JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
POSSE
USUCAPIÃO
DETENÇÃO
ANIMUS
PRESUNÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Sumário


1. A reconvenção tem de ser expressamente identificada e deduzida separadamente pelo réu, na contestação.
2. Não estando provado como ou a que título se iniciou a detenção de um prédio pelos recorrentes, a posse só se poderia ter constituído na sua esfera jurídica através do apossamento.
3. Adquirida a posse, é indispensável à aquisição por usucapião que se mantenha durante um determinado lapso de tempo.
4. O nº 2 do artigo 1252º do Código Civil inverte o ónus da prova quanto à existência de posse, assente na prova de que existe detenção.
5. O regime definido pelo nº 1 do artigo 343º do Código Civil não colide com a presunção constante do nº 2 do artigo 1252º do mesmo diploma, apenas inverte o ónus da prova em relação a um dos pressupostos de constituição do direito de propriedade que, nos termos daquele nº 1, incumbiria ao réu.
6. A aquisição por usucapião provoca a extinção dos direitos incompatíveis com o que por aquela via foi adquirido; se foi o direito de propriedade plena, seguramente se extinguiu qualquer outro direito de propriedade plena eventualmente existente, por não poderem subsistir ambos.

Texto Integral



Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. EDP – Electricidade de Portugal, SA, sociedade aberta, instaurou em 28 de Outubro de 2003, contra AA e mulher, BB (entretanto falecida, sendo habilitados como seus herdeiros AA, CC, DD, EE e FF), uma “acção declarativa de simples apreciação negativa com vista à impugnação da escritura pública de justificação notarial”, na qual pediu:
– que fosse “declarado que os RR. não têm o direito de propriedade sobre o prédio que foi objecto da escritura de justificação notarial outorgada em 06/08/2003 no Cartório Notarial de Cinfães onde ficou exarada no livro E [95-E] a folhas 45 a 48 [46 a 47 verso], uma vez que, nos termos do supra alegado, o mesmo é pertença da A., e faz parte integrante dos prédios identificados nos Arts. 15º, 16º e 17º da presente acção de impugnação;
que fosse declarada “nula e de nenhum efeito a escritura pública de justificação notarial identificada na alínea anterior”.
Para o efeito e em síntese, alegou ter sucedido nos direitos e obrigações da Companhia Portuguesa de Electricidade – CPE, SARL, para a qual foram transmitidos os direitos e obrigações de Hidro-Eléctrica do Douro, SARL, entre os quais se incluía o direito de propriedade sobre determinados prédios, que identifica; que a área do prédio que, na referida escritura, os réus declararam ter-lhes sido doado verbalmente por Hidro-Eléctrica do Douro, SARL, está abrangida nesses prédios; que nunca ocorreu tal doação; que os réus nunca tiveram a posse do prédio; que são falsas as declarações nesse sentido constantes da escritura de justificação; que, diferentemente, apenas lhes foi permitido “cortar o mato que crescesse no prédio”, em data “bastante posterior ao ano de 1967”.
Os réus contestaram, dizendo, nomeadamente, que arrendaram o prédio “há mais de quarenta anos ao Senhor GG”, seu proprietário, e que passaram então a residir no mesmo; que lho compraram em 1967; que desde então o ocupam “como verdadeiros proprietários”, publica e pacificamente, praticando diversos actos, que descrevem; que a referência, na escritura, à doação “ficou a dever-se a lapso de instrução da escritura a que [os próprios] e as testemunhas são alheias”; que “a posse efectiva” por si exercida “constitui justo título de aquisição da propriedade”.
A autora replicou.
Pela sentença de fls. 695, a acção foi julgada totalmente improcedente. Em síntese, o tribunal teve como demonstrada a aquisição do direito de propriedade pelos réus, por usucapião, por entender estar demonstrada, objectivamente, a posse boa para o efeito; e por se presumir, em virtude do disposto no nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, interpretado pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 14 de Maio de 1996, do Supremo Tribunal da Justiça, o correspondente animus.
A sentença, porém, foi revogada pela Relação do Porto. Contrariamente à 1ª Instância, a Relação considerou não ser aplicável esta presunção, nestes termos: “Não cremos, porém, e salvo o devido respeito, que a solução deste caso se possa enquadrar no instituto previsto no Artº 1252º, nºs 1 e 2, que, como se assinala na sua epígrafe, respeita ao exercício da posse por intermediário. É que só quando a posse, em vez de ser exercida pessoalmente o está a ser por intermédio de outrem, havendo dúvidas sobre quem está a exercer a posse (com animus) se presume a posse naquele que, no caso, exerce o poder de facto. Ou seja, o que se serve de intermediário para exercer a posse, é que tem o ónus de provar que este (intermediário), como detentor do poder de facto não tem o animus, porque subsistindo dúvidas sobre se é ele ou o intermediário que a exercem ( com animus), a posse presumir-se-á naquele que exerce o poder de facto, porventura o intermediário, neste se presumindo, obviamente, também o “animus”.

2. Os réus recorreram para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi recebido como revista.
Nas alegações de recurso, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:

«1- Foi intentada pela A. aqui Recorrida acção para declarar a nulidade da escritura de justificação sobre o imóvel nos autos melhor id., bem como para declarar o não reconhecimento do direito de propriedade dos RR, ora Recorrentes sobre o mesmo. A acção foi julgada pelo Tribunal de lª instância totalmente improcedente.
2- Desta sentença recorreu a A. para o Tribunal da Relação do Porto, o qual proferiu Acórdão que confirma parcialmente a decisão da 1ª Instância, mas decide indeferir o reconhecimento do direito de propriedade dos RR, aqui recorrentes, com fundamento em razões de Direito, mais concretamente na falta de prova do elemento subjectivo da posse, o "animus ".
3- Os Recorrentes, com o devido respeito pela decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, não concordam com a mesma.
4- Apesar de não ter sido questão abordada pela A., ora recorrida, ou pelos RR., ora recorrentes, nem objecto de decisão pelo Tribunal da Relação do Porto, deve ser a acção julgada improcedente uma vez que aquela, A., não logrou provar que o prédio em causa nos autos e objecto da escritura de justificação correspondia a parte dos prédios descritos em D, E e J dos Factos Assentes.
5- A prova do nº1 da B.I. incumbia à A. e não a tendo feito deve, como foi dito, ser a acção ju1gada improcedente.
SEM PRESCINDIR
6- De acordo com art. 1251 ° C.C. a posse é definida do seguinte modo: "Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. ". A mesma pode ser adquirida pelos modos previstos no art. 1316° C.C., no caso em concreto defendemos a sua aquisição originária por Usucapião por parte dos recorrentes.
7- Os requisitos para esta aquisição vêem consagrados no art. 1287° C.C. - "A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.". Tais requisitos relativos à matéria de facto foram já dados como assentes e provados em ambas as instâncias, com a excepção do elemento subjectivo "animus", elemento que juntamente com o elemento objectivo, "corpus ", caracteriza a posse.
8- O elemento subjectivo "animus" corresponde a um exercício da posse "por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real", conforme refere o Prof. . Orlando de Carvalho in RLJ 124 pág. 168.
9- A solução do direito Português exige ambos os elementos "corpus " e "animus ", para a existência da posse como direito real pleno, embora o nosso Código Civil esteja marcado nas suas normas pela teoria objectivista, já que apenas no art. 1253" C.C.., expressamente se encontra referência ao elemento subjectivo "animus”.
10- Tendo em conta as dificuldades em demonstrar a posse em nome próprio (o "animus "), estabeleceu-se uma verdadeira presunção "iuris tantum" a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o "corpus " também tem o "animus ", cfr. 1252° nº 2, Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 14/05/96 in DR II S, de 24/06/96 e ainda Acórdãos do STJ de 9/1/97 e 2/5/99 respectivamente in "CJ/STJ-TS-37" e "CJ/STJ, T2-126".
11- Os vários Acórdãos e Jurisprudência citados ao longo do presente, são apenas alguns de vários exemplos que foram fixados na aplicação dessa presunção, contida no art. 1252° C.C., a situações com idêntica dificuldade e contornos.
12- A maioria da Jurisprudência não tem opinião semelhante à que vem contida no douto Acórdão, objecto de recurso, na medida em que não se cingem à letra da lei, mas fazem uma interpretação extensiva da mesma, aumentando o âmbito de aplicação da presunção "iuris tantum", contida no art. 1252° C.C., e defendendo que em caso de dúvida acerca da existência do "animus", perante a presença do "corpus ", esta existência se presume, não aplicando a presunção apenas quando a posse é exercida por intermediário, como foi entendimento do acórdão de que se recorre, mas também quando é exercida em nome próprio, conforme já preceituado em 1867 no art. 481° nº 1 C.C.
13- De referir e aplicar ao presente é o Acórdão do Supremo Tribunal e Justiça de 04/12/2007 – provado o "corpus " da posse e não o "animus" este último presume-se pela existência do primeiro.
"Embora não tivesse resultado provado que os RR praticassem tais actos com o "animus"de exercerem o direito de propriedade sobre o mesmo prédio (…), sempre se poderá afirmar que subsiste uma situação de dúvida por também não se ter apurado que tenha agido como simples detentores (anotação do Prof. Henrique Mesquita ao acórdão do STJ de 09/01/1997, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 132, pp. 23 e segs.) ".
Bem como,
14- O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/01/2005, já citado:
“I - Considerando a dificuldade de ser demonstrada uma dada posse em nome próprio, ou seja o "animus ", a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) da dita posse a favor de quem detém ou exerce poderes de facto sobre uma coiisa, ou seja, presume-se que quem tem o "corpus " também tem o "animus ",
II - Face ao estatuído no art.1268°, n çº1, do C.C., o possuidor goza da presunção ao titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse. "
15- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/1 0/2008 – "Como a prova do "animus " pode ser muito difícil é estabelecida uma presunção legal que nos diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorrendo que o exercício do "corpus " faz presumir a existência do "animus ". "
16- O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2009, defende a mesma solução para estas situações ao decidir:
"VI - A inversão do título da posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio (não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base: necessário se torna que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de actuar como titular do direito). (. . .)
VIII - Em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto - art. 1252º n °2 C.C.., presunção que subjaz a dificuldade de provar o dito "animus ". "
Podendo adquirir por Usucapião, se a presunção da posse não for elidida, os que exercem poder de facto sobre a coisa.
17- Pelos Acórdãos mencionados é clara uma aplicação reiterada da mesma solução a casos análogos ao presente, tem sido prática comum que perante a dificuldade na prova da existência do elemento subjectivo da posse "animus", por quem prova ter o elemento objectivo "corpus ", se presume a existência do primeiro na falta de prova em contrário.
18- A posse dos recorrentes está revesti da de "corpus " e de "animus "; a actuação dos Recorrentes não revela uma vontade segundo a qual estariam a agir sem o "animus possidendi", não caindo desta forma numa posse precária ou simples detenção;
Nestes termos e nos melhores que doutamente forem supridos, deve ser concedida Revista e, em consequência revogada a douta decisão recorrida, e a Recorrida ser condenada no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel objecto dos autos, e neles melhor id., pela Aquisição Originária do mesmo por Usucapião, com o que assim se fará boa e são justiça!».

A recorrida veio sustentar a manutenção do decidido, afirmando, por entre o mais:

«1 - Nas suas alegações os Recorrentes suscitam duas grandes questões que, a seu ver, justificarão a presente revista e permitirão a modificação da douta decisão posta sob censura, sendo a primeira delas aquela que se prende com o facto do douto Acórdão enfermar por omissão de aspecto decisivo para a apreciação da matéria da acção, e a segunda que tem a ver com o entendimento que os Recorrentes têm no sentido de estarem verificadas e provadas as circunstâncias de facto e de direito que permitem atribuir-lhes o direito de propriedade sobre o prédio em mérito, por via da aquisição originária, dado que, fizeram a prova do corpus da posse e gozam da presunção relativa "iuris tantum", do "animus", afirmando que agiram como verdadeiros possuidores;
2 - Contrariamente ao que alegam os Recorrentes, no que tange à primeira das questões enunciadas, o Venerando Tribunal da Relação do Porto não deixou de se pronunciar sobre qualquer aspecto decisivo para a apreciação da matéria da acção;
3- O douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, aborda, de forma pormenorizada e fundamentada, quer sob o ponto de vista formal quer sob o ponto de vista material, todas as questões a que foi chamado a pronunciar-se, apresentando uma estrutura formal lógica, correspondendo a afirmação da decisão à natural consequência da fundamentação desenvolvida, inexistindo qualquer vício lógico;

4- O douto Acórdão em mérito refere, expressamente, o seguinte que, por ser tão evidente e tão rigoroso, não podemos, deixar de transcrever:
"É também por isso que nos não admira que o Tribunal tenha respondido negativamente aos aludidos quesitos relacionados com o abordado "animus", se tivermos em linha de conta que os documentos juntos ao processo pela Autora nos demonstram que esta chegou a expropriar uma extensa área de terreno (proc. de expropriação n° 44/1965) com cerca de 12.890m2, aquando do empreendimento do "Aproveitamento Hidroeléctrico de Carrapatelo", área essa distribuída por vários artigos matriciais, situada em concelho de Baixo, lugar de Mourilhe, freguesia de S. Cristóvão de Nogueira, concelho de Cinfães, que até pode compreender pelo menos em parte (e embora isto também não esteja provado) o prédio justificado pelos Réus, além de ter adquirido, por compra, outros prédios nessas redondezas, alguns deles registados em seu nome, conforme também, consta da matéria de facto assente."
5- O douto Acórdão em crise teve em devida consideração o que se encontra vertido no Art.° 1º da Base Instrutória, inexistindo, pois, qualquer omissão quanto a aspecto decisivo para a apreciação da matéria da acção, sendo certo que o constante do Art.º 1º da Base Instrutória não apresenta qualquer relevância jurídica na questão decidida, tanto mais que existem nos autos meios de prova (documental e testemunhal) mais que suficientes, para poder firmar a decisão no sentido tirado pelo douto Acórdão Recorrido;
6 - À data em que os Réus/Recorrentes invocaram que lhes terá sido feita a doação verbal do prédio ora por si justificado (1967), a Hidroeléctrica do Douro havia acabado de comprar e de expropriar os prédios cujas áreas estão em parte integradas naquele que os Réus reclamam agora como sendo seu, para, nesse mesmo ano, dar início à construção do Aproveitamento Hidroeléctrico do Carrapatelo, destinando-se tais terrenos para esse efeito (Barragem, zona de protecção e estaleiro);
7 - Como facilmente se torna perceptível e resulta, aliás, das regras e da experiência comum e de acordo com o critério de um homem médio, a Hidroeléctrica do Douro não iria, como não foi, comprar/expropriar terrenos que se destinavam ao referido aproveitamento, suportando todos os inerentes encargos com tais aquisições, para, de imediato, os doar a quem nada tinha a ver consigo, e para fins que em nada tinham a ver com a sua actividade;
8 - Resulta da Lei e constitui direito imperativo "ius cogens" que as doações de coisas imóveis só são válidas se forem celebradas por escritura pública, como, aliás, se encontra melhor consignado no Art.° 947° do Código Civil;
9 - Ninguém de bom senso, nem ninguém de boa fé, pode acreditar que uma empresa como a Hidroeléctrica do Douro, SARL, dispondo, como dispunha, ao tempo, de assessoria jurídica, levaria a cabo – que não levou – o negócio jurídico alegado pelos Réus (doação verbal) na sua escritura de justificação notarial, sabendo de antemão que, não só tal negócio estaria, desde início, inquinado de vício de forma, isto é, nulo por inobservância da forma legalmente prescrita, mas, também, que o mesmo negócio era contrário ao objecto e fins societários prosseguidos pela Hidroeléctrica do Douro, SARL, e sendo certo que negócios desta natureza são decididos pela administração da sociedade que, de acordo com as boas práticas e as regras de gestão exigíveis, nunca formalizariam tal negócio através de declaração verbal, por não ser essa, até, a forma normal e regular de procedimento da empresa;
10 - Sempre terá, pois, de improceder a primeira das questões invocadas pelos Recorrentes por inexistir qualquer omissão no douto Acórdão recorrido, uma vez que o Venerando Tribunal da Relação do Porto abordou tal questão, mas também por a mesma não se mostrar decisiva ou de particular relevo quanto ao mérito da decisão proferida, razão pela qual a resposta negativa dada pelo Tribunal da 1ª Instancia ao quesito 1º da Base Instrutória não impõe a improcedência da acção, como errada e infundadamente sustentam os Recorrentes;
11 - De igual modo não assiste razão aos Recorrentes quando afirmam que estão verificadas e foram provadas as circunstâncias, de facto e de direito, que lhes permitem atribuir o direito de propriedade sobre o prédio em questão, por via da aquisição originária, dado que, em seu entender, tendo feito a prova do corpus (elemento objectivo) da posse, gozam da presunção, relativa, do "animus" (elemento subjectivo), nos termos do que se encontra consignado no Art.° 1252°, n° 2 do Código Civil, afirmando, que agiram como verdadeiros possuidores;

12 - Os Recorrentes não conseguem apontar um único argumento ou fundamento que seja idóneo a poder destruir ou abalar o correcto, justo, bem fundado e rigoroso entendimento que vem, doutamente, traçado e melhor explicitado no Acórdão recorrido, limitando-se a invocar um conjunto de Acórdãos que curam de situações que justificaram a aplicação do Art.° 1252°, n° 2 do Código Civil – casos em que existe dúvida e que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto;
13 - Os Recorrentes nas suas doutas alegações, em quebra do devido respeito por entendimento contrário, não deram cumprimento ao disposto nos Art.°s 724, n° 1 e 690°, n° 1 e 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil ao tempo aplicável, não tendo, de forma expressa, claro está, apontado as normas jurídicas violadas, o sentido com que no entender dos Recorrentes as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas e a norma jurídica que, no entendimento dos Recorrentes devia ter sido aplicada.
14 - As situações de facto que justificaram ou consentiram na aplicação do direito por parte deste Supremo Tribunal de Justiça e que versam nos Acórdãos referenciados pelos Recorrentes não são nem iguais nem similares àquela que é objecto dos presentes autos;
15 - Também quanto à doutrina invocada pelos Recorrentes a mesma serve apenas para casos gerais ou abstractos, isto é, para hipóteses, meramente, teóricas e académicas e que não se mostra possível de aplicar ao caso concreto que é objecto do presente recurso;
16-O recurso a uma escritura publica de justificação notarial constitui, inquestionavelmente, uma forma mais simples, expedita, de conseguir a demonstração ou comprovação aparente do direito sendo que, se for alegada a usucapião baseada em posse não titulada os próprios interessados devem, expressamente, mencionar as circunstâncias de facto que determinaram o início da posse e todas as demais que consubstanciem e caracterizem a posse geradora da usucapião;
17 - Tal forma, não exige o contraditório e apenas apresenta como requisito a confirmação por três declarantes das afirmações produzidas pelos próprios interessados (vide Art.° 96° do Código do Notariado);
18- O título que provém duma escritura de justificação notarial é, pois, muito simples quanto à consistência da prova do direito que aquela consubstancia, só prevalecendo na ordem jurídica enquanto não for contestada por quem nisso, comprovadamente, se mostre com legitimidade e interesse;
19 - A lei, ao consentir o recurso a uma escritura de justificação, pretende que a mesma sirva, apenas e tão só, para proporcionar aos interessados uma prova, isto é, uma prova mais facilitada, de um direito que realmente possuem e não para que dela se sirvam com a intenção de conseguir ratificar, aprovar ou espalhar uma mentira que contribua para falsear a real e efectiva situação jurídica dos prédios em vez de a esclarecer;
20 - No caso de que os presentes autos curam, os ora Recorrentes justificaram o direito a que se arrogam com base no usucapião, alegando, para o efeito, que exerceram actos de posse no imóvel em questão, a partir de uma doação verbal, não logrando inscrevê-lo em seu nome na respectiva Conservatória do Registo Predial atenta a pronta e tempestiva reacção deduzida pela Autora e ora Recorrida;
21 - Cumpre fazer notar que, a acção de impugnação judicial da escritura de justificação pela qual a impugnante (Autora) peticiona ao Tribunal que declare que os justificantes (Réus) não têm o direito justificado, consubstancia, nos termos do preceituado no Art.° 4º, n° 2, al. a), do C.P.C., uma acção de simples apreciação negativa;
22 - Como consta doutamente da decisão Recorrida, o invocado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 2007, uniformizou as diferentes posições ou entendimentos jurisprudenciais que existiam sobre esta matéria e veio fixar doutrina no sentido de que "Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos 116°, n° l, do Código do Registo Predial e 89° e 101° do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito, de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7° do Código do Registo Predial".
23 - Face a tal doutrina, e tendo em consideração que os Recorrentes não chegaram a inscrever, como, na verdade, não inscreveram, no registo, em seu nome o prédio em apreço, não obstante terem título, como bem se refere no Acórdão Recorrido, por argumento, até, de maioria de razão, impende, necessariamente, sobre os justificantes a demonstração ou comprovação dos factos constitutivos do direito que justificaram, uma vez que não puderam, nem podem, beneficiar da presunção da titularidade do direito consignada no Art.° 7º do Código do Registo Predial;
24 - Competia aos ora Recorrentes demonstrar, na acção de impugnação, que exerceram sobre o prédio em mérito uma posse relevante, atendível, para efeitos aquisitivos, isto é uma posse não só com "corpus" mas também com "animus", de forma pública e pacífica, e pelo tempo indispensável à respectiva aquisição por usucapião, tudo nos termos do que melhor resulta do preceituado nos Art.°s 1251°, 1261°, 1262°, 1263°, a), 1287°, 1296° e 1297°, todos do Código Civil, o que não lograram fazer;
25 - Só uma posse com "corpus" e "animus" consente presumir a titularidade do direito e releva para efeitos aquisitivos, razão pela qual se exige que quem a invoca tenha a indeclinável obrigação de comprovar ou demonstrar não só a materialidade correspondente ao exercício do respectivo direito (corpus ou elemento objectivo) mas, também, a intenção de agir como titular do direito correspondente a essa materialidade ("animus", espírito ou elemento subjectivo), nos termos do prescrito no Art.° 342°, n° 1 do C.C.;
26- O legislador nacional não aceitou a concepção objectivista de posse, pelo que, para que haja posse, é necessário mais que um poder de facto, ou seja, é imprescindível, também, que por parte do detentor haja a intenção "animus", de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre eia, razão pela qual os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto se ocorrer inversão do título da posse;
27 - Os Recorrentes alegaram e fizeram a prova que vêm exercendo sobre o questionado prédio, desde 1969 o poder de facto (corpus), o que fizeram na convicção de exercerem o correspondente direito de propriedade (matéria constante dos quesitos 29° e 30° da Base Instrutória);
28 - Os Recorrentes não lograram, todavia, provar que praticaram esses actos "em nome próprio e como se fossem seus verdadeiros proprietários" (vide respostas negativas aos quesitos 30° e 31° da mesma Base Instrutória);
29 - Por isso, não tendo os ora Recorrentes feito a prova positiva do "animus", tal acarreta, impreterivelmente, como efeito ou consequência lógica e jurídica o não reconhecimento da aquisição por usucapião do direito de propriedade dos ora Recorrentes sobre o supra mencionado prédio, com a natural e consequente procedência da acção de impugnação;
30 - Se a situação de facto considerada como provada revela o "corpus", o que é facto é que ao caso vertente falta, indesmentivelmente, o "animus", não podendo nem devendo o mesmo presumir-se, nos termos e para efeitos do que se encontra estabelecido no Art.° 1252°, n°2, do C.C.;
31 - A solução a encontrar para a resolução deste concreto caso não pode ser subsumida ou reconduzida no instituto previsto no Art.° 1252°, n°s 1 e 2 do C.C., pois tal normativo legal cura do exercício da posse por intermediário e aplica-se a situações ou casos em que a posse, em vez de estar a ser exercida pessoalmente é exercida por intermédio de outrem, havendo dúvidas sobre quem está a exercer a posse (com "animus"), presumindo-se a posse naquele que, no caso, exerce o poder de facto;
32 - Uma rigorosa e fiel interpretação dessa norma legal impõe que se tenha de considerar que o Art.° 1252°, n° 2, do C.C. regula a situação da admissibilidade da "representação da posse", nos termos da qual os seus efeitos se reflectem na esfera jurídica do representado;
33 - No caso sub judice jamais foi invocado o exercício da posse por representante ou em nome de outrem, dado que os Réus sempre a alegaram em nome próprio e em virtude de uma alegada doação verbal, nem subsiste qualquer dúvida sobre se exerceram o poder de facto com "animus", uma vez que, sendo a presente acção de simples apreciação negativa e incumbindo aos Réus ora Recorrentes, por via disso, o ónus de demonstrar esse requisito constitutivo, não se libertaram desse encargo, tendo de arcar nessa medida com as consequências negativas dessa situação, correspondente ao não reconhecimento do direito justificado – vide Art.°s 343°, n°l, e 346°, parte final – pois não lograram fazer prova da verificação de tal requisito (animus);
34 - Não estando em causa a representação na posse é, com todo o respeito, completamente, despropositado pretender aplicar-se ao caso concreto, como reclamam os Recorrentes, o disposto no n° 2 do Art.° 1252° do C.C. (presunção da posse);
35 - Cumpre salientar que o Tribunal da 1ª Instância respondeu negativamente aos aludidos quesitos relacionados com o mencionado "animus";
36 - Não pode, ainda, a Autora deixar de referir que a credibilidade das declarações produzidas em sede de celebração da escritura de justificação é nenhuma ou pelo menos sempre terá de ser vista como muito frágil, dado que o próprio genro dos justificantes foi aí admitido a confirmar o direito dos seus sogros (Réus nos presentes autos), indevidamente, situação que consente na aludida resposta negativa aos quesitos que se referem ao " animus";
37 - A situação dos Recorrentes, atendendo à falta de prova da existência do elemento psicológico, corresponde somente à simples detenção, com inserção sistemática no Art.° 1253° do C.C., razão pela qual, independentemente da verificação de outros requisitos, não se podia ter verificado a usucapião, com prejuízo directo para o direito de propriedade do prédio afirmado na escritura notarial de justificação em apreço;
38 - Confirmando o douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto deve, pois, este Muito Ilustre Supremo Tribunal de Justiça declarar, que os Réus/Recorrentes não têm o direito de propriedade sobre o prédio que foi o objecto da escritura de justificação notarial de 06/08/2003, melhor identificado nos autos, julgando, pois, totalmente improcedente e não provado o recurso de revista interposto pelos Recorrentes, com todas as suas legais consequências, sendo certo que a manutenção do douto Acórdão Recorrido apresenta o inquestionável mérito de não permitir que na Ordem Jurídica possa permanecer, com o devido respeito, uma gritante mentira e uma clamorosa desconformidade com a verdadeira situação de que os presentes autos curam, sem olvidar o facto de constituir um instrumento de excelência para a boa credibilização da Justiça, ideia ou sentimento que, nos tempos de hoje, assume a maior importância preservar e reforçar, desta forma se dignificando em absoluto o Poder Judicial enquanto trave mestra ou pilar de sustento de qualquer Estado de Direito Democrático;
39 - Do exposto, resulta claro que o douto acórdão Recorrido fez uma interpretação e aplicação rigorosa e fiel quer do Art.° 1252°, n° 1 e 2 do CPC quer do decidido no douto Acórdão do STJ de 14/05/1996, respeitando, ainda, na integra, o Acórdão do STJ de 04/12/2007, inexistindo, como, na verdade, não existe, qualquer violação ao disposto nos Art.°s 1251°, 1261°, 1262°, 1263°, a), 1287°, 1296° e 1297°, todos do Código Civil, mais tendo observado o disposto no Art.° 342°, n° l, 343°, n° 1 e 346º do CPC, encontrando-se correctamente aplicado o Art.° 1268° n° 1 do C.C.
Neste termos e nos melhores de direito aplicáveis e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., Muito Distintos e Egrégios Conselheiros, deve o presente recurso de revista ser julgado totalmente improcedente e não provado e, em consequência, manter-se o exemplar Acórdão prolatado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto em mérito e imerecida e infundadamente posto sob censura, nos precisos termos em que foi, o que o mesmo é dizer, negar-se aos Recorrentes o direito de, via aquisição originária por usucapião, verem reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio em questão e melhor individualizado nos presentes autos, assim se fazendo, a mais elementar pura, inteira, habitual e Sã Justiça!»

3. Vem provada a seguinte matéria de facto (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1) - Por escritura lavrada no Cartório Notarial de Cinfães em 06/08/2003, cujo extracto se encontra publicado no Jornal Miradouro com o nº 1421 em 26/09/2003, os aqui réus, AAe mulher BB, justificaram o direito de propriedade, alegando usucapião, do seguinte prédio: prédio rústico composto de terra inculta, denominado Concelho, sito no Lugar de Mourilhe, com a área de 14.200 m2, a confrontar de norte com estrada, de nascente com caminho, do sul com II, e de poente com HH, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Cinfães, inscrito na respectiva matriz em nome do justificante marido sob o art. 3759°, com o valor patrimonial de €354,15, e o atribuído de € 500,00;
2) - Consta nessa escritura terem os réus declarado perante o respectivo notário, de que adquiriram o referido prédio, por doação verbal da Hidro eléctrica do Douro, em data que não podem precisar, mas sabem ter sido no ano de 1967, razão pela qual não ficaram a dispor de título formal que lhes permita o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial;
3) - Por expropriação litigiosa por utilidade pública, que correu termos por este Tribunal sob o n.º 44/1965, em que foi expropriante Hidroeléctrica do Douro, SARL, e expropriados JJ e LL, ambos solteiros, menores, ali representados por seu pai MM, e NN e mulher OO, e PP e mulher QQ, e RR e mulher SS, e TT e mulher UU, e VV e mulher XX e na qualidade de usufrutuários, GG e mulher YY, foi àquela adjudicado, livre de quaisquer ónus ou encargos, o prédio rústico denominado Concelho de Baixo, sito no Lugar de Mourilhe, freguesia de S. Cristóvão de Nogueira, concelho de Cinfães, a confrontar pelo nascente e pelo Sul com caminho público, pelo Poente com MM e ZZ, e pelo Norte com AAA, inscrito na matriz predial rústica sob os Arts. 774°, 776°, 782° e 784°, e omisso na respectiva Conservatória do Registo Predial, com a árcade 12.890,00 m2;
4) - Na Conservatória do Registo Predial de Cinfães, sob o nº01435/221104, encontra-se descrito o prédio urbano, sito em Mourilhe, freguesia de São Cristóvão, com a área coberta de 130 m2 e descoberta de 250 m2, a confrontar de norte, nascente e sul com a própria autora e poente com caminho, inscrito na matriz sob o artigo 250;
5) - Sob a cota G-1 encontra-se registada a aquisição deste prédio a favor da autora por compra e venda a BBB;
6) - Na Conservatória do Registo Predial de Cinfães, sob o nº 01436/221104, encontra-se descrito o prédio rústico, denominado Concelho, sito em Mourilhe, freguesia de São Cristóvão, com a área de 62.790 m2, a confrontar de norte, nascente e poente com estrada e sul com ZZ, inscrito na matriz sob o artigo 590, e tem como origem a anexação das fichas 01433 e 01434/221104;
7) - Sob a cota G-1 encontra-se registada a aquisição deste prédio a favor da autora por compra e venda a AAA;
8) - No âmbito do processo referido em C foi lavrado auto de posse a 5 de Março de 1966, na sequência de despacho judicial, e após ter sido fixada a indemnização de 205.158$50 por sentença proferida a12/2/1966;
9) - Encontra-se inscrito no Serviço de Finanças de Cinfães, em nome da autora e sob o art.º494º, o prédio rústico composto de pinhal, mato e pastagem, sito no lugar de Mourilhe, freguesia de S. Cristóvão, concelho de Cinfães, a confrontar de Norte com rio Douro, do nascente com Ribeiro, de Sul com CCC e de Poente com DDD e estrada, com a área de 74.750m2;
10) - O prédio descrito em 1) compõe-se também de construção de alvenaria de pedra, em ruínas, terreno de lavradio em socalcos, com árvores de finta, videiras e oliveiras;
11) - Pelo menos a partir de 1969 os RR passaram a ocupar o prédio descrito em 1), onde passaram a habitar numa casa pré-fabricada;
12) - E cultivaram os terrenos agrícolas, a parte de pomar e colheram matos e ervas nas terras incultas;
13) - O GG, apesar de usufrutuário do prédio em causa nestes autos, apresentava-se perante as pessoas como dono do mesmo;
14) - Os RR ocuparam o prédio em causa até à data da propositura da acção;
15) - Lá cresceram os filhos;
16) - Lá criaram gado ovino;
17) - Aí tiveram sempre e têm os seus animais domésticos: cães, gatos, galinhas e coelhos;
18) - Lá receberam familiares, amigos e vizinhos;
19) - Cultivaram os campos, lavrando-os, adubando-os, semeando-os, colhendo a sementeiras e os produtos agrícolas (cereais, batatas, legumes e flores);
20) - Colheram as uvas das videiras existentes no prédio;
21) - Plantaram árvores de fruto e colheram os seus frutos;
22) - Usaram o terreno inculto, cortando lenhas e matos e usando-os para o cultivo das terras;
23) - Os RR residiram na casa pré fabricada referida em 11) até à data da propositura da acção;
24) - O que consta dos factos 14 a 23 tem sido feito à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém;
25) - De forma ininterrupta no tempo.»

4. Cumpre conhecer do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil).
Previamente, cabe todavia apreciar esclarecer o seguinte:
– A recorrida suscita a questão de os recorrentes não terem cumprido o “disposto nos artºs 724º, nº 1 e 690º, nº 1 e 2, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil ao tempo invocável”.
Todavia, está explícito nas referidas conclusões que os recorrentes discordam da forma como foi interpretado e aplicado o nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, e que entendem que do mesmo deveria ser feita uma “interpretação extensiva (…), aumentando o âmbito de aplicação da presunção ‘iuris tantum’ contida no art. 1252º (…)” – conclusão 12ª.
É pois inútil convidar os recorrentes a prestar esclarecimentos adicionais, nos termos previstos no nº 4 do artigo 690º;

– Os recorrentes terminam as alegações afirmando que a recorrida deve ser condenada “no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel objecto dos autos”. No entanto, e ainda que a revista tenha provimento, não pode neste processo ser proferida tal decisão, porque não deduziram nenhum pedido reconvencional; limitaram-se a invocar a usucapião como meio de defesa. A reconvenção tem de ser expressamente identificada e deduzida separadamente pelo réu, na contestação (artigo 501º do Código de Processo Civil);

– E os mesmos recorrentes começam as alegações por pretender que o Supremo Tribunal da Justiça conheça de questão não apreciada na Relação: a da falta de prova “de que o prédio em causa nos autos e objecto da escritura de justificação correspondia a parte dos prédios descritos em D, E e J dos factos assentes”.
Trata-se, como admitem, de questão não colocada à Relação por nenhuma das partes; em particular, os ora recorrentes, então recorridos, tinham o ónus de ampliar o objecto do recurso de apelação, nos termos previstos no nº 1 do artigo 684º-A do Código de Processo Civil, se o pretendessem. Não o tendo feito, é vedado ao Supremo Tribunal de Justiça julgá-la, porque os recursos se destinam a reapreciar as decisões de que foram interpostos e não questões novas.
Seja como for, a decisão que vier a ser proferida apenas respeita ao prédio a que se refere a escritura de justificação notarial; e só pode incidir sobre se os réus são ou não os respectivos proprietários, porque a autora se limitou a instaurar uma acção de simples apreciação negativa: não pediu, nem que se declarasse ser ela a proprietária do prédio, nem que os réus fossem condenados a entregá-lo.

5. Os recorrentes sustentam que, por aplicação da presunção constante no nº 2 do artigo 1552º do Código Civil, deve ter-se como provada a posse do prédio, correspondente ao direito de propriedade; e que, estando preenchidos todos os requisitos exigidos para o efeito, o adquiriram por usucapião, improcedendo portanto a acção.
Como é sabido, para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é essencial ter a posse correspondente ao direito em causa, por certo lapso de tempo (que varia, segundo as circunstâncias da posse), nos termos do artigo 1287º do Código Civil; no caso presente, a posse correspondente ao direito de propriedade.
Como decorre do disposto no artigo 1251º do mesmo Código, haverá essa posse quando se “actua por forma correspondente ao exercício” desse direito (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo, e, segundo alguns (embora com diversas construções), quando essa actuação (ou seja, o exercício de poderes de facto sobre a coisa, salvo se tratando-se de posse derivada, que se pode revelar por outras formas) seja acompanhada da “intenção de agir como beneficiário do direito” (artº 1253º, al.a), do Código Civil) – animus da posse.
A posse pode ainda ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, nas palavras do artigo 1258º do Código Civil, relevando as diversas modalidades, desde logo, para ser possível a aquisição por usucapião e, para além disso, para a determinação do prazo necessário para esse efeito (cfr. artigos 1294º e segs. Código Civil e, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 1999, disponível em www.dgsi.pt, processo nº 98B1043).
No caso presente, apenas está em dúvida saber se, não tendo ficado provado que os actos alegados para demonstrar a actuação (objectiva) como proprietário foram praticados pelos recorrentes “em nome próprio”, “como se fossem seus verdadeiros proprietários” (respostas negativas aos quesitos 29º e 30º, cfr. fls. 239 e 688), por ter sido inconclusiva a prova produzida, pode proceder a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião.

6. Não ficou provado como ou a que título se iniciou a detenção do prédio pelos recorrentes. Não releva de forma nenhuma, nem a doação referida na escritura de justificação, que aliás se sabe que não existiu, como os réus confirmaram, nem o arrendamento e posterior compra invocados pelos mesmos na contestação, que não ficaram provados.
Assim sendo, a posse só se poderia ter constituído na sua esfera jurídica através do apossamento, modalidade de aquisição originária a unilateral da posse e que se traduz, segundo o disposto na al. a) do artigo 1263º do Código Civil, na “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Junho de 2007 (www.dgsi.pt, proc. 07B1552).
E ainda seguindo de perto o mesmo acórdão, estando assente, no caso, a publicidade (cfr. ponto 24 da matéria de facto), – é condição de aquisição da posse “uma relação de facto” entre a pessoa e a coisa que se traduza nessa prática reiterada e efectiva de actos materiais “capazes de exprimirem o exercício do direito” (Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, reimp. da 2ª ed. revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, págs. 25-26). Como explica, por exemplo, Carvalho Fernandes (Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2003, pág. 297), para ocorrer o apossamento exige-se “uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa. Assim, a necessidade de a prática de actos materiais ser reiterada significa, não só uma certa repetição da actuação material sobre a coisa, mas também, e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela”, ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, “para consubstanciar apossamento”, terá “de se processar uma actuação de acordo com as circunstâncias, que faculte um controlo duradouro da coisa considerada” (A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Coimbra, 1999, pág. 104).
Estando em causa saber se uma determinada pessoa adquiriu a posse correspondente ao direito de propriedade, e sabendo-se que “o proprietário goza não só dos direitos de uso e fruição, poderes materiais, como do direito de disposição, poder puramente jurídico, tal como o de administração da coisa” (cfr. artigo 1305º do Código Civil), esta exigência da prática de actos materiais como condição de aquisição da posse faz com que “só através de actos materiais, isto é, de actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa se pode adquirir a posse, e nunca através de actos de disposição ou de administração”, porque eles podem ser praticados mesmo que a coisa seja possuída ou detida por um terceiro. Assim, e para continuar a utilizar as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., págs. 26 e 27, “se alguém, por exemplo, paga habitualmente a contribuição predial e outros encargos relativos a determinado imóvel, não adquire, através desses actos, a posse do prédio. Trata-se, com efeito, de actos que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa”.
Não é todavia exigível que se pratiquem “todos os actos materiais qualificativos do direito”. Citando Manuel Rodrigues (A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Coimbra, 1981, nº 38, pág. 182 e segs., pág. 186), “o proprietário não é obrigado a usar, fruir e transformar continuamente e simultaneamente. Para se adquirir a posse do direito de propriedade basta, por isso, praticar actos materiais que correspondam a alguns daqueles poderes (…)”.
A prova feita permite concluir estar provado o apossamento (cfr. pontos 11, 12 e 14 a 23 da matéria de facto).
Adquirida a posse, nomeadamente por esta via, é ainda indispensável à aquisição por usucapião que a posse se mantenha durante um determinado lapso de tempo.
Está provado que os réus ocuparam o prédio em 1969 (ponto 11) e que a actuação como proprietários se manteve ininterruptamente (ponto 25), bem como que ainda residiam na casa pré-fabricada que nele instalaram à data da propositura da acção (28 de Outubro de 2003).
Manteve-se, portanto, por todo esse tempo a relação de domínio característica da posse, e, no caso, correspondente ao direito de propriedade.
Como se dispõe no nº 1 do artigo 1257º do Código Civil, “a posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”.
Não há pois qualquer reparo a fazer, quer à sentença, quer ao acórdão recorrido, quando consideraram verificado o corpus da posse.

7. Aqui chegados, tem de concluir-se, como a 1ª Instância, que estão reunidos os pressupostos de aplicação da presunção definida pelo nº 2 do artigo 1252º do Código Civil.
Contrariamente ao que foi entendido pela Relação, não seria necessário que se tivesse invocado no processo “o exercício da posse por representante ou em nome de outrem” (acórdão recorrido, fls. 921). Nem tão pouco releva tratar-se de uma acção de simples apreciação negativa, proposta em reacção a uma escritura de justificação notarial: o regime definido pelo nº 1 do artigo 343º do Código Civil não colide com a presunção constante do nº 2 do artigo 1252º do mesmo diploma, apenas inverte o ónus da prova em relação a um dos pressupostos de constituição do direito de propriedade que, nos termos daquele nº 1, incumbiria ao réu.
O nº 2 do artigo 1252º do Código Civil inverte na verdade o ónus da prova quanto à existência de posse, assente na prova de que existe detenção; explica-se, como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado cit, III, pág. 8, por ser “difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente; e este pode, inclusivamente, não existir.”
Esta razão de ser vale muito para além dos casos de “exercício da posse por intermediário”, e esteve presente no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal da Justiça de 14 de Maio de 1996 (www.dgsi.pt, proc. nº 085204), a cuja decisão – “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” – é totalmente alheia a restrição aos casos de posse por intermediário; vale, portanto, para os casos em que (como aqui sucede) se desconhece o modo como começou a posse.
“Faltando o título, é a própria lei que então, em caso de dúvida, presume que o possuidor possui em nome próprio, ou, usando os termos legais em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto – nº 2 do art. 1252º C.” (acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de Junho de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 106/06.2TBFCR.C1.S1).

8. Não se colocando qualquer dúvida quanto ao decurso do prazo necessário para a usucapião, dado que é de 20 anos o mais longo (cfr. o artigo 1296º do Código Civil), e tendo sido a usucapião invocada pelos recorrentes na contestação (artigos 1296º e 303º do Código Civil), tem de improceder o pedido de declaração de “que os RR. não têm o direito de propriedade sobre o prédio que foi objecto da escritura de justificação notarial outorgada em 06/08/2003 no Cartório Notarial de Cinfães (…)”.

9. A escritura de justificação notarial que a autora impugnou não tem nenhuma relevância probatória para se alcançar esta conclusão. Não tendo aliás sido inscrita no registo a aquisição do direito de propriedade pelos réus, nem se chega a colocar o problema que foi apreciado por este Supremo Tribunal no acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2008, de 4 de Dezembro de 2007 (www.dgsi.pt, proc. nº 07A2464), e decidido no sentido de que Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts 116º, nº1, do Código do Registo Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial”.

10. A terminar, cumpre ainda observar, por referência às contra-alegações:
– que só moderadamente se poderá afirmar que a lei portuguesa optou por uma concepção subjectiva da posse, totalmente omissa da definição que dela dá o artigo 1251º do Código Civil. Não a pondo em causa, nomeadamente pelo confronto entre este preceito e o artigo 1253º, observa-se no entanto que a aplicação de princípio da presunção do nº 2 do artigo 1252º do Código Civil aos casos em que se ignora a que título se iniciou a detenção em nada altera aquela concepção, porque apenas se reflecte no campo da prova;
– que não têm repercussões práticas, neste campo, as afirmações feitas sobre o circunstancialismo que rodeou a expropriação respeitante à “construção empreendimento do ‘Aproveitamento Hidroeléctrico de Carrapatelo’”, sobre a (reconhecidamente inexistente) doação aos réus, sobre as exigências de validade formal das doações de imóveis, ou sobre as condições em que a escritura foi lavrada e a credibilidade das declarações então produzidas.
O fundamento da aquisição do direito de propriedade pelos réus é a usucapião, ou seja, a posse pública e pacífica por um período de tempo superior a 20 anos; recorde-se que, no caso, ficou provado que os réus ocupam o prédio desde 1969, e que a presente acção foi proposta em 2003. E tenha-se ainda em conta que a aquisição por usucapião provoca, como se sabe, a extinção dos direitos incompatíveis com o que por aquela via foi adquirido; se foi o direito de propriedade plena, seguramente extinguiu qualquer outro direito de propriedade plena eventualmente existente, por não poderem subsistir ambos.

11. Nestes termos, concede-se provimento à revista, revogando na parte correspondente o acórdão recorrido, decidindo:
a) Julgar improcedente o pedido de declaração de que os réus não são titulares do direito de propriedade sobre o prédio que foi objecto da escritura de justificação notarial outorgada em 6 de Agosto de 2003 no Cartório Notarial de Cinfães, onde ficou exarada no Livro 95-E de folhas 46 a 47 verso;
b) Quanto ao mais, confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrida.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Setembro de 2010


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza ( Relatora)
Lopes do Rego
Barreto Nunes