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ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
INTERESSE EM AGIR
LEGITIMIDADE
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
Sumário
1. A legitimidade processual afere-se pela relação controvertida configurada pelo autor; a efectiva titularidade da relação material respeita ao fundo ou mérito da causa, e a sua falta conduz à improcedência da acção 2. Numa acção de simples apreciação, verifica-se o pressuposto do interesse em agir se o direito cuja existência ou inexistência se pretende que seja judicialmente declarada se encontrar numa situação de dúvida susceptível de causar prejuízos graves e objectivos ao seu titular. 3. Numa acção de impugnação de justificação notarial, o autor vem reagir contra a afirmação de titularidade do direito de propriedade por parte do justificante; trata-se de um pedido de simples apreciação negativa. 4. É condição imprescindível ao conhecimento da acção que o impugnante alegue ser titular de um direito susceptível de ser afectado pela justificação notarial. 5.Não é interessado na impugnação de escritura de justificação notarial da propriedade o autor que alega ser titular de direitos de servidão sobre o prédio correspondente.
Texto Integral
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA instaurou uma acção contra a Junta de Freguesia de Gulpilhares, BB e o Município de Vila Nova de Gaia, pedindo:
– que fossem “declarados impugnados os factos justificativos feitos pela 1ª R. na escritura de justificação lavrada no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia a fls. 126 e segs. do Livro Notas nº 332-B do então Segundo Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, para os efeitos previstos no artº 101º do Código do Notariado, por tais factos serem falsos;
– que fosse declarada “nula e de nenhum efeito a referida escritura com as legais consequências e, consequentemente,
– o cancelamento “todos os registos referentes ao terreno identificado” no artigo 5º da petição inicial, “designadamente os referentes aos 1º e 2º R.R.”;
– a declaração de nulidade da “escritura de compra e venda daquele terreno (…) pela 1ª R. ao 2º R. lavrada (…) em 18 de Abril de 2005 (…), por o vendedor não ter a propriedade do bem vendido”,
– e do “alvará nº 328/06 e licença de construção emitida pelo Município de Vila Nova de Gaia (…) por os requerente do mesmo não serem, à data, os legítimos proprietários do terreno objecto daquela licença de construção (…)”.
Todos os réus contestaram. A Junta de Freguesia de Gulpilhares, para além de impugnar os factos alegados, sustentou que o único interesse que a autora tinha na acção era “não perder as vistas para o mar”.
BB alegou, por entre o mais, ter comprado o prédio em hasta pública e ser alheio às vicissitudes referidas pela autora, que o quer prejudicar porque a sua “edificação se interpõe entre a casa da A. e o mar”.
O Município de Vila Nova de Gaia alegou a incompetência do tribunal para conhecer do “pedido de declaração de nulidade do alvará de licença de construção” que emitira e sustentou a legalidade do correspondente acto.
A fls. 126, o tribunal convidou a autora a esclarecer por que motivo considera ter interesse que lhe permita propor a acção e porque repete no tribunal comum o pedido de anulação do alvará, se o fez já no tribunal administrativo.
Na réplica, a autora respondeu e, além do mais, justificou o interesse na acção alegando ser titular de uma servidão de escoamento de saneamento de águas sujas que escorrem para o prédio objecto da escritura de justificação, que se manteve desde 1981 até ao momento em que o segundo réu o tapou ilegalmente; afirmando que a construção que o mesmo iniciou “ensombra drasticamente” o seu prédio, provoca humidade, diminui o seu valor e tira a vista do mar; e insistiu na competência do tribunal, sustentando apenas pretender discutir “o pressuposto civil de o requerente de tal licença e alvará ser ou não o proprietário do terreno em causa”.
No despacho saneador, o Município de Vila Nova de Gaia foi absolvido da instância por incompetência absoluta do tribunal.
Pela sentença de fls. 304, a acção foi julgada improcedente, porque “a autora não tem interesse em pedir a anulação da escritura notarial em causa por não ter sido violado qualquer seu direito jurídica e civilmente protegido. Não assume a qualidade de interessada pelo que não tem direito (substantivo) a pedir a referida anulação. Não o tendo, não o pode pedir e assim, também não pode pedir a consequente declaração de nulidade por compra e venda de coisa alheia já que não pode pedir a destruição do primeiro elo da cadeia de transmissões de propriedade – venda efectuada pela junta de freguesia de Gulpilhares ao aqui réu BB”.
A sentença foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 437.
2. A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi recebido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1. A recorrente continua inconformada por ter o Tribunal de 1ª Instância, bem como a Relação, apurado que a escritura de justificação notarial não correspondia à justificação de posse dos terrenos do prédio referido na alínea E), não tenha julgado tal escritura nula e não tenha decretado tal nulidade. 2. Entende a recorrente, ao contrário do douto acórdão recorrido, que este, ao deixar de se pronunciar sobre o objecto da acção proposto pela Autora/Recorrente, pronunciando-se apenas sobre a excepção invocada pelo R. BB, denegou justiça à Autora – artº 156º, nº 1 do CPC. 3. Do mesmo passo, o douto acórdão recorrido fez uma errada interpretação do artº 660º, nº 2, do CPC já que não existe qualquer tipo de prejudicialidade entre o interesse em agir e a nulidade da referida escritura, dado o Tribunal ter aceite que, por um lado, a Autora era parte legítima, por outro, permitir, no mesmo processo, que se fizesse a prova da nulidade da escritura de justificação, pelo que, ao não se pronunciar sobre tal nulidade, omitiu pronunciar-se sobre o objecto da acção, cometendo a nulidade do artº 668º, nº 1, al. d) do CPC. 4. De todo o modo, os factos dados como provados pelo douto acórdão recorrido são mais que suficientes para lhe concederem legitimidade processual nos presentes autos. 5. O interesse em agir, neste tipo de acções, vem descrito no artº 101º do Código do Notariado que diz. “Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado…”, quer referir-se a um qualquer interesse relevante do A. da acção de impugnação e tem em vista que as escrituras de justificação correspondam, o mais possível à realidade dos factos e que da justificação não resulte prejuízo ou dano para qualquer interessado. 6. Tanto assim é que o artº 97º daquele Código do Notariado faz incorrer no crime de falsas declarações os declarantes que prestarem declarações falsas nessas escrituras de justificação. 7. Ora os factos dados como provados na acção e aceites pelo douto acórdão recorrido, relativamente ao interesse em agir da Autora – corte e tapamento dos canos que faziam escorrer águas pluviais e outras do prédio da autora para o prédio justificado, que lhe causam infiltrações nos alicerces e paredes, como é facto notório; o sombreamento da casa da A., principalmente no Inverno e a perda substancial de vista do mar e paisagem circundante que afecta a qualidade de vida da Autora – são mais que suficientes para constituir a Autora como interessada em requerer a nulidade da escritura de justificação. (…) 9. Acresce que o douto acórdão recorrido incorre ainda em vários erros de julgamento, desde logo em não ter em conta os documentos indicados pela A. na sua alegação, a fim de serem modificadas as datas quer do início do escoamento das águas para o prédio vizinho, quer do seu tapamento, relativamente à resposta aos Factos 16º e 25º. 10. Quanto à data de início, verifica-se do Doc. de fls. 18 que a construção da casa da A. ficou terminada em 9 de Julho de 1984, pelo que deveria ter sido esta data a figurar, como do início do escoamento através dos canos exteriores, das águas, e não a de 3/07/86, como consta da resposta àqueles factos. 11. Relativamente à data em que o R. BB a procedeu ao tapamento dos referidos canos, ao contrário do referido pelo douto acórdão, há prova documental segura donde se infere tal data: a carta deste Réu de fls. 167, de 26 de Julho de 2006 na qual este invectiva a A. a tapar os referidos canos, senão o fará ele, pelo que tal tapamento só poderá ter ocorrido após aquela data, pelo que a data que deverá constar como de tapamento dos canos exteriores na Resposta aos factos 16º e 25º deverá ser ‘após 26/07/2006’. 12. Outra erro de julgamento que ocorre no douto acórdão recorrido foi o mesmo não ter em conta, na reformulação da resposta ao facto 27º, o Parecer sobre o Sombreamento da casa da A. por, no entender do acórdão: “‘O parecer’ só agora foi junto aos autos, pelo que não podia alicerçar a resposta ao perguntado” 13. Ora tal Parecer de consagrado Professor da faculdade de Engenharia, reputado perito no assunto, foi junto aos autos nos termos e ao abrigo do artº 706º do CPC, isto é, a ‘junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância”, como era o caso, já que aquela resposta teve apenas por fundamento a intuição do Senhor Juiz apreciada num dia de Julho no local, sem qualquer base científica. 14. Daí que a reposta correcta àquele Facto 27º, atento o referido Parecer devesse ser: ‘Provado que a edificação referida em G) causa sombra no imóvel referido em C) com início entre as 13:00 horas e as 15:30 horas (tempo solar verdadeiro) em função dos dias do ano”. 15. De tal resposta se infere, desde logo, que tal sombreamento, principalmente no Inverno, causa prejuízo grave à saúde da A. e seus familiares, na própria lógia da sentença e do acórdão recorrido, tornando assim a Autora em parte verdadeiramente interessada na acção. 16. Ao contrário do referido no douto acórdão recorrido há muito tempo que deixou de existir, no que às servidões respeita, o princípio da tipicidade, próprio do direito romano e já abandonado na época de Justiniano. (…) 20. O que a Recorrente alegou e provou foi uma servidão voluntária aparente e atípica de escoamento de águas, através de canos exteriores, que vertiam essas águas do prédio da A. referido em C) para o prédio referido em E), ora G), durante mais de 15/20 anos, à vista de toda a gente e de boa fé. (…) 23. Ex abundanti se dirá que a Autora/Recorrente , enquanto proprietária do prédio referido em C), é ainda detentora de um direito real de servidão voluntária atípica de vistas de mar, que sempre gozou, por si e antecessores, desde o início da construção desse prédio, até ao início da construção do prédio referido em E), que lhe retirou parte da vista de mar e paisagem poente – resposta ao quesito 29º. 24. Ao contrário do referido no douto acórdão recorrido, a vista de mar é juridicamente relevante, pois existe norma legal que preserve esta vista de mar, designadamente a servidão predial voluntária inominada do artº 1544º do Código Civil. (…) 26. Deste modo, a Autora/recorrente, como proprietária do prédio referido em C), é detentora de direitos reais de servidões prediais voluntárias atípicas, pelo que também por aqui, e na lógica do próprio acórdão recorrido, é parte legítima e tem direito de agir e requerer, como requer, a nulidade da escritura de justificação notarial do prédio referido em E), já amplamente provada, bem como, em consequência, da nulidade da escritura de venda desse prédio ao R. BB e o cancelamento dos respectivos registos. 27. O douto acórdão recorrido, julgando como julgou, fez errada interpretação dos artºs 660º. nº 2 e 156º do CPC; 1561º, nº 1 e 1563º, nº 4 do Código Civil e violou os artºs 101º do Código do Notariado e artºs 668º, nº 1, al.d) e 706º do CPC e artºs 1543º e 1544º do CC».
Contra-alegaram a Junta de Freguesia de Gulpilhares e BB, defendendo a manutenção do decidido.
A Junta de Freguesia concluiu as alegações afirmando: “A questão da posse do terreno, melhor, da nulidade, erradamente, peticionada da escritura de justificação notarial, foi e é um mero instrumento, uma mera questão colateral, com intuito de estabelecer servidões de água e de vista no sentido de estabelecer um interesse em agir. A Recorrente não logrou demonstrar e provar um qualquer interesse relevante, grave, merecedor de tutela jurisdicional, não tendo, nessa medida, qualquer interesse válido e juridicamente relevante em agir, em pedir a anulação da escritura de justificação notarial (não provou que detém um direito real pleno sob o imóvel objecto da escritura). O interesse processual/de agir é um pressuposto processual cuja falta consubstancia uma excepção dilatória inominada e de conhecimento oficioso, e que conduz, como se disse já, à absolvição da instância. Razão pela qual, os Recorridos foram absolvidos, sem necessidade de pronúncia relativamente à validade da escritura de justificação notarial e escrituras subsequentes, e até mesmo relativamente à suposta constituição de direitos de servidão por parte da Recorrente. Conclui-se, assim, que a Recorrente, em nada saiu lesada, nem tão pouco prejudicada económica ou moralmente, apenas, tinha e tem uma preocupação exacerbada com o que não é sua propriedade, desviando atenção para questões inexistentes como forma de camuflar o facto de não querer perder as vistas para mar, sendo certo que sempre esteve prevista uma construção contígua à sua (atenta que a sua localização era zona qualificada para o efeito)”.
Quanto a BB, observou: “em resumo, não se aceita que sob a capa de uma acção de declaração de nulidade de uma escritura de justificação se pretenda atacar o direito de propriedade de um terceiro de boa fé, alheia àquela primeira escritura, e muito menos se aceita que se permita, numa acção deste género, a tentativa de obter a constituição forçada de servidões legais ou o reconhecimento de danos e prejuízos que não só não existem como não merecem, por si só, a tutela do Direito, por se prenderem com caprichos e incómodos que não valem mais do que direitos legalmente obtidos”.
3. Vem provada a seguinte matéria de facto (transcreve-se do acórdão recorrido):
1) CC faleceu em 30/05/06 no estado de casado com AA (A). 2) CC casou com AA em 03/02/89. (B). 3) O prédio urbano composto de casa de r/c, andar com logradouro, sito na Travessa .........., nº ......, encontra-se descrito na 1ª C.R.P de Vila Nova de Gaia sob o nº 00000000000 com os seguintes registos de aquisição: Ap. 0000000 – a favor de «IN-Wear…» por compra a DD e EE, com transmissão por fusão a favor de «IC00000000– a favor de CC casou com AA por compra a «IC…» convertida em definitivo em 18/05/05 (av. 01), tudo conforme fls. 13 a 15 cujo teor se dá por reproduzido (C).) (C). 4) No dia 25/05/04 compareceram no 2º cartório notarial de Vila Nova de Gaia FF, na qualidade de presidente da junta de freguesia de Gulpilhares (1º), JJ, KK, LL (2º) tendo o 1º dito que a sua representada é dona dos seguintes imóveis: Terreno destinado a construção com área de 585, sito na Rua ............, Gulpilhares, Vila Nova de Gaia, a confrontar de Norte com Rua ..........., Sul e Poente Junta de freguesia de Gulpilhares, Nascente MM, inscrito na matriz sob o artigo 3774, omisso na 1ª C.R.P de V.N.G. Terreno destinado a construção com área de 965,65, sito na Travessa................, Gulpilhares, Vila Nova de Gaia, a confrontar de Norte com MM e Junta de freguesia de Gulpinlhares, sul com Travessa................, Nascente IN-Wear, S.A Poente Junta de freguesia de Gulpilhares, inscrito na matriz sob o artigo 3775, omisso na 1ª C.R.P de V.N.G. Mais declarou que tais terrenos estão vedados e demarcados por muros definitivos em blocos de cimento tendo anteriormente pertencido á paróquia com posse anterior a 1890 e que sempre os usufruiu, gozando todas as suas utilidades com ânimo de exercício de direito próprio, ai depositando materiais, á vista de todos, com conhecimento de toda a gente, sem oposição, tendo os 2ºs declarado que confirmam as declarações do 1º, tudo conforme fls. 22 a 25 cujo teor se dá por reproduzido (D). 5) O prédio rústico, terreno destinado a construção com área de 965,65, sito na Travessa................, Gulpilhares, Vila Nova de Gaia, a confrontar de Norte com Maria Cândida Camisão Couto e Junta de Freguesia de Gulpilhares, inscrito na matriz sobre o artigo 3775º, encontra-se descrito na 1ª C.R.P de V.N.G sob o nº 0000000000000com registo de aquisição 16/07/04 a favor de Junta de Freguesia de Gulpilhares conforme fls. 27 a 29 cujo teor se dá por reproduzido(E). 6) No dia 18/04/05 compareceram no Cartório Notarial de FF, como presidente da Junta de Freguesia de Gulpilhares (1º), BB (2º) tendo o 1º declarado que, para a sua representada, vende ao 2º o imóvel referido em E) – artigo 3775º - pelo preço de € 280.038,50, já recebido, o que o 2º aceitou, tudo conforme consta de fls. 31 a 33 cujo teor se dá por reproduzido (F). 7) O Réu BB está a construir um edifício no terreno referido em 5) -al. G. 8) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 57 e 58 (descrição e inscrições relativamente a terreno onde foi construída a habitação referida em C), constando, entre outras, que por registo 6 de 26/08/1905 fica inscrito a favor de GG a por o haver arrendado, registo 13 de 26/08/1905 a favor de José Lourenço por lhe haver sido dado de aforamento pela Junta de Freguesia de Gulpilhares de 22/10/1899, nº 15, de 26/08/1905, a favor de HH por o haver comprado a II, constando ainda inscrição nº 000000 0como prédio constituído por um terreno baldio, com superfície de 450 - al. H. 9) O terreno referido em 5) foi parcialmente vedado com um muro, com blocos de cimento, a Sul e Nascente (3º) sendo que o referido terreno não foi vedado a Poente e parte do Norte (4º). 10) Face ao P.D.M de Vila Nova de Gaia ao imóvel referido em 5) é susceptível de ser levantada uma edificação (12º). 11) EE, antes de 03/07/86 vedou pelo menos parte do terreno referido em 3 – facto 14º. 12) Antes de 03/07/86, EE fez com que as águas pluviais e sujas escoassem do prédio referido em 3) para o mencionado em 5) o que sucedeu até o Réu BB ter tapado tal escoamento após 18/04/05 (16º e 25º). 13) Até serem iniciados os trabalhos da edificação mencionada em 7) havia pessoas que acediam à praia ou a outros lugares utilizando pelo menos parte do prédio referido em E) com tal finalidade (17º e 21º). 14) Até serem iniciados os trabalhos da edificação mencionada em 7) havia pessoas que colocavam tendas de campismo pelo menos em parte do terreno referido em 5) – facto 18º. 15) Até serem iniciados os trabalhos de edificação mencionada em 7) havia pessoas que deitavam lixo para o terreno referido em 5) – facto 19º. 16) Até serem iniciados os trabalhos de edificação mencionado em G) havia pessoas que aí se deitavam a apanhar raios solares (20º). 17) O referido em 13 a 16 sucedia á vista de todos (22º), de forma pacífica (23º) e sucedeu pelo menos até serem iniciados os trabalhos da edificação referida em 7) – facto 24º. 18) A construção referida em 7) é uma moradia de r/c, dois andares (26º) a qual no verão, causa sombra ao imóvel referido em 3) a partir de cerca das 19:00horas e no Inverno mais cedo (27º) e retira parte da vista do mar e paisagem para Poente a quem habite no imóvel referido em 3) – facto 29º.»
4. São as seguintes as questões colocadas pela recorrente:
– denegação de justiça
– nulidade por omissão de pronúncia;
– erros no julgamento da matéria de facto;
– legitimidade processual e interesse em agir da autora, e sua qualidade de interessada para os efeito do artigo 101º do Código do Notariado;
– titularidade das servidões prediais e decorrente legitimidade e direito de agir para impugnar a escritura de justificação.
5. Afirmar que ocorreu denegação de justiça é uma acusação grave. A denegação de justiça é crime, como tal previsto e punido pelo Código Penal. Tanto mais grave quanto, no caso presente, é totalmente desprovida de fundamento.
Em primeiro lugar, porque não se compreende como é que a autora afirma que as instâncias apuraram “que a escritura de justificação notarial (...) não correspondia à justificação de posse dos terrenos referidos na alínea E) dos factos assentes e que confronta com o prédio da recorrente”, já que, nem a Relação, nem a 1ª Instância apuraram a falta de correspondência que a recorrente aponta. Será uma sua interpretação das correspondentes decisões.
Em segundo lugar, porque também se não compreende por que motivo teria o tribunal “forçosamente de se pronunciar sobre a invocada – pela Autora – nulidade daquela escritura de justificação”, por ter julgado que a autora era parte legítima.
Tal afirmação esquece, desde logo, que, nos termos expressos do nº 3 do artigo 26º do Código de Processo Civil, a legitimidade se afere apenas pela relação controvertida configurada pelo autor; a efectiva titularidade da relação material respeita ao fundo ou mérito da causa, e a sua falta conduz à improcedência da acção. Esquece, ainda, que no despacho saneador o tribunal disse expressamente que “entende-se que alega a Autora factos que indiciam o seu interesse para pedir a referida nulidade [da escritura de justificação notarial] além da nulidade da venda de coisa alheia (…); outra questão é a sua prova”, claramente distinguindo as “duas legitimidades”, processual e substantiva – esta, dependente de prova.
Em terceiro lugar, porque seria contraditório e errado concluir que a autora não tem o direito de invocar a nulidade da escritura [“não assume a qualidade de interessada pelo que não tem direito (substantivo) a pedir a referida anulação”, escreveu-se na sentença] e, todavia, apreciar a referida nulidade, numa acção proposta pela autora. Além do mais, seria uma pronúncia inútil, já que sempre a acção teria de improceder, por estar a autora a exercer um direito que não tem. Nunca poderia o tribunal julgar nula a escritura, como sustenta a recorrente.
Não houve qualquer denegação de justiça, nem na 1ª, nem na 2ª Instância; o dever de decidir, nomeadamente expresso no nº 1 do artigo 156º do Código de Processo Civil, não significa, nem julgar de mérito quando faltam pressupostos processuais, nem permitir o exercício de direitos a quem deles não é titular.
6. A recorrente invocou nulidade da sentença por omissão de pronúncia (al. d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil) e discorda do acórdão recorrido, pois entende que “não há uma noção de prejudicialidade entre a questão da Autora, ora recorrente, ser ou não interessada processualmente na acção e a nulidade da referida escritura, já que são questões distintas e não têm conexão entre si, dado que o Tribunal aceitou que se fizesse prova de ambas, considerando-as assim estanques e não prejudiciais uma à outra”.
Mas também não tem razão, como aliás decorre do que se disse no ponto anterior e resulta do nº 2 do artigo 660º do Código de Processo Civil, como o acórdão recorrido observou. Este acórdão, aliás, não falou em relações de prejudicialidade, expressão que tem um significado que se não reconduz ao sentido com que aquele nº 2 dispensa o tribunal de apreciar questões cujo conhecimento fique prejudicado pelo julgamento de outras. Repete-se que, no caso, o tribunal não podia apreciar o pedido de declaração de nulidade deduzido por quem não tem o direito de a invocar.
7. A recorrente pretende ainda que sejam alterados diversos pontos da matéria de facto (factos 16º, 25º e 27º).
Mas em nenhum dos casos aponta a infracção “de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil), como seria imprescindível para que a decisão de facto pudesse ser modificada neste recurso (nº 2 do artigo 729º do mesmo Código).
Quanto ao Parecer que a recorrente juntou com a apelação, cabe ainda dizer que, não obstante ser escrito, não se enquadra na noção de documento (artigo 362º do Código Civil); a recorrente, aliás, realça a qualidade de perito do seu autor. Ainda que coubesse, a sua junção não se teria tornado “necessária pelo julgamento proferido em 1ª instância”, já que o facto a provar foi sujeito a prova em 1ª instância. E, seja como for, a afirmação de que o parecer “não podia alicerçar a resposta ao perguntado” tem que ser entendida no contexto do acórdão, não sendo a razão pela qual a Relação não procedeu à alteração pretendida, mas um acrescento à razão invocada.
8. A recorrente sustenta ainda que “os factos provados quanto ao interesse de agir da Autora-Recorrente são mais do que suficientes para lhe concederem legitimidade processual nos presentes autos”. Não está em causa a legitimidade da autora (reconhecida logo no saneador, como se viu já), pressuposto que, aliás, não se confunde com o interesse em agir, correspondente à necessidade de tutela judiciária.,
Numa acção de simples apreciação, verifica-se o pressuposto do interesse em agir se o direito cuja existência ou inexistência se pretende que seja judicialmente declarada se encontrar numa situação de dúvida susceptível de causar prejuízos graves e objectivos ao seu titular.
Numa acção de impugnação de justificação notarial, como é o caso, o autor vem reagir contra a afirmação de titularidade do direito de propriedade por parte do justificante; trata-se de um pedido de simples apreciação negativa, como correntemente se entende. É então condição imprescindível ao conhecimento da acção que o impugnante alegue ser titular de um direito prejudicado, posto em dúvida, por virtude da justificação; por tal forma que a declaração de inexistência do direito do justificante seja apta a pôr termo à situação de dúvida objectiva e grave (ou seja, prejudicial) em que se encontra um direito invocado pelo autor.
Assim se entendeu, aliás, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Novembro de 2005, citado pela recorrente em apoio da sua afirmação de que é interessada nos termos e para os efeitos do artigo 101º do Código do Notariado. Ali se esclarece que os impugnantes se deviam considerar interessados porque “Efectuada a escritura de justificação, para efeitos de primeira inscrição no registo, pode impugná-la aquele que tiver um direito incompatível com o invocado pelo justificante ou qualquer outro interesse juridicamente relevante. Os interessados, para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que possa ser afectado, posto em crise pelo facto justificado (v. Ac. desta Relação, 13/10/05, em ITIJ, proc. 00000000). Interessados não são só aqueles que têm um direito ou interesse incompatível com o do justificante, mas também os que podem ser afectados em qualquer interesse relevante com o acto de justificação. (…) Na alegação dos AA, com a justificação é posta em crise mesmo a integralidade dos seus prédios confinantes com o justificado, pois que a área deste acabaria por se projectar sobre parte do daqueles ou que os recorrentes entendem pertencer-lhes. Com a justificação, segundo os AA, cria-se um estado de incerteza grave sobre a dimensão dos seus prédios contíguos ao justificado, sobre os limites e estremas dos prédios. Estado de incerteza a que os AA pretendem por cobro. O que justifica a acção.” Ora, no caso presente, e ainda que estivesse efectivamente provado tudo o que se afirma na conclusão 7ª (e nem tudo está provado, cfr. lista de factos atrás transcrita) – “corte e tapamento dos canos que faziam escorrer águas pluviais e outras do prédio da autora para o prédio justificado, que lhe causam infiltrações nos alicerces e paredes, como é facto notório; o sombreamento da casa da A., principalmente no Inverno e a perda substancial de vista do mar e paisagem circundante que afecta a qualidade de vida da Autora – ainda assim se não pode considerar a autora interessada, para ter o direito de impugnar a escritura de justificação notarial.
Seria desde logo imprescindível que esses actos pusessem em causa direitos de que a autora fosse titular e que fossem susceptíveis de ser afectados pela justificação notarial que pretende impugnar, ou seja, pela declaração de propriedade em favor da ré Junta de Freguesia de Gulpilhares.
8. A autora alega ser titular de direitos de servidão sobre o prédio a que respeita a justificação notarial, que diz ter adquirido por usucapião, justificando a sua admissibilidade no artigo 1544º do Código Civil. Ora, na acção que propôs não pediu, nem a declaração da sua existência, nem a condenação de algum ou alguns dos réus a absterem-se de perturbar o respectivo exercício. A alegação da titularidade dos direitos de servidão destinou-se a justificar a qualidade de interessada na impugnação da escritura de justificação notarial.
Isto significa que, no contexto desta acção, há que antes de mais determinar se tais direitos de servidão predial, admitindo que existissem, lhe conferiam tal qualidade – ou, o que é o mesmo, lhe atribuíam o direito de impugnar a escritura de justificação judicial.
E a resposta é negativa: tratando-se de servidões prediais, não releva a pessoa que, em cada momento, é proprietário do prédio serviente (nem tão pouco do dominante, mas isso agora não interessa). A procedência ou improcedência da justificação é indiferente à existência e integridade de hipotéticos direitos de servidão sobre o prédio. As servidões prediais coexistem com o direito de propriedade sobre o prédio serviente. Traduzem-se, como todos sabemos, em direitos reais de gozo sobre um prédio alheio. Utilizando a definição de Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, pág. 433), “o direito de servidão predial é um direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar das utilidades de prédio alheio em benefício do aproveitamento das utilidades do primeiro” – cfr., vendo a mesma noção do lado passivo, os artigos 1543º e 1544º do Código Civil
A autora não é interessada, para os efeitos do artigo 101º do Código do Notariado, na impugnação da escritura de justificação notarial da propriedade da Junta de Freguesia de Gulpilhares, que em nada prejudicam os direitos de servidão cuja titularidade invoca.
Resta assim negar provimento ao recurso.
9. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 11 de Novembro de 2010
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lopes do Rego
Barreto Nunes