BANCÁRIOS
REFORMA POR INVALIDEZ
JUNTA MÉDICA
SINDICABILIDADE JUDICIAL DO RESPECTIVO LAUDO
Sumário

1. É judicialmente sindicável a decisão da junta médica realizada ao abrigo da cláusula 139.ª do ACT para o sector bancário, que não considerou a trabalhadora definitiva e absolutamente incapaz para continuar a prestar o seu trabalho.
2. O direito de acesso aos tribunais, por parte dos cidadãos, para defesa dos seus direitos e interesses, é um direito fundamental e, como tal, só pode ser restringido por lei, nos casos expressamente previstos na Constituição (art.º 18.º, n.º 1, da CRP).
3. A caducidade do contrato de trabalho é uma das modalidades de cessação do contrato de trabalho e a caducidade ocorre nos termos gerais do direito, nomeadamente em caso de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho.
4. O trabalhador tem o direito de ver reconhecida a caducidade do seu contrato de trabalho com o fundamento de que se encontra total e definitivamente incapaz de prestar o seu trabalho ao empregador e esse direito e os interesses que ao mesmo estão subjacentes gozam de protecção legal.
5. Não existindo lei que restrinja aquele direito, a cláusula 139.ª do ACT também não pode ser interpretada com um sentido de que resulte a restrição do direito a uma tutela jurisdicional efectiva que a Constituição da República a todos reconhece.

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Em 25.7.2008, AA propôs, no Tribunal do Trabalho do Porto, a presente acção emergente de contrato de trabalho contra o Banco BB, S. A., pedindo que a decisão da junta médica, realizada nos termos da cláusula 139.ª do ACTV para o sector bancário e que a não considerou totalmente incapaz para o trabalho, seja alterada, reconhecendo-se que a autora está afectada de incapacidade permanente para continuar a prestar o seu trabalho ao réu, condenando-se este a reconhecer essa situação de invalidez e a pagar à autora as mensalidades previstas no ACTV do sector bancário, correspondentes à situação de reforma ou invalidez da autora, devendo, ainda, “o réu ser condenado a restituir à A. qualquer importância a título de honorários dos médicos que, sem seu acordo prévio ou sem prévia decisão por entidade competente para fixar os honorários razoáveis e justos quando forem devidos, venha o R. a debitar na conta de D.O. que a A. mantém aberta num dos Balcões do R., acrescendo uma importância correspondente à taxa prevista para os juros moratórios das dívidas civis”.

Fundamentando o pedido, a autora alegou, em resumo, o seguinte:
- por razões de doença, a autora encontra-se impossibilitada de prestar o seu trabalho ao réu, desde Abril de 2004;
- infelizmente, a doença da autora não tem registado evolução que lhe permita retomar as suas funções;
- bem pelo contrário, o seu quadro clínico justifica que a autora seja colocada definitivamente na situação de reforma por invalidez, por se encontrar afectada de incapacidade permanente para o exercício do seu trabalho;
- a autora padece de profunda perturbação mnémica apontando para uma deterioração intelectual com diminuição das funções intelectivas-cognitivas;
- a autora sofre de exaustão mental e emocional, está afectada de fadiga e depressão, tem significativas alterações na atitude mental e comportamental, revela notória diminuição de efectividade e desempenho, quer na sua realização pessoal, quer, fundamentalmente, ao nível laboral;
- trata-se de um quando depressivo-reactivo face à situação laboral e tal situação de doença cria nela elevado risco de suicídio;
- encontra-se, por isso, total, definitiva e permanentemente incapaz para o seu trabalho profissional;
- o reconhecimento da sua reforma por invalidez é condição importante para evitar o agravamento do seu estado de saúde;
- o réu não deu o seu acordo à pretensão apresentada pela autora de ser considerada em situação de invalidez por doença;
- por isso, o réu promoveu uma junta médica, ao abrigo da cláusula 139.ª e nos termos da cláusula 141.ª do ACT para o sector bancário;
- essa junta médica realizou-se em 6.6.2008 e, com o voto de vencido do Dr. CC, perito médico indicado pela autora, concluiu não existir “justificação clínica para uma incapacidade total e permanente para o trabalho” por parte de autora;
- tal decisão não se coaduna com o estado da doença de que a autora padece e revela-se perniciosa para a evolução da própria doença;
- aliás, após a decisão da junta médica, o réu continuou a considerar justificadas as faltas da autora, com base na mesma doença e justificações médicas idênticas às anteriores;
- a decisão da junta médica ofende o direito da autora a ser considerada afectada com incapacidade permanente para a sua profissão e, por isso, colocada na situação de invalidez permanente para todos os efeitos previstos no referido ACT;
- acresce que, por causa da referida decisão, o réu notificou a autora para pagar € 2.145,31 correspondentes ao “valor dos honorários médicos devidos em consequência da junta médica e das despesas por este apresentadas”;
- sucede que os honorários em causa são manifestamente exagerados, uma vez que respeitam a dois médicos apenas e representam o salário de cerca de três meses de trabalho da autora;
- a autora desconhece as notas de honorários em causa e não as aceitou nem aceita;
- em todo o caso, entende que não se justificará que os honorários de cada perito ultrapassem os € 500,00;
- para além disso, o réu só após a decisão a proferir na presente acção é que poderá exigir da autora os honorários que se justificarem, no caso de ser mantida a decisão médica ora impugnada;
- face àquela notificação, a autora deduziu oposição, junto do réu, quer ao valor dos honorários quer à sua exigência imediata;
- no caso do réu concretizar a intenção de lançar a débito da conta à ordem da autora aquele valor, tem a autora o direito de exigir que lhe seja devolvida tal importância acrescida de juros.

O réu contestou, alegando, em resumo, o seguinte:
- os Bancos que outorgaram o ACT para o sector bancário (BTE, 1.ª série, n.º 4, de 29.1.2005, parcialmente alterado no BTE n.º 41, de 8.11.2007) e os trabalhadores ao seu serviço (quer os filiados em algum dos sindicatos outorgantes daquele ACT, quer os não sindicalizados) estão abrangidos pelo regime previdencial previsto naquele ACT;
- o regime previdencial estabelecido naquele instrumento de regulamentação colectiva tem natureza de subsistema de Segurança Social (substitutivo do sistema geral estatal), cuja existência e obrigatoriedade decorre das leis que, sucessivamente, têm vindo a regular o direito da segurança social (art.º 69.º da Lei n.º 28/84, de 14/8, art.º 109.º da Lei n.º 17/2000, de 8/8, art.º 123.º da Lei n.º 32/2002, de 20/12 e art.º 103.º da Lei n.º 4/2007, de 16/1;
- em matéria de segurança social, à autora aplicam-se as normas previstas no referido ACT para o sector bancário;
- ao pedir que o tribunal altere, em sentido contrário, a decisão da junta médica realizada em 6.6.2008, e que o tribunal declare que ela está afectada de incapacidade permanente para continuar a prestar o seu trabalho ao réu e que este seja condenado a reconhecer essa situação de invalidez, a autora pretende, por um lado, que não se lhe aplique o ACT, na medida em que pretende pôr em causa o mecanismo previsto no ACT – e é único – para solucionar a situação, e, por outro lado, pretende que o ACT lhe seja aplicado, precisamente na medida em que pede que o réu lhe pague as mensalidades previstas no ACT para a situação de reforma, à qual só pode ter acesso nos termos previstos no ACT;
- tal pedido não é judicialmente sindicável, pois, como se diz no preâmbulo do Decreto--Lei n.º 377/2007, de 9 de Novembro – diploma que veio alterar o regime da composição, competências e procedimentos das juntas médicas que procedem à avaliação das incapacidades para efeitos da passagem à situação de reforma por invalidez no âmbito da CGA, da ADSE e da Segurança Social – os exames médicos, a que têm de se sujeitar os impetrantes do reconhecimento da incapacidade levados a efeito pela junta médica, são actos médicos e os actos médicos são judicialmente insindicáveis;
- o juízo emitido pela junta médica sobre a capacidade ou incapacidade para o trabalho de um trabalhador, sendo a tradução de um acto médico – ou como diz o Decreto-Lei n.º 377/2007, “de natureza exclusivamente técnico-científica” – só poderia ser judicialmente atacado se não tivessem sido cumpridas as formalidades previstas no ACT para a sua formação e funcionamento, o que não foi o caso, como a própria autora o reconhece;
- alias, se bem se atentar, o regime previsto no ACT para a avaliação das situações de incapacidade para efeitos de invalidez profissional é decalcado do regime previsto no âmbito da Segurança Social estatal, nos termos do qual as deliberações nas comissões de verificação ou de recurso, quando desfavoráveis ao requerente, apenas permitem que este volte a renovar o requerimento, decorrido que seja um ano;
- quanto aos honorários, o réu limitou-se a cumprir o que sobre a matéria se encontra previsto no n.º 3 da cláusula 141.º do ACT, sendo que dos € 2.145,31, € 2.000 dizem respeito aos honorários dos médicos (€ 1.000 a cada) e o restante diz respeito a despesas.

No despacho saneador, o M.mo Juiz, conhecendo do mérito da causa, julgou a acção totalmente improcedente, por ter entendido, no que toca ao pedido de reconhecimento da incapacidade permanente e absoluta da autora para o trabalho, que a decisão da junta médica realizada no âmbito do ACTV era judicialmente insindicável, por se tratar de um juízo de natureza exclusivamente técnico-científica que se situa no domínio da “discricionariedade técnica”, conforme os tribunais administrativos têm decidido relativamente às deliberações das juntas médicas proferidas no âmbito do regime geral da segurança social, e por ter entendido, relativamente aos honorários médicos, que a autora, insurgindo-se embora contra o valor reclamado pelo réu, não alegou que a importância reclamada pelo réu seja superior àquela que costuma ser atribuída aos peritos médicos que compõem as juntas médicas em idênticas situações, não referindo também, a título meramente comparativo, qual a importância que pagou ao médico que a representou, para se poder concluir pela existência de um desfasamento notório e excessivo nas notas de honorários apresentadas.

A autora interpôs recurso de apelação, quer no que toca ao decidido relativamente ao pedido atinente à junta médica, quer no que diz respeito aos pedidos referentes aos honorários, invocou a insuficiência da matéria de facto dada como provada e a necessidade de elaborar a base instrutória e arguiu a nulidade da decisão, por alegada omissão de pronúncia quanto aos pedidos de saber se o réu podia, sem o acordo da autora, debitar na sua conta à ordem o valor dos honorários que terá pago aos médicos e de saber se, tendo havido recurso do resultado da junta médica, os honorários podem ser imediatamente exigidos ou só o podem ser após o trânsito em julgado da decisão judicial.

O Tribunal da Relação do Porto, depois de ter elencado as questões suscitadas no recurso – da não sindicabilidade judicial do resultado a que chegou a junta médica, dos honorários dos peritos médicos, da nulidade da sentença e da insuficiência da matéria de facto e da necessidade da elaboração da base instrutória – conheceu da questão relacionada com a sindicabilidade judicial da decisão da junta médica, decidindo, por maioria, que a mesma era judicialmente sindicável, razão pela qual ordenou que os autos prosseguissem os seus termos normais até final, e julgou prejudicado o conhecimento das demais questões.

Desta vez, foi o réu quem não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso de revista – arguindo a nulidade do acórdão recorrido, pedindo o esclarecimento do mesmo e pugnando pela repristinação da sentença –, tendo concluído as respectivas alegações da seguinte forma:
A – A Autora, na p. i., veio requerer que o Tribunal alterasse em sentido contrário a decisão da Junta Médica de 06.06.2008 que concluiu não existir justificação clínica para uma incapacidade total e permanente para o trabalho por parte da Autora, declarasse que esta está absoluta e definitivamente incapaz para o trabalho e, consequentemente, condenasse o Banco a pagar-lhe as mensalidades a que se referem as cláusulas 137a e 138a para o sector bancário.
B – O Tribunal da Relação, dando provimento à apelação, decidiu que a Autora tem direito a ser submetida a uma segunda Junta Médica aplicando-se-lhe, assim, o regime previsto no Dec.-Lei 360/1997 de 17.12 e, nomeadamente, as normas que neste diploma prevêem a ­Comissão de recurso – os seus arts. 60°, nº 1, e 21°, nºs. 1 e 2.
C – O douto Acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, pronunciou-se sobre objecto diverso do pedido, tendo assim violado o n.º 1 do art.º 661.º, e incorrendo na nulidade que vem referida na al. e) do n.º 1 do art.º 668° ambos do CPC, devendo os Senhores Desembargadores que o proferiram, suprindo o vício, alterarem o mesmo confirmando o decidido pela 1.ª Instância.
Além disso,
D – o douto Acórdão extravasa as conclusões da alegação na apelação, tendo, assim, sido violados os art°s. 684°, n.º 3 e 685°-A, n.º 1, do mesmo diploma.
A não se entender assim, então,
E – Deve o douto Acórdão ser aclarado, no sentido de se esclarecer a quem é que compete a nomeação dos peritos médicos que irão integrar a Junta: se a nomeação deve ser feita nos termos dos nºs. 1 e 2 do art.º 21° do D.L. nº 360/97, competindo ao Banco, em substituição do ISS nomear dois médicos; se a nomeação deve ter lugar nos termos preconizados na Clª 141a do ACT. O que se requer nos termos do disposto no art° 669°, nº 1, al. a) do CPC.
Uma vez feito o esclarecimento como requerido vem e subindo os autos para julgamento da revista, então,
F – Deve o douto Acórdão ser revogado e, confirmando-se a decisão da 1ª Instância, declarar-se que a decisão da Junta Médica é insindicável pelos Tribunais e absolver-se a Ré do pedido,
Com efeito,
G – Encontrando-se o sector bancário à margem do sistema público de previdência e sendo aplicável aos bancários o sistema de segurança social que vem previsto no respectivo ACT, sendo, assim, um subsistema da segurança legal, por ter sido admitido pelas sucessivas Leis de Bases da Segurança Social,
H – Ao caso aplica-se o regime preconizado nas Clªs. 139ª e 141ª daquele i.r.c.t. que não o que vem previsto no Dec.-Lei nº 360/97 para as juntas médicas de recurso.
De facto,
I – O sistema, como tem vindo a ser uniformemente decidido pelos Tribunais superiores tem que ser aplicado na sua totalidade.
J – Não cabendo aplicar normas de um e normas de outro, constituindo-­se, desse modo, um sistema lúbrido que não faz qualquer sentido.
De qualquer modo,
K – O sistema previsto no ACT dos bancários não é, em si, menos garantístico para os trabalhadores do que o previsto no Dec.-Lei nº 360/97: pelo contrário, protege melhor os interesses do trabalhador que este.
L – O douto Acórdão recorrido, violou, além das normas legais acima referidas, o Dec.-Lei nº 360/97, art.º 21°, nºs. 1 e 2 e 60º, nº 1 por aplicação indevida e as cláusulas 139ª e 141ª do ACT dos bancários, por terem sido preteridas na sua aplicação ao caso.
Nestes termos e com o douto suprimento de Vossas Excelências deverá:
a) Conhecendo-se das nulidades invocadas e suprindo-se as mesmas, julgar-se a apelação improcedente e absolver-se a Ré do pedido;
b) A não se entender assim, e a entender-se que o recurso deverá subir ao STJ, então clarificar-se o Acórdão, tornando-o exequível.
De qualquer modo, no caso de o recurso vir a ser apreciado pelo STJ, então deverá o douto Acórdão da Relação ser revogado, repristinando-se a decisão da 1.ª Instância com o que se fará JUSTIÇA.

Por acórdão de fls. 214-215, o Tribunal da Relação indeferiu a arguição de nulidades e o pedido de aclaração do acórdão e, posteriormente, o relator admitiu o recurso de revista que havia sido interposto do acórdão anterior.

A autora não contra-alegou e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se a favor da procedência do recurso e pela consequente repristinação da sentença da 1.ª instância, em parecer a que as partes não reagiram.

Corridos os vistos dos juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos que vêm dados como provados são os seguintes:
1. A Ré BB é uma instituição de crédito e exerce a actividade bancária.
2. No exercício da sua actividade, admitiu a Autora ao seu serviço no dia 10.9.1980, tendo passado desde essa data a trabalhar para a Ré, sob as ordens e autoridade desta.
3. Actualmente o BB mantém-na qualificada com a categoria ou função de "Caixa/Recolhedor Fundos/Grupo I" e está colocada no balcão da Ré em Guimarães, estando integrada no "grupo 1" e no "nível 10", previstos nas cláusulas 4.ª e 5.ª e no anexo 11 do ACT para o sector bancário, cuja última versão integral se encontra publicada no BTE n.º 4, 1.ª série, de 29.1.2005 e que tem a sua última actualização parcial no mesmo BTE, n.º 41, de 8.11.2007.
4. A retribuição mensal da Autora ascende a € 1.447,95, composta pelo valor base de € 1.254,00 e cinco diuturnidades no valor de € 193,95, a que acresce ainda o subsídio de refeição de € 8,81 por cada dia de trabalho efectivo, sendo a retribuição mensal paga em dobro pelas férias e pelo Natal.
5. A Autora está filiada no Sindicato dos Bancários do Norte, onde figura como sócio n.º 18921.
6. A Ré outorgou o ACT referido em 3, aplicando-se o mesmo às relações laborais mantidas com a Autora, nomeadamente as normas aí constantes em matéria de segurança social.
7. A Autora encontra-se na situação de "baixa por motivo de doença" desde o mês de Abril de 2004 e desde essa data que não tem prestado serviço para a Ré.
8. O BB paga-lhe as prestações mensais fixadas na cláusula 137.ª e 138.ª e anexos V e VI do citado ACT, que correspondem ao "subsídio de doença" que a Segurança Social paga aos trabalhadores seus beneficiários, na situação de "baixa" por doença.
9. A Autora solicitou à Ré a passagem à situação de reforma por doença, não tendo esta dado o seu acordo a tal pretensão.
10. Por tal motivo, a Ré promoveu uma junta médica, ao abrigo da cláusula 139.ª e nos termos da cláusula 141.ª do referido ACT, tendo a mesma tido lugar no dia 6.6.2008.
11. Essa junta médica, concluiu, por maioria e com o voto contra do perito médico indicado pela Autora, não existir "justificação clínica para uma incapacidade total e permanente para o trabalho" por parte da Autora.
12. O BB notificou a Autora para pagar € 2.145,31 correspondentes ao "valor dos honorários médicos devidos em consequência da junta médica e das despesas por estes apresentadas".

3. O direito
O objecto do recurso restringe-se às seguintes questões:
- saber se a decisão recorrida enferma de nulidade;
- saber se a decisão da junta médica realizada no âmbito do ACT para o sector bancário é judicialmente sindicável.

3.1 Da nulidade do acórdão
O recorrente arguiu a nulidade do acórdão, alegando que o mesmo condenou em objecto diverso do pedido, uma vez que a autora tinha pedido que o tribunal declarasse que ela estava absoluta e definitivamente incapaz para o trabalho e que a Relação tinha decidido que ela tinha de ser submetida a nova junta médica.

Sucede, porém, que a nulidade em questão não foi devidamente arguida no requerimento de interposição do recurso, o que obsta a que dela se conheça.

Efectivamente, nos termos do art.º 77.º, n.º 1, do CPT, aplicável aos acórdãos da Relação por força do disposto no art.º 716.º, n.º 1, do CPC, a nulidade devia ter sido arguida e motivada no requerimento de interposição de recurso, mas, como se pode ver do teor daquele requerimento, o recorrente limitou-se a dizer que o recurso tinha por fundamento:
“- a nulidade do Acórdão – artºs. 668º, n.º 4 e 722º, nº 1, al. c) do CPC;
- a sua não conformidade à lei substantiva – art.º 722.º, n.º 1, al. a).”

O recorrente não concretizou a nulidade de que o acórdão padecia e muito menos a motivou. Tal só veio a ser feito no corpo das alegações, o que torna a arguição da nulidade intempestiva e obsta a que dela se conheça, conforme reiteradamente tem sido afirmado por este tribunal.

3.2 Da sindicabilidade judicial da decisão da junta médica
Conforme está provado, a autora solicitou ao réu que a passasse à situação de reformada por invalidez, mas o réu não acedeu a tal pretensão e promoveu que a autora fosse submetida a exame por junta médica, nos termos das cláusulas 139.ª e 141.ª do ACT para o sector bancário, tendo a junta médica decidido, por maioria, que não havia justificação clínica para considerar a autora total e permanentemente incapaz para o trabalho.

Inconformada com o resultado da referida junta médica, a autora veio, através da presente acção, pedir que fosse judicialmente reconhecido que ela se encontrava afectada de incapacidade permanente para continuar a prestar o seu trabalho ao réu e que este fosse condenado a reconhecer essa situação de invalidez e a pagar-lhe as mensalidades previstas no ACT correspondentes à situação de reforma por invalidez.

Como também já foi referido, na 1.ª instância entendeu-se que a decisão da junta médica não era judicialmente sindicável, mas a Relação veio a decidir em sentido contrário, com base na seguinte fundamentação:

«Da não sindicabilidade judicial do resultado a que chegou a junta médica.
Referindo o disposto na cláusula 139a do ACT aplicável, diz-se na sentença recorrida o seguinte: (...) "apreciando esse clausulado concordamos inteiramente com a Ré quando alega que o regime previsto no ACT para a avaliação das situações incapacitantes para efeito de invalidez profissional é idêntico ao regime previsto no âmbito da Segurança Social estatal, previsto no Dec.-Lei 360/97 de 17 de Dezembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Dec.-Lei nº 377/2007 de 9 de Novembro e que o juízo emitido por cada uma dessas Juntas Médicas sobre a capacidade ou incapacidade para o trabalho de um trabalhador, têm uma natureza exclusivamente técnico-científica. É jurisprudência dos Tribunais Administrativos que relativamente às juntas médicas proferidas no regime geral da segurança social, os pareceres por elas elaborados são insindicáveis, situando-se no domínio da "discricionariedade técnica", não podendo o tribunal substituir-se aos peritos médicos, a não ser que se verifique um erro grosseiro ou manifesto". E conclui o Mmo. Juiz a quo que “a junta médica realizada no dia 6 de Junho de 2008, para além de não padecer de qualquer vício de ordem formal, que aliás nem sequer é invocado, não permite levar a concluir que a mesma, mesmo aos olhos de quem não é um médico, terá fatalmente que ser alterada por manifestamente colidir com regras de razoabilidade, equilíbrio, sensatez atendendo à normalidade e experiência de vida, não sendo assim o laudo médico aí elaborado judicialmente sindicável pelo Tribunal”.
A apelante discorda defendendo que no caso se está perante interesse emergente de norma constante de convenção colectiva, o qual, em caso de conflito, não pode estar subtraído à apreciação dos Tribunais, sob pena de violação do disposto no art. 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa. Mais refere a apelante que os médicos que intervêm na junta médica do Banco não estão sujeitos aos mesmos deveres, critérios e princípios dos peritos médicos designados pelo Estado. Vejamos então.
1. O DL 360/97 de 17.12, com as alterações introduzidas pelo DL 377/07 de 9.11.
Este diploma define, no âmbito da segurança social, o sistema de verificação de incapacidades, o qual tem por objecto "a verificação e revisão de situações de incapacidade permanente determinantes do direito a pensões de invalidez e sobrevivência dos regimes de segurança social" – art. 1º nº 1 al. b).
Nos termos do art. 4º nº 2 do citado diploma "a verificação técnica das condições de incapacidade permanente e de dependência é assegurada pelo médico relator e pelas comissões de verificação e de recurso cujo conjunto é designado, no presente diploma, por sistema de verificação de incapacidade permanente".
Prescreve o art. 42º do citado DL, no seu nº 1, que: "a verificação e a revisão das situações de incapacidade permanente e de dependência têm lugar a requerimento dos interessados ou oficiosamente e a solicitação do Centro Nacional de Pensões ou de outras instituições de segurança social", devendo os requerimentos serem acompanhados de informação médica e "tratando-se de pensão por incapacidade permanente para o trabalho, o requerimento deve ainda ser acompanhado de declaração da entidade empregadora ou do próprio, se aquela não existir, relativamente ao trabalho desempenhado nos últimos três anos no exercício da profissão a considerar para efeito da declaração de incapacidade" – art. 43º nºs. 1 e 2.
Por sua vez, dispõe o nº 1 do art. 48° do DL 360/97 que "se os médicos relatores e os peritos médicos das comissões de verificação e de recurso concluírem pela necessidade de complementar a informação médica com pareceres de médicos especialistas ou de outros meios auxiliares de diagnóstico que se afigurem indispensáveis à peritagem médica, podem solicitá-­los" (…). E "obtidos os elementos que permitam o andamento do processo, os médicos relatores promovem a convocatória dos interessados para exame médico" (...) – art. 53° nº 1.
Efectuado o exame médico, o médico relator elabora o relatório a que alude o art. 54° no prazo de 30 dias contado a partir da data do exame do interessado – art. 55° nº 1 –, o qual é remetido à comissão de verificação (art. 55° nº 2). Esta comissão procede à análise e ao estudo do relatório elaborado pelo médico relator, podendo inclusivamente promover o exame médico directo dos requerentes (art. 57° nºs. 1 e 2).
A comissão de verificação deve deliberar pela atribuição/ou não da prestação, e no caso de a mesma não ser atribuída pode o interessado recorrer para a comissão de recurso – art. 60°.
Finalmente, e "sempre que as comissões de verificação ou de recurso entendam que o beneficiário não reúne as condições de incapacidade determinantes da atribuição da prestação requerida, este só pode apresentar novo requerimento para o efeito decorrido um ano após a data da respectiva deliberação" – art. 64° nº 1.
Do acabado de expor verificamos que o trabalhador que requeira a verificação da sua incapacidade permanente, determinante do direito a pensão de invalidez, confrontado com o relatório desfavorável da comissão de verificação (constituída por três peritos médicos – art.18° do DL 360/97 de 17.12 na redacção dada pelo DL 377/07 de 9.11), pode recorrer para a comissão de recurso (constituída também por três médicos - art. 21° nº 1 do DL 360/97 de 17.12 na redacção dada pelo DL 377/07 de 9.11).
Ou seja: o trabalhador tem a possibilidade de reagir ao indeferimento do seu pedido de atribuição de pensão de invalidez pela comissão de verificação, requerendo a reunião da comissão de recurso. E esta comissão de recurso tem de ser constituída por médicos que não aqueles que intervieram na anterior decisão (art. 21º nº 2). Estamos, deste modo, perante a possibilidade do trabalhador requerer uma "segunda perícia" quando a "primeira perícia" lhe é desfavorável.
2. As cláusulas 139ª e 141ª do ACT publicado no BTE nº 4, série, de 29.1.2005.
A cláusula 139ª do ACT dispõe o seguinte:"quando existir desacordo entre a instituição e o trabalhador, quanto à situação de doença ou de invalidez haverá recurso a uma junta médica que decidirá da capacidade deste para o serviço". E nos termos da cláusula 141ª a junta médica é composta por três elementos, dois nomeados por cada uma das partes e o terceiro escolhido pelos outros dois.
3. O confronto entre os dois regimes.
Do que deixamos exposto nos anteriores números 1 e 2 verifica-se que o estabelecido no DL 360/97 de 17.12 é mais favorável ao trabalhador e oferece-lhe maior garantia do que o estabelecido no ACT.
Na verdade, e como já referido anteriormente, o DL 360/97 permite que o trabalhador, em face do parecer desfavorável da "comissão de verificação", recorra a uma 2ª perícia, o que não acontece com o ACT que neste particular é totalmente omisso.
Assim, um trabalhador que esteja abrangido pela Segurança Social - concretamente pelo regime previsto no citado DL - tem duas possibilidades de avaliação da sua incapacidade permanente (avaliação sempre feita em termos colegial), enquanto um trabalhador abrangido pelo ACT tem apenas uma possibilidade.
Por outras palavras: existiria uma diferença no tratamento de situações jurídicas idênticas. E empregamos a palavra "existiria" pois essa diferença de tratamento, em nossa opinião, é apenas aparente. Expliquemos.
Com efeito, se admitirmos, como na verdade se admite, que o trabalhador bancário tem a possibilidade de reagir judicialmente ao resultado desfavorável da junta médica pedindo, em acção a propor, a sua sujeição a outra perícia médica, precisamente aquela a que chamamos "2ª perícia", a referida diferença de tratamento deixa de existir.
E salvo melhor opinião, não encontramos razões objectivas para que assim não seja, sob pena de violação do princípio da igualdade previsto no art. 13ª da Constituição da República Portuguesa e do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva consagrado no art. 20° do mesmo diploma legal.
Por isso, assiste à Autora o direito de recorrer a Tribunal e propor a presente acção como manifestação da sua discordância relativamente à deliberação da junta médica, requerendo novo exame médico, o qual, na nossa opinião, deverá ser constituído em termos idênticos ao estabelecido para a Comissão de Recurso a que alude o DL 360/97.
E pelas razões expostas não acompanhamos a conclusão a que se chegou na sentença recorrida: de que o exame médico realizado ao abrigo da cláusula 139ª do ACT não é judicialmente sindicável. Com efeito, não se trata de "censurar" o teor científico desse exame médico mas antes dar a possibilidade ao trabalhador de "contrariar cientificamente" o resultado do mesmo através da instauração da competente acção judicial.
Aliás, não se encontra no caso concreto outra via senão o pedido de "tutela jurisdicional" para resolução da situação, tutela que passa obrigatoriamente pela realização de nova perícia colegial, sempre sem prejuízo do tribunal se socorrer de outros elementos clínicos e outros pareceres em ordem a proferir decisão.
E face à conclusão a que se chegou deverão os autos prosseguir os seus trâmites normais até final, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pela apelante.

Termos em que se julga a apelação procedente, se revoga o despacho saneador/sentença que conheceu dos pedidos formulados pela Autora e absolveu o Réu dos mesmos, e se ordena o prosseguimento dos autos.

Custas a final pela parte vencida.»
(Fim da transcrição)

O recorrente discorda da decisão recorrida, por entender que o sector bancário se encontra à margem do sistema público de segurança social, constituindo um subsistema substitutivo do regime geral público, apesar de constar de uma convenção colectiva de trabalho, sendo que os nossos tribunais têm entendido que o mesmo se aplica integralmente, tanto nos aspectos em que, em relação ao regime geral, é mais favorávl aos trabalhadores como nos aspectos em que se poderia entender ser menos favorável e que o Tribunal Constitucional, chamado que foi já a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de tal regime, também entendeu que o mesmo não violava qualquer preceito constitucional e designadamente que não violava o disposto nos seus artigos 63.º e 12.º (princípios da igualdade e da universalidade). De resto, acrescenta o recorrente, é muito discutível que o regime previsto no Decreto-Lei n.º 360/97 seja mais favorável ao trabalhador e que lhe ofereça maior garantia do que o regime estabelecido no ACT.

Vejamos se o recorrente tem razão.

Importa, todavia, começar por referir que ao caso não é aplicável o disposto no n.º 6 do art.º 712.º do CPC – caso em que o recurso seria inadmissível –, uma vez que a decisão da Relação, ao ordenar o prosseguimento dos autos, não se prende com vícios existentes na decisão que na 1.ª instância foi proferida sobre a matéria de facto, mormente com a necessidade da sua ampliação, mas sim a decisão de direito na parte em que considerou judicialmente insindicável a decisão da junta médica realizada no âmbito do ACT aqui aplicável.

Feito este esclarecimento, a questão que realmente se coloca é a de saber se a decisão da junta médica, que não considerou a autora definitiva e totalmente incapaz para continuar a prestar o seu trabalho ao réu, tem carácter definitivo e se, por via disso, a autora está impedida de judicialmente vir pedir o reconhecimento do seu direito à reforma, por, devido a razões de saúde, estar definitiva e absolutamente incapaz de continuar a prestar o seu trabalho ao réu.

E, à primeira vista, poder-se-ia dizer que a resposta a dar àquela questão seria negativa, uma vez que o ACT não prevê a possibilidade de recurso da decisão da junta médica, tendo os seus outorgantes convencionado, na cláusula 139.ª, que “quando existir desacordo entre a instituição e o trabalhador, quanto à situação de doença ou de invalidez haverá recurso a uma junta médica que decidirá da capacidade deste para o serviço”.

Essa não é, porém, a resposta correcta, uma vez que nos termos da nossa lei fundamental “[a] todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” (art.º 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

O direito de acesso aos tribunais, por parte dos cidadãos, para defesa dos seus direitos e interesses, é um direito fundamental e, como tal, só pode ser restringido por lei, nos casos expressamente previstos na Constituição (art.º 18.º, n.º 1, da CRP).

A caducidade do contrato de trabalho é uma das modalidades de cessação do contrato de trabalho (art.º 384.º, al. a), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, em vigor à data em que a autora solicitou ao réu a sua passagem à reforma por invalidez) e a caducidade ocorre nos termos gerais do direito, nomeadamente em caso de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho (art.º 387.º, al. b), do referido CT).

Na presente acção, a autora pretende que lhe seja reconhecido o direito de passar à reforma por invalidez, com a consequente cessação do contrato de trabalho. Tal direito e os interesses que lhe estão subjacentes gozam de protecção legal, assistindo-lhe, por isso, o direito de judicialmente pugnar pela defesa dos mesmos.

Não existindo lei que restrinja esse seu direito, é óbvio que a cláusula 139.ª do ACT também não pode ser interpretada com um sentido que restrinja à autora o direito a uma tutela jurisdicional efectiva que a Constituição da República a todos reconhece.

Assim e embora com fundamentação algo diferente, é de confirmar a decisão da Relação que ordenou o prosseguimento dos autos para julgamento, o que implica a produção das provas indicadas pelas partes, nomeadamente a realização da perícia médica na pessoa da autora.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista e manter a decisão recorrida.
Custas pelo réu.

Lisboa, 25 de Novembro de 2010

Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol