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CONTRA-ORDENAÇÃO
SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO
Sumário
I - No processo contraordenacional, o tribunal de 1ª instância que conhece da impugnação judicial funciona como instância de recurso em matéria de facto, sendo de considerar como uma decisão já em grau de reapreciação. II - O direito ao recurso, consagrado no n.º 1 do art. 32.º da CRP, enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisdicionais injustas, assegurando ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não tendo aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contraordenação. III - O alcance da norma do n.º 10 do art. 32.º da CRP limita-se a assegurar os direitos de audiência e defesa, ou seja, a prevenir que qualquer tipo de sanção, nomeadamente contraordenacional, seja aplicado sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade.
Texto Integral
Recurso Penal nº 56/10.8TAVPA.P1
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
1.Relatório
No processo de contra-ordenação que correu termos na Direcção Regional Norte da ASAE (Ministério da Economia e da Inovação), foi aplicada pela Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade à sociedade “B…, Lda”, devidamente identificada nos autos, a coima de 10.000 €, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 14º nº 1 e al. c) do nº 1 do artº 21º do DL nº 69/2003 de 10/4.
Não se conformando com tal decisão, a recorrente impugnou-a judicialmente, nos termos do artº 59º do DL nº 433/82, de 27/10 (Regime Geral das Contra-Ordenações, adiante designado como RGCO).
Remetido o recurso ao Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar, foi o mesmo admitido e designada data para a realização da audiência.
Realizada esta, foi proferida sentença que julgou improcedente o recurso e manteve a decisão impugnada.
Ainda inconformada, a recorrente interpôs recurso, pretendendo que seja declarada a inconstitucionalidade dos arts. 66º e 75º do DL nº 433/82 de 27/10, com as alterações entretanto introduzidas, e revogada a sentença e substituída por decisão que a absolva ou, assim se não entendendo, que a coima seja reduzida e fixada no mínimo legal, para tal apresentando as seguintes conclusões:
A - Em 02 de Fevereiro de 2010.foi a recorrente notificada pelo “MINISTÉRIO DA ECONOMIA, DA INOVAÇÃO E DO DESENVOLVIMENTO, Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade” da “Decisão” proferida no "PROC/3723/2008" (originariamente com o número NUiCO: 1337/07.3EAPRT”)
B - Decisão da autoridade administrativa decisora, onde se condenou a recorrente “...a pagar a coima de Euros: 10.000 Euros e custas no montante de Euros 100 Euros,…” - Veja-se decisão administrativa.
C - Inconformada a recorrente interpôs recurso de impugnação, pugnando pela sua absolvição.
D - Na audiência de julgamento realizada no dia 14 de Dezembro de 2010, pelas 14.00 horas, o mandatário da recorrente requereu “a gravação da prova”. -Acta de Audiência de Julgamento de fls. ...
E - Tendo o Sr. Juiz proferido o seguinte Despacho: “... no que concerne à requerida gravação pelo recorrente, indefere-se ao requerido, uma vez que em caso de recurso apenas pode ser apreciada a matéria de direito pelo Tribunal da Relação - art. 75°, n° l, do DL 433/82 de 27/10”. - Acta de Audiência de Julgamento de fls....
F - Realizado o Julgamento, foi proferida a Sentença que aqui se põe em crise, onde foi considerado improcedente por não provado, o recurso interposto, mantendo-se, em consequência, a Decisão proferida quanto à condenação da aqui recorrente na coima de Euros: 10.000 Euros (dez mil euros).
G - Atendendo aos elementos constantes dos autos, bem como ao alegado pela aqui Recorrente, é do entendimento desta, salvo melhor opinião em contrário, que outra deveria ter sido a Decisão proferida
H — O artigo 66° do RGCOC estatui “Salvo disposição em contrário, a audiência em 1ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito”, o que não permite, requerer os autos da audiência escrito.
I - Por sua vez o artigo 75° do mesmo diploma legal, diz “Se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.”,
J - O recorrente, não pode utilizar os meios previstos no artigo 364° do C.P.P. “A documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efectuada, em regra, através de gravações magnetofónica ...”
L - Dúvidas não existem, de que os artigos 66° e 75° do Decreto-Lei n.° 433/82 de 27/10, com as alterações entretanto introduzidas, são inconstitucionais por violação do n°s l e 10 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, porque estas normas Constitucionais dispõem respectivamente: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo os recursos” e “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionattórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
Assim,
M - Os Artigos 66° e 75° do Decreto-Lei n.° 433/82 de 27/10, com as alterações entretanto introduzidas, são inconstitucionais por violação do n°s l e 10 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
N — Uma vez que fica vedado ao arguido/recorrente os direitos de audiência e defesa.
O — Pelo que se requer seja declarada a inconstitucionalidade de tais normas -Artigos 66° e 75° do Decreto-Lei n.° 433/82 de 27/10, com as alterações entretanto introduzidas.
Sem prescindir
P - A autoridade administrativa decisora, condenou a recorrente “...a pagar a coima de Euros: 10.000 Euros e custas no montante de Euros 100 Euros,...”.
Q - Por considerar que a recorrente laborava fora do horário de trabalho autorizado, dizendo-se que tal comportamento “Consubstancia a prática de uma contra-ordenação por inobservância dos termos e condições legais e regulamentares de exploração de estabelecimento industrial fixados na licença emitida ao abrigo do disposto no n° l, do artigo 14°, do Decreto-Lei n.° 69/2003, de 10 de Abril, com referência aos artigos 10, ° e 11. ° daquele diploma, ao Regulamento do Licenciamento da Actividade Industrial, aprovado pelo DecretoRegulamentar n. ° 8/2003, de 11 de Abril e à Portaria n. ° 464/2003, de 6 de Junho e punido nos termos do preceituado na alínea c), do n. ° l, do artigo 21.° do Decreto-Lei n. 69/200, de 10 de Abril, com coima de € 100 a €44000 -Veja-se decisão administrativa.
S - Proferida a Sentença que aqui se põe em crise, foi considerado improcedente o recurso de impugnação, mantendo-se a condenação da aqui recorrente ao pagamento da coima de € 10.000 (dez mil euros), acrescida de custas no montante de € 100,00 (cem euros).
T - Da Sentença recorrida resulta claramente, que:
U - As instalações da recorrida se situam no “…, …, Ribeira de Pena”, fora de qualquer zona residencial.
V - Que no dia e hora constantes dos autos, o estabelecimento se encontrava encerrado.
X - Nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de Julgamento viu qualquer máquina a laborar, referindo apenas que se ouvia uma máquina em laboração.
Z - Todos os Relatórios de Ruído juntos aos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para legais efeitos, são unânimes no sentido de que o estabelecimento da recorrente cumpria, como continua a cumprir com todas as normas em vigor e os limites nas mesmas estatuídos.
AÃ - A prova produzida em Julgamento foi equívoca e nada concludente, pelo que só poderia, e deveria o Meretíssimo Juiz “a quo” ter proferido uma decisão em que a recorrente fosse absolvida
AB- Quanto mais não fosse em observância do princípio penal, aplicável às contra-ordenacões pelo artigo 41° do RGCOC do “in duvio pro reo”.
Sem prescindir,
AC - Mas se assim não se entendesse, atendendo a todas as circunstâncias, a coima a aplicar à recorrente só poderia ser a coima mínima aplicável ao ilícito pelo qual foi condenada.
Pois que,
AD - Não ficou provado, que a recorrente tivesse retirado qualquer vantagem económica.
AE - Antes ficou provado que nos anos de 2007, 2008 e 2009, a recorrente apresentou prejuízo, conforme declarações — modelo 22, juntos a fls... dos autos.
AF - E que a recorrente tem pautado a sua actuação pelo cumprimento rigoroso das normas reguladoras da actividade que desenvolve.
AG - Não tendo sido alvo de qualquer contra-ordenação anterior,
AH - Pelo que a ser-lhe aplicada uma coima, a mesma só poderia ter sido fixada no mínimo legal, para o tipo de ilícito.
Na resposta, o MºPº defendeu a rejeição do recurso ou, assim se não entendendo, a sua improcedência e a manutenção da decisão recorrida, concluindo como segue:
1. O Tribunal da Relação, em regra e no âmbito dos recursos de contra-ordenação, apenas conhece de direito, por força do disposto no art° 75° n° l do Dec.-Lei n° 433/82, de 27/10.
2. Constituem excepções a esta regra as que constam do art° 410° n°s 2 e 3 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi dos art°s 41° n° l e 74° n° 4 do Dec.-Lei n° 433/82, na redacção do Dec.-Lei n° 244/95, de 14/09, a saber:
- a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
- a contradição insanável da fundamentação
- erro notório na apreciação da prova..
3. Ora, o recorrente não assentou o seu recurso em qualquer destas excepções.
4. Não existe qualquer inconstitucionalidade quer do art. 66°, quer do art. 75° do RGCOC.
5. A decisão do Mmo Juiz do Tribunal a quo é ponderada, fundamentada e acertada, proporcional e adequada.
O recurso foi admitido.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual sufragou a resposta do MºPº na 1ª instância, anotando apenas, em apoio do que ali se expendeu, que, mesmo não sendo invocados, os vícios prevenidos no nº 2 do art. 410º do C.P.P. podem ser sempre conhecidos oficiosamente por este tribunal.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que houvesse resposta.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.
2. Fundamentação
Na decisão recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:
1) No dia 18/07/2006, pelas 23.26 horas, no estabelecimento industrial “B…, Lda, sito no …, …, Ribeira de Pena, encontrava-se em funcionamento uma máquina de corte de pedra.
2) A recorrente agiu com conhecimento, vontade e livre de realizar o facto, prevendo-o e aceitando-o como consequência directa da sua conduta.
3) O funcionamento da máquina aludido em 1), incomodava a vizinhança.
4) O horário de laboração da recorrente na data aludida em 1), era das 7.00 horas às 20.00 horas.
5) Por carta datada de 29/06/2009, a recorrente foi autorizada a funcionar de forma contínua.
6) Nos anos de 2006,2007 e 2008, a recorrente declarou a título de transmissões de bens e prestações de serviços, respectivamente €86.935,95, 107.668,80 e 121.655,50.
7) No ano de 2010, a recorrente declarou para efeitos de IRC a quantia de €152.288,78 de total de proveitos do exercício.
Como não provado foi considerado que:
1. A recorrente só adquiriu maquinaria de corte contínuo, sem necessidade de operador, apenas no ano de 2009.
A motivação foi explicada como segue:
A convicção do tribunal assentou na apreciação do conjunto da prova produzida, nomeadamente os documentos juntos aos autos, designadamente de fls.39 a 42, 44 a 83, autorização de laboração contínua de fls. 84, fls. 85 a 87, declarações de impostos de fls. 88 a 152 e 220 a 231, certidão da licença de fls. 171 a 173, conjugados com as declarações prestadas pelo gerente da recorrente:
- C…, que prestou umas declarações pouco verosímeis e incoerentes quando conjugadas com os depoimentos das testemunhas.
Relatou, em síntese, que pensa que à data dos factos o horário da recorrente era das 8.00 até às 18.00 horas.
A partir do ano de 2009, passou a laborar em regime contínuo (noite e dia), e foi nessa data que adquiriu maquinaria automática para o efeito.
Nega os factos, porque foi o último a sair da empresa no dia dos factos, e não estava a laborar qualquer máquina.
- D…, militar da GNR, prestou um depoimento desinteressado, coerente e verosímil, relatando, em síntese, que a testemunha E… (vizinho da recorrente) apresentou uma denúncia devido ao ruído que era produzido nas instalações da recorrente. Por isso, por volta das 23.00 horas, deslocou-se ao local, acompanhado de outros militares e lá chegado, constatou que, apesar das referidas instalações estarem encerradas, ouvia-se, pelo menos, uma máquina em laboração.
- AF…, militar da GNR, prestou um depoimento, desinteressado, sincero e coerente, referindo, em suma, que a testemunha E… (vizinho da recorrente) apresentou uma denúncia devido ao ruído que era produzido nas instalações da recorrente. Por isso, por volta das 23.00 horas, deslocou-se ao local, acompanhado de outros militares e lá chegado, constatou que, apesar das referidas instalações estarem encerradas, ouvia-se, pelo menos, uma máquina em laboração. E afirma que era uma máquina de corte de pedra, por causa do ruído característico que por estas é feito e conhecido da sua pessoa.
- G…, militar da GNR, prestou um depoimento, desinteressado, sincero e coerente, referindo, em suma, que a testemunha E… (vizinho da recorrente) apresentou uma denúncia devido ao ruído que era produzido nas instalações da recorrente. Por isso, por volta das 23.00 horas, deslocou-se ao local, acompanhado de outros militares e lá chegado, constatou que, apesar das referidas instalações estarem encerradas, ouvia-se, pelo menos, uma máquina em laboração.
Outros populares também lá se encontravam.
- E…, vizinho da recorrente, que prestou um depoimento coerente, mas com pouco conhecimento directo dos factos concretos em apreço, referindo, em suma, que, por várias vezes, chamou a GNR ao local porque era habitual a recorrente laborar durante a noite, cortando pedra, e provocando ruído incomodativo para a população.
Não se recorda se foi no dia dos factos, porque foram várias vezes que aconteceram factos semelhantes, e não se recorda da empresa estar fechada.
Actualmente, existe menos ruído porque a recorrente fez obras.
- H…, prestou um depoimento sem conhecimento dos factos em apreço, referindo apenas que há cerca de 12 anos, pela 1.00 horas, viu a GNR no local, por causa de ruído provocado pelas máquinas da recorrente.
- I…, prestou um depoimento verosímil, relatando, em suma, que a recorrente tem autorização para laborar de dia e de noite, e o parâmetro de ruído está nos valores normais, atento o estudo que mandaram efectuar.
*
Na verdade, da conjugação da prova, dúvidas não restam que a recorrente manteve em laboração uma máquina de corte de pedra nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas nos factos provados.
Tal conclusão, retira-se da conjugação de juízos de experiência comum e do normal acontecer com os depoimentos dos militares da GNR, que chamados ao local, após denúncia de um vizinho da recorrente, incomodado com o ruído, em período nocturno, constataram que efectivamente este existia e provinha do interior das instalações da recorrente e mais concretamente da laboração de uma máquina de corte de pedra, sendo certo que não conseguiram entrar nas mesmas por se encontrarem encerradas.
Afirmaram que se trata de um ruído característico que é facilmente identificável, sendo habitual, algumas empresas, terem máquinas automáticas que cortam pedra em período contínuo (dia e noite), sem necessidade de operador.
Também o gerente da recorrente, relatou que só a partir do ano de 2009, adquiriu máquinas automáticas que laboram continuamente sem necessidade de operador, o que veio dar ainda mais credibilidade aos depoimentos das testemunhas aludidas, sendo conveniente a alegação, e que não mereceu credulidade, de que só depois dos factos adquiriu tal maquinaria.
Não deixou de ser curioso e relevante o facto do próprio gerente da recorrente não saber explicitar qual o horário do término diário referente à laboração, à data dos factos, referindo talvez às 18.00 horas (!?), o que leva a concluir da importância que dava ao horário estabelecido na licença.
Atente-se que a testemunha H…, já se queixou de ruído semelhante há cerca de 12 anos, e já nessa data a GNR foi chamada ao local.
Assim sendo, ao contrário do alegado, não é pelo facto de não ter sido possível ver a máquina em funcionamento que a mesma não se encontrava a laborar. É que a visão é apenas um dos cinco sentidos do ser humano, e não o único.
No que respeita aos factos dados como não provados, não foi feita prova da sua verificação, quer através de prova documental, quer testemunhal, sendo que a prova testemunhal trazida pela recorrente não deixou de mostrar interesse na causa.
3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, são as seguintes as questões submetidas à nossa apreciação:
- inconstitucionalidade dos arts. 66º e 75º do RGCO;
- violação do princípio in dubio pro reo;
- medida da coima.
3.1. A recorrente começou por suscitar a inconstitucionalidade, por violação dos nºs 1 e 10 do art. 32º da C.R.P., dos arts. 66º e 75º do RGCO, afirmando terem-lhe sido vedados os direitos de audiência e defesa por não ter podido utilizar os meios previstos no art. 364º do C.P.P. na medida em que, com o fundamento de, em caso de recurso, apenas poder ser apreciada a matéria de direito pelo tribunal de Relação, foi indeferido o requerimento de gravação da prova que fez no início da audiência de julgamento.
Esta questão não é nova, já tendo sido apreciada, tanto pelo Tribunal Constitucional como pelos tribunais superiores, e merecido, cremos que uniformemente, resposta de sentido negativo, como se verifica pelos arestos a seguir indicados que a apreciaram directamente, bem como por outros que também chamamos à colação por terem apreciado questões paralelas e cuja fundamentação, feitas as devidas adaptações, também aqui é aplicável, e dos quais a seguir vamos transcrever os segmentos que para o caso nos interessam ( sendo nossos os destaques a negrito ).
Assim, e no que concerne ao TC:
- no Ac. nº 50/99 – considerando-se que “o registo da prova produzida em audiência, vedado pelo artigo 66º do DL 433/82, não releva em si, mas enquanto meio que permite ou facilita o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso” e este é vedado por outra norma, a do art. 75º nº 1 do mesmo diploma, cuja (des)conformidade constitucional não foi suscitada, não se vendo “como o não registo da prova produzida em audiência, no processo de contra-ordenação, viole qualquer garantia de defesa do arguido constitucionalmente tutelada” – concluiu-se que, na dimensão abrangida pelo pedido, “a norma ínsita na parte final do artigo 66º do DL nº. 433/82 não viola o artigo 32º nºs. 1 e 8 da CRP, na versão de 89, ou do mesmo artigo nºs. 1 e 10, na redacção de 97.”;
- na Decisão sumária transcrita no Ac nº 73/2007 (que indeferiu a reclamação que dela tinha sido apresentada) negou-se provimento ao recurso, considerado manifestamente infundado na parte tocante à invocada inconstitucionalidade da norma que se extrai da conjugação dos arts. 66º e 75º nº 1 do RGCO, “segundo a qual a prova produzida em audiência no recurso de impugnação da decisão administrativa impositora de coima não é reduzida a escrito e que, salvas as excepções previstas naquele Regime Geral, os tribunais das relações, nos recursos interpostos das sentenças exaradas no recurso das citadas decisões administrativas, só conhece da matéria de direito”, com a seguinte fundamentação: “(…) não esquecendo a jurisprudência deste Tribunal que, a respeito da garantia do asseguramento de um segundo grau de jurisdição em matéria criminal, tem sido seguida (…) (nunca tendo este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade concluído pela imposição, pela Lei Fundamental, de um segundo grau de reapreciação da matéria de facto), o que se não pode escamotear é que a sentença a proferir pelo tribunal de 1ª instância em processos do jaez do presente é de considerar como uma decisão a proferir já em grau de reapreciação – justamente porque se trata de um recurso que incidiu sobre a decisão que aplicou a coima –, representando, assim, o recurso dessa sentença para o tribunal da relação uma segunda reapreciação da matéria.
Ora, é destituída de razão a argumentação de que, em casos como o presente – em que já houve recurso para o tribunal comum da decisão administrativa impositora de coima –, a Constituição impõe que a prova a produzir em audiência perante esse tribunal tenha de ser reduzida a escrito, com vista a que a matéria de facto seja, uma vez mais, reapreciada, desta feita pelo tribunal da relação.
Um tal entendimento conduziria a que se considerasse que o Diploma Básico exige um segundo grau de apreciação, por via recursiva, da matéria de facto o que, como se disse, nunca foi – antes pelo contrário –sustentado por este Tribunal.”;
- no Ac. nº 632/2009, apreciou-se, além do mais, a questão da desconformidade constitucional do artigo 75º do RGCO “enquanto limita o recurso em 2ª instância à matéria de direito”, tendo sido negado provimento ao recurso por se reiterar o entendimento do TC no sentido de que “a Constituição não impõe o duplo grau de recurso em matéria de facto (cf., entre muitos outros, os Acórdãos nºs 573/98, 189/2001 e 73/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)”;
- no Ac. nº 659/2006, a propósito das normas dos nºs 1 e 10 do art. 32º da CRP, expenderam-se as seguintes considerações:
“Com a introdução dessa norma constitucional [alude-se àquele nº 10 ] (efectuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (…). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal”(artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
É óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. (…) 2.3. Dentre os processos sancionatórios é o processo contra-ordenacional um dos que mais se aproxima, atenta a natureza do ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa ser equiparado.
Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade directa e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal (…). A diferença de “princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra-ordenações” reflecte-se “no regime processual próprio de cada um desses ilícitos”, não exigindo “um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador” (…) ordinário, ao qual não é constitucionalmente imposta a equiparação de garantias do processo criminal e do processo contra-ordenacional, o Acórdão n.º 50/99 não julgou inconstitucional a norma da parte final do artigo 66.º do RGCO, que afasta a redução a escrito da prova produzida na audiência em 1.ª instância.(…)
No entanto, este Tribunal também tem sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Acórdãos n.º 469/97 e 278/99). (…) (…)dada a diferente natureza dos ilícitos em causa e a menor ressonância ética do ilícito de mera ordenação social, com reflexos nos regimes processuais próprios de cada um deles, não é constitucionalmente imposto ao legislador a equiparação das garantias em ambos esses regimes (…)
Como é sabido, constitui entendimento reiterado deste Tribunal (cf., por último, o Acórdão n.º 2/2006 e demais jurisprudência aí citada) que a Constituição não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies. Perspectivando – como cumpre – a problemática do direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, por outro, por a consideração constitucional das garantias de defesa implicar um tratamento específico desta matéria no processo penal (a consagração, após a revisão de 1997, no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, do direito ao recurso mostra que o legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa), mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, o Tribunal Constitucional entendeu que não decorre desse fundamento que os sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais. Fora destas espécies de decisões, consideraram-se, assim, conformes à Constituição normas processuais penais que deneguem a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo.
Por maioria de razão, em processo contra-ordenacional não é constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais proferidas no decurso da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.”;
- no Ac. nº 313/2007, reiterando-se a mesma linha de argumentação, expenderam-se as seguintes considerações:
“Conforme referiu EDUARDO CORREIA, em “Direito penal e de mera ordenação-social, no B.F.D.U.C., nºXLIX(1973), pág. 268, “a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”. Na contra-ordenação o substracto da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta axiológico-socialmente neutra, sendo a proibição legal da mesma que lhe confere a qualificação de ilícita. Daí que a natureza puramente patrimonial da sanção que lhe é aplicável (a coima) se diferencia claramente, na sua essência e finalidades, das penas criminais, inclusiveda multa.
Esta variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a nível adjectivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contra-ordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual penal.
A introdução do nº 10 no artº 32º, da C.R.P., efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (…), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação.
Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no nº 1, do artº 32º, da C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisidicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação directa ao processo de contra-ordenação.
Conforme se sustentou no Acórdão nº 659/06, deste Tribunal, cuja fundamentação acompanhamos de perto, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa, especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos sancionatórios, no nº10, do artº 32º, da C.R.P., não se pode incluir o direito a um duplo grau de apreciação jurisdicional. Esta norma exige apenas que o arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões. A não inclusão do direito ao recurso no âmbito mais vasto do direito de defesa constante do nº10, do artº 32º, da C.R.P., ressalta da diferença de redacção dos nº 1 e 10, deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de 1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do artº 32º - B, do Projecto de Revisão Constitucional, nº 4/VII, do PCP, foi rejeitada (leia-se o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág. 3412 a 3466). O direito ao acesso aos tribunais consagrado no artº 20º, nº 1, da C.R.P., e o direito dos administrados à tutela jurisdicional, nomeadamente para a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, consagrado no artº 268º, nº 4, da C.R.P., apenas exigem que se possibilite a impugnação judicial da aplicação de sanções pela prática de contra-ordenações pelas autoridades administrativas e não uma dupla apreciação jurisdicional dessa impugnação.
(…) O direito a uma segunda apreciação jurisdicional apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não sendo esta exigência extensível aos demais processos sancionatórios, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador a estatuição das situações em que se justifique a possibilidade duma dupla apreciação da impugnação judicial, desde que efectuada de forma não arbitrária e proporcional.”;
- no Ac. nº 573/98, no qual se decidiu, na linha largamente maioritária seguida pelo TC, “não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum”, considerou-se que “o sistema da revista alargada (…) preserva o núcleo essencial do direito ao recurso, em matéria de facto, contra sentenças penais condenatórias - direito que, recorda-se, está compreendido no princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Ou seja: a revista alargada, tal como o nosso ordenamento jurídico a modela, ainda é remédio jurídico ou válvula de segurança suficiente contra erros grosseiros de julgamento. Por ela, o processo penal, ao mesmo tempo que assegura ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi, oferece aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta (cf. o acórdão n.º 434/87, publicado no Diário da República, II série, de 23 de Janeiro de 1988). Ou seja: a revista alargada cumpre as exigências feitas, nesse domínio, pelo princípio do Estado de Direito.”
- no Ac. nº 189/2001, no qual se decidiu “julgar não inconstitucional a norma do artigo 400º, nº1, alínea f) do Código de Processo Penal”, também se considerou que “A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies. (…) a jurisprudência do Tribunal Constitucional (…) tem perspectivado a problemática do direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento especifico desta matéria no processo penal. A consagração, após a Revisão de 1997, no artigo 32º, nº1 da Constituição, do direito ao recurso, mostra que o legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa. (…) mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido. (…) Existe, assim, alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação – não ver a instância superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos objectivos da última reforma do processo penal.”
A nível dos tribunais superiores:
- no Ac. RL 5/2/97 foi decidido “Não julgar inconstitucionais os arts. 66º e 75º nº.1 do DL nº.433/82, de 27.10”, com base nas razões que assim vêm sumariadas: “I - No processo contra-ordenacional, o Tribunal que conhece da impugnação judicial funciona como instância de recurso (a 2.) em matéria de facto, compreendendo-se por isso que a prova produzida no Tribunal não seja reduzida a escrito não se violando pois o princípio do duplo grau de jurisdição.
II - Por sua vez, a Relação funciona aqui como Tribunal de revista, ampla e alargada, atentos os poderes conferidos pelo artigo 75 do DL 433/82 - não sendo este artigo e o artigo 66 do mesmo diploma, desconformes à CRP.”;
- no Ac. RC 4/10/06, a respeito da questão da pretensa inconstitucionalidade do referido art. 75º “ao não facultar um duplo grau de jurisdição em matéria de facto”, concluiu-se pela conformidade constitucional da norma com base nas seguintes considerações:
“Chamando à colação um princípio geral em cujos termos deve ser assegurado aos arguidos uma segunda apreciação da matéria de facto, estribando-se com o estatuído conjugadamente pelos artigos 66.º do RGCO e 75.º citado, invoca a arguida a inconstitucionalidade do último, (…) Da economia da sua motivação aquilata-se estar em causa a salvaguarda das suas garantias de defesa, como tal, quiçá, o artigo 32.º, n.º 10 da CRP.
(…) é patente do infundado de tal invocação.
Que, adianta-se, assenta desde logo num equívoco, já que no processo contraordenacional, o Tribunal que conhece da impugnação judicial funciona como instância de recurso (a 2.ª) em matéria de facto, compreendendo-se por isso que a prova nele produzida não seja reduzida a escrito, e que se não mostre, só por isso, violado o princípio invocado do duplo grau de jurisdição (cfr. Ac. da Relação de Lisboa, in proc. n.º 5583).
Mas, também pelas razões aduzidas (naturalmente com as devidas adaptações) no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 140/2006 (processo n.º 601/2005) que apreciando da adequação constitucional do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP escreveu a determinado passo:
“(…)
A questão de constitucionalidade da disposição constante …, que limita o recurso penal a dois graus de jurisdição, foi, pelo menos, já objecto de tratamento nos Acórdãos deste Tribunal…
…
«Fazendo uma síntese da doutrina defendida nestes últimos arestos, assim discreteou aquele Acórdão n.º 377/2003:
“O direito de recurso conta-se entre “todas as garantias de defesa” conferidas pelo artigo 32.º, n.º 1 da CRP. Todavia, no domínio do processo penal, esse direito ao recurso basta-se com a existência de um duplo grau de jurisdição. Do artigo 20.º, n.º 1, da CRP não resulta que aos interessados tenham de ser assegurados todos os graus de recurso abstractamente configuráveis ou um direito irrestrito ao recurso. Numa hipótese, …, em que esteja assegurado um duplo grau de jurisdição, não poderá dizer-se que não esteja assegurado em termos constitucionalmente justificados o direito de acesso aos tribunais. A limitação dos graus de recurso, …, justifica-se por estarem em causa crimes que são punidos com penas leves ou de média gravidade e pela necessidade de limitar a intervenção …, por razões de capacidade de resposta do sistema judiciário e de economia processual.”;
- no Ac. RG 3/5/11 apreciou-se a questão da invocada inconstitucionalidade das normas contidas nos arts. 66º e 75º nº 1 do RGCO por violarem, na medida em que impedem o recurso da matéria de facto, o disposto no art. 32º nº 10 da CRP, tendo-se concluído pela conformidade constitucional de tais normas com base na seguinte fundamentação:
“O Regime Geral das Contra-Ordenações prevê que a decisão de autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial (artigo 59.º, n.º 1), podendo recorrer-se para o Tribunal da Relação das decisões judiciais que apreciem aquela impugnação nos casos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 73.º do RGCO. Com este regime fica assegurado o direito à apreciação jurisdicional das decisões sancionatórias administrativas que apliquem coimas pela prática de contra-ordenações, e, nalguns casos, admite-se a existência de um duplo grau de jurisdição na reapreciação dessas decisões.
Conforme referiu Eduardo Correia, “a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”(- Direito penal e de mera ordenação-social, no B.F.D.U.C., n.º XLIX (1973), pág. 268.).
Na contra-ordenação o substracto da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta axiológico-socialmente neutra, sendo a proibição legal da mesma que lhe confere a qualificação de ilícita. Daí que a natureza puramente patrimonial da sanção que lhe é aplicável (a coima) se diferencia claramente, na sua essência e finalidades, das penas criminais, inclusive da multa. Esta variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a nível adjectivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contra-ordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual penal. A introdução do n.º 10 no artigo 32.º da C.R.P., efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (…), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação.
Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisdicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação directa ao processo de contra-ordenação.
Conforme se sustentou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/06, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa, especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos sancionatórios, no n.º 10 do artigo 32.º da C.R.P., não se pode incluir o direito a um duplo grau de apreciação jurisdicional (- Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.). Esta norma exige apenas que o arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões. A não inclusão do direito ao recurso, no âmbito mais vasto do direito de defesa constante do n.º 10 do artigo 32.º da C.R.P. ressalta da diferença de redacção dos nºs 1 e 10, deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de 1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do artigo 32.º - B, do Projecto de Revisão Constitucional, n.º 4/VII, do PCP, foi rejeitada(- Vide o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág. 3412 a 3466.).
Aliás, como é sabido, constitui entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que a Constituição não impõe o duplo grau de recurso em matéria de facto (- Cfr., entre outros, os Acórdãos 73/2007, 386/2009 e 632/2009, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.).
Trata-se de jurisprudência constitucional consolidada, que se perfilha, não adiantando a recorrente, nem se vislumbrando, argumentos, fundamentos ou circunstâncias que não tenham já sido anteriormente ponderadas.
Tem, por isso, de se concluir que as normas contidas nos artigos 66.º e 75.º, n.º 1 do RGCO não violam os direitos de audiência e defesa constantes do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.”;
- no Ac. STJ 23/4/08[5] destacamos, do respectivo sumário, os seguintes segmentos:
I -Mesmo antes de o art. 32.°, n.º 1, da CRP ter passado a especificar o recurso como uma das garantias de defesa – o que sucedeu com a Lei Constitucional 1/97, de 20-09 –, constituía jurisprudência pacífica e uniforme do TC que uma das garantias de defesa é, justamente, o direito ao recurso. Este direito é de há muito identificado por aquele Tribunal com a garantia do duplo grau de jurisdição, “quanto a decisões penais condenatórias e, ainda, quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais”.
II - Tal significa que, embora valha no processo penal português o princípio da recorribilidade das decisões judiciais, plasmado no art. 399.° do CPP, do ponto de vista jurídico-constitucional não são ilegítimas, à luz do art. 32.°, n.º 1, da CRP, restrições do direito ao recurso relativamente a decisões penais não condenatórias ou que não afectem a liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido. Esta disposição constitucional não imporá, portanto, a concessão ao arguido do direito de recorrer de toda e qualquer decisão judicial que lhe seja desfavorável.
III - Segundo o TC, o duplo grau de jurisdição, imposto pelo art. 32.°, n.º 1, da CRP, abrange tanto o recurso em matéria de direito como o recurso em matéria de facto, com a salvaguarda de que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não tem, porém, de «implicar renovação de prova perante o tribunal ad quem, nem tão-pouco que conduzir à reapreciação de provas gravadas ou registadas» (Ac. n.º 573/98, tirado em plenário). Como se refere ainda nesta decisão, «o tribunal colectivo, tendo em conta as regras do seu próprio modo de funcionamento e as que comandam a audiência de discussão e julgamento, constitui, ele próprio, uma primeira garantia de acerto no julgamento da matéria de facto. Depois, no recurso de revista alargada, há também lugar a uma audiência de julgamento, sujeita às regras respectivas, nela podendo haver alegações orais. E, embora esse recurso de revista alargada vise, em regra, tão-só o reexame da matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça pode, não apenas anular a decisão recorrida, como decretar o reenvio do processo para novo julgamento. Questão (para este último efeito) é que detecte erros grosseiros no julgamento do facto (a saber: insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova) e que o vício detectado resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum».
IV - Não tendo o direito ao recurso sobre a matéria de facto – como decidiu o TC no Ac. n.º 401/91 (in DR I-A, de 08-01-1992) – que implicar renovação de prova perante o tribunal ad quem, nem tão-pouco que conduzir à reapreciação de provas gravadas ou registadas (Ac. n.º 253/92, in DR II, de 27-10-1992), a garantia do duplo grau de jurisdição sobre o facto tem fatalmente que circunscrever-se a uma verificação pelo tribunal de recurso da coerência interna e da concludência de tal decisão, sendo certo que a efectividade de tal reapreciação do acerto da decisão sobre a matéria de facto pelo tribunal ad quem depende, de forma decisiva, da circunstância de ela estar substancialmente fundamentada ou motivada, não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto relevante como provado ou não provado.
V - O sistema da revista alargada preserva, assim, o núcleo essencial do direito ao recurso, em matéria de facto, contra sentenças penais condenatórias.
VI - É insustentável, em termos dogmáticos, defender em abstracto a constitucionalidade, necessariamente obrigatória, da admissibilidade de três graus de recurso.”;
- no Ac. STJ 24/4/08, que não considerou inconstitucional o art. 400° nº 3 do C.P.P. “por violação do direito ao recurso (art. 32° nº 1 da CRP), quando interpretado no sentido de que é admissível um recurso sobre matéria cível, mas já não o é sobre matéria penal, apesar de estar em discussão o pressuposto da ilicitude, comum à matéria cível e penal”, lembrando que “O Tribunal Constitucional tem entendido, por inúmeras vezes, que a CRP obriga a que esteja assegurado o direito ao recurso para certa decisão penal, mas já não integra o núcleo essencial dos direitos constitucionais de defesa o direito a um duplo ou triplo grau de recurso, que pode ou não existir por opção legislativa”, escreveu-se ainda que:
“O direito ao recurso em processo penal tem que ser entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição e, não, perspectivado, como uma faculdade de recorrer - sempre e em qualquer caso - da 1ª decisão condenatória, ainda que proferida em via de recurso. Estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. Este entendimento não colide com o estatuído no artigo 32º/1 da Constituição da República, pois que a apreciação do caso por 2 tribunais de grau distinto, é de molde a tutelar de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
De resto, referira-se que o artigo 2º do protocolo nº. 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República 22/90 de 27.9 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República 51/90 da mesma data, dispõe que:
qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei; este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos das lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.”;
- e, no Ac. RC 9/12/10[7] considerou-se que:
“Em matéria contra-ordenacional, o direito ao recurso não surge com a mesma tutela constitucional que no processo criminal.
Como referiu o Ac. do TC n.º 313/007:
“A introdução do nº 10 no artº 32º da C.R.P., efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º 3), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação.
Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no nº 1 do artº 32º da C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisidicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação directa ao processo de contra-ordenação.
Conforme se sustentou no Acórdão nº 659/06 deste Tribunal, cuja fundamentação acompanhamos de perto, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa, especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos sancionatórios, no nº 10 do artº 32º da C.R.P. não se pode incluir o direito a um duplo grau de apreciação jurisdicional. Esta norma exige apenas que o arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões.
A não inclusão do direito ao recurso no âmbito mais vasto do direito de defesa constante do nº 10 do artº 32º da C.R.P., ressalta da diferença de redacção dos nº 1 e 10 deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de 1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do artº 32º - B do Projecto de Revisão Constitucional nº 4/VII, do PCP, foi rejeitada (leia-se o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág. 3412 a 3466).
O direito ao acesso aos tribunais consagrado no artº 20º, nº 1, da C.R.P., e o direito dos administrados à tutela jurisdicional, nomeadamente para a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, consagrado no artº 268º, nº 4, da C.R.P., apenas exigem que se possibilite a impugnação judicial da aplicação de sanções pela prática de contra-ordenações pelas autoridades administrativas e não uma dupla apreciação jurisdicional dessa impugnação.
(…) O direito a uma segunda apreciação jurisidicional apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não sendo esta exigência extensível aos demais processos sancionatórios, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador a estatuição das situações em que se justifique a possibilidade duma dupla apreciação da impugnação judicial, desde que efectuada de forma não arbitrária e proporcional”.
Por outro lado, das garantias gerais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, vertidas, nomeadamente, no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, não decorre um direito ao recurso, ou seja, à reapreciação das decisões judiciais por um tribunal superior (neste sentido, por exemplo, v. o Acórdão do TC n.º 589/2005).
Assim, embora o Tribunal Constitucional tenha vindo a afirmar a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal, da CRP não resulta a aplicabilidade directa e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal (v. ainda, Ac. TC n.º 522/08…).
Ou seja, as garantias do processo sancionatório que decorrem do art.º 32.º da CRP, são aplicáveis ao processo de contra-ordenação por força do seu n.º 10, quanto aos direitos de audiência e defesa, mas não comportam um direito ao duplo grau de jurisdição.”
Do conjunto desta resenha jurisprudencial extraem-se as seguintes linhas fundamentais que sustentam a conclusão, também por nós perfilhada, de que a norma geral impeditiva do recurso da matéria de facto, extraída da conjugação dos arts. 66º e 75º nº 1 do RGCO, não é inconstitucional: no processo contra-ordenacional, o tribunal de 1ª instância que conhece da impugnação judicial funciona como instância de recurso em matéria de facto, sendo de considerar como uma decisão já em grau de reapreciação - justamente porque se trata de um recurso que incidiu sobre a decisão administrativa que aplicou a coima - a sentença que profere, representando, assim, o recurso dessa sentença para o tribunal da relação uma segunda reapreciação da matéria; a diferente natureza dos ilícitos criminais e de mera ordenação social e a menor ressonância ética dos segundos tem reflexos nos regimes processuais próprios de cada um deles, nomeadamente a não aplicabilidade directa e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal, não sendo constitucionalmente imposto ao legislador a equiparação das garantias em ambos esses regimes; o direito ao recurso actualmente consagrado no nº 1 do artº 32º da C.R.P, enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisdicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não tendo aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação; de facto, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa, especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos sancionatórios, no nº 10 do artº 32º da CRP, não se pode incluir o direito a um duplo grau de apreciação jurisdicional, o que também resulta da diferença de redacção entre aquela norma e a do nº 1 do mesmo preceito, ambas alteradas pela revisão de 1997, demonstrativa da intenção do legislador de não incluir o direito ao recurso no âmbito mais vasto do direito de defesa constante daquele nº 10; o alcance da norma do nº 10 do artigo 32º da CRP limita-se a assegurar os direitos de audiência e defesa, ou seja, a prevenir que qualquer tipo de sanção, nomeadamente contra-odenacional, seja aplicada sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade; a Constituição não impõe o duplo grau de recurso em matéria de facto, constituindo a revista ampliada, que envolve o controle dos vícios prevenidos no nº 2 do art. 410º do C.P.P. – norma também aqui aplicável no recurso para a relação, “o que significa que (…) o tribunal “ad quem” não tem de se restringir à tradicionalmente denominada questão de direito mas antes pode alargar o seu conhecimento a questões documentadas no texto da decisão proferida pelo tribunal a quo que contendam com a apreciação do facto”[8] -, remédio jurídico ou válvula de segurança suficiente contra erros grosseiros de julgamento.
Com o que improcede este fundamento do recurso.
3.2. Subsidiariamente, a recorrente invoca a violação do princípio in dubio pro reo em virtude de a prova produzida em julgamento ter sido, em seu entender, equívoca e nada concludente e dever ter, por isso, determinado a prolação de decisão que a absolvesse.
O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando subsista uma dúvida insuperável e razoável que não permita alcançar a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. É, antes de mais, um princípio natural, lógico, de prova, funcionando como limite ao princípio da livre apreciação da prova. Enquanto não for demonstrada, provada, a culpabilidade do arguido não é admissível a sua condenação, devendo um non liquet na questão da prova ser sempre valorado a seu favor.
Pressupondo a violação deste princípio um estado de dúvida no espírito do julgador, só pode ser sindicada, nos casos em que não é admissível (tal como naqueles em que não foi apresentado) recurso da matéria de facto, na perspectiva do erro notório na apreciação da prova, vício prevenido na al. c) do nº 2 do art. 410º do C.P.P., que apenas se verifica quando, do texto da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resultar por demais evidente que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insuperável e que perante ele, e mesmo assim, optou por entendimento decisório desfavorável ao arguido.
Ora, pela conferência do texto da decisão recorrida, não se vislumbra que o julgador tenha tido dúvidas sobre a verificação dos factos que considerou como provados. Ao invés, a motivação da decisão de facto é bem esclarecedora quer quanto aos meios de prova que sustentaram a convicção formada (para além de qualquer dúvida razoável, como decorre da expressão “dúvidas não restam”), quer quanto ao percurso lógico seguido na sua formação, nenhuma falha ou incorrecção se detectando no exame crítico da prova. De facto, aí vêm explicadas, de forma inteiramente congruente e plausível, as razões pelas quais os relatos das testemunhas, em particular os militares da GNR que se deslocaram ao local na sequência de uma denúncia apresentada por um vizinho da recorrente, mereceram credibilidade e, conjugados com as regras da experiência comum, permitiram concluir que os ruídos provenientes do interior das instalações da recorrente, por elas ouvidos, eram produzidos por uma máquina de corte de pedra que ali se encontrava em laboração: trata-se de ruídos característicos, facilmente identificáveis – portanto reconhecíveis através da audição, mesmo sem o visionamento da respectiva fonte - e, de facto, a recorrente possui máquinas automáticas que laboram continuamente sem necessidade de operador – portanto independentemente da abertura ou do encerramento das instalações –, o que até foi admitido pelo seu gerente, embora tenha afirmado, convenientemente e sem ter logrado convencer o julgador, que a sua aquisição foi posterior à data dos factos. Tudo o mais que a recorrente invoca (a localização das suas instalações fora de qualquer zona residencial, a circunstância de o estabelecimento se encontrar no momento encerrado, o cumprimento das normas reguladoras do ruído, o não visionamento da máquina pelas referidas testemunhas) de modo algum são susceptíveis de afastar ou, sequer, comprometer aquela conclusão, pois o que estava em causa era a laboração em horário não licenciado e isso foi plenamente demonstrado no julgamento.
Daí que, sem necessidade de mais alongadas considerações, se conclua pela não verificação no texto da decisão recorrida da invocada violação do princípio in dubio pro reo.
3.3. Por último, a recorrente manifesta a sua discordância relativamente ao montante em que a coima foi fixada, defendendo que, em face de todas as circunstâncias que enumera – não ter ficado provado que tivesse retirado qualquer vantagem económica, ter ficado provado que nos anos de 2007 a 2009 apresentou prejuízo, tem cumprido rigorosamente as normas reguladoras da actividade que desenvolve e não regista qualquer condenação anterior pela prática de ilícitos contra-ordenacionais – a coima não poderia fixada em montante superior ao limite mínimo legalmente estabelecido para a infracção em causa.
A contra-ordenação praticada pela recorrente, tendo em conta que se trata de uma pessoa colectiva e a sua actuação foi dolosa, é punível, de acordo com o disposto no nº 1 do art. 21º do DL nº 69/2003 de 10/4, com coima de 100 € a 44.000€.
A autoridade administrativa, ponderando a gravidade da contra-ordenação (aferida pelo conjunto de circunstâncias que rodearam e antecederam a sua prática, nomeadamente o facto de a máquina se encontrar em funcionamento várias noites, por vezes até às 2 ou três da madrugada, de acordo com informação prestada por vizinhos e transmitida à GNR, as consequências daí advenientes, e a natureza jurídica dos deveres legais violados, designadamente a repetida laboração fora do horário de trabalho autorizado), a culpa da recorrente (actuação que se considerou revestir a forma de dolo necessário), a sua situação económica (não apurada por não ter feito apresentação dos documentos contabilísticos, sendo considerada a rentabilidade média usual no tipo de actividade que desenvolve), o benefício económico (não apurado nem possível de ser quantificado) e os antecedentes contra-ordenacionais (nada constando, presumindo-se primária), fixou-a em 10.000 €.
Este montante foi mantido pela decisão recorrida que, a propósito da determinação da medida da coima e depois de de ter corrigido para dolo directo a subsunção da conduta da recorrente, tal como emerge dos factos provados, no que concerne ao elemento subjectivo, teceu as seguintes considerações:
“(…) nos termos do artº 18º/1 do DL nº 433/82 de 27/10, “ a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.”
A culpa não se baseia, nesta sede, numa censura ética, dirigida à atitude interna do agente, traduzindo-se, antes, na “imputação do facto à responsabilidade social do seu autor” (Figueiredo Dias, “O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social”, op.cit., pág.331). A culpa constitui um pressuposto necessário da aplicação da sanção e, salvo em casos de aplicação do disposto no artigo 18º n.º2 do DL 433/82, é de considerar como seu limite máximo.
Não obstante o artº 18º não se referir, como o artº 71º/1 do CP, a exigências de prevenção, quer especial, quer geral, não se poderá deixar de ter em conta, no momento da aplicação da coima, a função admonitória, de advertência, que esta desempenha, e, sobretudo, a necessidade sentida pela consciência comunitária de punição do ilícito contra-ordenacional.
O limite mínimo da coima a aplicar situar-se-á na medida da sanção que permita ainda estabilizar as expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida – numa ponderação das necessidades de prevenção geral que ao caso caibam. Finalmente, a prevenção especial será considerada, não no sentido da reintegração, mas na medida em que a coima assume uma clara função de advertência admonitória. Assim, a necessidade, maior ou menor, de chamar a atenção da arguida para a importância da norma violada e para o dever de acatamento do seu comando será tida em conta para a determinação da concreta medida da coima entre o mínimo indicado pelas exigências de prevenção geral positiva e o máximo estabelecido em função da culpa.
Prescreve o artigo 72º A do referido DL nº 433/82, que impugnada a decisão da autoridade administrativa ou interposto recurso da decisão judicial somente pelo arguido, ou no seu exclusivo interesse, não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
Consagra o preceito vindo de citar o princípio da proibição da reformatio in pejus, à semelhança do que se encontra disposto no artigo 409º do CPP.
Atentando nos critérios já supra aludidos de determinação da medida da coima, nomeadamente que é primária, a ilicitude média, atentas as consequências dos factos (incomodar a vizinhança pela noite dentro), o dolo directo, com que agiu, e bem assim na facturação anual da recorrente, entende-se manter a coima no valor aplicado na decisão administrativa.
Ora, ponderando todas as circunstâncias relevantes para o efeito, aludidas nos segmentos das decisões acima escrutinados, o que relativamente à situação económica da recorrente foi vertido nos pontos 6. 7. dos factos provados, o benefício económico que, ainda que não quantificado, ela certamente não deixou de retirar da prática da contra-ordenação (gerado pela manutenção da máquina a laborar durante várias horas para além do período para o qual se encontrava licenciada, não só no dia em que foi levantado o auto, mas também em vários dias anteriores) e as consequências nefastas para o descanso da vizinhança em período nocturno, temos de concluir que a medida concreta em que a coima foi fixada respeita os princípios da adequação e da proporcionalidade, não merecendo qualquer censura.
Inexiste, pois, qualquer fundamento para que se altere o que foi decidido a este respeito.
4.Decisão
Em face do exposto, julgam o recurso improcedente e mantêm a decisão recorrida.
A recorrente vai condenada a pagar 4 UC de taxa de justiça.
Porto, 18 de Janeiro de 2012
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
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[1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Proferido no proc. nº 5583.
[4] Proferido no proc. nº 1369/06.9YRCBR.
[5] Proferido no proc. nº 08P899.
[6] Proferido no proc. nº 08P907.
[7] Proferido no proc. nº 51/10.7TTTMR.C1.
[8] Como o referem Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, pág.196.