédios reivindicados, por os terem adquirido originariamente por usucapião;

4ª - Em momento muito anterior ao da propositura deste processo, os primitivos RR. tinham obtido ganho de causa em acção de preferência em que invocaram o direito de que eram titulares como arrendatários dos dois prédios, relativamente à venda de quinhões hereditários a que haviam procedido alguns dos herdeiros de DD e EE a favor de FF e mulher;

5ª - A sentença da acção de preferência (que atribuiu aos RR. o direito de propriedade dos dois prédios, substituindo-os aos adquirentes FF e mulher) não é oponível ao A., que não interveio nem na acção em que ela foi proferida, nem no negócio relativamente ao qual foi exercido o direito de preferência;

6ª - A inoponibilidade ao A. da sentença proferida na acção de preferência está definitivamente julgada;

7ª - Os RR. pretenderam ser admitidos a intervir no inventário, ocupando nele o lugar do cessionário de quinhões hereditários FF, mas essa pretensão foi indeferida;

8ª - Demonstrada a adjudicação dos dois prédios ao A. e comprovado ser-lhe inoponível a sentença da acção de preferência, na falta de impugnação da aquisição derivada, a acção deveria ter sido julgada procedente, por provada;

9ª - Os RR. não adquiriram, por usucapião, os prédios reivindicados pelo A., pois não ocorreu a inversão do título da posse - nem os possuíram, com ânimo de proprietários, pelo necessário prazo;

10ª - Entre 1 de Janeiro de 1971 e a decisão final da acção de preferência, corporizada no douto acórdão deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Abril de 1987, os RR., quando muito (e nem isso provaram...) terão possuído os prédios como arrendatários, em nome da sua senhoria, que era a herança indivisa de DD e mulher;

11ª - Logo no inventário aberto, em 1987, por óbito de DD e mulher, verificou-se a oposição do A. ao direito invocado pelos RR., tendo estes requerido, em 1994, a sua intervenção naquele processo, no qual foram relacionados, descritos e partilhados os dois prédios, não tendo a partir dessa data cessado os litígios entre o A. e os RR. relativamente aos imóveis reivindicados;

12ª - Os RR. não lograram convencer o Mmo. Juiz da 1ª Instância de que desconheciam a existência do A. e a sua qualidade de herdeiro de DD e mulher e que não sabiam estar a prejudicá-lo com a decisão da acção de preferência, pelo que não poderão ser classificados como possuidores de boa fé;

13ª - Os RR. não invocaram que a sua actuação material correspondesse ao animus de proprietários dos imóveis, razão por que não se inverteu o título da posse, que era reconhecidamente exercida em nome da senhoria;

14ª - Porque, nesta acção, os RR. não invocaram a relação obrigacional locatícia para obstarem à entrega dos prédios ao A., deve, igualmente, ser julgado procedente o correspondente pedido;

15ª - O, aliás douto, acórdão recorrido alcançou soluções distintas para os dois prédios, julgando a acção procedente quanto ao “Rijadouro” e improcedente quanto ao “Vilela”, a despeito de serem iguais as vicissitudes ocorridas relativamente ao direito de propriedade de ambos;

16ª - A única diferença - material - reside na tipologia e profundidade dos trabalhos agrícolas desenvolvidos pelos RR. em cada um dos prédios, o que não é critério para determinar a verificação da excepção da usucapião;

17ª - O, aliás douto, acórdão recorrido, procedeu a errada interpretação e aplicação dos art.ºs 1252°, 1260º e 1311° do Código Civil.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.

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Em contra alegações, o recorrido GG pugnou pela confirmação daquele acórdão.

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Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta os factos assentes, acima transcritos.

Definitivamente decidida a inoponibilidade ao autor da sentença proferida na mencionada acção de preferência, e julgada a presente acção procedente quanto ao prédio denominado “Rijadouro”, - nesta parte se mostrando transitado o acórdão recorrido por não ter havido recurso que a abrangesse (art.º 684º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil) -, apenas está em causa saber se os réus adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio denominado “Vilela”, tanto mais que não opuseram ao autor a eventual subsistência de arrendamento, para a hipótese de procedência da acção, a fim de afastarem a obrigação de restituição (art.º 1311º do Cód. Civil).

A verificação da usucapião depende da concorrência de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo.

Para conduzir à aquisição da propriedade por via de usucapião, a posse tem, por sua vez, de revestir sempre duas características: ser pública e pacífica. As restantes características (ser de boa ou de má fé, ser titulada ou não), influem apenas no prazo. Tudo como resulta do disposto nos art.ºs 1258º a 1262º, 1287º, 1294º a 1297º do Cód. Civil.

Por outro lado, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (de gozo) - art.º 1251º do mesmo Código.

E necessita ela do concurso de dois elementos: o corpus, traduzido no exercício do poder de facto sobre a coisa, nos actos materiais sobre ela praticados, e o animus, elemento psicológico consistente na convicção da titularidade do direito a que corresponde aquele exercício material, na intenção de o detentor se comportar como titular desse direito por estar convicto de que dele dispõe. É o que deriva do disposto no art.º 1253º, al. a), também do Cód. Civil, que considera meros detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito. Ou seja, são meros detentores ou possuidores precários aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não praticam sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente, pelo que não podem adquirir por usucapião para si próprios.

Tanto assim que, como dispõe o art.º 1290º, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título. Trata-se de uma disposição em correspondência com o estatuído no art.º 1263º, al. d), segundo o qual a posse se adquire por inversão do título de posse, e isto porque a posse precária não é considerada verdadeira posse, isto é, posse em sentido jurídico, só o passando a ser após aquela inversão e sem eficácia retroactiva. E esclarece o art.º 1265º que a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.

No que ao prédio “Vilela” se refere, ficou provado que, por sentença de 11/04/85, proferida na aludida acção de preferência e que foi confirmada por acórdão da Relação do Porto de 01/07/86, e este por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/04/87, os aqui réus, então autores, foram reconhecidos como titulares do direito de preferência na aquisição daquele prédio (e do Rijadouro), relativamente aos ali réus compradores (FF e mulher), tendo sido ainda reconhecido que tinham o direito de haverem para si esses prédios sob a condição de depositarem o seu preço no prazo de 20 dias após o respectivo trânsito em julgado (facto 2º).

Tendo nos autos de inventário, na sequência de requerimento dos aqui réus, deduzido com base naquela sentença, sido ordenada a exclusão das verbas que integravam os ditos imóveis, o aqui autor recorreu desse despacho, vindo a Relação do Porto a conceder provimento a tal recurso por acórdão de 20/11/90, determinando o indeferimento daquele requerimento, mantendo-se portanto as ditas verbas no inventário (factos 3º a 5º).

Os aqui réus requereram no mesmo inventário, em 02/11/94, a sua intervenção nos autos respectivos, o que foi indeferido por despacho de que os aqui réus recorreram, tendo esse despacho sido confirmado por acórdão da Relação de 12/12/95, por sua vez confirmado por acórdão deste Supremo de 29/09/96 (factos 6º a 11º).

O dito prédio denominado “Vilela” encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial, tendo aí inscrita a sua aquisição a favor dos aqui réus com base na decisão proferida na dita acção de preferência (factos 16º e 17º).

Pelo menos a partir de 15/06/1988, os réus cultivaram todos os anos esse prédio, granjeando a respectiva vinha e olival e colhendo os frutos nele produzidos, à vista e com o conhecimento das pessoas residentes no lugar, as quais sempre respeitaram, consideraram e consideram os réus como proprietários desse prédio, pelo menos desde 09/06/89 até 16/03/2000 (factos 18º a 21º).

Antes de 16/03/00, os réus mandaram saibrar o terreno do prédio “Vilela”, nele implantaram vinha nova, mandaram serrar o olival e a vinha, ordenaram que outrem, às suas ordens, com uma máquina, retirasse os toros que haviam ficado enterrados e regularizasse o terreno, lavraram esse terreno com um tractor e plantaram cerca de 3000 bacelos (facto 24º).

A sentença da 1ª instância tinha entendido que a acção não podia proceder por o autor não ter invocado nem provado a aquisição originária dos prédios a favor dos seus antecessores, apenas tendo provado a sua aquisição derivada por via sucessória, pelo que entendeu logicamente que, não provando o autor o direito de propriedade que se arrogava, nem sequer tinha de se pronunciar sobre a questão da aquisição do direito de propriedade sobre os prédios reivindicados por usucapião a favor dos réus.

O acórdão recorrido, pelo contrário, entendeu encontrar-se demonstrada aquela aquisição originária, pelo que passou à análise da aquisição da propriedade dos prédios pelos réus por via de usucapião, tendo concluído que tal forma de aquisição se concretizara no que ao prédio denominado “Vilela” respeita, e datando o início da posse em 09/06/89, data do registo de aquisição a favor dos réus.

Pela análise dos factos acima transcritos, porém, apenas é possível, ao menos de forma directa, concluir que se encontra demonstrado o corpus, não havendo entre eles qualquer facto que permita se conclua, só por si, pela existência de animus. Este poderia resultar, no entanto, perante os factos provados, da presunção consagrada no art.º 1252º, n.º 2, do Cód. Civil, - “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto …” -, a que a Relação recorreu para o efeito, considerando não ter sido articulada nem apurada factualidade susceptível de elidir tal presunção, pelo que, qualificando a posse como sendo de boa fé, titulada e com registo de aquisição a favor dos réus desde 09/06/89, pública e pacífica, durando desde tal data até Março de 2000, portanto com duração superior a dez anos, já a usucapião, em relação ao prédio “Vilela”, ocorrera nesta última data, que é a da propositura da presente acção.

Há, assim, antes de mais, que verificar se entre os factos provados há algum ou alguns que determinem elisão da dita presunção.

Ora, se bem que a decisão da acção de preferência, proferida na 1ª instância em 11/04/85, possa ser considerada como susceptível de originar a constituição posterior de título de aquisição, pois dela própria resulta que a aquisição só poderia ter lugar mais tarde, após o respectivo trânsito em julgado, que só ocorreu com a confirmação do decidido pelo acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 08/04/87, certo é que da própria sentença proferida nessa acção resulta que esse direito potestativo de preferir se baseou no facto de os aqui réus serem arrendatários rurais do dito prédio. O mesmo é dizer que, ao menos até à data de tal acórdão, como ignorassem o sentido da respectiva decisão, e mais precisamente do posterior registo feito a seu favor, não podiam os ora réus ter a convicção, nem, portanto, o animus, de proprietários, não havendo assim dúvida alguma de que eram meros detentores desse prédio, possuindo-o em nome alheio, ou seja, da herança indivisa senhoria, e não em nome próprio, isto é, com o animus de proprietários, pelo que no respeitante a essa detenção, não havendo dúvidas, não há lugar à aplicação da dita presunção, questão que nem sequer é suscitada, tanto mais que a alienação não teve por objecto qualquer prédio mas apenas quinhões hereditários.

Há por isso que verificar se do exercício da preferência terá resultado inversão do título de posse, a qual pressupõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, só a partir daí começando a correr o prazo da usucapião.

Ora, como resulta do disposto no citado art.º 1265º, a inversão do título de posse pode ter lugar por duas vias: inversão por oposição do detentor, e inversão por acto de terceiro.

Quanto à primeira, teria a inversão de se operar mediante oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía. E “a oposição tem de se traduzir em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem.” (Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 98). Como referem, por outro lado, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2ª ed., Vol. III, pág. 30, “torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía. … O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito.”

Sendo que tal pessoa era o senhorio, qualidade que cabia à herança indivisa, de que o ora autor, como filho dos ditos inventariados segundo resulta da certidão extraída dos autos de inventário, era um dos herdeiros.

Assim, uma vez que, como se encontra definitivamente decidido, a decisão da acção de preferência é inoponível ao autor, não produzindo em consequência efeitos quanto a ele, o autor mantinha, em relação aos réus, a qualidade de herdeiro, ou seja, de titular do direito a uma quota da herança que incluía os ditos prédios, sendo que, como resulta do disposto no art.º 2091º, n.º 1, do Cód. Civil, fora casos que para a hipótese dos presentes autos não interessam, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. O que, se por um lado implica que a alienação dos concretos bens da herança só por todos poderia ser efectuada, por outro implica que só contra todos os herdeiros os réus poderiam exercer posse em nome próprio sobre os bens da herança, e portanto só se a exercessem também contra o ora autor.

Daí que se tornasse necessária a inversão do título de posse perante todos os herdeiros, portanto também perante o autor, inversão essa que, para poder ter-se por verificada, teria de se dar por oposição dos réus contra ele, pois era uma das pessoas em cujo nome possuíam os prédios. Mas não invocaram os réus, na sua contestação, qualquer facto, integrante dessa oposição directa ao autor, determinante da inversão, pelo que, a não se ter verificado inversão por outro modo, tem de se entender que a posse exercida pelos réus foi sempre em nome alheio, não conducente à usucapião.

Quanto à segunda forma de inversão, terá de haver um acto de terceiro capaz de transferir a posse, sendo exemplo disso precisamente a situação em que o detentor é arrendatário, vindo mais tarde a convencer-se de que o verdadeiro proprietário do imóvel arrendado é um terceiro que não a pessoa que actuava como seu senhorio, pelo que o compra a esse terceiro, passando de seguida a comportar-se, em relação ao anterior senhorio, como dono do mesmo imóvel. Ou seja, de detentor do imóvel com ânimo de arrendatário, e portanto de possuidor em nome alheio, passou a possuidor deste em nome próprio, com ânimo de proprietário, havendo assim uma inversão do título de posse por acto de terceiro.

Na situação dos autos, porém, não há qualquer acto de terceiro nesse sentido.

Poderia pretender-se, quando muito, que os alienantes, embora herdeiros, ao intervirem na alienação sem a intervenção ou o concurso do autor, eram terceiros em relação a este.

Mas tal não é possível, pois, para que o acto dos alienantes, porventura considerados como terceiros, pudesse determinar a inversão do título de posse, teria de ter expressamente como objecto negocial ou o quinhão hereditário do autor, ou os próprios prédios em causa. Mas não tem.

Com efeito, das certidões incluídas nos autos resulta que os aludidos herdeiros alienantes apenas cederam a FF todos os seus direitos hereditários, - e não, obviamente, os do autor, não interveniente sequer na respectiva escritura -, relativos aos bens deixados pelos inventariados no dito inventário (DD e mulher, EE); o que significa que não cederam, nem os direitos do autor, por isso não sendo terceiros, nem os próprios imóveis. E foi apenas em relação àquela alienação dos direitos hereditários dos cedentes que foi exercida a acção de preferência pelos aqui iniciais réus, o que significa que estes não se tornaram, por força da decisão dessa acção, proprietários de qualquer dos dois prédios em causa, apenas ficando com o direito de os adquirirem se tais prédios viessem a preencher o quinhão de algum dos cedentes. O que não veio a acontecer, uma vez que tais prédios acabaram por ser adjudicados ao autor, não cedente, embora em relação a este os réus continuassem a dispor de direito de preferência se mantivessem a sua condição de arrendatários e o autor pretendesse alienar os imóveis.

O mesmo é dizer que, não importando a alienação de quinhão hereditário a alienação de qualquer bem determinado da herança, não foi transmitido pelos cedentes aos réus - face ao decidido na acção de preferência – o direito de propriedade sobre o prédio denominado “Vilela”, pelo que não se pode sustentar que tenha havido inversão do título de posse também por acto de terceiro.

Donde que, não substituído o título de posse precária pelo título de posse em nome próprio pelo meio legalmente consagrado para o efeito, a inversão, - que aliás os próprios réus, nas suas contra alegações da presente revista, reconhecem não ter tido lugar -, nem sequer teve início a posse jurídica conducente à usucapião.

Termos em que, no essencial, sem necessidade de mais considerações, tem de se reconhecer razão ao autor.

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Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, alterando-se o acórdão recorrido no sentido de se julgar a acção totalmente procedente, e condenando-se em consequência os réus nos pedidos não só quanto ao prédio denominado “Rijadouro” ou “Regedouro” mas também quanto ao prédio denominado “Vilela”, ordenando-se ainda o cancelamento dos registos de aquisição feitos a favor dos réus relativamente aos mesmos prédios.

Custas, aqui e nas instâncias, na totalidade pelos réus.

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Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 7 de Julho de 2010.

Silva Salazar ( Relator)

Nuno Cameira

Sousa Leite