CONTRATO DE COMODATO
EXTINÇÃO DO CONTRATO
DENÚNCIA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Sumário


I- É da natureza do contrato de comodato, como seu elemento essencial, a obrigação de restituir a coisa, cuja entrega já é feita sob o signo da temporalidade.
II-Em razão dessa nota de temporalidade, a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico.
III-O Código Civil acolhe no âmbito do contrato de comodato, a figura do denominado comodato precário, o que ocorre quando não tenha sido fixado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, caso em que fica o comodatário obrigado a restitui-la quando o comodante o exija, denunciando o contrato
IV- No empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado.
V- O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável.
VI- Não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA-“P... das R... – Imobiliária, S.A.”, intentou acção de reivindicação contra BB, CC e DD, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio misto denominado «Quinta da F... das L...», sito no lugar da U..., freguesia da Pontinha, Odivelas, e, em consequência, a condenação dos Réus na desocupação e entrega da parte do prédio que abusivamente ocupam.
Alegou, em síntese, que os RR. vêm ocupando uma barraca situada na parte rústica do prédio sem que para isso possuam qualquer título justificativo.

Os RR. contestaram.
Sustentaram terem procedido, com autorização do então proprietário do terreno, à realização de obras no prédio, no montante global de 35.000,00€, pelo que, não tendo o terreno onde o edifício foi construído um valor superior a 500,00€, verificou-se, a seu favor, acessão imobiliária industrial do terreno onde o edifício foi construído.
Pediram, em sede reconvencional, que tal seja declarado, devendo ser fixado o quantitativo que devem depositar, a esse título, a favor da A., peticionando, ainda, a título subsidiário, que seja a A./reconvinda condenada no pagamento de uma indemnização pelo montante que despenderam na realização de obras no imóvel.

Após completa tramitação do processo, foi proferida sentença que:
- a) declarou que a A., AA-P... das R... – Imobiliária, S.A., é legítima proprietária do prédio misto denominado «Quinta da F... das L...», sito no lugar da U..., freguesia da Pontinha, concelho e comarca de Odivelas, inscrito na matriz urbana sob os artigos ..., ... e ... e na matriz rústica sob o artigo ... da Secção ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n.º 0...;
b) Condenou os RR. a desocupar a casa, situada na parte rústica do prédio misto referido em a), que abusivamente ocupam, entregando-o à A.; e,
c) Julgou o pedido reconvencional improcedente por não provado, absolvendo a A./reconvinda do pedido.

Mediante apelação dos Réus, a Relação decidiu:
“a) – Julgar procedentes as apelações de BB, CC e DD, revogar a douta sentença de 9 de Fevereiro de 2009 (fls.250/261) e absolver estes do pedido formulado pela sociedade comercial AA-P... das R... – Imobiliária, S.A.; e,
b) – Não conhecer do pedido reconvencional - atenta a improcedência da acção”.


Agora é a Autora a pedir revista, reclamando a procedência da acção e a improcedência da reconvenção.

Para tanto, argumenta nas conclusões da alegação que ofereceu:
I . Não se pode falar de comodato no caso destes autos.
II . O que teve lugar foi tão-somente um acto de mera tolerância por parte de apenas um dos antigos proprietários do imóvel, que não pode jamais vincular ou criar obrigações a futuros proprietários, como é o caso da recorrente.
III . E mesmo que tivesse chegado a haver comodato - o que só por hipótese de raciocínio se concebe - a recorrente continuaria a não estar vinculada por ele, dada a natureza exclusivamente obrigacional do mesmo, que não tem eficácia erga omnes.
IV . Em qualquer caso não se pode falar no caso dos autos em uso determinado, desde logo porque nunca se determinou ou delimitou a necessidade temporal que o hipotético comodato visava satisfazer.
V. Pelo que em qualquer altura pode a recorrente exigir a entrega da coisa, como exigiu através da presente acção.
VI . A reconvenção não pode proceder, pois as alegadas benfeitorias foram feitas pelos recorridos, sabendo estes que o imóvel lhes não pertencia e, portanto, de má fé.
VII . Não sendo as mesmas necessárias, pela simples razão de que o que foi alegado pelos recorridos é que elas aumentaram o valor do imóvel, não se tendo destinado a evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa.
VIII . Pelo que são benfeitorias úteis e não se opondo a recorrente ao levantamento das mesmas, ela não é obrigada a indemnizar os recorridos (art. 1273° do Cód. Civil).
IX . Nestes termos e nos que doutamente se suprirão, deve ser revogado o Acórdão recorrido, que violou o art. 1137º do Código Civil

Apenas o Recorrido DD respondeu.





2. - Como resulta do conteúdo das conclusões da alegação da Recorrente, propõe-se a resolução das seguintes questões:

- Qualificação da relação estabelecida e existente entre as Partes;

- Direito da Autora-recorrente à imediata restituição do prédio;

- Direito dos Réus a serem indemnizados por benfeitorias efectuadas no mesmo prédio.





3. - - Os factos definitivamente provados são os seguintes:

1 - O prédio misto denominado “Quinta da F... das L...”, sito no lugar da U..., freguesia da Pontinha, concelho e comarca de Odivelas, inscrito na matriz urbana sob os artigos ..., ... e ... e na matriz rústica sob o artigo ... da Secção ..., estando dependente de inscrição na actual freguesia desde 08/11/91 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n.º 0..., tem a sua aquisição aqui inscrita a favor da autora, por compra.
2 - Há cerca de 31 anos, um dos donos do prédio referido em 1., autorizou a R. CC e o seu companheiro da altura que passassem a viver numa das dependências agrícolas, situada na parte rústica sob o artigo ... de Secção ... .
3 - No referido edifício sempre habitaram, desde então, os RR. CC e BB, aí criando os seus filhos, um dos quais o réu DD, que, desde que nasceu, há 22 anos, lá reside com os pais.
4 - No decurso do ano de 1996, os réus BB e CC fizeram as seguintes obras no edifício: - construção de placa de betão em toda a superfície do edifício; picagem, reboco e pintura das paredes interiores; colocação de duas janelas interiores de madeira; colocação de mosaicos em toda a área do edifício; colocação de três portas interiores; construção de casa de banho, com chuveiro, sanita e lavatório e respectiva ligação a caixa de esgoto; instalação de circuito eléctrico do prédio; instalação de canalização de água.
5 - Nas obras referidas em 4., os réus gastaram a quantia de € 3.104,94 (três mil cento e quatro euros e noventa e quatro cêntimos), em materiais de construção, designadamente em acessórios de casa-de-banho, mosaicos, azulejos, cimento, areia, tijolos e vigas.
6 - O terreno onde está construído o edifício tem uma superfície de cerca de 90 m2 a 100 m2, na parte ocupada pelo edifício.
7 - Depois de realizadas as obras, os réus continuaram a viver no edifício ininterruptamente, à vista de todos e sem qualquer oposição de todos os donos do prédio antes da autora.
8 - Os RR. ocupam uma casa na parte rústica do prédio referido em 1..





4. - Mérito do recurso.

4. 1. – Contrato de comodato.

A Recorrente insurge-se contra o entendimento da Relação que qualificou a relação estabelecida entre as Partes como um contrato de comodato e, depois, considerando que o contrato tinha por objecto um “uso determinado (os apelados viverem)”, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art. 1137º o comodante não poderia exigir a restituição do bem.
Sustenta ainda que a reconvenção deve improceder pois que as benfeitorias são apenas úteis e feitas de má fé, não se opondo a A. ao respectivo levantamento.


Como vem provado, um dos donos do prédio reivindicado, antecessor da Autora, autorizou a R. CC e o seu companheiro da altura que passassem a viver numa das suas dependências agrícolas, situada na parte rústica, na sequência do que no referido edifício sempre habitaram, desde então, os RR. CC e BB, aí criando os seus filhos, um dos quais o réu DD.

Comodato é, na definição do art. 1129º C. Civil, “o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Está-se, assim, perante um contrato real quoad constitutionem, gratuito, não sinalagmático, pois que entre as obrigações dele decorrentes para ambas as partes não há correspectividade, ou seja, o uso da coisa não beneficia de contraprestação.

Ora, provada, como vem, a expressa autorização para passar a viver na dependência, o que é o mesmo que dizer que houve entrega do prédio com tal finalidade, obviamente com a obrigação de futura restituição, crê-se que estão presentes os elementos que integram o contrato de comodato.

Não se está, como agora pretende a Recorrente perante uma situação de simples tolerância revelada por mera atitude de passividade desta face a uma intromissão dos Réus no gozo da “dependência” para sua habitação, de um acto unilateral destes que a A. e seus antecessores se tenham limitado a suportar, não impedindo ou impedindo, mas também não autorizando nem reconhecendo.
Em suma, não se manifestam comportamentos de tolerância de que os RR. se tenham apenas aproveitado, de natureza não contratual, que, como previsto no art. 1253º-b) C. Civil, geram a figura de simples detenção ou posse precária.

Longe disso, como notado, o antecessor da Autora autorizou a ocupação da “dependência” e cedeu o gozo da mesma, consentindo que fosse utilizada para habitação.
Há muito mais que aquela situação de passividade perante uma actuação de outrem, deparando-se com uma posição activa, a encerrar uma declaração negocial, que se resolve na entrega da coisa para proporcionar o respectivo gozo. A vinculação jurídica à cedência do gozo da “dependência” integrável na figura do contrato de comodato resulta evidente.

A circunstância de as Partes não terem convencionado prazo para a restituição nem para um uso determinado sob o ponto de vista de referência temporal, não exclui o negócio celebrado do enquadramento e regime jurídico do comodato, cuja validade não sai afectada.

Efectivamente, o nosso Código acolhe no âmbito do contrato de comodato, a figura do denominado comodato precário. É o que ocorre quando não tenha sido fixado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, caso em que fica o comodatário obrigado a restitui-la quando o comodante o exija, denunciando o contrato (art. 1137º-2 C. Civil) (cfr. MENEZES LEITÃO, “Direito Das Obrigações, III, 2ª ed. 379); P. DE LIMA e A. VARELA, “C. Civil, Anotado, II, 4ª ed. 757).



4. 2. – Extinção do contrato.

Não se mostra, nem alegou, que o contrato tivesse sido celebrado vitaliciamente.
De resto, se assim fosse, coincidiria, quanto ao conteúdo, a um direito de uso e habitação, direito real tipificado no art. 1408º C. Civil (não se diz apenas direito de habitação porque incide sobre “dependência agrícola”, que não é uma casa de morada (n.º 2 do preceito)).

A circunstância de se estar perante a cedência do uso de uma dependência agrícola para que alguém nela habite tem ínsita a ideia do temporário ou precário, por isso que um tal local não é uma construção destinada à habitação, a satisfazer, para esse fim, os requisitos necessários, designadamente de natureza administrativa.
Ora, como se colhe da sua própria definição, é da natureza do contrato de comodato, como seu elemento essencial, a obrigação de restituir a coisa, cuja entrega “já é feita sob o signo da temporalidade”.
Com efeito, em razão dessa nota de temporalidade, a ordem jurídica não tolera um comodato que “deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico que, enquanto subsistir o comodatário, será sempre possível” (ac. STJ, de 29/9/93, CJ/STJ, III, 47).


No art. 1137º-1 C. Civil, que a Relação aplicou, estabelece-se que se a coisa foi entregue para uso determinado, o comodatário deve restituí-la logo que o uso finde, enquanto no n.º 2 do mesmo artigo se previne a situação de não ter sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, caso em que o comodante poderá, a qualquer tempo, denunciar o contrato e exigir a restituição.

É entendimento corrente, na doutrina e na jurisprudência, que, relativamente a empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado.
Deste modo, o uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável.

Consequentemente, tem de concluir-se que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tenha direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do local, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º (AA., ob. e loc. cit.; acs. STJ, de 13/5/2003 e 18/12/2003, procs. 03A1323 e 03B3612).


Goza, pois, a Recorrente do direito de ver deferida a pretensão de imediata restituição da dependência que emprestou à Ré Isaura.



4. 3. - Indemnização por benfeitorias.

A Relação resolveu, sem impugnação, a questão da invocada acessão industrial imobiliária mas, perante a solução dada à questão da restituição da “dependência” à Autora, não reapreciou a da indemnização pelas benfeitorias, pretensão formulada na reconvenção.
A questão está em condições de ser conhecida, nos termos previstos nos art. 726º e 715º-2 CPC.


A Recorrente continua a pedir a sua absolvição desse pedido a pretexto de as obras realizadas só poderem qualificar-se como benfeitorias úteis, a cujo levantamento nunca fez qualquer oposição.


A pretensão indemnizatória por benfeitorias foi arredada com fundamento em que se está perante benfeitorias úteis, que não necessárias, relativamente às quais a Ré não provou, nem alegou, a impossibilidade de levantamento sem detrimento da coisa, ou, se pretendido, oposição ao levantamento.

Sustentaram os Réus que as obras realizadas são pela sua natureza, finalidade e regras de experiência comum consideradas necessárias e não apenas destinadas a melhorar as condições de habitabilidade da casa, pelo que são benfeitorias necessárias, dando lugar a indemnização.


As obras realizadas foram, como provado, em 1996, a construção de uma placa de betão e de uma casa de banho, rebocos, pinturas e instalações de água e electricidade.
. Nessa altura, já a R. CC detinha a dependência havia mais de vinte anos.


Adianta-se já que não merece qualquer censura a decisão impugnada e a fundamentação em que assentou.

Na verdade, o critério de qualificação das benfeitorias vem estabelecido no art. 216º-3 C. Civil, que define as necessárias como as despesas feitas com o fim de evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa, enquanto úteis serão as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor.
Estamos claramente no campo dos actos materiais de obras na coisa beneficiada que, apesar de provavelmente importantes ou mesmo necessárias em razão da utilização que a Ré ou os RR. lhe deram, não se destinaram a evitar a sua perda ou deterioração. Foram determinadas por razões de conveniência dos Réus, para um melhor aproveitamento das potencialidades do prédio para o fim que estes pretenderam continuar a dar-lhe.

Só perante benfeitorias úteis se poderá estar.


As benfeitorias úteis podem e devem ser levantadas pelo possuidor da coisa, salvo se desse levantamento não puder ser efectuado sem detrimento da coisa – art. 1273º C. Civil.

Por expressa determinação legal, o comodatário é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fá.

Consequentemente, face ao regime do art. 1273º, o direito ao valor das benfeitorias, a calcular segundo as regras do enriquecimento sem causa, estará sempre dependente da prova de que o seu levantamento não poderia fazer-se sem prejuízo para a edificação em que foram realizadas as obras.
Concordantemente com o que vem decidido, tem de concluir-se que, não tendo sido alegado, nem demonstrado, que os RR. não pudessem proceder ao levantamento, que este não pudesse ter lugar sem detrimento da “dependência” ou que a A. tivesse deduzido oposição ao levantamento invocando esse detrimento, não concorrem os pressupostos legalmente fixados para a atribuição da indemnização reclamada.


Bem julgado foi, como tinha de ser, improcedente, o pedido tal reconvencional.





5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:
- Conceder a revista;
- Revogar o acórdão impugnado;
- Repõe-se em vigor, na sua totalidade, a decisão que consta da sentença da 1ª Instância; e,
- Condenam-se os Recorridos nas custas.


Supremo Tribunal de Lisboa,

Lisboa, 16 de Novembro de 2010

Alves Velho (Relator)*
Moreira Camilo
Urbano Dias
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* Sumário e descritores elaborados pelo Relator