SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
AUTO-ESTRADA
ATROPELAMENTO
Sumário

1. Cabe ao destinatário da cláusula que se quer ver excluída do contrato celebrado o ónus de invocar a falta ou a deficiência da respectiva comunicação.
2. A negligência grosseira ou a culpa grave corresponde a uma conduta altamente reprovável à luz do mais elementar senso comum.
3. O atravessamento de uma auto-estrada, por um peão, integra, em princípio, o conceito de negligência grave ou de acto temerário.

Texto Integral





ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



AA, BB, casada com CC, DD, casado com EE e FF, casada com GG, na qualidade de herdeiros de HH, vieram intentar acção, com processo ordinário, contra II, COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia global de € 54 136,36, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral liquidação.

Alegando, para tanto, e em suma:
HH, marido e pai dos autores, celebrou com a ré, em 11/10/2002, um contrato de seguro de acidentes pessoais, de que os autores são os beneficiários em caso de morte.
O referido HH faleceu em 10/11/2004, vítima de acidente de viação, por atropelamento negligente, causado por veículo pesado.
A ré escusa-se a pagar a respectiva indemnização, invocando que o acidente em causa se enquadra na previsão de exclusão constante no art. 5.º, 1.2 das Condições Gerais, o que os autores não aceitam.
Mais alegam o pagamento de despesas com o repatriamento da vítima e com o seu funeral, também cobertas pelo aludido seguro.

Citada a ré, veio a mesma contestar, alegando, também em síntese:
O acidente de viação em questão ficou a dever-se a conduta temerária da vítima, estando, assim, excluído da cobertura da apólice em causa (art. 5.º, nº 1.2 das Condições Gerais).
Impugna, ainda, as invocadas despesas.

Foi elaborado o despacho saneador, tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória.

Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto da base instrutória pela forma que do despacho junto de fls 232 a 233 consta.

Foi proferida a sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a ré do pedido.

Inconformados, vieram os autores interpor, sem êxito, recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães.

De novo irresignada, veio a autora AA pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - O Acórdão recorrido violou a lei substantiva aplicável ao caso sub judice, existindo fundamento de recurso de revista nos termos do art. 722.º, n.º 1 alínea a) do Código de Processo Civil.
2ª - A decisão de absolvição da Ré do pedido teve como fundamento a existência de uma cláusula de exclusão no contrato de seguro em vigor na data em que ocorreu o sinistro.
3ª - Estando nós perante um contrato em que se recorreu ao uso de cláusulas contratuais gerais e ao qual se aplica o regime jurídico instituído pelo DL 446/85 de 25 de Outubro e sucessivamente alterado pelos DL 220/95 e DL 249/99.
4ª - A Ré ao invocar a cláusula de exclusão para limitar a sua responsabilidade tinha de alegar e provar o seu conhecimento completo e efectivo por parte do tomador do seguro.
5ª - No caso sub judice a Ré não alegou, apesar de ter invocado a cláusula de exclusão para se eximir ao pagamento das garantias da apólice aos herdeiros do malogrado HH, nem provou que tenha comunicado e explicado o teor da cláusula invocada ao tomador de seguro, pelo que a mesma é nula nos termos do art. 8° aI. a) do DL 446/85 de 25 de Outubro.
6ª - A nulidade, nos termos do art. 286.º do Código Civil, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
7ª - O Acórdão do Tribunal a quo fez o entendimento de que a Relação não podia conhecer a questão da nulidade da cláusula de exclusão inserida nas condições gerais da apólice pelo facto de a questão não ter sido suscitada pelos autores na primeira instância.
8ª - A questão pode efectivamente ser apreciada em sede de recurso, apesar de ser questão nova, porque não foi alegada nem apreciada na primeira instância, todavia ser de conhecimento oficioso.
9ª - O ónus da alegação bem como a respectiva prova da comunicação e dever de informação da cláusula de exclusão ao tomador do seguro, cabia à Ré seguradora que fez uso das cláusulas contratuais gerais, e nesse sentido fazer prevalecer-se do comando vertido na respectiva cláusula de exclusão. Ora, a Ré não alegou em momento algum que tenha comunicado ao falecido HH a cláusula de exclusão para se eximir ao pagamento das garantias da apólice. Não tendo alegado, outrossim, não fez prova como que lhe competia, do dever de comunicação a que estava obrigada,
10ª- O Acórdão do Tribunal a quo fez errada apreciação quanto à questão da alegação do dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais, mormente, da cláusula de exclusão art. 5°, 1. 2. inserida nas condições gerais da apólice. Transferiu o ónus da alegação e respectiva prova para os Autores, quando resulta do art. 5° nº 3 do DL 220/95 de 31 de Agosto que tal tarefa cabia à Ré enquanto contratante que submeteu a outrem, in casu, ao tomador do seguro HH, as cláusulas contratuais gerais.
11ª- A escusa no pagamento das garantias da apólice, por parte da Ré, por recurso a uma cláusula de exclusão deveria ter sido acompanhada da respectiva alegação e prova da comunicação da mesma ao tomador do seguro. Ora, nada disso tendo resultado dos autos, a respectiva cominação será a exclusão da norma em apreço do contrato singular nos termos do art. 80º al b) do supra referido DL 220/95.
12° Teria pois a Ré, no que ao presente caso diz respeito, ter alegado e provado que deu efectiva comunicação e informação da cláusula inserta no art. 5°, 1. 2., das Condições Gerais da Apólice e só nessa medida lograr prevalecer-se da cláusula de exclusão.
13ª- Ora, a nulidade de cláusulas contratuais é do conhecimento oficioso, nos termos do art. 286° do Cód. Civil. O Acórdão do Tribunal a quo deveria ter decidido pela exclusão da cláusula em questão do contrato singular atenta a inobservância da alegação e prova de que a mesma foi comunicada ao falecido HH por parte da Ré seguradora. Assim sendo deverá a referida cláusula de exclusão ser declarada nula, excluída do contrato singular.
14ª- Entendeu o Acórdão do Tribunal a quo que tendo a Ré invocado a exclusão prevista no art° 5°, 1. 2. das Condições Gerais da Apólice, logrou provar matéria que integra a sua previsão, uma vez que a morte do HH se ficou a dever exclusivamente à conduta temerária, que actuou com negligência grave.
15ª- Não podem os recorrentes conformar-se com o entendimento vertido no Acórdão recorrido pois não resultaram no processo elementos probatórios que permitam apurar as circunstâncias em que ocorreu o atropelamento e portanto se o comportamento da vítima foi negligente e temerário como conclui o Acórdão do Tribunal a quo.
16ª- Ficou assente que a vítima atravessou a A16 da Holanda para recuperar documentos importantes que foram projectados para o exterior da cabina.
17ª- Assim sendo, e na ausência de qualquer outra prova sobre a forma como foi efectuado o atravessamento da via, não pode concluir-se que o comportamento da vítima se traduziu numa negligência grosseira ou num acto temerário.
18ª- Segundo a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (Processo 0753655 de 13/12/2007) "a negligência grosseira corresponde à falta grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar".
19ª- Com efeito, a vítima ao atravessar a A16 para apanhar os documentos transportados no veículo, não traduz uma conduta grave (próxima do dolo), dada a natureza e importância dos documentos a recuperar, representando pois um acto irreflectido, automático equiparado à negligência simples ou leve.
20ª- Traduzindo-se a culpa num juízo de reprovação ou de censura da conduta do agente que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade deste, há que levar em conta, na graduação da mesma, não só a objectividade da conduta, mas também as circunstâncias em que a mesma ocorreu e as razões que a determinaram.
21ª- A averiguação dessas circunstâncias e dessas razões é essencial para ajuizar se a culpa revestiu a forma de dolo ou tão só de mera culpa (negligência), mas também é relevante para ajuizar da intensidade do dolo (dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual) e da gravidade da culpa em sentido estrito (negligência ou mera culpa).
22ª- Facilmente se compreende que o juízo de censura mesmo se um peão decide atravessar uma auto-estrada, para por exemplo encurtar caminho, ou faz o atravessamento para recuperar documentos transportados no veículo em que seguia.
23ª- No caso dos autos está assente qual a razão que levou a vítima a atravessar a A16 - recuperar documentos - pelo que face à matéria dada como assente e à ausência de prova sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente, o acórdão do Tribunal a quo não poderia ter considerado a conduta da vítima como temerária.
24ª- Nos termos do art. 342° nº 2 do CC competia à Ré alegar e provar factos que permitisse qualificar de temerária a conduta da vítima, uma vez que tal facto seria impeditivo do direito invocado pelos Autores. Ora a Ré não invocou, nem provou no decorrer dos autos, factos que possam qualificar a conduta da vítima como temerária.
25ª- Assim sendo, o Acórdão do Tribunal a quo ao ter considerado a conduta da vítima como temerária, cometeu manifesto lapso, constituindo um erro, sendo notória uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão proferida, violando o disposto no art. 659° nº 3 do Código Processo Civil.
26ª- O Acórdão recorrido violou os arts 8° do DL 220/95 de 31 de Agosto, 286.º e 342.º do CC, 659.º, nº 2 e 3 e 660º,nº 2 ambos do CPC.

A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

Vem dado como PROVADO:

1 - Os autores são legítimos herdeiros de HH (al. A) dos factos assentes);

2 - O HH faleceu no dia 10.11.2004, no município de Moerdijk, na Holanda (al. B) dos factos assentes);

3 - A morte do HH foi resultado de um acidente de viação ocorrido no dia 10.11.2004, na auto-estrada A 16 da Holanda (al. C) dos factos assentes);

4 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o HH acompanhava o seu genro CC no veículo pesado de mercadorias que este último conduzia no desempenho da sua actividade profissional, com o sentido fazer-lhe companhia e retirar lazer na viagem à Holanda (al. D) dos factos assentes);

5 - A dada altura, o genro do HH abriu o vidro da sua janela para arejar a cabine e vários documentos que transportava voaram para fora do veículo (aI. E) dos factos assentes);

6 - Perante tal situação e com vista a recuperar esses documentos, o genro do HH imobilizou o veículo que conduzia na berma direita da A 16, atento o seu sentido de marcha (al. F) dos factos assentes);

7 - E saiu do veículo, juntamente com o HH, para apanhar esses documentos (al. G) dos factos assentes);

8 -No momento em que o HH atravessava a via de trânsito da A 16, do lado esquerdo para o direito, atento o sentido de marcha do trânsito, foi colhido por um veículo pesado de matrícula 0000000 aI. I) dos factos assentes);

9 - No momento em que embateu no HH, o condutor do veículo pesado 000000 nha o lado esquerdo dessa via de trânsito desimpedida (resposta ao item 2° da BI);

10- O HH fez a travessia da faixa de rodagem a pé (resposta ao item 6° da BI) (1);

11- Ao avistar o HH, o veículo pesado 000000 travou a fundo (resposta ao item 8° da BI);

12- O veículo 000000 circulava com as luzes acesas (resposta ao item 9° da BI);

13- À data do acidente, o HH tinha celebrado um "contrato de seguros de acidentes pessoais" com a ré, titulado pela apólice n° 0000000, cujas condições particulares e gerais aqui se dão como reproduzidas para todos os efeitos legais (aI. H) dos factos assentes);

14- Com o repatriamento do corpo do HH para Portugal os autores despenderam a quantia de 3.415,00 euros (resposta ao item 3° da BI);

15- Com o funeral do HH, os autores despenderam a quantia de 581,26 euros (resposta ao item 4° da BI).

São, como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.
Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente (2). nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

As quais assim se podem resumir:
1ª – A da alegação e prova, por banda da recorrida, do conhecimento completo e efectivo da cláusula de exclusão (5ª. 1. 2 das Condições Gerais da Apólice) por parte do tomador do seguro.
2ª – A do conhecimento oficioso da exclusão de tal cláusula pelo Tribunal.
3ª – A do segurado HH, no acidente que o vitimou, não ter actuado com negligência grave, com conduta temerária, competindo à ré, nos termos do art. 342.º, nº 2 do CC, alegar e provar o facto impeditivo do direito pelos autores arrogado.

Vejamos:

É verdade que a recorrente, na sua apelação, veio suscitar questão nova, que ainda não tinha sido apreciada no tribunal então recorrido: a da exclusão da cláusula ora em questão (cláusula 5ª, 1.2 das Condições Gerais da Apólice) e da sua comunicação/não comunicação por parte da contratante que a ela submeteu o segurado.

Mas também é verdade que a Relação, podendo colocar-se a hipótese da bondade ou do errado de tal solução, já que se poderia então discutir se a questão suscitada era ou não de conhecimento oficioso, por matéria a respeito não haver alegada nos autos, apreciou a mesma, tendo decidido caber aos autores a alegação da matéria atinente às nulidade que então invocam. Não devendo, pois, a dita cláusula, que apenas carece de ser interpretada, ser excluída do contrato de seguro.

E, assim, acabando a Relação por conhecer, afinal, de tal questão, não se entende porque aqui vem, agora, a recorrente, continuar a afirmar que o seu conhecimento, por banda do Tribunal, é oficioso.
A questão está lançada por via da decisão da Relação a seu respeito, escusado sendo, pois, – e sendo certo que os recursos tal não visam - debruçarmo-nos sobre a solução meramente académica que ao caso caberia, seja, a de decidir se, não tendo havido alegação factual sobre a questão da comunicação/não comunicação da cláusula e sua correspondente validade/nulidade e não tendo a mesma sido expressamente suscitada pelas partes, deveria ou não o Tribunal sobre ela se pronunciar.
Pois, repete-se, a Relação sobre ela já decidiu.
Com discordância da ora recorrente.

Mas, prossigamos, com análise e decisão sobre a questão de saber a quem compete o ónus de alegação factual sobre a comunicação/não comunicação da cláusula que se pretende em vigor por banda da ré e excluída, por banda da ora autora.

Sabendo-se que o Juiz, sem estar sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, apenas, e sem prejuízo do disposto no art. 264.º do CPC (princípio dispositivo), se pode servir dos factos articulados pelas partes – art. 664.º do mesmo diploma legal.

E que, nos termos do art. 5.º do DL 446/85, de 25 de Outubro (Cláusulas Contratuais Gerais), há um ónus de comunicação na íntegra das cláusulas contratuais gerais aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, de modo adequado para o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência, cabendo tal prova (3) ao contratante que as submete a outrem (4)..

Com efeito, tal ónus de comunicação (bem como o de informação – art. 6.º do mesmo diploma legal) é instrumento paradigmático do direito à informação contido no art. 60.º, nº 1 da CRP, no âmbito contratual (5)..
Estando já tal princípio também contido no art. 227.º do CC: constituindo o contrato uma convenção, um acordo, é óbvio que o mínimo exigível, para que dele se possa falar, é que aqueles que nele intervêm conheçam claramente os elementos sobre os quais manifestam o seu consentimento (6).

Exigindo-se, assim, que as condições gerais sejam integralmente comunicadas à contraparte, impondo-se, para alem disso, que tal comunicação se realiza de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento efectivo pelo contraente que actue com a diligência comum (7)..

Tendo vindo este Supremo Tribunal a afirmar que este dever de comunicação existe para possibilitar ao aderente o conhecimento antecipado da existência de cláusulas contratuais gerais que irão integrar o contrato singular, bem como o conhecimento do seu conteúdo, exigindo-se dele, contudo, e para esse efeito, um comportamento diligente (8).

Sendo indubitável que o ónus da prova do cumprimento deste dever de comunicação cabe ao contratante que submete a outrem as ditas cláusulas.

Restando saber – e essa é verdadeiramente a questão que neste âmbito importa resolver – é como articular este ónus de prova com o de alegação de tal comunicação.
Ou seja, saber se o predisponente terá não só de provar a comunicação como também o de alegar que comunicou determinada cláusula, in casu, a ora em apreço.

Cremos, se bem que a questão não seja líquida, que caberá antes ao destinatário da cláusula o ónus de invocar a falta ou a deficiência de tal comunicação.

Dizendo-nos, a propósito, Moitinho de Almeida (9), que pertence ao interessado o ónus de alegação de que tal dever (o da comunicação) não foi cumprido (10)/(11).

No mesmo sentido, parecendo opinar Ana Prata (12), quando refere que se “o aderente vier impugnar o contrato, alegando que o não conheceu, não tem ele de provar que lhe não foram concedidas possibilidades de conhecimento. Ao invés, é ao predisponente que cabe a prova de que cumpriu esta obrigação, isto é, de que proporcionou ao aderente as condições para que ele conhecesse, e efectivamente, o regulamento contratual” (o negrito é nosso).

Com efeito, consagrado que está no nosso ordenamento jurídico o princípio da substanciação, segundo o qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, sendo antes necessário a indicação especificada dos factos constitutivos desse direito (13), recai sobre o autor o ónus de alegar os factos de cuja prova (em princípio, também a fazer por ele) seja possível concluir pela existência do direito que invoca, seja, o de receber o montante pecuniário que, verificado o risco assegurado, para ela resultou do contrato de seguro em causa.

Incumbindo, assim, à parte o ónus de produzir no processo as afirmações necessárias à defesa da sua posição, sendo que a prova pressupõe a alegação do facto que se pretende provar (14) - art. 264.º, nº 1 do CPC

Cabendo-lhe, ainda, em princípio o ónus de prova dos factos constitutivos do direito alegado – art. 342.º, nº 1 do CC.

A não ser, como no caso sucede, que a lei determine o contrário – art. 344.º, nº 1 do mesmo CC.

E, decidir que o ónus de afirmação (alegação) incumbe a uma das partes, significa que, nessa parte, será julgado o pleito contra si, se não forem alegados os factos indispensáveis à sua pretensão.

Vejamos, agora, válida que se tem de ter a questionada cláusula, por nenhuma razão haver para sua exclusão (art. 8.º, al. a) do DL 446/85) se o segurado HH, no acidente que o vitimou, actuou com negligência grave, com conduta temerária.

Reza assim a aludida cláusula 5ª, 1.2 da apólice de seguro do ramo de acidentes pessoais:
“1. Ficam excluídos da cobertura os acidentes consequentes de:
………………………………………………………………………………………………………………………………...
1.2. Prática de actos criminosos, negligência grave e quaisquer actos intencionais do Segurado, tal como o suicídio ou tentativa deste, incluindo actos temerários, apostas ou desafios.”

Ora, como bem se diz no acórdão recorrido e resulta da factualidade apurada, o infeliz HH acompanhava o seu genro, no veículo pesado de mercadorias que este, no exercício da sua actividade profissional, conduzia, com o intuito de lhe fazer companhia numa viagem à Holanda.
A dada altura, o dito genro do HH abriu o vidro da janela para arejar a cabina, tendo então voado, para fora do veículo, vários documentos que ali levava.
Com vista a recuperá-los, o genro do HH imobilizou o veículo na berma direita da A 16, atento o seu sentido de marcha, e saiu do veículo, juntamente com o HH, para apanhar os papéis.
No momento em que o HH atravessava a via de trânsito da A 16, a pé (15), do lado esquerdo para o lado direito, atento o sentido de marcha do trânsito, foi colhido por um veículo pesado, que circulava com a luzes acesas e que, ao avistar o peão, travou a fundo.

Correcta que está a interpretação da cláusula em apreço feita pelas instâncias, mormente pelo Tribunal da Relação ora recorrido, por observados estarem os critérios legais impostos pelos arts 236.º e 238.º do CC para definição do sentido que há-de vincular as partes e cuja censura pode caber a este STJ, por tal juízo constituir matéria de direito, concluir se deve estar excluída da cobertura do contrato de seguro em apreço a grave negligência do segurado ou os actos temerários do mesmo que tenham causado o sinistro.

Ora, se bem que estejamos ainda em sede de matéria de facto, integradora de uma cláusula contratual, a verdade é que a Relação, na decisão recorrida, na fixação dos conceitos nela utilizados, usou os também usados, em similares expressões, em sentido normativo, sede essa de apreciação por este Supremo.

Sendo também certo que, de acordo com jurisprudência sedimentada deste Supremo Tribunal só a culpa, resultante de infracção de normas legais, constitui matéria de direito, aqui sindicável.
O juízo de causalidade, considerado numa perspectiva meramente naturalística, insere-se no domínio da matéria de facto, aqui não censurável.
Estando, contudo, no âmbito dos poderes aqui vigentes apreciar se a condição de facto, que ficou determinada, constitui ou não causa adequada do evento lesivo.
E, dai que, apurar a dinâmica do evento, ou seja, o percurso do iter causal naturalístico, como desencadeador do resultado lesivo, se situa no domínio da matéria de facto (art. 729.º, nºs 1 e 2 do CPC).
Estando-se perante matéria de direito se necessário for interpretar normas ou conceitos jurídicos.

Assim, apurada que está no acórdão recorrido a culpa do infeliz sinistrado na produção do efeito lesivo, resta aqui interpretar também os conceitos de negligência grave ou de actos temerários, para saber se compete ou não à ré, ocorrido o evento objecto do seguro em causa, pagar o capital coberto.

Sabe-se que na culpa não se verifica a intenção de praticar o acto, não deixando, porém, o comportamento do agente de ser censurável em virtude de ter omitido a diligência a que estava legalmente obrigado.
E o grau de censura será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade da pessoa ter agido de outro modo e mais forte ou intenso for o dever de o ter feito. Perigo iminente exige atenção redobrada, dizem alguns autores (16).

Medindo-se a culpa, segundo consagração do nosso Código Civil, em abstracto, quer no domínio da responsabilidade extracontratual como na contratual (arts 487.º e 799.º, nº 2, ambos do CC), por apelo ao padrão de um sujeito ideal a que os romanos davam a designação de bonus pater famílias, isto é, o tipo de homem médio ou normal que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade.

Sendo certo que este padrão abstracto não deixa de exigir uma análise das circunstâncias do caso, ou seja do condicionalismo da situação.

A propósito do grau de culpabilidade costumam os autores distinguir, dentro da doutrina tradicional, entre culpa lata (grave ou grosseira), culpa leve ou culpa levíssima.
Correspondendo a culpa grave a uma situação de negligência grosseira, em que a conduta do agente só seria susceptível de ser realizada por uma pessoa especialmente negligente, uma vez que a grande maioria das pessoas não procederia da mesma forma.

Sendo a culpa leve a omissão da diligência normal: a conduta do agente não seria susceptível de ser praticada por um homem médio, correspondendo a sua actuação à omissão da diligência do bonus pater famílias.

Correspondendo a culpa levíssima, por seu turno, a omissão de cuidados especiais que só as pessoas muito prudentes e escrupulosas observam (17).

Se bem que a lei civil não distinga estas formas de culpa (18)).., faz-se, por vezes referência à culpa grave, como sucede nos arts 1323.º, nº 4 do CC e no art. 10.º da LULL. A ela aludindo, expressamente, em sede de acidentes laborais o Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Lei 100/97, de 13 de Setembro), nos seus arts 7.º, nº 1, al. b) – exclusão do direito à reparação – e 8.º, nº 2, ao precisar que por negligência grosseira do sinistrado se deve entender “ … o comportamento temerário em acto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.

Correspondendo a negligência grosseira ou a culpa grave a uma conduta altamente reprovável à luz do mais elementar senso comum (19)

Do mesmo modo se concluindo, no tratamento comum das expressões em causa, entendendo-se por negligência grave a falta de cuidado, a incúria, que pode ter consequências fatais (20).
Sendo o acto temerário aquele que é imprudente, que faz correr riscos desnecessários, que é arriscado, perigoso (21).

Ora, a auto-estrada, via com separador central das faixas de rodagem de sentido contrário, sem cruzamentos de nível, própria para circulação rápida e exclusiva de veículos automóveis, não serve para trânsito de peões

Sendo perigosíssima – e toda a gente o sabe, sendo, por isso, um facto notório, que não necessita de alegação e prova (514.º, nº 1 do CPC) – a sua travessia, seja em que condições for, seja qual for a causa, por qualquer peão.

Sendo bem temerária a conduta daquele que, por qualquer razão, se decide a atravessar uma auto-estrada, em desconformidade com todas as regras da prudência, do senso exigível ao mais comum dos mortais.

E, não se diga que, naquele momento a via estava deserta, que nenhum veículo se aproximava, não sendo expectável que qualquer acidente pudesse ocorrer.

Pois que, desde logo, o camião atropelante não poderá ter caído do céu, tendo que rolar, então, na dita via.
Sendo certo que, ao avistar o infeliz peão, travou a fundo, sem que tivesse conseguido, com essa travagem – e não estamos a discutir se podia ou não ter desviado, sabido que não é fácil um pesado fazer tal manobra rápida de recurso – evitar a colisão.
A estrada não poderia sequer estar deserta, para, nessa circunstância extrema, permitir ousar a sua travessia ou melhor, a sua invasão por um qualquer peão.

Com tal conduta, inseriu-a o então segurado na cláusula exclusiva da cobertura pecuniária acordada.

Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2010

Serra Baptista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Bettencourt de Faria
_____________________________

(1) Com a alteração que resultou do acórdão recorrido (p. 312).
(2) O recurso, contrariamente ao que sucedeu na apelação, é apenas intentado pela autora Maria José Leite de Castro (fls 322).
(3) E todos aceitam que a cláusula ora em apreço é uma cláusula contratual geral.
(4) A expressão “determinado” que constava na primitiva redacção de tal nº 3 foi suprimida pelo DL 220/95, de 31 de Agosto.
(5) José Manuel de Araújo Barros, Cláusulas Contratuais Gerais, p. 64.
(6)Ana Prata, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, p. 209.
(7)Almeno de Sá, Cláusulas Contratuais Gerais e Directivas sobre Cláusulas Abusivas, p. 60.
(8)Acs do STJ de 8/4/2010 (Lopes do Rego), Pº 18/4/2006 (Sebastião Póvoas), Pº 06A818 , in www.dgsi.pt e de 2/11/2004 (Afonso Correia), CJ S Ano XII, T. III, p. 104.
(9) Contrato de Seguro, Estudos, p. 83.
(10) Neste mesmo sentido, Acs do STJ de 9/10/2003 (Araújo de Barros), Pº 03B1384, de 24/2/2005
(Araújo de Barros), Pº 04B4826, de 25/5/2006 (Pereira da Silva), Pº 06B1016, de 5/7/2007 (Sebastião Póvoas), Pº 07A2107 e de 24/6/2010 (Bettencourt de Faria), Pº 5611/03.0TVLSB.L1.S1, todos in www.dgsi.pt.
(11) Contra este entendimento, José Manuel Araújo de Barros, ob. cit., p. 64 e Ac. do STJ de 17/10/2006 (Alves Velho), Pº 06A2604, in www.dgsi.pt.
(12) Ob. cit. p, 250.
(13) A. Reis, CPC Anotado, vol. II, p. 356 e A. Varela, Manual do Processo Civil, p. 692.
(14)Citado Ac. de 24/2/2005.
(15) A Relação, na reapreciação da matéria de facto, alterou a resposta que havia sido dada ao quesito 6.º, no sentido de, onde antes constava que o peão sinistrado fez a travessia da faixa de rodagem a caminhar, passar a constar que fez tal travessia a pé. Sendo certo, porém, que o significado da expressão “a pé” é o de “caminhar”, “andar” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, Vol. II, p. 2791.
(16) A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, p. 566.
(17)A. Varela, ob. cit., p. 570, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I,, p. 303 e A. Costa, Direito das Obrigações, p. 372.
(18) Podendo afirmar-se que a culpa leve está fora do conceito de culpa consagrado no citado art. 487.º, nº 2 (Menezes Leitão, ob. cit., p. 304)..
(19) Ac. do STJ de 28/3/2007 (Sousa Grandão), in www.dgsi.pt
(20) Dicionário citado, pags 2585 e 1934 e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores), T- V, pags 2599 e 1920.
(21) Dicionários citados, p. 3534 e T. VI, p.3482, respectivamente.