DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
POSSE
REQUISITOS
CORPUS
ANIMUS POSSIDEND
MERA DETENÇÃO
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário


I - O ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse, sendo integrada pelo corpus e o animus.
II - O corpus corresponde ao exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa; o animus caracteriza-se como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados.
III - Para facultar a usucapião, a posse terá de ser mantida por certo lapso de tempo (art. 1287.º do CC).
IV - A mera detenção ou a posse precária não conduz à usucapião, excepto invertendo-se o título de posse (arts. 1253.º e 1290.º do CC).
V - A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (art. 1258.º do CC).
VI - A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito; pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor; por constituto possessório; por inversão do título de posse (art. 1263.º do CC).
VII - O possuidor perde a posse pelo abandono; perde também a posse, pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano, contando-se a nova posse desde o seu início, se foi tomada publicamente (art. 1267.º, n.os 1, als. a) e d), e 2, do CC).
VIII - Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20, se for de má fé.
IX - Os requerimentos à Câmara Municipal ou às Finanças para pagamento da Sisa, isoladamente considerados, apenas se traduzem em actos burocráticos, sem visibilidade (publicidade), não sendo bons para usucapir.
X - Não existe preceito legal que presuma o corpus em quem apenas actua com animus, embora a situação inversa esteja prevista no art. 1252.º, n.º 2, do CC.
XI - A presunção de que a posse continua em nome de quem a começou, estabelecida no art. 1257.º, n.º 2, do CC, é ilidível, por ser juris tantum.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – Relatório

1. AA e mulher BB demandaram CC, DD, EE, FF, GG, HH e marido II, JJ, KK, LL, MM e mulher NN pedindo que fosse reconhecido o direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado no art. 1º da petição inicial, que fossem declarados nulos os registos a que correspondem as inscrições G-2, G-3 e G-4, ou seja, a inscrição de aquisição a favor dos 10 réus, que fosse ordenado o cancelamento de tais registos e que os réus fossem condenados a indemnizar aos autores em quantia a apurar em execução de sentença.

Articularam, em síntese, que adquiriram às Rés CC e DD e ao então cônjuge desta OO, entretanto falecido, o prédio rústico denominado “T... N...”, sito no limite da Póvoa de P....., freguesia de A-dos-Cunhados, concelho de Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial respectiva sob o n.º ......, inscrito na matriz sob o art. 18 da Secção MM.

Tal negócio foi formalizado por escritura pública outorgada em 8 de Outubro de 1982, tendo os Autores requerido a inscrição registral da aquisição em 19 dos mesmos mês e ano, não mais se preocupando com tal assunto.

Não obstante, desde a data da aquisição que os Autores vêm diligenciando pela urbanização do terreno, uma vez que o destinavam à revenda, conforme ficou exarado na escritura pública.

Tal processo de urbanização, depois convertido em processo de loteamento, tem vindo a arrastar-se até hoje e quando solicitados pela CMTV para juntar certidão de teor do mesmo prédio verificaram os Autores com surpresa que se encontra inscrito a favor dos Réus MM e mulher, por compra efectuada aos demais Réus, o direito de propriedade sobre o imóvel. Verificaram ainda que o requerido registo a seu favor havia merecido menção de provisoriedade por dúvidas, por divergências relativas ao sujeito passivo, a vendedora CC, tendo sido entretanto declarada a sua caducidade, motivo pelo qual lograram os Réus em 10º lugar registar a aquisição a seu favor.

Os Réus vendedores actuaram de má fé, pois sabiam ter vendido antes aos Autores o prédio em causa, tal como de má fé se encontram os réus adquirentes, uma vez que, embora caducada, mantinha-se a inscrição a favor dos Autores, sendo do conhecimento público todos os actos praticados pelo autor marido junto das diversas entidades tendo em vista obter o loteamento do terreno, recebendo correspondência da Câmara Municipal de Torres Vedras na qualidade de proprietário do imóvel.

Para os Autores, a venda efectuada pelos 1.os Réus aos Réus MM e mulher é uma venda de bens alheios, e por isso nula nos termos do art. 892º do Código Civil, sendo inoponível aos Autores o registo efectuado a favor destes. De qualquer modo, considerando que desde a data da celebração da escritura pública os Autores vêm exercendo sobre o prédio adquirido actos de posse pública, pacífica e de boa fé, deve entender-se que o adquiriram por usucapião, aquisição originária, que também invocam expressamente.

2. Os Réus MM e mulher contestaram, defendendo-se por impugnação e excepção, invocando a ilegitimidade passiva uma vez que, tendo PP também outorgado na escritura de compra e venda como comprador, actual comproprietário do prédio em causa, necessária se torna a demanda deste, por se estar perante um litisconsórcio necessário.

Impugnaram, negando ter tido conhecimento de qualquer negócio eventualmente celebrado entre os Autores e os vendedores, tendo confiado na verdade registral, já que na certidão a que tiveram acesso, idêntica à de fls. 29-32, nenhuma menção é feita aos Autores. Acresce que estes nunca tomaram posse do prédio, que há mais de 30 anos mantém o aspecto, em contraste com a actuação dos contestantes, que recentemente procederam à limpeza do mato, terraplanando o terreno. Acresce que estão de boa fé e como terceiros para efeitos registrais terão de ser considerados, sendo-lhes inoponível aquisição anterior não levada ao registo.

3. Também a Ré CC contestou, arguindo a sua ilegitimidade para a acção por se entregar desacompanhada do cônjuge.

Em sede de impugnação alegou que os Autores nunca foram proprietários do prédio em causa, pois o contrato com eles celebrado com o Autor marido contemplava apenas uma fracção do mesmo. No entanto, tal parcela jamais veio a ser medida ou demarcada, sendo certo que os Autores nunca praticaram no terreno qualquer acto de posse. A pretensão dos Autores constitui assim uma tentativa para ludibriarem os Réus e se apossarem da totalidade do prédio, quando bem sabem que apenas adquiriram uma parcela do mesmo.

Em via reconvencional contra-articula que seja anulada a escritura de compra e venda por nela os outorgantes vendedores terem emitido declaração negocial dolosamente determinada pelo Autor/marido (ali comprador), aproveitando-se do analfabetismo daqueles, já que a vontade real respeitava á venda de apenas uma fracção do imóvel.

4. Contestaram os demais Réus conjuntamente, defendendo-se por excepção e impugnação.

Excepcionaram a ilegitimidade passiva, por não terem sido demandados todos os compradores e também porque não se encontram na acção todos os que na mesma escritura outorgaram como vendedores.

Em sede de impugnação alegam que nunca os Autores fruíram ou dispuseram do prédio em causa, tudo não passando de um plano urdido e executado pelo Autor/marido tendo em vista ludibriar os vendedores, aproveitando-se da ignorância destes. Com efeito, alegam que nunca foi intenção dos vendedores procederem à venda da totalidade do prédio, o que resultou claro das negociações mantidas com os compradores ora Autores. Sabedor da necessidade de medir, demarcar e desanexar a porção vendida ao Autor/marido, aproveitando-se da simplicidade dos vendedores, levou-os a outorgar uma escritura em que aparentemente era vendida a totalidade do imóvel. No entanto, e ainda assim, ficou a constar da escritura a menção a ‘parte’ do artigo matricial que correspondia àquilo que os Autores pretendiam efectivamente vender. Deste modo, a entender-se o declarado como respeitando ao todo, trata-se de declaração dolosamente obtida, a integrar a previsão do disposto no art. 253º do Código Civil, sendo ainda patente a divergência entre a vontade real e a vontade declarada. Assim sendo, estando os Réus vendedores de boa fé, desconhecendo até, parte deles, os antecedentes que originaram a presente acção, regularizaram o registo e procederam à venda daquilo que sempre pensaram pertencer-lhes, venda esta válida e eficaz.

Deduziram também pedido reconvencional com fundamento no facto de os outorgantes como vendedores na escritura outorgada em 8 de Outubro de 1982 terem sido ludibriados pelos Autores, levando-os a vender o que não queriam ou, subsidiariamente, por se verificar erro na declaração, cuja essencialidade era dos compradores conhecida, pedindo a anulação do negócio de compra e venda referido celebrado entre o Autor/marido, como comprador e as 1.ª e 2:º Rés e o marido desta última, entretanto falecido, como vendedores, contra a entrega pelos Réus de 1ª a 9ª do preço recebido.

5. Face à arguição da excepção dilatória da ilegitimidade passiva requereram os Autores a intervenção principal provocada de PP, casado com QQ sob o regime de separação de bens, na sua qualidade de adquirente do prédio identificado no art. 1.º da petição inicial, como tal tendo intervindo na escritura pública outorgada em 28 de Setembro de 1999.

Desencadearam ainda os Autores idêntico incidente em relação a UU, na sua qualidade de cônjuge da Ré CC, com quem se encontra casado segundo o regime de comunhão de bens adquiridos, de RR, casada com o Réu GG sob o regime de comunhão de adquiridos, de SS, casada com o Réu FF sob o regime de comunhão de adquiridos, e ainda de TT, cônjuge da Ré KK, com quem se encontra casado sob o regime de comunhão de adquiridos.

Tais incidentes vieram a ser admitidos por despacho de fls. 213, tendo sido ordenada a citação dos chamados.

6. Em resposta à contestação apresentada pela Ré CC replicaram os Autores alegando que aquando da outorga da escritura tinham já conhecimento da existência de uma divergência entre as áreas constantes da matriz e do registo predial.

7. Admitidos os pedidos reconvencionais e dispensada a realização de audiência preliminar foi proferido despacho saneador no qual, face aos chamamentos deduzidos, foi julgada sanada a excepção da ilegitimidade, determinando-se o prosseguimento dos autos com selecção dos factos assentes e fixação da base instrutória, que não foram objecto de quaisquer reclamações.

8. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo, a final, sido proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e declarou os Autores legítimos proprietários do prédio rústico "T... N...", por o terem adquirido por usucapião e determinou o cancelamento dos registos G-2, G-3 e G-4, absolvendo no mais os Réus e chamados e improcedentes os pedidos reconvencionais.

9. Inconformados, apelaram os réus CC, DD e MM, tendo a Relação de Lisboa proferido o acórdão recorrido, que fundamentou, em síntese, assim:

“(…) resulta que os autores não exerceram um poder de facto sobre o prédio, com publicidade (corpus)” e ainda que “não praticaram actos materiais, prática reiterada e com publicidade, à vista de toda a gente, correspondentes ao exercício do direito, não sendo suficientes as ‘démarches’ efectuadas junto da Câmara Municipal e o pagamento da sisa (…). Assim, faltando o requisito da publicidade não há posse em nome próprio, pelo que não há lugar, por parte dos autores, à aquisição do terreno ‘T... N...’, por usucapião (…) Inexistindo o poder de facto sobre a coisa – corpus – o conhecimento do animus fica, desde logo, prejudicado”.

E concluiu a Relação:

“Não havendo lugar à aquisição originária por usucapião, as demais questões a apreciar suscitadas pelos apelantes – prevalência do registo sobre a usucapião e violação dos arts. 236º e 247º CC – estão prejudicadas (…)”.

Consequentemente, concedeu provimento aos recursos de apelação e revogou a sentença proferida na 1.ª instância.

10. Inconformados, os Autores vêm recorrer, agora de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça.

A delimitar o objecto do recurso, apresentam as seguintes conclusões:

“O acórdão recorrido contém vários erros de Direito, o primeiro e principal dos quais numa lamentável qualificação do modo de aquisição de posse do prédio pelos AA., seguido pela omissão da apreciação da usucapião a favor dos AA. e da má fé do nono réu e do chamado, que não podem invocar a seu favor a protecção registai do terceiro de boa fé.

1 – O primeiro erro de Direito em matéria de posse: o pretenso apossamento dos AA. e a interpretação errada do art. 1263.°, alínea a) do Código Civil:

A) O acórdão recorrido apresenta um erro de Direito na apreciação do caso dos autos, começando por qualificar erradamente como apossamento a actuação dos AA. sobre o prédio rústico por si adquirido, aí fazendo uma aplicação equivocada do art. 1263.°, alínea a) do Código Civil;
B) Na verdade, com a compra do prédio rústico, os AA. adquiriram igualmente a posse do mesmo por tradição dos vendedores;
C) Essa tradição, que se deve caracterizar como simbólica, operou através da denominada vacua possessio ou in vacuam possessionem inducere, a cedência da coisa que se processa através da disponibilização da coisa ao adquirente da propriedade (cf. JOSÉ ALBERTO VIEIRA, em Direitos Reais, cit., pág. 596);
D) Justamente, porquanto o prédio foi deixado livre pelos vendedores para os AA., estes puderam começar a praticar actos jurídicos e materiais sobre ele (respostas aos artigos 2, 3, 4 e 18);
E) Tudo isto mostra a cedência da posse da coisa aos compradores – os AA – e atesta a traditio a seu favor (art.1263.°, alínea b) e art. 1267.°, n.º 1 alínea c) do Código Civil);
F) Em conformidade, o tribunal recorrido não apenas errou na interpretação do art. 1263.°, alínea a) do Código Civil e respectiva qualificação ao caso dos autos, fazendo uma aplicação equivocada do mesmo, como falhou na interpretação correcta dos artigos 1263.°, alínea b) e 1267.°, n.º 1 alínea c) do Código Civil, que se aplicam a favor dos AA.

2 – O segundo erro de Direito em matéria de posse: a aquisição da posse pelos AA. através da tradição simbólica do prédio "T... N..." e a violação do art. 1263.°, alínea b) do Código Civil

G) Conforme decorre do alegado nas alíneas A) a F) das presentes conclusões, o acórdão recorrido errou na qualificação como apossamento do comportamento dos AA.;
H) Contudo, cometeu um segundo erro de Direito, ao não qualificar correctamente como tradição (simbólica) a entrega do prédio efectuada pelos vendedores aos AA. mediante a vacua possessio;
I) Com isso, violou directamente o disposto no art. 1263.°, alínea b) do Código Civil, falhando a qualificação correcta da situação de facto ao não reconhecer que os AA. se tornaram possuidores do prédio "T... N...".

3- O terceiro erro de Direito em matéria de posse: o corpus possessório não requer uma actuação de facto sobre o prédio, com publicidade (art. 1257.°, n.º 1 no fim do Código Civil)

J) O tribunal requerido alega que os AA. não exerceram com publicidade o poder de facto sobre o prédio, recusando-lhes a posse (fls. 40 do acórdão);
L) Com isto, o tribunal recorrido não atendeu, como devia, ao disposto na parte final do art. 1257.°, n.º 1 do Código Civil, o qual requer apenas uma possibilidade abstracta de actuação, sem exigir uma ligação física constante entre o possuidor e a coisa;
M) Como ensina JOSÉ ALBERTO VIEIRA, "o corpus possessório, assentando no controlo material da coisa, basta-se com a mera possibilidade, abstracta, de actuação, sem necessitar para existir de uma ligação física constante entre o possuidor e a coisa" (Direitos Reais, cit., pág. 549).

4 - Quarto erro de Direito: o não reconhecimento da usucapião nos termos da propriedade a favor dos AA. (art. 1287.° do Código Civil)

N) Houvesse o acórdão recorrido feito uma correcta aplicação do Direito, afirmando a posse dos AA. sobre o prédio "T... N...", e teria reconhecido o direito daqueles a adquirir por usucapião a propriedade do prédio;
O) Com efeito, a posse dos AA. deve ser qualificada como pública e pacifica, nos termos dos artigos 1262.º e 1261.º, n.º 1 do Código Civil;
P) A posse dos AA. foi adquirida de boa fé, como aliás, a lei presume neste caso, dado tratar-se de uma posse titulada (art. 1260.°, n.º 2 e art. 1259.°, n.º 1 do Código Civil);
R) Nestes termos, e dado que os AA. não conseguiram registar a sua aquisição (o contrato de compra e venda), o prazo para a usucapião é de 15 anos (art. 1296.° do Código Civil);
S) Ora, a posse dos AA. durou 18 anos, desde a aquisição do prédio, em Outubro de 1982, até finais de 2000;
T) Desde 8 de Outubro de 1997, data em que a sua posse fez 15 anos, os AA. têm o direito potestativo de adquirir a propriedade do prédio "T... N..." por usucapião, cujos efeitos retroagem à data do inicio da posse (art. 1288.° do Código Civil);
U) Os AA. invocaram judicialmente a usucapião na presente acção, a qual deveria ter sido declarada pelo tribunal recorrido;
V) A circunstância dos AA. já haverem adquirido o direito de propriedade pela compra e venda não constitui obstáculo, porquanto o Direito português não veda a possibilidade de invocação de mais do que um titulo aquisitivo, nomeadamente, a usucapião pelo possuidor causal (cf. JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, cit., pág. 428 e seg.);
X) Deste modo, os autores beneficiaram de dois títulos de aquisição da propriedade, a compra e venda e a usucapião.

5 - Quinto erro de Direito: a não declaração de nulidade da compra e venda celebrada entre os nove primeiros réus, o décimo réu e o chamado

Z) Segundo o Direito português, a segunda venda de uma coisa é nula, por falta de legitimidade do vendedor (art. 892.° do Código Civil);
ZA) Uma vez que os AA. compraram validamente a propriedade do prédio "T... N..." aos proprietários inscritos no registo predial, a segunda venda celebrada entre os nove primeiros réus, como sucessores dos vendedores (com excepção da nona ré) , o décimo réu e o chamado (alínea I dos factos assentes) é nula, por falta de legitimidade negocial dos vendedores;
ZB) Na verdade, a posição jurídica do sucessor é a mesma do de cujus; os direitos que aquele tem são os que estavam na titularidade do último;
ZC) Se a primeira venda a favor dos AA. é válida, a segunda só pode ser nula, porquanto os sucessores (e a nona ré) não podiam transmitir um direito que nunca adquiriram (art. 892.° do Código Civil);
ZD) Ora, a Relação de Lisboa falhou em reconhecer a nulidade da segunda venda do prédio dos autos, com isso ignorando por completo a situação substantiva real do prédio, a de que a propriedade do mesmo pertencia aos AA., por força da primeira venda (alíneas A) e B) dos factos assentes), e nunca aos compradores da segunda venda, que é nula: UM CLAMOROSO ERRO DE DIREITO!
ZE) Tudo como se a controvérsia dos autos ficasse resolvida simplesmente com a recusa de reconhecimento da posse do prédio aos AA.!

6 - Sexto erro de Direito: a dupla venda dos autos e a rejeição da protecção registral dos segundos compradores segundo o art. 5.°, n.º 1 do Código do Registo Predial

ZF) 0 caso dos autos corresponde à hipótese clássica de dupla disposição (dupla venda), a qual no Direito português recebe tratamento normativo no art. 5.°, n.º 1 do Código do Registo Predial (cf. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direitos Reais, cit., pág. 372 e seg., JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, cit., pág. 292 e segs.).
ZG) A protecção registral em caso de dupla disposição pressupõe a boa fé do terceiro que regista o facto aquisitivo do seu Direito, numa interpretação já afirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão uniformizador n.º 3/99, de 10 de Julho de 1999: "terceiros, para efeitos do disposto no art. 5.° do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa";
ZH) Este Tribunal reafirmou recentemente esta posição, sustentando que a boa fé, ainda que não explicitamente mencionada, é igualmente requerida no art. 5.°, n.º 1 do Código do Registo Predial (cf. o ponto 23. do Ac. STJ de 28.04.2009, Proc. n.º 7933/07.1TBMTS.SI, em www.dgsi.pt);
Z.T) A boa fé em questão tem conteúdo ético e não meramente psicológico segundo o disposto no art. 291.°, n.º 3 do Código Civil, o qual tem aplicação a todas as hipóteses de efeito atributivo do registo predial (cf. o ponto 23. do Ac. STJ de 28.04.2009, Proc. n.º 7933/07.1TBMTS.SI, em www.dgsi.pt);
ZJ) Tendo isto presente, os segundos compradores (o décimo réu e o chamado) não podem ser protegidos com recurso ao art. 5.° n.º 1 do Código do Registo Predial, porquanto, dado que o registo provisório e o averbamento do cancelamento respectivo constavam da Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, conheciam ou pelo menos teriam podido conhecer se usassem a diligência requerida que os AA. eram os proprietários legítimos do prédio "T... N...";

7 – Sétimo erro de Direito: a usucapião paralisa o efeito atributivo do registo predial (art. 5.°, n.º 2 alínea a) do Código do Registo Predial)

ZL) A protecção registral dos segundos compradores nunca poderia proceder no caso dos autos por uma outra razão, para além da sua má fé;
ZM) É que a lei portuguesa afasta a protecção registral do terceiro se o verdadeiro titular do direito beneficiar de usucapião, por efeito da regra usucapio contra tabulas prevista no art. 5. °, n.º 2 alínea a) do Código do Registo Predial;
ZN) 0 adquirente da propriedade por usucapião pode fazer valer o seu direito contra qualquer terceiro, ainda que este beneficie de registo a seu favor: "A usucapião não é afectada pelas vicissitudes registrais, valendo por si, mesmo contra o registo de aquisição" (Ac. STJ de 19.03.2002, Proc. 02B510, em www.dgsi.pt)
ZO) O terceiro que beneficia de aquisição tabular não pode fazer valer a protecção registral contra o titular do direito real adquirido por usucapião (cf., na jurisprudência, o Ac. STJ de 07.06.2005, Proc. n.° 05A1607, o Ac. STJ de 12.04.2005, Proc. n.º 05A4787, Ac. STJ de 01.02.2005, Proc. 04A4684, Ac. STJ de 19.03.2002, Proc. 02B510, Ac. STJ de 03.02.1999, Proc. 98B1043, Ac. STJ de 01.07.1999, Proc. 99B445, Ac. RL de 04.11.2003, Proc. n.° 9383/2003-6, que podem ser consultados em www.dgsi.pt).
ZP) Isto explica-se por duas razões: a primeira, porquanto o efeito da usucapião é meramente enunciativo;
ZQ) A segunda, e mais importante, é que a usucapião constitui a última ratio do sistema jurídico real português: "A base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião (...) Por isso, o que se fixou no registo predial passa à frente dos títulos substantivos existentes, mas nada pode contra a usucapião" (Ac. STJ de 07.06.2005, Proc. n.° 05A1607, em www.dgsi.pt) (na doutrina, cf.,. por todos, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direitos Reais, cit., pág. 382 e segs.).
(…)”


Contra-alegaram os Réus DD e EE; FF e mulher; HH e marido II, JJ, KK, LL e outros, tendo concluído:

“1 – Entendeu-se no douto acórdão recorrido que não teriam os recorrentes adquirido por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio objecto do litígio, por não se verificarem os respectivos pressupostos legais;
2 – É que, traduzindo-se a usucapião na faculdade de adquirir um direito pela posse e exercício desse direito, quando manifestado durante determinado lapso de tempo, há que constatar que não existem, in casu, os respectivos pressupostos;
3 – É que, exigindo a usucapião uma posse efectiva, de boa fé, contínua, pública e pacífica, há que constatar desde logo, que nem a existência de posse em nome próprio é inquestionável;
4 – Já que não existem nos autos provas de manifestações evidentes de controlo efectivo da coisa, muito menos com carácter público e contínuo;
5 – É que o que ficou provado foram contactos, pareceres, requerimento e negociações sempre no quadro de contactos privados e directos entre os ora recorrentes e estações administrativas e particulares;
6 – Revelando para mais uma evidente descontinuidade entre as iniciativas que ocorreram nos anos imediatamente posteriores à escritura de aquisição (1982/83) e os próximos da propositura da presente acção, o que mais se evidencia na resposta dada ao quesito 3º, conforme consta da decisão quanto à matéria de facto;
7 – Em que foi omitida a referência que quebraria descontinuidade;
8 – Pelo contrário, da resposta dada naquela douta decisão aos quesitos 16º a 22º resulta que, na prática, nenhum efeito no prédio fisicamente considerado teve o negócio que continuou a ser considerado propriedade da família dos recorrentes e que, pelo contrário, adquirido pelos co-réus PP e MM, estes logo procederam a actos idóneos ao fim a que o destinavam;
9 – Não se verificou assim a natureza pública e contínua da posse, a aceitar-se a respectiva existência, sendo que quer o título, quer a boa fé, se vêem diminuídos após a caducidade do registo, com a qual se conformaram os recorridos;
10 – Mas mesmo que se entenda existir posse e usucapião, não deveria esta prevalecer sobre o registo;
11 – Porquanto é evidente que, se o registo prevalece sobre acto de aquisição anterior não registado, conforme in casu foi decidido quanto à matéria da aquisição pelos co-réus PP e MM e o seu reconhecimento como terceiros para efeitos de registo por decisão já transitada, como aliás quanto a alegação de aquisição por constituto possessório; questão aliás, por isso mesmo até, insusceptível de impugnação;
12 – Por maioria de razão deverá prevalecer quanto à aquisição por usucapião, susceptível de ‘comprovação’ por meios ínvios e inidóneos, e que seria susceptível de inutilizar os efeitos do registo, com a consequente insegurança para o comércio jurídico;
13 – Basta para melhor esclarecimento referir a douta doutrina contida no artigo dos Professores Antunes Varela e Henrique Mesquita publicadas na Revista de Legislação e Jurisprudência n.os 3873 e 3838, e a discussão havida nos acórdãos de Uniformização de Jurisprudência 15/97 (DR de 4/7/97) e 3/99 (DR de 10/7/99), e também Acórdãos do STJ de 26/4/88, 30/1/92, e 27//97, (…);
14 – Não padecendo o douto acórdão recorrido dos vícios alegados pelos recorrentes, deve por V. Ex.as ser confirmado.”

Também os Réus, recorridos MM e mulher NN e PP, contra-alegaram, concluindo assim:

“1.ª – Os Recorrentes vêm peticionar a aquisição da posse pela via da usucapião.
2.ª – Resulta que a aquisição do direito de propriedade por usucapião supõe a posse assente em dois elementos: o corpus, ou controlo do facto em si, e o animus, ou intenção de ser proprietário.
3.ª – A aquisição da posse tem lugar pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito.
4.ª – Dos factos provados resulta que os AA., ora Recorrentes, apenas exerceram uma actividade meramente burocrática, de forma descontinuada, sem qualquer expressão visível no terreno.
5.ª – Porque falta a publicidade e o controlo de facto sobre o prédio.
6.ª – Inexiste, desde logo, o corpus.
7.ª – E consequentemente inexiste também o animus, que fica desde logo prejudicado.
8.ª – Pelo que, porque não há posse em nome próprio, não há lugar à aquisição do direito de propriedade sobre o prédio rústico ‘T... N...’, pela via da usucapião, a favor dos AA., ora Recorrentes.
9.ª – Por seu turno, a favor dos RR. existe uma aquisição tabular, uma vez que estes registaram a sua aquisição, efectuada a título oneroso, de boa fé.
10.ª – Os recorridos procederam ao registo, previamente à inscrição de qualquer acção de impugnação.
11.ª – Do exposto resulta não haver dúvidas de que os Recorridos beneficiam da aquisição tabular por via do Código de Registo Predial, sendo os legítimos proprietários do prédio rústico denominado ‘T... N...’, sito no limite da Póvoa de P....., freguesia de A-dos-Cunhados, concelho de Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º 0000000000.
(…)”

Entretanto, a fls. 1467-1530, os Recorrentes vieram juntar um parecer da lavra do Doutor em Ciências Jurídico-Civilisticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, João António Álvaro Dias.

Por sua vez, também os Réus, ora recorridos, MM e mulher NN e PP, vieram juntar um parecer, a fls. 1557-1616, da lavra do Professor Catedrático da Faculdade de Direito e da Universidade Católica, Doutor em Direito, António Menezes Cordeiro.

Peças jurídicas essas, que, só por si, deram um forte contributo para a elaboração do presente acórdão, obrigando o Tribunal a melhor dilucidar e decidir sobre as teses em confronto.


II – Matéria de facto

As instâncias fixaram definitivamente a seguinte factualidade:

“A – No dia 8/10/82, no 1.º Cartório Notarial de Torres Vedras, AAA e mulher, DD, casados segundo o regime de comunhão geral de bens com o terceiro outorgante, e CC, casada segundo o regime de comunhão dos bens adquiridos, com o terceiro outorgante, UU, declararam vender, pelo preço de Esc. 4.200.000$00 (quatro milhões duzentos mil escudos), que disseram no acto já haver recebido, ao segundo outorgante AA, casado com BB segundo o regime de comunhão geral de bens, o qual declarou adquirir para revenda, o prédio rústico, denominado ‘T... N...’, sito nos limites da freguesia de A-dos-Cunhados, deste concelho de Torres Vedras, inscrito na respectiva matriz sob parte do artigo dezoito, secção MM, com o rendimento colectável do todo de Esc. 194$00, de que resulta o valor matricial de Esc. 3.880$00, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n.º 64 403, a fls. 128 do Livro B-164 (alínea A).
B – À data o prédio identificado em A., encontrava-se inscrito a favor dos vendedores (certidão de fls. 27 a 32 e doc. de fls. 130-131).
C – Por requerimento datado de 13/1/82, dirigido ao Conservador do Registo Predial de Torres Vedras, o autor marido requereu o competente registo a seu favor da aquisição do referido prédio rústico denominado ‘T... N...’ e melhor identificado em A, o qual deu origem à nota de registo para inscrição n.º 0000000, a fls. ....do Livro G-...., com apresentação n.º 30 do dia 19/10/82 – cfr. docs. juntos a fls. 41-42, cujo teor se dá por reproduzido (alínea B).
D – O requerido registo foi lavrado com menção de provisoriedade por dúvidas, pelos seguintes motivos: ‘Provisório por dúvidas porque constando da inscrição n.º000000 do Livro 59 que ¼ indiviso do prédio esta’ inscrito a favor de CC e marido,VV, o mesmo outorga a escritura com o nome de UU, mas somente para autorizar a venda. No entanto, da inscrição n.º 00000 do Livro 111, consta que aquela CC é casada sob o regime de comunhão de adquiridos com António Alves, o mesmo que VV. Haverá lapso na atribuição do referido ¼ indiviso mencionado naquela inscrição 000000 do Livro 59 ou haverá lapso no regime de bens? Também há divergência do nome do sujeito passivo, CC, entre o título e a inscrição de aquisição n.º00000.
Também não foi requerida na Repartição de Finanças redução da área da caderneta predial’. (alínea C).
E – A ré CC foi casada duas vezes, uma primeira com VV, sob o regime de comunhão geral de bens, casamento dissolvido por óbito do cônjuge marido, ocorrido em 20/9/66 e, posteriormente, com UU, sob o regime dos bens adquiridos. (alínea E e certidão de fls. 65).
F – A referida inscrição provisória entretanto caducou, caducidade verificada em 93.04.27 (alínea D e doc. de fls. 248 a 251).
G – Após a compra referida em A, o autor iniciou, em seu nome, um processo junto à Câmara Municipal de Torres Vedras, a fim de proceder à urbanização do terreno melhor identificado em R e que constitui o processo n.º 0000000 (resposta aos quesitos 1 e 2).
H – No desenvolvimento de tal processo e de um outro projecto posteriormente elaborado, tendo em vista a urbanização do mesmo prédio, o autor contratou arquitectos e engenheiros, procedeu a medições no terreno e requereu pareceres a diversas entidades (respostas aos arts. 2,3,4 e 18).
I – Por escritura outorgada em 18/2/83, no 4.º Cartório Notarial de Lisboa, o autor adquiriu, também para revenda, a XX e ZZ, o prédio rústico denominado ‘Casal ......’, sito nos limites da praia de Santa Cruz, freguesia de A-dos-Cunhados, concelho de Torres Vedras, o qual é contíguo do identificado em R, pretendendo o autor requerer conjuntamente a urbanização de ambos os prédios (resposta aos arts. 5, 6 e 7 e doc. de fls. 433 a 436).
J – O autor celebrou acordos com os proprietários de outros prédios igualmente contíguos ao terreno referido na alínea R e também a Câmara Municipal de Torres Vedras, este referente ao Parque de Campismo, o qual ocupava parte deste prédio (respostas aos arts. 8 e 9).
K – Em 9/1/98, o autor subscreveu e remeteu ao Chefe de repartição de finanças de Torres Vedras um requerimento tendo em vista a desanexação da área de 828 m2 do prédio rústico inscrito no artigo 18, secção MM, da freguesia de A-dos-Cunhados (resposta ao art. 10).
L – O prazo legalmente previsto para efectuar a revenda, à qual foi feita menção na escritura a que se refere em A, foi ultrapassado devido aos atrasos verificados no procedimento administrativo para urbanização (resposta aos arts. 11 e 12).
M – Face ao referido na alínea anterior, em 3/8/98, em 3/8/98, o autor marido requereu e procedeu ao pagamento do Imposto Municipal de Sisa, acrescido dos respectivos juros relativos à compra do terreno referido em A (resposta aos arts. 13 e 14).
N – O marido da segunda ré, AAA o, faleceu em 25/7/95, tendo o cônjuge sobrevivo, a ré DD, registado a seu favor e dos 3º a 9ª réus, a aquisição de ½ do prédio identificado em A (alínea F).
O – Mediante inscrição G-2, Av. 1, correspondente à Ap. 0000000, foi inscrita a transmissão dos direitos pertencentes a AAA sobre o prédio rústico denominado ‘T... N...’, sito os limite da Póvoa de P....., freguesia de A-dos-Cunhados, concelho de Torres Vedras, composto de cultura arvense, com a área de 30.029,30 m2, o qual confronta a norte com Louribetão, sociedade de construções civis e obras públicas, Lda., a sul com BBB, a nascente com Câmara Municipal e a poente com estrada nacional, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º 00000000, da freguesia de A-dos-Cunhados, a favor de DD, LL, HH, EE; JJ, FF,KK e GG, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária de GG (alínea H).
P – Mediante a inscrição G-3, Ap. 0000000, foi inscrita a aquisição de ¼, em comum e sem determinação de parte ou direito, do prédio identificado na alínea anterior a favor de DD, LL, HH, EE; JJ, FF, KK e GG, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária de GG (alínea H).
Q – Por escritura pública celebrada em 28/9/99, no 2.º Cartório Notarial de Torres Vedras, os réus identificados de 1.º a 9.º, declararam vender aos aqui 10.º réu MM e também ao chamado PP, pelo preço de Esc. 100.000.000$00 (cem milhões de escudos), tendo estes declarado comprar o prédio rústico denominado ‘T... N...’, sito no limite da Póvoa de P....., freguesia de A-dos-Cunhados, deste concelho, sob o n.º 0000000, da freguesia de A-dos-Cunhados, registado em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos vendedores, pelas inscrições G.1, G-2, e G-3, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 18 da secção MM, pendente de rectificação desde 20/9/99, com o valor patrimonial de Esc. 4.889$00, cfr. certidão junta de fls. 69 a 73 que, quanto ao mais, aqui se dá por reproduzida (alínea I).
R – O prédio rústico denominado ‘T... N...’, sito no limite da Póvoa de P....., freguesia de A-dos-Cunhados, concelho de Torres Vedras, composto de cultura arvense, com área de 30.029,30 m2, o qual confronta a norte com Louribetão, sociedade de construções civis e obras públicas, Lda., a sul com BBB, a nascente com Câmara Municipal e a poente com estrada nacional, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º 000000000, da freguesia de A-dos-Cunhados, acha-se inscrito na referida Conservatória pela cota G-4, Ap. 0000000, a favor de PP, casado com QQ segundo o regime de separação de bens, e MM, casado na comunhão de adquiridos com NN, por compra (alínea J).
S – Por ordem dos réus adquirentes, o terreno foi limpo do mato existente, o que ocorreu após a celebração da escritura a que alude a alínea Q (resposta ao art. 22).
T – O 2.º projecto de loteamento elaborado pelo autor marido sofreu entraves devido ao facto do prédio identificado em R, se encontrar inscrito a favor de pessoa diversa (resposta ao art. 15).
U – Há mais de 30 anos que o prédio referido em R mantém o mesmo aspecto de mato (resposta ao art. 16).
V – O prédio em causa era conhecido das pessoas da região como pertencente aos ‘Figurinos’, alcunha da família dos réus (resposta ao art. 17).
W – Os autores nunca fixaram no imóvel identificado em R qualquer letreiro a anunciar a intenção de o vender, não colocaram estacas demarcando o imóvel de futuros arruamentos, nem fizeram qualquer terraplanagem ou limpeza dos matos existentes (respostas aos arts. 19,20 e 21).”


III – Matéria de direito

Dispõe o art. 664º do Código de Processo Civil que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, só podendo, porém, servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264º.


A questão verdadeiramente relevante a apreciar e decidir prende-se com a posse dos Autores ou dos Réus, que releva para a usucapião.

A 1.ª instância decidiu a favor dos Autores; a Relação, pelo contrário, decidiu que a posse boa para usucapião era a dos Réus.

É hoje pacífico que o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse, que integra dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi.

Costuma-se definir corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa; quanto ao animus caracteriza-se como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados (1).

Para facultar a usucapião, a posse, integrando sempre aqueles seus dois elementos, terá de ser mantida por certo lapso de tempo, nos termos do art. 1287º do CC.

A mera detenção ou a posse precária não conduz à usucapião, excepto invertendo-se o título de posse – arts. 1253º e 1290º do CC.

A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta – art. 1258º do CC.

A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito; pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor; por constituto possessório; por inversão do título de posse – art. 1263º do CC.

O possuidor perde a posse pelo abandono; perde também a posse, pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano, contando-se a nova posse desde o seu início, se foi tomada publicamente – art. 1267º, n.os 1, alíneas a) e d) e 2 do CC.

Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé.

No caso que nos ocupa, trazendo à colação os factos mais relevantes, temos que os Autores compraram aos primeiros Réus o prédio rústico denominado “T... N...”, sito na área do concelho de Torres Vedras, no dia 8 de Outubro de 1982, para revenda.

De imediato o Autor marido requereu o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, o qual foi lavrado com menção de provisoriedade por dúvidas.

Foi verificada a caducidade desse registo provisório em 27 de Abril de 1993.

Após a compra, o Autor iniciou em seu nome um processo, junto da Câmara Municipal de Torres Vedras, a fim de proceder à urbanização do terreno.

No desenvolvimento de tal processo e de um outro projecto posteriormente elaborado, tendo em vista a urbanização do mesmo prédio, o Autor marido contratou arquitectos e engenheiros, procedeu a medições do terreno e requereu pareceres a diversas entidades.

Adquiriu, por escritura de 18 de Fevereiro de 1983, um outro prédio contíguo ao terreno objecto dos autos, uma vez que pretendia proceder à urbanização de ambos.

Celebrou acordos com os proprietários de outros prédios igualmente contíguos e também com a Câmara Municipal de Torres Vedras, este referente ao parque de campismo, o qual ocupava parte do seu prédio.

O prazo legalmente prescrito para efectuar a revenda, foi ultrapassado devido aos atrasos verificados no procedimento administrativo para urbanização.

Em face disso, em 3 de Janeiro de 1998, subscreveu e remeteu ao Chefe de Repartição de Finanças de Torres Vedras um requerimento tendo em vista a desanexação de uma parcela com a área de 828m2.

Por escritura celebrada em 28 de Setembro de 1999, os 1º a 9º Réus venderam aos 10º Réu e ao chamado CCC o prédio denominado “T... N...”.

Por ordem dos Réus adquirentes, o terreno foi limpo do mato existente, após a celebração da escritura acabada de referir.

Há mais de trinta anos que o prédio “T... N...” mantém o mesmo aspecto de mato.

O prédio em causa era conhecido das pessoas da região como pertencendo aos “Figurinos”, alcunha da família dos Réus.

Os Autores nunca fixaram no imóvel “T... N...” qualquer letreiro a anunciar a intenção de o vender, não colocaram estacas demarcando o imóvel de futuros arruamentos nem fizeram qualquer terraplanagem ou limpeza dos matos existentes.

Da análise do expendido, temos que os Autores não lograram registar o prédio que adquiriram, mas gozavam de uma posse titulada por escritura pública de compra e venda, o que lhes assegurava a boa fé e a pacificidade, por o contrário não resultar provado.

Resta, porém, a questão da publicidade, que além do animuscorpus, enquanto questão decisiva para o sucesso ou insucesso da acção, já que se torna necessário apreciar os factos e aplicar o Direito, decidindo se a posse dos Autores, a partir de 8 de Outubro de 1982, data da escritura de compra e venda celebrada com os primeiros Réus, até 28 de Setembro de 1999, data da segunda escritura de compra e venda celebrada entre os primeiros e os dois últimos Réus, foi uma posse pública nos termos definidos pelo art. 1262º do CC, ou seja, exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e, por conseguinte, se foi boa para usucapião.

No âmbito dos Direitos Reais os conceitos estão de há muito sedimentados, pelo que a lição de antigos doutrinadores continua a ter reconhecida actualidade e pertinência.

Por isso, abstraindo por agora do animus, fomos beber ao insigne Professor Manuel Rodrigues (2) o que de mais relevante nos ensina sobre o corpus e a publicidade na posse.

Assim, na sua ainda hoje imprescindível obra “A posse”, tem ensinamentos perfeitamente actuais, como, por exemplo, quando discorre:

- “Uma relação possessória é uma relação material, mas para a constituir não é indiferente a natureza da materialidade do acto”.

- “Sempre que alguém cultiva um prédio rústico, colhe os seus frutos, nele apascenta os seus gados, ou o demarca ou o veda, pratica actos suficientes para adquirir a posse dele”. Nesses casos “procede como um verdadeiro proprietário”. “De um modo geral, pode dizer-se que é preciso atender à energia do acto de apreensão, e à natureza do direito que se pretende adquirir”.

- “É preciso ver se o acto ou a série de actos têm, segundo o consenso público, a energia suficiente para significar que, entre uma coisa e determinado indivíduo, se estabeleceu uma relação permanente e duradoura”, “Na verdade, sendo a relação possessória uma relação permanente, duradoura, ela só pode resultar de um facto ou de um conjunto de factos que, segundo o modo normal de conceber as coisas, signifiquem que, aquele que em determinado lugar os praticou, pretende exercer sobre a coisa um poder permanente”.

- “Ninguém dirá que adquiriu a posse de um prédio rústico aquele que por ele passou uma vez, ou que num dia nele apascentou os seus gados (…). Tais factos, segundo o modo de pensar normal, não significam que aquele que os praticou quis exercer sobre o respectivo prédio um poder de supremacia”.

- “O carácter permanente, duradouro da aquisição da posse não exige, pois, necessariamente, a prática repetida de actos de uso e de gozo; mas exige (…) a prática de um a acto ou de uma série de actos que, no consenso público, sejam considerados como meio de criar uma relação duradoura”. “Trata-se de uma questão de facto a resolver em cada caso pelo tribunal”.

- “É preciso também ter em atenção a natureza do direito que se pretende possuir. A posse é entre nós o exercício intencional do conteúdo dos direitos que se podem exercer sobre as coisas, portanto o valor do acto da investidura está condicionado pela extensão dos poderes materiais que ele compreende”. “Aquele que apenas passa por um prédio rústico não pode invocar a posse do direito de propriedade (…) Note-se contudo que para se adquirir a posse do direito de propriedade não é necessário que se pratiquem todos os actos que correspondem ao conjunto de poderes materiais em que este direito se analisa”. “O proprietário não é obrigado a usar, fruir e transformar continuamente e simultaneamente.

E quanto à publicidade, havendo similitude entre o que vem do Código de Seabra e actual art. 1262º, ensina Manuel Rodrigues, sempre com acentuada actualidade que a posse é pública quando possa ser conhecida dos interessados. E acrescenta:

- “Apesar da publicidade dever ser entendida objectivamente, não é todavia possível fixar regras segundo as quais se possa concluir com rigor quando um facto é público ou clandestino”. “Um acto da mesma natureza pode ser público ou clandestino consoante o lugar em que foi praticado, o momento em que se verificou e as condições que o revestem”.

- “Ao conjunto do acto se deve atender e por isso a publicidade ficará com um carácter cujo valor o juiz averiguará em cada caso”.

No seguimento do acabado de expender, convém trazer à colação a lição de A. CASTANHEIRA NEVES, quando discorre: “o objecto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objectivização cultural…, mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo…, o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o prius problemático-intencional e metódico” (3)..

In casu, os Autores adquiriram a propriedade do prédio denominado “T... N...”, praticando de imediato actos conducentes à sua publicidade, como foi o caso de terem requerido o respectivo registo.

Praticaram, também, outros actos, junto da Câmara Municipal e da Repartição de Finanças, que, só por si, não são geradores de publicidade.

Porém, no que concerne ao registo predial, logo admitido provisoriamente, por dúvidas, deixaram-no caducar, o que evidência incúria, desleixo e descuido cautelar no que concerne à propriedade do prédio em questão.

Acresce que o prédio manteve-se por mais de trinta anos com o “mesmo aspecto de mato”, mesmo após a sua aquisição pelos Autores, o que só pode significar que estes últimos nunca cuidaram dele, tendo-se limitado a medi-lo logo após a aquisição, para posterior urbanização.

Porém, os Autores nunca fixaram no imóvel qualquer letreiro a anunciar a intenção de o venderem, não colocaram estacas demarcando-o de futuros arruamentos, nem fizeram qualquer terraplanagem ou limpeza dos matos existentes, como seria razoável num assumir concreto de uma propriedade que não conseguiam registar.

Pelo contrário, por ordem dos Réus adquirentes do prédio, o terreno foi limpo do mato existente, após a celebração da escritura celebrada em 28 de Setembro de 1999.

Acresce que o prédio em causa permaneceu sempre conhecido das pessoas da região como pertencendo aos “Figurinos”, alcunha da família dos Réus.

Tal só pode significar, como bem decidiu a Relação, que os Autores, apesar de uma aparente posse inicial, jamais a prosseguiram através de prática de actos materiais à vista de toda a gente, tornando-a pública.

É que, se uma medição inicial do prédio, por ocasião da compra, e o requerer o registo poderiam conduzir à publicidade da posse, já os requerimentos à Câmara Municipal ou às Finanças para pagamento da sisa apenas se traduzem em actos burocráticos sem visibilidade, não sendo suficientemente bons para usucapir.

Poderá é ter ocorrido, num período de tempo muito limitado, logo após a celebração da primeira escritura de compra e venda, uma posse simultânea entre os Autores e os primitivos vendedores, sendo certo que estes últimos, sem descontinuidade, sempre foram reconhecidos pelas “pessoas da região” como proprietários ou, pelo menos, possuidores do prédio em questão, tendo-a recuperado logo após se terem esgotado os parcos indícios de posse por parte dos Autores.

Nesse sentido, como acima referimos, a alínea d) do n.º 1 do art. 1267º do CC, estabelece que o possuidor perde a posse pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse tiver durado durante mais de um ano.

Aliás, será oportuno dizer ainda que, se, por força do disposto no n.º 2 do art. 1252º do CC, se presume o animus em quem tem o corpus, não existe preceito legal que preveja a situação inversa, ou seja, que se presume o corpus em quem apenas actua com animus.

Ora, mesmo que se entenda que os Autores sempre actuaram com o animus de serem os possuidores do prédio “T... N...”, há mais de 15 (quinze) anos que perderam o corpus, deixando de exercer qualquer poder de facto sobre o prédio em questão.

Por fim, embora o n.º 2 do art. 1257º do CC estabeleça que se presume que a posse continua em nome de quem a começou, tal presunção é ilidível, por ser tantum juris, e foi-o in casu, já que a posse dos Autores cessou logo após terem requerido o registo do prédio que adquiriram, por terem deixado de actuar de harmonia com o direito que deveriam ter exercido. E cessou, de tal modo que, atempadamente, serviu para os primitivos vendedores e os seus sucessores terem recuperado essa posse, que prosseguiram como boa para usucapião, e que acabou por beneficiar terceiros que vieram a adquirir e registar o prédio em causa.

Tudo o mais que vem alegado pelos recorrentes fica prejudicado pela solução de Direito acolhida.

Nos termos expostos, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 21 de Outubro de 2010


Barreto Nunes (Relator)
Salreta Pereira
Orlando Afonso

______________________

(1) Nesta parte, seguimos de perto o acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ de 14 de Maio de 1996, BMJ n.º 457, pp. 55-58.
(2) A Posse, n.º 37, Coimbra Editora, Antiga Livraria França & Arménio, pp. 199-208
(3) Estudo intitulado “O Actual Problema da Interpretação Jurídica”, publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118, p. 58.