LIVRANÇA
AVALISTA
ENDOSSO
DIREITO DE REGRESSO
LEGITIMIDADE
ACÇÃO CAMBIÁRIA
ACÇÃO CÍVEL
CONTRATO MUTUO
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
Sumário

I - O direito de regresso dos autores, avalistas que pagaram a totalidade da livrança exequenda ao banco beneficiário, e que, consequentemente, a receberam por endosso, são, embora endossados, conjuntamente com os ora réus, também, avalistas, responsáveis pelo pagamento da aludida livrança, perante aqueles, não por força da relação cambiária, regulada pela LULL, mas antes da relação de solidariedade passiva entre devedores, disciplinada pelo Direito Civil.
II - O co-avalista que pagou a livrança ao tomador é o portador legítimo do título, gozando de legitimidade para accionar os demais co-avalistas, reclamando destes, que a não satisfizeram, o pagamento do seu montante, na qualidade de obrigados de regresso.
III - O direito de regresso que cabe ao avalista que pague a livrança ao subscritor, em relação a qualquer um dos seus co-avalistas, não se exercita através de uma acção cambiária, mas antes de uma acção causal de direito comum, regulável pelas normas que disciplinam o instituto da fiança.
IV - Na acção causal de direito comum, a posse da livrança não condiciona o exercício do respectivo direito, não se mostrando imprescindível à efectivação do crédito reclamado pelos autores.
V - Tendo-se constituído entre o banco financiador e a sociedade subscritora uma obrigação de mútuo, os autores e os réus, para além de se terem responsabilizado como avalistas da subscritora da livrança, responsabilizaram-se, também, por via de assunção cumulativa, como co-devedores solidários da obrigação de mútuo.
VI - O avalista que pagou ao tomador da livrança, em quantia superior à que lhe competia, por força do regime da solidariedade passiva, no âmbito das relações externas, perante o credor, tem direito de reaver dos restantes avalistas, no domínio das relações internas, com base no direito de regresso, a parte que a cada um destes compete, que se presume ser igual para todos, nas relações entre os devedores solidários.
VII - O número de condevedores solidários que respondem pelo aval não se multiplica em função do respectivo estado civil ou da habilitação a que se procedeu, em consequência do falecimento de ambos os membros do casal dador do aval.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AA e esposa, BB, propuseram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra CC e esposa, DD, EE, e Herdeiros de FF e GG, ou seja, HH, casado com II residentes no concelho da Mealhada, JJ, casada com KK, LL, casada com MM, NN, casado com OO e PP estes últimos residentes em 1................., Luxemburgo, pedindo que, na sua procedência, os primeiros réus sejam condenados no pagamento aos autores da quantia de €15.072,00, acrescida dos juros que se vencerem, até integral pagamento [1], o segundo réu seja condenado no pagamento aos autores da quantia de €15.072,00, acrescida dos juros que se vencerem, até integral pagamento [2] e, finalmente, os terceiros réus sejam condenados, solidariamente, na qualidade de herdeiros de FF e GG, no pagamento aos autores da quantia de €15.072,00, acrescida dos juros que se vencerem, desde a citação e até integral pagamento.
Para o fim pretendido, os autores alegam, em síntese, que, em 12 de Fevereiro de 1996, avalizaram uma livrança, conjuntamente com os primeiros e segundo réu, bem como com os falecidos PP e GG, pais dos terceiros réus, que se habilitaram à respectiva herança.
Porém, a incapacidade financeira da sociedade devedora, aliada ao facto dos restantes avalistas não terem património de relevo, fez com que a totalidade dos bens dos autores tivesse sido penhorada, à ordem dos autos de execução nº 297/99, do 1º Juízo da Comarca Anadia, ascendendo a quantia exequenda a 12.086.452$00.
Assim, como única forma de evitar a venda judicial do seu património, os autores pagaram à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada a quantia de €60.287,00, tendo, para tanto, celebrado com a sociedade “N....... e Gestão, Lda” um contrato de mútuo da totalidade da quantia exequenda, a qual negociou, junto da Caixa de Crédito Agrícola, o pagamento do respectivo débito.
Deste modo, face à verificada inconsistência patrimonial da principal devedora, os réus são responsáveis solidários pela quantia paga pelos autores, que ficam subrogados na posição, anteriormente, detida pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada, com direito a serem ressarcidos pela quota parte da responsabilidade que caberia aos réus, na qualidade de avalistas, no montante de €15.072,00.
Na sua contestação, o réu EE concluiu pela improcedência da acção com a subsequente absolvição no pedido, alegando que, no caso de os autores terem procedido ao pagamento da livrança, à aludida entidade bancária, gozariam, então, do direito de reclamar de cada um dos restantes co-avalistas, individualmente, uma quota-parte da dívida, correspondente a 1/7 do respectivo valor, no montante de €1726,64, sendo a responsabilidade de cada co-avalista, caso exista, conjunta e não solidária, para além de que o co-réu HH já pagou ou amortizou, parcialmente, a dívida reclamada pelos autores, impugnando, quanto ao mais, os factos articulados na petição.
Na réplica, os autores alegam que não se verificou qualquer cessão de créditos, mas antes um contrato de mútuo celebrado entre si e a referida sociedade, mantendo os mesmos, em consequência, o direito de fazer valer, judicialmente, o crédito que para eles resultou do pagamento das responsabilidades decorrentes do aval.
Quanto ao pagamento da dívida, por dação em cumprimento, sustentam que esta se mantém e que o réu HH nunca fez a entrega aos autores de qualquer imóvel, para o efeito, e que, na melhor das hipóteses, sempre lhes seria devida a diferença entre o valor do imóvel, nunca superior a €10.000,00, e o valor que reclamam na acção.
No saneador, relegou-se o conhecimento da excepção peremptória extintiva do pagamento para a decisão final.
A sentença julgou a acção procedente e, em consequência, condenou os primeiros réus a pagar aos autores a quantia de €15.072,00, acrescida dos juros que se vencerem, até integral pagamento, o segundo réu, no pagamento aos autores da quantia de €15.072,00, acrescida dos juros que se vencerem, até integral pagamento, e os terceiros réus, na qualidade de herdeiros de FF e GG, no pagamento aos autores da quantia de €15.072,00, acrescida dos juros que se vencerem, desde a citação e até integral pagamento.
Desta sentença, os réus CC e esposa, DD, EE e JJ interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente, por não provado, o recurso de apelação interposto pelos apelantes CC e esposa, DD, JJ e outros e, consequentemente, manteve a sentença recorrida, neste particular, declarado suprida a nulidade da sentença recorrida, por violação da alínea d), do nº 1, do artigo 668º, do CPC, e, consequentemente, julgado a acção, procedente por provada, condenando o réu-apelante EE, no pagamento aos autores-apelados, da quantia de €15.072,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, no mais julgando improcedente o recurso de apelação interposto pelo réu-apelante EE, mantendo-se, por via desta razão, a sentença recorrida.
Do acórdão da Relação de Coimbra, interpôs agora recurso de revista o réu EE terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – Os autores demandaram o recorrente na sua qualidade de co-avalista da firma "M..... Lda." subscritora da livrança por esta entregue à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Mealhada, mas não se mostra provado nos autos que sejam eles os legítimos portadores de tal livrança.
2ª - Em concreto, o pedido formulado contra o apelante vem fundamentado no facto de os autores haverem procedido ao pagamento àquela CCAM da quantia de €60.287,00, que esta lhes exigiu em virtude de a "M.............., Lda." não haver cumprido as suas obrigações contratuais emergentes de um mútuo celebrado com aquela.
3ª - Porém, a única fonte de responsabilidade que os demandantes poderiam invocar contra o recorrente seria o aval que este deu na livrança a favor da respectiva subscritora, e não uma outra obrigação subjacente a um contrato de mútuo, ainda que conexionado com a emissão do título avalizado.
4ª - Constituindo o aval uma obrigação cartular, formal-abstracta, gerada por uma declaração de vontade exarada no próprio título, cuja existência e efeitos não podem separar-se deste,
5ª - Não podem os autores exigir do apelante as suas responsabilidades de co-avalista sem que simultaneamente façam prova de se haverem tornado donos e legítimos portadores da livrança em causa, ficando assim excluída a possibilidade de um terceiro portador reclamar ulteriormente o pagamento da mesma; aliás,
6ª - Mostra-se junta aos autos, pelos próprios autores, para prova dos quesitos 9º, 10º, 11º e 12º da base Instrutória, uma certidão judicial emanada dos autos de execução ordinária que, com o nº 0000000, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Mealhada instaurou contra os autores e alguns avalistas, comprovativa de que:
a)— A firma N...... - Imobiliária e Gestão, Lda. se arroga ter adquirido daquela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo o crédito que esta detinha sobre os executados,
b)— Invocando para tanto a celebração de um contrato de cessão do crédito, que logo juntou aos autos,
c)— Em cujas cláusulas terceira, quarta e quinta se formaliza a transmissão do crédito da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo para a NIARICAR,
d)— Consignando na cláusula sexta que, com a cessão do seu crédito, a Caixa transmite à NIARICAR "todos os direitos inerentes, ao mesmo crédito e, nomeadamente, a sua posição como Exequente na acção executiva referida na cláusula quarta, com as garantias consubstanciadas nas penhoras já registadas".
7ª - Mas ainda que se mostrasse serem os autores legítimos portadores da livrança dada à execução, inexistiria o seu invocado direito de reclamar ao recorrente o reembolso de uma quota parte da quantia que pagaram à CCAM de Mealhada,
8ª - Uma vez que os co-avalistas de um mesmo obrigado cambiário não se acham vinculados entre si por obrigações de natureza cartular, como se extrai "a contrario sensu" do disposto nos arts. 77º in fine e 32º, III, da L.U.L.L.,
9ª - Sendo certo, por outro lado, que não é lícita a invocação analógica do regime da fiança, instituído no direito civil, pelo avalista pagador da livrança, a fim de repartir pelos demais co-avalistas a responsabilidade assumida,
10ª - Pois apenas lhes é possível reclamar dos restantes co-avalistas uma quota-parte da quantia que houver pago se porventura todos eles, garantes, houverem convencionado extracartularmente tal regime para regulação das suas relações internas, de forma expressa e formal,
11ª - O que não se verificou no caso dos autos, como é evidenciado pela total ausência de invocação de tal matéria nos articulados, quer pelos autores quer pelos réus,
12ª - Donde tudo se conclui não estarem reunidos os pressupostos factuais e jurídicos necessários à constituição do crédito reclamado pelos autores sobre o recorrente.
Mas ainda que assim não se entendesse:
13ª - Por força do disposto no artº 516º do Código Civil, os devedores solidários comparticipam em partes iguais na dívida, a menos que da relação jurídica entre eles estabelecida resulte serem diferentes as respectivas responsabilidades,
14ª - Sendo justamente esse o caso dos sete co-avalistas da livrança em questão, como resulta do disposto no artº 32º, III, da LULL "a contrario sensu", e no artº 650º nº 1 do Código Civil; assim,
15ª - Atento o disposto no artº 524º do Código Civil, os autores apenas teriam direito a reclamar do apelante 1/7 da quantia de €60.287,00 que pagaram à CCAM de Mealhada — ou seja, o montante máximo de €8.612,43 — por serem sete os obrigados ao pagamento da dívida.
Os autores não apresentaram contra-alegações.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. “M.........., Lda.”, sociedade comercial por quotas, com sede em Silva, Casal Comba, Mealhada, subscreveu e entregou à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Mealhada uma livrança, emitida em 1996-02-12, com vencimento para 1999-07-06, no valor de 11.988.238$00, equivalente a €59.797,08 [A].
2. A referida livrança destinava-se a garantir um contrato de mútuo (financiamento nº 002701), celebrado entre a sociedade “M........, Lda.” e a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada [B].
3. No verso da referida livrança e sob os dizeres manuscritos “dou o meu aval aos subscritores”, apuseram as respectivas assinaturas: o autor AA, a autora BB, o réu EE, o réu CC, a ré QQ, FF e GG [C].
4. Os autores apenas prestaram à referida livrança um aval de favor - [4º].
5. Por tal lhes ter sido peticionado pelos gerentes da sociedade – HH e II – com quem tinham boas relações pessoais – [5º].
6. FF e GG faleceram [D].
7. Por escrito, denominado “habilitação de herdeiros”, realizado no dia 1 de Março de 1999, no Cartório Notarial de Cantanhede, compareceram RR, SS e TT, que declararam que FF e GG faleceram, em 16-10-1997 e 07-10-1998, respectivamente, não tendo feito testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo deixado como seus herdeiros legitimários, como única descendência sucessível, os cinco filhos, JJ, LL, HH, NN e UU [E].
8. A sociedade “M.........., Lda.” nada pagou à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada [1º].
9. Nem mostrou qualquer interesse em fazê-lo, porque já não dispunha de património consistente [2º].
10. A situação de incapacidade financeira da sociedade devedora, aliada ao facto dos restantes avalistas não terem património de relevo ou, antevendo a ruína financeira da sociedade “M.........., Lda.”, terem tido o cuidado de o ocultar, fez com que a totalidade do património dos autores tivesse sido penhorado, à ordem dos autos de execução, referidos em H) [3º].
11. A sociedade “M.........., Lda.” não cumpriu as suas obrigações para com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada [F].
12. A situação, referida em F), fez com que os autores, os primeiros e o segundo réus tivessem sido executados pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada [G].
13. Tendo a execução corrido termos, no 1º Juízo do Tribunal da Comarca da Anadia, sob o processo n° 297/99 [H].
14. A quantia exequenda correspondia ao montante de 12.086.452$00 [I].
15. A referida execução foi intentada contra a sociedade “M.........., Lda.”, contra os autores e contra os primeiros e segundo réus [J].
16. Uma vez que, à data, os avalistas FF e GG já tinham falecido [K].
17. E a sociedade “M.........., Lda.”, por sentença judicial proferida pelo 1º juízo do Tribunal Judicial de Anadia, nos autos de falência nº 000000, tinha sido declarada falida [L].
18. Foram forçados a pagar a quantia em divida para com a Caixa Agrícola [6º].
19. Como única forma de evitar a venda judicial do seu património [7º].
20. Que já se encontrava penhorado [8º].
21. Os autores pagaram à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada a quantia de 12.086.452$00 (doze milhões, oitenta e seis mil e quatrocentos e cinquenta e dois escudos), equivalente a €60.287,00 (sessenta mil duzentos e oitenta e sete euros) [9º].
22. Encontra-se inscrito, na Repartição de Finanças de Cantanhede, o prédio rústico, denominado “pinhal e mato”, sito no B........., freguesia da Pocariça, concelho de Cantanhede, correspondente ao artigo matricial 1407, a confrontar do Norte com VV, do Nascente com XX e outro, do Sul com ZZ e outros e do Poente com AAA, em nome de “AA”, sendo seus anteriores titulares inscritos “BBB” e “CCC [M].
23. Encontra-se descrito, na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede, sob o nº 0000000000, a aquisição do prédio rústico “Bairrinho Vermelho”, pinhal e mato, com a área de 9.890 m2, a confrontar do Norte com VV do Sul com ZZ, do Nascente com DDD e do Poente com EEE, por AA, casado no regime de comunhão geral de bens com BB, por compra e venda a FFF viúva, GGG casada no regime de separação com HHH, III solteiro, JJJ solteiro, KKK, solteira, e LLL, divorciada (G1 -ap- 10/160501) [N].
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da natureza jurídica dos co-avalistas de um mesmo obrigado cambiário.
II – A questão da legitimidade do co-avalista para accionar os demais.
III. A questão da quota-parte da responsabilidade dos co-avalistas entre si.

I. DA NATUREZA JURÍDICA DOS CO-AVALISTAS DE UM MESMO OBRIGADO CAMBIÁRIO

Sustenta o réu EE que inexiste o direito alegado pelos autores de reclamar o reembolso de uma quota parte da quantia que pagaram à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada, uma vez que os co-avalistas de um mesmo obrigado cambiário não se acham vinculados entre si por obrigações de natureza cartular, nem é lícita a invocação analógica do regime da fiança civil, a fim de repartir pelos demais co-avalistas a responsabilidade assumida, a menos que todos eles houvessem convencionado, extracartularmente, tal regime para regulação das suas relações internas.
Efectuando uma síntese do essencial da factualidade relevante que ficou consagrada, importa reter que a sociedade comercial “M.........., Lda.” subscreveu e entregou à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Mealhada uma livrança, no valor equivalente a €59.797,08, destinada a garantir um financiamento de igual montante, objectivado através de um contrato de mútuo que esta concedeu aquela sociedade, sendo certo que, no verso do referido título, e sob os dizeres manuscritos “dou o meu aval aos subscritores”, os autores apuseram as respectivas assinaturas, conjuntamente com os réus EE, CC e esposa, DD, FF e GG, entretanto, habilitados pelos restantes réus.
Porém, os autores, que apenas prestaram à referida livrança um aval de favor, por tal lhes ter sido peticionado pelos gerentes da sociedade, os réus HH e esposa, II com quem tinham boas relações pessoais, como a referida sociedade nada pagou à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada, nem mostrou qualquer interesse em fazê-lo, porque já não dispunha de património consistente, aliás, viria a ser declarada falida, enquanto que os restantes avalistas não tinham património de relevo, viram penhorada, em execução proposta contra aqueles, os primeiros e segundo réus, pela aludida entidade bancária, no quantitativo de 12.086.452$00, a totalidade do seu património, acabando por ser forçados a pagar a quantia em divida, como única forma de evitar a venda judicial do seu património, satisfazendo à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada este montante, equivalente a €60.287,00.
Dispõe o artigo 30º, I e II, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), aplicável à livrança, por força do preceituado pelo respectivo artigo 77º, ultimo paragrafo, que “o pagamento de uma letra [livrança] pode ser no todo ou em parte garantido por aval”, sendo certo que “esta garantia é dada por um terceiro ou mesmo por um signatário da letra [subscritor da livrança]”.
Assim, a função do aval, na livrança, consiste em garantir o seu pagamento, o direito de crédito cambiário com o seu valor patrimonial, por parte de um dos seus subscritores, na data do respectivo vencimento, em consequência da convenção estabelecida entre o mesmo e o avalista.
Trata-se, em geral, de um acto cambiário de mero favor, prestado por terceiro, não signatário da livrança, em que o avalista oferece uma garantia à obrigação cartular do avalizado, por cuja responsabilidade se mede a do avalista, embora, materialmente, autónoma da daquele, e não à obrigação subjacente (1)
Por outro lado, estipula ainda o artigo 32º, I e II, que “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”, e se “ paga(r) a letra [livrança], fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra [livrança] contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra [livrança]”, acrescentando o respectivo artigo 47º, I e II, ambos da LULL, que “os…avalistas de uma letra [livrança] são todos solidariamente responsáveis para com o portador”, sendo certo que “o portador ou qualquer dos signatários de uma letra [livrança] quando a tenha pago tem o direito de accionar todas estas pessoas, individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram”.
Porém, o aval em análise não foi dado a favor dos réus, nem estes estão obrigados a favor da pessoa em causa, porquanto apenas se encontram vinculados a favor do beneficiário da livrança, que é a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada, e não do subscritor da mesma, a sociedade “M.........., Lda”.
Com efeito, os autores, em consequência do pagamento da livrança ao Banco beneficiário, receberam o título por endosso, sendo, então, aqueles, embora endossados, conjuntamente com os ora réus, também, avalistas, responsáveis pelo pagamento da aludida livrança para com o beneficiário, não deixando, portanto, os autores de, apesar de endossados, ser, igualmente, avalistas.
Assim sendo, o direito de regresso dos autores, em relação aos réus, decorre não de uma relação cambiária, regulada pela Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, mas antes de uma relação de solidariedade entre devedores, disciplinada pelo Direito Civil.
Deste modo, as relações entre os avalistas, ou seja, entre autores e réus, não são de natureza cambiária, em conformidade com a consideração 75 do relatório da Conferência de Genebra, que aprovou a Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, ao estabelecer, em termos de constituir uma verdadeira interpretação autêntica do respectivo articulado, que “não havia entre co-avalistas relações cambiárias, mas somente de direito comum, que uma lei uniforme sobre letras não tinha de regular”.
Tratando-se de vários co-avalistas, como acontece na hipótese em apreço, o aval é colectivo, pelo que, pelo menos, à face da lei cambiária, nenhum direito de regresso cabe a um avalista de aceitante de letra ou de subscritor de livrança que pague o respectivo título, em relação a algum seu co-avalista.
Com efeito, se o avalista pagar a livrança, apenas fica sub-rogado nos direitos emergentes deste título contra o avalizado e contra os obrigados para com este, em virtude da livrança, razão pela qual não sendo os réus avalizados, mas avalistas da subscritora da livrança, nem sendo obrigados para com esta, não dispõem os autores do direito de regresso contra aqueles, em termos de acção cambiária, pois que só podem usufruir desta acção contra aquela subscritora, e não contra os demais co-avalistas, sendo certo que a LULL não prevê um nexo cambiário que faculte ao avalista que paga ao portador accionar, cambiariamente, os seus consócios no aval (2).
Sendo o aval um verdadeiro acto cambiário, encontra-se, desde logo, sujeito ao regime jurídico cambiário, mas a que se aplicam os princípios fundamentais reguladores da fiança que o regime específico da lei cambiária não afaste, explicitamente.
De todo o modo, independentemente da caracterização sobre a natureza jurídica do aval, quer o mesmo se considere como uma fiança cambiária ou antes como uma obrigação autónoma, a LULL responsabiliza o avalista da mesma forma que a pessoa afiançada (3).
Porém, não obstante a inexistência de relações cambiárias entre os diversos co-avalistas do mesmo subscritor, sendo a obrigação daqueles, perante o avalista que pagou, não uma obrigação cambiária, mas antes uma obrigação de direito comum, regulável pelas normas que disciplinam o instituto da fiança, por ser aquele com o qual apresenta maiores afinidades, e que possibilitam aquele que pague a letra ou a livrança accionar não, cambiariamente, os seus co-avalistas, para com eles dividir a parte não cobrada dos devedores principais (4).
Ora, o co-avalista que pagou a livrança ao tomador é o portador legítimo do título, gozando de legitimidade para accionar os demais co-avalistas, reclamando destes, que a não satisfizeram, o pagamento do seu montante (5). , na qualidade de obrigados de regresso (6).
Efectivamente, o avalista responsabiliza-se pelo pagamento da letra ou da livrança e, no caso de vir a satisfazer o seu montante, pode exigir a importância respectiva, tanto da pessoa a favor de quem prestou o aval, como de qualquer signatário para com esta obrigado, independentemente de ter de demandar, em primeiro lugar, o avalizado, para depois, e, só na recusa deste, exigir o pagamento a qualquer outro signatário.
E, tendo o portador da livrança exigido, judicialmente do co-avalista do subscritor, em acção comum não cambiária, o pagamento da totalidade do título, este goza do direito de regresso contra os demais co-avalistas (7).
Na verdade, estipula o artigo 43º, da LULL, de igual modo, aplicável à livrança, por força do disposto no artigo 77º, do mesmo diploma legal, que “o portador da letra [livrança] pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados”.
Tendo-se constituído entre o Banco financiador e a sociedade subscritora uma obrigação de mútuo, de que esta é o mutuário, o recorrente, gerente da ré, ao subscrever a carta proposta do aceite bancário, os autores e os réus, para além de se terem responsabilizado como avalistas da subscritora da livrança, responsabilizaram-se, também, por via de assunção cumulativa, como co-devedores solidários da obrigação de mútuo.
O pagamento de uma livrança, por algum dos seus co-avalistas, extingue a obrigação perante o portador do título, mas não desonera os condevedores solidários da responsabilidade pela sua parte da obrigação, no âmbito das relações internas, gozando o avalista que pagou a letra da faculdade de accionar, colectiva ou individualmente, o aceitante e outros avalistas, por serem devedores solidários, respondendo os herdeiros do avalista em bloco, colectivamente, e cada qual, em nome individual, por uma quota proporcional ao número dos herdeiros e à parte que, na herança, cada um tiver(8)..

II. DA LEGITIMIDADE DO CO-AVALISTA PARA ACCIONAR OS DEMAIS

Alega o réu, desde logo, que os autores não têm o direito de reclamar o reembolso da quantia paga, por não terem provado serem os legítimos portadores da livrança, porquanto o título não se encontra presente nos autos, e não haverem demonstrado serem os legítimos donos do mesmo, para além de que aqueles transmitiram o crédito à sociedade “Niaricar”.
Esta questão que, na ordem sequencial das alegações da revista do réu EE, foi suscitada, em primeiro lugar, é, contudo, objecto de apreciação, em segundo lugar, com o propósito manifesto de que a respectiva solução possa beneficiar da análise efectuada no ponto I, quanto à natureza jurídica dos co-avalistas de um mesmo obrigado cambiário.
A acção cambiária é a que emerge, directamente, e tem como base exclusiva um título cambiário, cuja assinatura constitui a sua causa de pedir, aquela em que se pede o seu valor, ou seja, o respectivo pagamento (9), podendo ser uma acção cambiária directa quando é dirigida pelo portador legítimo contra o devedor principal, ou uma acção cambiária de regresso quando é dirigida pelo portador legítimo contra os obrigados de regresso, como seja o avalista do subscritor da livrança.
Por outro lado, a acção causal, que é uma acção de direito comum, é aquela que resulta do negócio subjacente que determinou a obrigação cambiária.
Assim sendo, a presente acção, pela sua configuração, quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, em que os autores, na qualidade de avalistas da subscritora da livrança, tendo pago o seu montante, vêm reclamar dos demais co-avalistas a quota-parte da sua responsabilidade no aval, não pode ser qualificada como uma acção cambiária, quer directa, quer de regresso, mas antes como uma acção causal de direito comum.
Ora, sendo uma acção causal de direito comum, a posse da livrança não condiciona o exercício do respectivo direito, não se mostrando imprescindível à efectivação do crédito reclamado pelos autores.
Por outro lado, como já foi dito em I, os autores, em consequência do endosso realizado pelo Banco beneficiário, tornaram-se portadores legítimos da livrança, razão pela qual é despicienda a questão da existência física deste título nos autos ou a realização de uma cessão de créditos dos autores, a favor de uma entidade terceira, cuja factualidade, aliás, se não demonstrou.

III. DA QUOTA-PARTE DE RESPONSABILIDADE DOS CO-AVALISTAS

Finalmente, entende o réu recorrente que os autores apenas teriam direito a reclamar daquele 1/7 da quantia de €60.287,00, que pagaram à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada, ou seja, o montante máximo de €8.612,43, por serem sete os obrigados ao pagamento da dívida, com base no disposto pelos artigos 516º, 524º e 650º, nº 1, do Código Civil, e 32º, III, «a contrario», da LULL.
A LULL não regula as relações entre os co-avalistas, no caso de apenas um ou parte deles terem procedido ao pagamento da letra ou da livrança, mas estatui, no seu artigo 47º, I, que “os…avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador”.
Assim sendo, aplicando-se os princípios pertinentes do regime da solidariedade civil, independentemente das naturais diferenças existentes entre o regime da fiança e do aval, estipula o artigo 524º, do CC, que “o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete”, acrescentando o artigo 516º, que “nas relações entre si, presume-se que os devedores… solidários comparticipam em partes iguais na dívida…, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito, acrescentando o artigo 650º, no seu nº 1, também, do CC, que “havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores”, em consonância com a norma do artigo 32º, da LULL, que preceitua que “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada” [I], e se “ paga(r) a letra [livrança], fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra [livrança] contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra [livrança]” [III].
Deste modo, o avalista que pagou, em quantia superior à que lhe competia, tem direito de reaver dos restantes avalistas a parte que a cada um destes compete, que se presume ser igual para todos.
Se o credor, neste caso, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Mealhada, tem direito, por força do regime da solidariedade passiva, no âmbito das relações externas, a exigir a totalidade da dívida de qualquer um dos devedores, o que aconteceu, em relação aos autores, já no domínio das relações internas, ou seja, entre os avalistas, o devedor solidário que satisfez o direito do credor, para além da parte que lhe competia no débito comum, goza do direito de regresso contra cada um dos condevedores pela quota respectiva (10).
E, não tendo o réu recorrente alegado e provado que a responsabilidade dos co-avalistas, nas relações internas, era diversa, como lhe incumbia, nos termos do estipulado pelo artigo 342º, n.º 2, deverá aplicar-se o disposto no referido artigo 516º, ambos do CC, que prevê, na ausência de afastamento da presunção ilidível que ao caso compete, a igual responsabilidade, nas relações internas, entre os devedores solidários (11).
Ora, tratando-se, na hipótese em apreço, de uma situação de quatro linhas de avalistas, independentemente do estado civil de cada um deles, porquanto os avalistas casados preenchem idêntica fracção de um quarto dos avalistas não casados, considerando o montante da livrança pago pelos autores, no quantitativo de €60280,00, a quota-parte respectiva que compete a cada um deles e, naturalmente, ao réu EE, também, é de €15070,00.
Por isso, o réu recorrente responde por um quarto do valor da livrança, no total de €15070,00, por serem quatro os avalistas, tal como aconteceu, e não por um sétimo do mesmo, como se existissem em presença sete linhas de avalistas, como aquele pretende.
Efectivamente, o número dos condevedores solidários que respondem pelo aval não se multiplica em função do respectivo estado civil ou das pessoas habilitadas, em consequência do falecimento de ambos os membros do casal dador do aval.
Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes do recurso de revista do réu EE.

CONCLUSÕES:

I - O direito de regresso dos autores, avalistas que pagaram a totalidade da livrança exequenda ao Banco beneficiário, e que, consequentemente, a receberam por endosso, são, embora endossados, conjuntamente com os ora réus, também, avalistas, responsáveis pelo pagamento da aludida livrança, perante aqueles, não por força da relação cambiária, regulada pela Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, mas antes da relação de solidariedade passiva entre devedores, disciplinada pelo Direito Civil.
II - O co-avalista que pagou a livrança ao tomador é o portador legítimo do título, gozando de legitimidade para accionar os demais co-avalistas, reclamando destes, que a não satisfizeram, o pagamento do seu montante, na qualidade de obrigados de regresso.
III - O direito de regresso que cabe ao avalista que pague a livrança ao subscritor, em relação a qualquer um dos seus co-avalistas, não se exercita através de uma acção cambiária, mas antes de uma acção causal de direito comum, regulável pelas normas que disciplinam o instituto da fiança.
IV – Na acção causal de direito comum, a posse da livrança não condiciona o exercício do respectivo direito, não se mostrando imprescindível à efectivação do crédito reclamado pelos autores.
V - Tendo-se constituído entre o Banco financiador e a sociedade subscritora uma obrigação de mútuo, os autores e os réus, para além de se terem responsabilizado como avalistas da subscritora da livrança, responsabilizaram-se, também, por via de assunção cumulativa, como co-devedores solidários da obrigação de mútuo.
VI - O avalista que pagou ao tomador da livrança, em quantia superior à que lhe competia, por força do regime da solidariedade passiva, no âmbito das relações externas, perante o credor, tem direito de reaver dos restantes avalistas, no domínio das relações internas, com base no direito de regresso, a parte que a cada um destes compete, que se presume ser igual para todos, nas relações entre os devedores solidários.
VII - O número de condevedores solidários que respondem pelo aval não se multiplica em função do respectivo estado civil ou da habilitação a que se procedeu, em consequência do falecimento de ambos os membros do casal dador do aval.
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido.

Custas da revista, a cargo do réu EE.

Notifique.
Lisboa, 13 de Julho de 2010
Helder Roque (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
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(1) Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, III. 1966, 204 e 197; STJ, de 25-7-1978, BMJ nº 279, 214.
(2) Gonçalves Dias, Da Letra e da Livrança, 7º, 583 e ss.
(3) RT, 57º, 84.
(4) STJ, de 29-4-2008, Pº nº 08A1103, in www.dgsi.pt
(5) STJ, de 11-3-1960, BMJ nº 95, 273.
(6) Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 5ª edição, Actualizada, 1984, 264 e 265.
(7) STJ, de 27-11-1962, BMJ nº 121, 355.
(8) STJ, de 18-11-1958, BMJ nº 81º, 445.
(9) STJ, de 13-2-1959, BMJ nº 84, 534, RLJ, Ano 86º, 364.
(10) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 537 e 551.
(11) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 532; STJ, de 15-11-2007, Processo nº 07B1296, in www.dgsi.pt; STJ, de 16-3-56, BMJ nº 55, 299; e STJ, de 22-4-54, BMJ 43, 536.STJ, de 13-2-1959, BMJ nº 84, 534, RLJ, Ano 86º, 364.