ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
DIREITO À VIDA
REFORMATIO IN PEJUS
Sumário


1) O utente da via não tem que contar com a negligência ou inconsideração dos outros, excepto tratando-se daqueles com notória normal imprevisibilidade de comportamento (v.g., crianças), limitações (v.g. deficientes), ou de animais não acompanhados ou sem trela.
2) O condutor de um veículo que não detém a marcha perante uma marca transversal –linha de paragem- “stop” e prossegue a mudança de direcção no cruzamento, apesar de se lhe apresentar semáforo com luz amarela intermitente e, a cerca de 50 metros, corta a linha de marcha de um veículo, que bem avistou, e se aproximava pela sua direita e com trajecto permitido por luz verde, tem culpa exclusiva no embate.
3) Ainda que o último circulasse com velocidade acima do permitido no local teria de se apurar o nexo causal naturalístico, o que é pura matéria de facto.
4) Também se inclui no âmbito da matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, a criação de presunção judicial conducente à conclusão de que a velocidade contribuiu para o agravamento dos danos.
5) O princípio da proibição da “reformatio in pejus” – constante do n.º 4 do artigo 684.º do Código de Processo Civil – impede que a decisão do recurso seja mais desfavorável ao recorrente do que a decisão impugnada, salvo tratando-se de responsabilidade solidária e no âmbito da solidariedade, nos termos do artigo 497.º do Código Civil.
6) Sendo a vida um valor absoluto, independentemente da idade, condição sócio-cultural, ou estado de saúde, irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vítima, que não a vida em si mesma.
7) Outros factores só poderão ser ponderados nos cômputos indemnizatórios dos danos morais próprios dos herdeiros da vítima ou do dano patrimonial mediato por eles sofrido em consequência da perda.
8) Só em acerto de tese pode ser feita uma ponderação de factores culturais, de personalidade ou etários na fixação da indemnização pelo sofrimento da vítima (dano não patrimonial próprio) nos momentos que precederam a morte, na percepção da aproximação desta, no estoicismo ou capacidade de resignação perante as dores físicas e morais.

Texto Integral

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

AA e BB intentaram acção, com processo ordinário, contra “R...S..., SA” pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes: à primeira, a quantia de 63.996,00 euros ; à segunda, 63.496,00 euros, acrescidas de juros desde a citação, para ressarcimento dos danos sofridos com a morte de sua mãe ocorrida em acidente de viação.

Posteriormente foi chamada a intervir a “Companhia de Seguros T..., SA” na qualidade de seguradora do outro veículo – que não aquele cujo condutor, na óptica das Autoras, deu causa ao evento – que teve intervenção no acidente.

O “Instituto de Segurança Social, IP”, através do “Centro Nacional de Pensões” pediu o reembolso de quantias pagas, a título de subsídio de funeral, no montante de 1491,00 euros.

Na 1.ª Instância a acção foi julgada parcialmente procedente e as Rés c solidariamente condenadas (na proporção da culpa dos seus segurados, respectivamente de 70% e 30%) a pagarem às Autoras 50.000,00 euros pela perda do direito à vida da vítima; a cada uma 17.500,00 euros pelo dano moral, com juros, à taxa de 4% desde a sentença; 700,00 euros e 200,00 euros, respectivamente, à 1.ª e 2.ª Autora, com aqueles juros, mas desde a citação, a título de danos patrimoniais; e 1491,00 euros ao ISS/CNP, com os juros àquela taxa, desde a notificação do pedido de reembolso.

No mais, foram as Rés absolvidas do pedido.

Todas apelaram para a Relação do Porto que confirmou integralmente o julgado.

As seguradoras pedem, agora, revista.

A Ré “R...S...” conclui assim a sua alegação:
- O Acórdão refere que a conduta do XL efectuou a manobra de mudança de direcção para a esquerda sem parar no sinal “STOP” pintada no pavimento, quando o veículo HU se encontrava a cerca de 50 metros de si;
- Mas não pode esquecer-se que no momento do embate, e no sentido de marcha do HU, o sinal de semáforo encontrava-se verde ao passo que para os condutores que seguindo no sentido Vila do Conde-Porto pretendessem virar à esquerda, como era o caso do XL, o semáforo estava amarelo intermitente.
- De acordo com o art.° 70 do Código da Estrada, em vigor à data dos factos, existe uma hierarquia entre as prescrições do trânsito. Isto é, há determinados sinais que prevalecem sobre outros.
- Ora, ao condutor do veículo seguro deparou-se-lhe o sinal — amarelo intermitente — que lhe impunha uma especial prudência na manobra de mudança de direcção à esquerda, só a podendo realiizar em local e para que da sua realização não resultasse perigo ou embaraço para o trânsito.
- É forçoso que se aceite que o condutor do XL, pretendendo mudar de direcção à sua esquerda, quando o sinal de semáforo se apresentava amarelo intermitente, estava, de facto, obrigado a uma especial prudência na execução dessa manobra, só podendo entrar na faixa de rodagem da esquerda da EN 13, atento o seu sentido de marcha, se e quando tivesse a certeza que podia fazer aquela manobra com segurança.
- Quer isto dizer, que em nosso entender, atenta a hierarquia de prescrições de trânsito e demais factos já referidos, o condutor do XL não tinha que parar em obediência ao sinal stop, bastando-lhe, tão somente, tomar precauções relativas à manobra que pretendia executar.
- A questão pertinente que se levanta é se pode admitir-se que, nestas circunstâncias, qualquer condutor, na posição do condutor do XL (ciente do limite de velocidade estabelecido para o local), não se convencesse de que tinha tempo de sobra para efectuar a manobra em causa.
- Na verdade, encontrando-se o veículo ...-...-HH a mais de 50 metros do entroncamento, o condutor do XL (para que o embate não tivesse ocorrido) teria de ter previsto que o mesmo circulava a cerca de 120 km/h o que não lhe era exigível.
- Bem como ao facto de o veículo seguro na Ré circular a uma velocidade seguramente não inferior a 80 km/h, sendo evidente que o embate ocorreu, forçoso é concluir, que tal velocidade foi causal da produção do acidente.
- Entendemos que o condutor do HU poderia evitar o embate se, em vez de seguir a uma velocidade não inferior a 80 km/hora (em nosso entender, seguramente superior) seguisse a uma velocidade de 50 km/hora ou menor, já que no local em apreço, a velocidade deve ser especialmente reduzida, pois na verdade, os limites previstos no art.° 27° do Código da Estrada são limites gerais de velocidade, mas não são limites absolutos, sendo-o, apenas, enquanto limites máximos de velocidade.
- Casos há, porém, em que independentemente de tais limites (máximos), o condutor deve adequar a sua condução e bem assim a velocidade a que circula às circunstâncias que encontra.
- Face a todo o exposto, somos forçados a concluir que, não fosse a velocidade claramente excessiva a que circulava o HU, com a qual o condutor do veículo seguro na ora recorrente não podia contar nem tinha obrigação de prever, o acidente não certamente ocorreria.
- O rastro de travagem deixado pelo HU que, medido desde que iniciou a travagem até ao local onde foi embater no XL, tem a extensão de 22,7 metros Mais ainda, após esse embate, o HU percorreu, pasme-se, uma distância de cerca de 6 metros até se imobilizar — vide o auto de participação junto a fls. 15 a 17.
- Ora, a essa distância de travagem sempre haverá que acrescentar a distância percorrida durante o tempo médio de reacção - o tempo que medeia entre o momento da percepção do perigo e o começo do acto tendente a evitá-lo. Vide as tabelas referidas na decisão de 1.ª instância, sendo que as distâncias aí referidas implicam sempre a imobilização completa do veículo.
- Assim e mais uma vez, se conclui que, se o HU transitasse à velocidade máxima permitida para o local (50 km/hora), ou abaixo, teria podido evitar o embate ou ao menos minorado a gravidade das consequências deste.
- Deste modo, o condutor do HU sobressai como o único e exclusivo culpado pela produção do acidente dos Autos.
- Caso assim se não entendesse, o que se contempla por raciocínio dialéctico, sempre se deveria decidir pela repartição de culpas na eclosão do sinistro, na proporção de 80% para o condutor do HU e 20% para o condutor do XL.
- Ao decidir nesta matéria, nos termos constantes do douto Aresto ora recorrido, o Tribunal ‘a quo’ violou o disposta nos arts. 70, 24°, n.° 1; 25°, n.° 1, al. c); 27°, n.° 1 do Código da Estrada, dos quais fez uma errada interpretação e/ou aplicação.
- Quanto aos danos não patrimoniais próprios dos herdeiros, a jurisprudência tem vindo seguir o critério proposto por CC que aflora três pontos de vista; vida na função normal que desempenha na vida e na sociedade; vida no papel excepcional que desempenha na sociedade e vida sem qualquer função específica na sociedade mas assinalada por um valor de afeição mais ou menos forte.
- Assim, podem afirmar-se como factores concretos de ponderação do dano em questão; a idade da vítima; a existência de filhos e de um casamento feliz; uma vida gratificante e conseguida sob todos os pontos de vista, etc., tudo isto, sem se olvidar a necessidade de um valor mínimo atribuível por igual em todas as situações, sob pena de se enveredar por uma valoração diferenciada do bem vida, elitista e baseada na condição social e económica da pessoa em causa.
- À data do sinistro a DD tinha 53 anos de idade, era saudável, trabalhadora e pessoa considerada no meio social onde vivia, pelo que, se pode considerar que a situação em apreço ingressa na normalidade do acontecer, não se assinalando especificações e predicados fora do normal.
- Se é inquestionável que o Bem Jurídico Vida merece protecção jurídica, não fere a consciência jurídica o estabelecimento de critérios delimitadores do quantum indemnizatório, nos casos em que (tal como o caso em questão) esse bem é lesado por terceiro.
- Assim sendo, e com base em tudo quanto vai alegado, especialmente a justiça do caso concreto que ora se pugna pela fixação de um valor de € 40.000,00, mais adequado, justo e equitativo.
- Quanto aos danos que as autoras pedem, a título de ressarcimento pelos danos morais sofridos com a morte da mãe, somos mais uma vez a reiterar que o Tribunal encontrou valores exagerados.
- Neste caso, não obstante o sofrimento causado às Autoras pela perda inesperada da mãe, que muito se compreende e respeita, há contudo que ponderar que a DD, que à data da sua morte contava 53 anos já não era de primordial importância na vida das suas filhas, que na altura do sinistro tinham 29 anos de idade, eram autónomas e inclusivamente a autora AAera já casada!
- Deste modo, somos a requerer a fixação em € 15.000,00, do montante da indemnização pelos danos morais sofridos por cada uma das autoras com a morte da DD, sua mãe.
- Ao não interpretar da forma assinalada, o tribunal ‘a quo’ violou, entre outros, os artigos 496.º, 562.º e 570.º do Código Civil.

A Ré “Companhia de Seguros T..., S.A” assim concluiu a sua alegação:
“- O acidente dos autos dá-se, face aos factos dados como provados, por culpa exclusiva do condutor do veículo XL, seguro na demandada Real.
- Desde logo, atente-se à resposta aos factos assentes sob as letras j, 1, m, n, o, r, s, t, u, v e x.
- Não só o condutor do XL não cedeu a passagem ao HU conforme a sinalética existente no local impunha - quer a sinalização de stop, quer o semáforo de amarelo intermitente — como lhe, cortou a linha de trânsito, como, pior de tudo, o fez quando este se encontrava a cerca de 50 metros.
- O condutor do XL, sem parar no stop e sem ceder a prioridade a quem circulava em sentido contrário, iniciou a manobra de mudança de direcção à esquerda quando o HU se encontrava a urna distância de 50 metros, e quando este era visível a, pelo menos, 200 metros.
- No se vislumbra, aqui, qualquer comportamento culposo do segurado da demandada.
- A velocidade a que seguia o HU em nada contribuiu para o acidente, pois este, face a manobra súbita e inesperada do XL, aconteceria de qualquer maneira, mesmo que o HU seguisse a 50 Km/h.
- Mesmo que o HU seguisse a 50 Km/h, nunca conseguiria evitar o acidente, pois a sua linha de trânsito foi cortada a 50 metros, distância esta manifestamente insuficiente para se imobilizar sem embater no XL.
- Quem actuou com negligência, aliás grosseira, foi o condutor do XL, seguro na demandada R..., que efectuou uma manobra de mudança de direcção à esquerda sem ceder a prioridade de passagem ao HU, que se apresentava pela sua direita, e quando este já se encontrava a 50 metros e quando era visível a, pelo menos, 200 metros.
- Foi o condutor do XL que cortou a linha de trânsito do segurado da demandada, ao virar à esquerda sem lhe ceder a prioridade de passagem e sem respeitar o sinal de stop.
- O condutor do XL tinha, pois, que deixar passar o HU; se o. tivesse feito, o acidente dos autos nunca tinha ocorrido.
- O condutor do XL tinha uma obrigação dupla: parar no sinal stop desenhado no pavimento e deixar passar o HU, em obediência ao sinal semaforizado amarelo intermitente.
- O sinal semaforizado amarelo intermitente não anula a sinalização de stop pintada no pavimento; o que o sinal semaforizado amarelo intermitente quer dizer é que se pode mudar de direcção à esquerda, isto é, não está vermelho, mas tem que se dar prioridade a quem circula no sentido do HU.
- Atendendo principalmente a idade da sinistrada, infelizmente falecida, bem como à ausência de qualquer circunstancialismo especial que justificasse a aplicação de critério diverso, considera-se que 40.000,00 € um valor perfeitamente adequado ao dano vida e que 15.000,00 euros de dano moral para cada um dos herdeiros é um valor justo e equitativo.

Contra alegaram as Autoras em defesa do julgado.

As instâncias consideraram assente a seguinte matéria de facto:

- Do Assento de Óbito n.º 663, anotado no Diário sob o n.º 3588 (maço 3, fls. 663) da Conservatória do Registo Civil do Porto consta que o registo e assento de nascimento de DD ocorreu em 1952 na Conservatória do Registo Civil da Póvoa do Varzim e que faleceu em 1 de Abril de 2006, em hora e local ignorados, com 53 anos, no estado de divorciada (alínea t);
- Dos Assentos de Nascimento n.ºs 251 e 252, do respectivo Diário da Conservatória do Registo Civil da Póvoa do Varzim, consta que as Autoras AA e BB nasceram em 27 de Janeiro de 1977 e são filhos de EE e de DD (alínea a));
- Por escritura pública de “habilitação”, outorgada a 02.05.2006, constante de fls. 69 do Livro de Notas para Escrituras Diversas, número 9-A, do Cartório Notarial da Póvoa de Varzim, sito na Rua Gomes Amorim, n° 36, FF, GG e HH, todas na qualidade de outorgantes, declararam que “no dia 01.04.2006 (...) faleceu no estado de divorciada (...) DD (...). A falecida não deixou testamento nem qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como herdeiros duas filhas. 1. BB, solteira, maior, natural desta cidade da Póvoa de Varzim; e 2. AA, casada com II, sob o regime de comunhão geral, natural desta cidade da Póvoa de Varzim. (...) Que não há outras pessoas que, segundo a lei, prefiram aos indicados herdeiros ou com eles possam concorrer na sucessão à herança da mencionada DD (alínea B) dos factos assentes);
- No dia 01 de Abril de 2006, pelas 22h40rn, na localidade de Modivas, ao km 14.925, Vila do Conde, ocorreu um embate em que foram intervenientes o veículo de matrícula XL-...-..., conduzido por JJ e propriedade de MM, e o veículo automóvel ligeiro de matrícula ...-...-HU, conduzido por NN (alínea F) dos factos assentes);
- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em d), a mãe das autoras circulava na qualidade de passageira sentada no banco à direita do condutor do veículo XL (alínea G) dos factos assentes);
- O veículo XL circulava pela Estrada Nacional, n° 13, no sentido Vila do Conde — Porto (alínea H) dos factos assentes);
- No sentido oposto, Porto — Vila do Conde, circulava o condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-...-HU (alínea 1) dos factos assentes);
- O HU circulava no sentido Porto — Vila do Conde a uma velocidade não concretamente apurada mas não inferior a 80 km/hora (resposta ao número 18 da base instrutória);
- Ao km 14,925 a faixa de rodagem por onde circulava o XL subdividia-se em duas, separadas por linha contínua: uma para quem seguisse em frente e outra para quem pretendesse circular para a esquerda, tendo no solo pintado, para além da respectiva seta, o sinal de stop (alínea J) dos factos assentes);
- Ao km 14,925 da EN 13, o condutor do XL, JJ, pretendeu manobrar o seu veículo para a sua esquerda e dar entrada na Rua da Igreja que era parte integrante de um cruzamento naquela via (alínea P) dos factos assentes);
- Esse cruzamento é semaforizado (alínea O) dos factos assentes);
- O condutor do veículo HU pretendia seguir em frente, atento o seu sentido de marcha (alínea Q) dos factos assentes);
- O sinal de semáforo apresentava-se verde para o condutor do veículo HU (alínea R) dos factos assentes);
- No momento do embate e no sentido Vila do Conde — Porto, o semáforo apresentava-se verde para quem quisesse seguir em frente e amarelo intermitente para quem quisesse virar à esquerda (resposta ao número 1 da base instrutória);
- No local referido em d), o condutor do XL avistou o veículo HU a uma distância não concretamente apurada mas não inferior a 200 metros (resposta ao número 2 da base instrutória);
- O condutor do XL accionou o sinal luminoso, vulgo “piscapisca” (resposta ao número 14 da base instrutória);
- O condutor do XL efectuou a manobra de mudança de direcção para a esquerda quando o veículo HU se encontrava a cerca de 50 metros de si (resposta ao número 3 da base instrutória);
- E não parou no sinal de Stop marcado transversalmente no pavimento (resposta ao número 4 da base instrutória);
- Em consequência do referido em r) e s), o condutor do XL invadiu, com o referido XL, a faixa de rodagem esquerda (resposta ao número 5 da base instrutória);
- O condutor do HU travou (resposta ao número 7 da base instrutória);
- E foi embater com a frente do veículo na parte lateral direita do veículo XL (resposta ao número 8 da base instrutória);
- O embate deu-se na hemi-faixa esquerda atento o sentido de marcha Vila do Conde — Porto (alínea S) dos factos assentes);
- Em virtude do referido em v), o XL rodopiou e ficou atravessado na faixa esquerda de rodagem, considerando o sentido Vila do Conde/Porto, com a frente virada para a mão de onde provinha, com a traseira a 2,8 m da linha da berma esquerda, atento o referido sentido (resposta ao número 9 da base instrutória);
- O HU ficou na faixa de rodagem esquerda de rodagem, considerando o sentido Porto/Vila do Conde, virado para a mão de trânsito de onde igualmente provinha, a 1,2 m da berma (resposta ao número 10 da base instrutória);
- No local referido em d) e em ambos os sentidos de trânsito estavam apostos sinais de proibição de circulação a velocidade superior a 50 km/h (alínea N) dos factos assentes);
- O local referido em d) configura uma recta de 01 km de extensão, com piso em asfalto, regular e seco e com inclinação descendente, ( atento o sentido de marcha do XL (alínea L) dos factos assentes);
- O local referido em d) era bem iluminado em todo o trajecto por luz pública, sendo que os candeeiros estavam distanciados 30 metros uns dos outros e estavam ligados (alínea M) dos factos assentes);
- Em consequência do referido em d) a mãe das autoras faleceu (resposta ao número 22 da base instrutória);
- A mãe das autoras era saudável, trabalhadora e pessoa considerada no meio social onde vivia (resposta aos números 28 e 29 da base instrutória);
- As autoras e a sua mãe eram pessoas amigas e próximas (resposta ao número 25 da base instrutória);
- As autoras sofreram dor profunda com o desaparecimento físico da sua mãe (resposta ao número 26 da base instrutória);
- As autoras despenderam a quantia de € 1.491,00 a título de despesas de funeral (resposta ao número 22 da base instrutória);
- A autora Ana reside em França e despendeu quantia não concretamente apurada com viagens e estadia em virtude do funeral da mãe (resposta ao número 23 da base instrutória);
- A autora Lara reside em Lisboa e despendeu quantia não concretamente apurada com viagens e estadia em virtude do funeral da mãe (resposta ao número 24 da base instrutória);
- A DD é beneficiária da Segurança Social com o n° 018405835/50 (alínea U) dos factos assentes);
- O Centro Nacional de Pensões do Instituto de Segurança Social, IP, é uma pessoa colectiva com sede no Campo Grande, n° 6, Lisboa (alínea E) dos factos assentes);
- O Instituto da Segurança Social, IP — Centro Nacional de Pensões — pagou às autoras a quantia de € 1.491,00, a título de reembolso pelas despesas suportadas com o funeral de DD (resposta ao número 30 da base instrutória);
- A ré R...S..., SA, é urna sociedade comercial, com sede C na Avenida de França, no 316, Edifício Capitólio, Porto, que, no exercício da sua actividade e mediante escrito consubstanciado na apólice n° 90/315, a ré assumiu a responsabilidade emergente da circulação do veículo marca Peugeot e com o número de matrícula XL-...-..., mediante o pagamento de um prémio a efectuar pelo subscritor do seguro, MM (alínea C) dos factos assentes);
- A chamada Companhia de Seguros T..., SA, é uma sociedade comercial, com sede na Avenida da Liberdade, n° 252, Lisboa, que, no exercício da sua actividade e mediante escrito consubstanciado na apólice n° 0900043417, a chamada assumiu a responsabilidade emergente da circulação do veículo marca Fiat Punto e com o número de matrícula ...-...-HLJ, mediante o pagamento de um prémio a efectuar pelo subscritor do seguro, OO (alínea D) dos factos assentes).

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,
1. Evento e culpa.
2. Indemnização.
3. Conclusões.

Tratando-se, embora, de duas revistas, pedidas pelas duas Rés (primeira e interveniente principal), ambas põem em causa a culpa na produção do evento e os “quanta” indemnizatórios arbitrados.

Daí que se proceda ao julgamento conjunto, no sentido de não se dividir o Acórdão para a análise de cada um dos recursos em separado, sem que, contudo, e obviamente, se ponderem todos os argumentos de ambas as recorrentes.

1. Evento e culpa

1.1. Os factos definitivamente assentes e que acima se seriaram permitem visualizar a dinâmica do evento nos seguintes termos:

Numa recta, com cerca de 1km de extensão, boa visibilidade, já que, embora de noite, estava devida e profusamente iluminada, piso seco, e sem que existisse qualquer obstáculo, deslocavam-se em sentidos opostos os veículos automóveis ligeiros, de matrículas XL-...-..., pertença de PP, segurada da Ré “R...S..., SA” e tripulado por JJ, e ...-...-HU, conduzido por NN e pertença de OO, com seguro na Ré “T...”.

Ao km 14,925 daquela Estrada Nacional n.º 13, em Modivas, a faixa de rodagem por onde seguia o XL (no sentido Vila do Conde – Porto) subdivide-se em duas hemi-faixas separadas por um traço contínuo.

A da direita para quem segue em frente e a da esquerda para quem, no cruzamento, pretende seguir para esse lado.

A quem faz essa manobra de mudança de direcção depara-se, pintado no solo, para além da respectiva seta, um sinal de “STOP”, sendo que existe, no local, sinalização luminosa (amarela intermitente) para quem pretende fazer a manobra referida, se aberta –luz verde- a via com a qual se cruza.

Foi esse quadro que se deparou ao condutor do veículo XL que avistou, a cerca de 200 metros, o veículo HU, a circular na recta em sentido oposto e com a sinalização luminosa verde.

E quando este se encontrava a cerca de 50 metros , o condutor do XL – sem deter a marcha que o animava – entrou no cruzamento, virou à esquerda e cortou a linha de circulação do HU que, perante tal, logo travou mas, ainda assim, embateu na parte lateral direita do XL, embate que se deu na meia faixa esquerda, atendo o sentido em que este seguia.

Do embate resultaram danos físicos na passageira transportada no XL (mãe das Autoras) que foram causa, directa e necessária da sua morte.

Embora, no local, a velocidade máxima permitida para quem circula no sentido do HU fosse de 50 km/h, este seguia a velocidade muito superior.

1.2. Do exposto pode concluir-se pela culpa do condutor do veículo XL.

De facto deparando-se-lhe uma marca “STOP” à entrada do cruzamento, impunha-se-lhe que aí detivesse a marcha, cedendo a passagem aos demais veículos que circulassem no cruzamento de harmonia com o tráfego regulado pela sinalização luminosa.

É o que resulta claramente do disposto no artigo 61.º do Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro.

Mas como tal não bastasse, existia ainda sinalização luminosa, estando o amarelo intermitente, sinal que “autoriza os condutores a passar desde que o façam com especial prudência” (artigo 71.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Daí que o condutor do veículo XL não pudesse ter efectuado a manobra sem respeitar a sinalização e, afinal, a regra geral do artigo 35.º, n.º 1 do Código da Estrada a impor que das manobras não resulte perigo ou embaraço para o restante trânsito.

Deveria pois, ao verificar a aproximação do veículo HU, a circular numa via com sinalização verde que lhe conferia toda a prioridade, não entrar no cruzamento efectuando a manobra, antes devendo ter parado e aguardar a passagem do outro automóvel que, ademais, já se encontrava a uns escassos 50 metros de distância.

Ao “arriscar”, revelou manifesta inconsideração e negligência, para além de ter incumprido a regulamentação estradal e desrespeitado a sinalização (quer inscrita no pavimento quer, depois, luminosa) que, naquelas circunstâncias, o impediam, em absoluto de manobrar.

E nem se diga que o facto de o condutor exceder a velocidade basta para lhe assacar culpa.

Por um lado, tal não foi demonstrado em sede de nexo causal naturalístico que teria de resultar, inequivocamente, do acervo dos factos assentes.

Quando muito poderia ponderar- se uma situação contributiva para o agravamento dos danos.

Porém a essa conclusão só se chegaria por recurso a presunção judicial que, por pura matéria de facto, este Supremo Tribunal não pode extrair.

Depara-se, em conclusão, um condutor a circular numa recta, com visibilidade e sinalização luminosa “verde” cuja linha de marcha é cortada (a cerca de 50 metros de distância) por um veículo que ignorando depois as elementares cautelas impostas pelo sinal amarelo intermitente e a linha de paragem colocada no pavimento.

É sabido, ainda, que quem tripula um veículo não é obrigado a contar com a conduta negligente dos outros utentes da via. (cfr., v.g., e desta Conferência, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça 07 A2732, já citado e de 3 de Março de 2009 – 09 A276).

Pode assim concluir-se pela culpa exclusiva do condutor do veículo XL-...-..., concedendo-se, a revista da “Companhia de Seguros T..., SA” e negando-se, desde já, e nesta parte, a da Ré “R...S..., SA”.

2- Indemnização

Os “quanta” indemnizatórios arbitrados afiguram-se equilibrados, por equitativos e encontrados de acordo com os critérios legais, podendo, nesta parte, lançar-se mão do disposto no n.º 5 do artigo 713.º do Código de Processo Civil.

Apenas poderia fazer-se certo reparo quanto à valoração do direito à vida, cujo valor peca por escasso.

Porém, como não foi interposto recurso, ainda que subordinado, pelas Autoras, terá de manter-se intocado, “ex vi” do princípio insíto no artigo 684.º, n.º 4 do Código de Processo Civil (proibição da “reformatio in pejus”) – cfr., v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Fevereiro de 2005 – 04B4805, de 24 de Maio de 2005 – 05 A1514 e, desta Conferência, de 18 de Maio de 2006 – 06 A1134) já que há que impedir que a posição do recorrente seja agravada por força do recurso que interpôs, garantindo-lhe, outrossim, a consolidação das decisões não postas em crise. Ou, como refere o Prof. M. Teixeira de Sousa, “a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão impugnada.” (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 465).

Mas, e tão somente, para se aferir da filosofia deste Supremo Tribunal neste ponto específico, cita-se os Acórdãos de14 de Julho de 2009 – 1541/06. 1 TBSTS.S.1 – e de 8 de Junho de 2006 – 06 A1464 – ambos desta Conferência, onde se julgou que “sendo a vida um valor absoluto, o seu valor ficcionado não depende da idade, condição sócio-cultural ou estado de saúde da vítima.”

Apenas se pondera a vida em si mesma, em todas as suas formas, sendo que a morte, como eliminação da vida humana é factor desencadeador da perda do seu valor.

3- Conclusões

a) O utente da via não tem que contar com a negligência ou inconsideração dos outros, excepto tratando-se daqueles com notória normal imprevisibilidade de comportamento (v.g., crianças), limitações (v.g. deficientes), ou de animais não acompanhados ou sem trela.

b) O condutor de um veículo que não detém a marcha perante um a marca transversal –linha de paragem- “stop” e prossegue a mudança de direcção no cruzamento, apesar de se lhe apresentar semáforo com luz amarela intermitente e, a cerca de 50 metros, corta a linha de marcha de um veículo, que bem avistou, e se aproximava pela sua direita e com trajecto permitido por luz verde, tem culpa exclusiva no embate.

c) Ainda que o último circulasse com velocidade acima do permitido no local teria de se apurar o nexo causal naturalístico, o que é pura matéria de facto.

d) Também se inclui no âmbito da matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, a criação de presunção judicial conducente à conclusão de que a velocidade contribuiu para o agravamento dos danos.

e) O princípio da proibição da “reformatio in pejus” – constante do n.º 4 do artigo 684.º do Código de Processo Civil – impede que a decisão do recurso seja mais desfavorável ao recorrente do que a decisão impugnada, salvo tratando-se de responsabilidade solidária e no âmbito da solidariedade, nos termos do artigo 497.º do Código Civil.

f) Sendo a vida um valor absoluto, independentemente da idade, condição sócio-cultural, ou estado de saúde, irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vítima, que não a vida em si mesma.

g) Outros factores só poderão ser ponderados nos cômputos indemnizatórios dos danos morais próprios dos herdeiros da vítima ou do dano patrimonial mediato por eles sofrido em consequência da perda.

h) Só em acerto de tese pode ser feita uma ponderação de factores culturais, de personalidade ou etários na fixação da indemnização pelo sofrimento da vítima (dano não patrimonial próprio) nos momentos que precederam a morte, na percepção da aproximação desta, no estoicismo ou capacidade de resignação perante as dores físicas e morais.

Nos termos expostos, acordam:

- Conceder revista à recorrente “Companhia de Seguros T..., SA”, absolvendo-a do pedido.

- Negar revista à recorrente “R...S..., SA”, mas considerando a solidariedade da obrigação de indemnizar, condená-la a pagar às Autoras, a totalidade indemnizatória fixada no Acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente “R...S..., SA”.

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Outubro de 2010

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho