MATÉRIA DE FACTO
TRABALHO SUPLEMENTAR
ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
Sumário

1. A afirmação de que “frequentemente, o A. entrava ao serviço no Banco do réu por volta das 8h15, saindo depois das 19h00” e que “o A., muitas vezes, não usufruía da hora de almoço a que tinha direito, utilizando-a para concluir mais negócios” integra matéria de facto e, como tal, não pode ser dada como não escrita, ao abrigo do disposto no art.º 646.º, n.º 4, do CPC.
2. Não se considera trabalho suplementar o que é prestado fora do horário de trabalho pelos trabalhadores em regime de regime de isenção de horário de trabalho.
3. E compreende-se que assim seja, uma vez que tais trabalhadores têm direito ao chamado subsídio por isenção de horário de trabalho.
4. Provando-se que, a partir de Outubro de 2001, o autor continuou a trabalhar em regime de isenção de horário de trabalho e que o empregador lhe continuou a pagar o aludido subsídio, integrado, embora, desde então, na retribuição, não tem ele direito à importância reclamada a título de trabalho suplementar ou, em alternativa, a título de subsídio de isenção de horário de trabalho.

Texto Integral




Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório
Na presente acção emergente de contrato individual de trabalho, proposta, em 13 de Novembro de 2007, no Tribunal do Trabalho do Porto, por AA contra o Banco BB, S. A., o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar--lhe a quantia de € 70.397,87, a título de trabalho suplementar por si prestado entre Outubro de 2001 e Novembro de 2006, acrescida de € 12.817,05, a título de juros de mora já vencidos, e, subsidiariamente, pediu que o réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 2.785,09, acrescida de € 1.153,49 de juros de mora já vencidos, pelo facto de, em Outubro de 2001, o réu ter feito cessar o regime de isenção de horário de trabalho em que até aí se encontrava, sem lhe ter dado o aviso prévio de três meses, previsto no n.º 6 da cláusula 54.ª do ACT aplicável à relação laboral em causa.

Em resumo, e em substância, o autor alegou que, desde a sua admissão, em Julho de 1991, até Setembro de 2001, sempre lhe foi pago o subsídio de isenção de horário de trabalho, o qual, desde Janeiro de 1992, correspondia a duas horas de trabalho suplementar, subsídio esse que, em Outubro de 2001, lhe foi unilateralmente e sem aviso prévio retirado pelo réu, sendo que o autor sempre continuou a trabalhar mais de duas horas por dia, para além do seu período normal de trabalho que, nos termos do ACT aplicável, era de 35 horas semanais e de 7 horas por dia, no interesse do Banco e com o conhecimento da sua hierarquia, tendo, por isso, direito a receber a retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar por dia, desde Outubro de 2001 até à data da cessação do contrato, em 23 de Novembro de 2006, ou, o que é o mesmo, ao pagamento do subsídio por isenção de horário de trabalho.

Na contestação, o réu impugnou a prestação de trabalho suplementar por parte do autor e, em resumo, alegou que sempre pagou ao autor a retribuição especial por isenção de horário de trabalho, sucedendo apenas que aquela retribuição passou a ser integrada no retribuição base e no complemento de retribuição, pelo facto de, em Outubro de 2001, o autor ter sido promovido à categoria de subdirector e de, consequentemente, ter passado a exercer funções directivas, sendo que tal integração era comum fazer-se no réu, como era e sempre foi do conhecimento do autor, o qual nunca manifestou qualquer discordância com tal situação, que só o beneficiou – uma vez que integrada na retribuição do nível aquela prestação nunca mais lhe podia ser retirada e passou a ser considerada para o cálculo da pensão de reforma –, antes se tendo com ela conformado durante mais de cinco anos em que ainda trabalhou para o réu, dessa conduta se podendo extrair a conclusão de que o autor renunciara tacitamente à dita retribuição.

E, sem prescindir, o réu alegou que a conduta do autor configurava um caso de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Na resposta à contestação, impugnando o abuso de direito, o autor alegou que, por diversas vezes, tinha questionado a sua Chefia, acerca da retirada da isenção de horário de trabalho, aquando da sua promoção, tendo-lhe esta dito que tal situação iria ser revista e, porque tal situação nunca foi revista, é que ele se recusou a assinar o acordo de isenção de horário de trabalho que constitui o doc. 9, junto com a p. i., no qual se previa expressamente a renúncia ao pagamento da retribuição atinente à dita isenção, renúncia essa que sempre seria nula, face ao disposto nos artigos 4.º, n.º 3 e 256.º, n.º 4, do Código do Trabalho, uma vez que o autor nunca exerceu funções de direcção no sentido que emana da lei (cargos de administração), mas sim funções de gerente, com a categoria de subdirector, acrescendo que o ACT aplicável nem sequer prevê a renúncia ao pagamento do subsídio de isenção de horário de trabalho.

E mais invocou o autor que a alegação feita pelo réu de que a hierarquia desconhecia que ele prestasse trabalho suplementar não pode deixar de ser considerada como sendo de má fé, «como se comprova pelo requerimento de isenção de horário de trabalho apresentado ao Autor, no qual expressamente se refere a necessidade de “prolongar o seu horário para além do período normal de DUAS HORAS em média”, conforme documento que se junta e se considera reproduzido».

Realizado o julgamento, com gravação da prova testemunhal, e decidida a matéria de facto, foi posteriormente proferida sentença, julgando a acção improcedente quanto ao pedido principal e procedente quanto ao pedido subsidiário, tendo condenado o réu a pagar ao autor a quantia de € 2.785,09, a título de incumprimento da cláusula 54.ª, n.º 6, do ACT aplicável à relação laboral em causa.

E, para decidir dessa forma, o M.mo Juiz entendeu, em resumo, o seguinte:
- o autor tinha trabalhado em regime de isenção de horário de trabalho, até Outubro de 2001;
- a partir de Outubro de 2001, o autor deixou de beneficiar daquele regime, passando a estar sujeito ao período normal de trabalho em vigor no respectivo sector;
- ficou provado que, desde Outubro de 2001 até à data da cessação do contrato, o autor tinha prestado trabalho suplementar ao réu, que, como tal, não fora remunerado, não relevando, para esse efeito, o facto do réu ter integrado, na retribuição do nível e no denominado complemento de retribuição, a quantia que até Outubro de 2001 o autor tinha auferido a título de isenção de horário de trabalho, uma vez que tal integração tinha sido efectuada por iniciativa do réu e pelos motivos que bem entendeu;
- todavia, o autor não tem direito à remuneração que lhe seria devida pelo trabalho suplementar prestado a partir de Outubro de 2001, pelo facto da conduta por ele assumida com a presente acção ser contraditória com a que anteriormente havia tido, uma vez que tinha continuado a prestar as suas funções, ao longo de mais cinco anos (de Outubro de 2001 a Novembro de 2006), nos exactos termos em que o fazia anteriormente, apesar da supressão, enquanto tal, da retribuição pela isenção de horário de trabalho, sem ter manifestado, junto dos seus superiores hierárquicos, qualquer desagrado ou oposição pela situação criada a partir de Outubro de 2001, o que só pode significar que a aceitou;
- a pretensão deduzida pelo autor contraria aquela sua anterior conduta e configura um caso de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, o que “afasta o direito do autor receber os montantes correspondentes ao trabalho suplementar por si prestado entre Outubro de 2001 e Novembro de 2006”.

Inconformado com a sentença, na parte em que esta decidiu pela verificação do abuso de direito, o autor interpôs recurso de apelação, arguindo, simultaneamente, a nulidade da sentença, por alegada omissão de pronúncia relativamente ao pedido de condenação do réu no pagamento dos juros de mora.

Na contra-alegação, o réu requereu a ampliação do objecto do recurso, por entender que o M.mo Juiz, ao decidir que o autor tinha prestado efectivamente trabalho suplementar, não fez uma correcta aplicação do direito aos factos provados, pois, como decorre dos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 11 da factualidade assente, pode concluir-se que o réu continuou a pagar ao autor a retribuição especial por isenção de horário de trabalho, muito embora a mesma fosse integrada no complemento de retribuição e na retribuição base, sendo que da conduta do autor se pode e deve extrair a declaração tácita de renúncia àquela retribuição especial, devendo entender-se por isso, que “o Recorrido se manteve a trabalhar no regime de isenção de horário de trabalho, renunciando tacitamente à respectiva retribuição especial, como permitia, expressamente, o artigo 14.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, então, em vigor”.

Conhecendo do recurso e da respectiva ampliação, o Tribunal da Relação do Porto decidiu:
- dar como não escritos, ao abrigo do disposto no art.º 646.º, n.º 4, do CPC, os factos que tinham sido dados como provados sobre os n.os 14 e 15 (e não sobre os n.os 13 e 14, como, por manifesto lapso, se disse no acórdão), cujo teor era o seguinte: “14. Frequentemente o autor entrava ao serviço no Banco da Ré por volta das 8h15, saindo depois das 19h00”; “15. O autor, muitas vezes, não usufruía da hora de almoço a que tinha direito, utilizando-a para concluir mais negócios”;
- e, na sequência de tal eliminação, julgar improcedente o recurso do autor, por não se verificarem os pressupostos factuais que no caso permitiam consubstanciar a existência do direito à remuneração pela prestação de trabalho suplementar;
- julgar prejudicada a ampliação do objecto do recurso;
- julgar procedente a arguida nulidade da sentença e, suprindo-a, condenar o réu a pagar ao autor a quantia de € 1.153,49 a título de juros de mora referentes à quantia de € 2.785,09 que, na sentença, fora condenado a pagar ao autor.

Mantendo o seu inconformismo, no que diz respeito ao mérito da decisão, o autor interpôs recurso de revista e, simultaneamente, arguiu, no requerimento de interposição do recurso, a nulidade do acórdão recorrido, por alegado excesso de pronúncia, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma:
1 - O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente.
2 - Na apelação foram delimitadas duas questões a decidir quanto ao recurso principal: a nulidade da sentença e a inexistência de abuso de direito.
3 - O direito em apreço nos autos, ou mais concretamente a quantificação do trabalho suplementar prestado pelo Autor, não era objecto das conclusões do Recorrente nem uma questão controvertida entre as partes, pelo que estava vedado ao Tribunal da Relação do Porto pronunciar-se sobre a mesma.
4 - O douto Acórdão da Relação do Porto é consequentemente nulo, por força da alínea d) do art. 668.º do C. P. Civil.
5 - Mas o Tribunal da Relação violou também a lei substantiva, por erro de interpretação e aplicação do direito aos factos assentes.
6 - Nos termos do art. 197.º do Código do Trabalho de 2003, considera-se trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho.
7 - Os factos assentes 13 e 14, conjugados com os restantes factos assentes, permitem concluir que o Autor prestou efectivamente trabalho suplementar.
8 - Não podia o Tribunal da Relação considerar como não escrita a materialidade dos factos 13 e 14, porque não se tratam de juízos de valor como ressalta claro quando aqueles factos são conjugados com os factos 16 e 17, como ainda por não ser aplicável, no caso concreto, o disposto no n.º 4 do art. 646.º do C. P. Civil.
9 - Questão distinta da prova do trabalho suplementar é a quantificação das horas prestadas, facto perfeitamente determinado nos autos, porquanto o que o Recorrente reclama é o pagamento de duas horas suplementares por dia, correspondente ao valor do subsídio total de isenção de horário de trabalho.
10 - Valor que o Réu, na contestação e nas alegações de recurso, alega ter já pago ao Autor, integrado na retribuição base e complemento, no período compreendido entre Outubro de 2001 e Novembro de 2006 (Facto assente 11, art. 15.º da contestação, n.º 4 das alegações do Recorrido e Doc. n.º 20 da p. i.).
11 - Alegação que pressupõe o direito do Autor a receber a quantia correspondente, não estando, por isso, em causa nos presentes autos, a quantificação do trabalho suplementar devido.
12 - É o próprio Réu que afirma que o Autor se manteve a trabalhar no regime de isenção de horário de trabalho (ponto 12 das conclusões do Réu no recurso de apelação).
13 - É também o próprio Réu que, no pedido de autorização para aplicação do regime de isenção de horário de trabalho, afirma, em 21 de Outubro de 2001 após ter integrado o subsídio de IHT na retribuição base e complemento, que o Autor, devido às funções que desempenha, é obrigado a prolongar o seu horário para além do período normal de trabalho de duas horas, em média (Doc. n.º 1 junto aos autos em 21 de Maio de 2008).
14 - A factualidade assente e a prova junta aos autos permite concluir que foi prestado trabalho suplementar e qual a quantia devida, pelo mesmo, ao ora Recorrente.
15 - Ao Tribunal da Relação cabia apenas apreciar se se verificava abuso de direito (questão suscitada pelo Réu, o que mais uma vez pressupõe a existência do Direito).
16 - Abuso de direito que, no caso concreto, não se verifica, atento nomeadamente o facto de se tratar de um direito indisponível.
17 - Ao contrário do defendido pelo Recorrido, o Autor não renunciou ao pagamento do subsídio de isenção de horário de trabalho, pelo que lhe é devido o pagamento correspondente a duas horas de trabalho suplementar, conforme decorre do Acordo Colectivo de Trabalho do Sector Bancário e do ACT BCP, cláusulas 54.ª do ACT, 91.ª e, posteriormente, 93.ª do ACT BCP).
18 - Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação do Porto violou as referidas cláusulas do Acordo Colectivo de Trabalho bem como fez uma errada interpretação do art.º 197.º do Código do Trabalho.

O réu contra-alegou e, simultaneamente, requereu a ampliação do objecto do recurso quanto à prestação de trabalho suplementar – nos mesmos termos em que o fizera no recurso de apelação –, e também quanto ao abuso de direito.

Em conferência, o Tribunal da Relação apreciou a arguida nulidade do acórdão, tendo decidido pelo indeferimento da mesma.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta pronunciou-se pela procedência do recurso do autor e pela improcedência da ampliação do objecto do recurso requerida pelo réu, em parecer a que só o réu respondeu, em termos discordantes.

Colhidos os vistos dos juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos dados como provados na 1.ª instância foram os seguintes:
1. O autor (A., de ora em diante) AA celebrou um contrato de trabalho com a ré (R., de ora em diante) Banco BB, S.A., em 5.JAN.92, no qual lhe foi reconhecida a antiguidade reportada a 05.JUL.91, data em que iniciou a sua carreira na denominada N....
2. O referido contrato de trabalho cessou em 22.NOV.06, por iniciativa do A., e cuja denúncia produziu efeitos a partir de 23.NOV.06.
3. As funções exercidas pelo A. foram inicialmente administrativas, posteriormente comerciais, tendo sido promovido sucessivamente a Chefe de Sucursal em Julho de 1998, a Gerente em Novembro de 2000, a Director de Agência em Outubro de 2001 e, finalmente, a Director de Sucursal em Abril de 2005.
4. O A., em Setembro de 2001, tinha a categoria profissional de Gerente com o nível 12, auferindo € 1.296,38 de remuneração de base, € 65,48 de diuturnidades, € 632,48 de retribuição especial por isenção de horário de trabalho e € 246,76 de complemento de retribuição.
5. O A., em Outubro de 2001, tinha a categoria profissional de Subdirector com o nível 13, auferindo € 1.415,59 de remuneração de base, € 65,48 de diuturnidades e € 760,02 de complemento de retribuição.
6. O A., em Novembro de 2001, tinha a categoria profissional de Subdirector com o nível 13, auferindo € 1.415,59 de remuneração de base, € 65,48 de diuturnidades e € 760,02 de complemento de retribuição.
7. O A., em Dezembro de 2001, tinha a categoria profissional de Subdirector com o nível 13, auferindo € 1.415,59 de remuneração de base, € 65,48 de diuturnidades e € 760,02 de complemento de retribuição.
8. O A., em Janeiro de 2002, tinha a categoria profissional de Subdirector com o nível 14, auferindo € 1.946,25 de remuneração de base, € 66,50 de diuturnidades e € 229,36 de complemento de retribuição.
9. O A., em Fevereiro de 2002, tinha a categoria profissional de Subdirector com o nível 14, auferindo € 1.946,25 de remuneração de base, € 66,50 de diuturnidades e € 229,36 de complemento de retribuição.
10. Desde a sua admissão no Banco, em Julho de 1991, até Setembro de 2001 (inclusive), sempre foi pago ao Autor o subsídio de isenção de horário de trabalho, inicialmente correspondente a uma hora (22% da retribuição base e diuturnidades) e, a partir de Janeiro de 1992, correspondente a duas horas (47% - 46,43% da retribuição base e diuturnidades).
11. A partir de Outubro de 2001, sem qualquer aviso prévio, a Ré deixou de pagar ao A. o montante pecuniário que até então lhe pagava a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho, passando a pagar o correspondente montante integrado parcialmente no denominado complemento de retribuição e parcialmente no nível retributivo.
12. O Autor nunca concordou com a retirada do subsídio de isenção de horário de trabalho, não tendo, porém, manifestado tal discordância junto da ré, por modo verbal ou por escrito.
13. O A. não assinou a declaração de isenção, apresentada pela Ré, na qual se previa a renúncia do pagamento da retribuição especial por isenção de horário de trabalho, a qual se reportava à isenção de horário de trabalho de uma hora.
14. Frequentemente o A. entrava ao serviço no banco da Ré por volta das 08h.15m., saindo depois das 19h.00.
15. O A., muitas vezes, não usufruía da hora de almoço a que tinha direito, utilizando-a para concluir mais negócios.
16. Tal aconteceu mesmo depois do referido no ponto 10, em Outubro de 2001, e até à data da sua saída da ré.
17. Só assim não aconteceu nas férias e no único período em que faltou, por doença, durante 15 dias, em Outubro de 2005.
18. Era do conhecimento da sua hierarquia o referido nos pontos 13 e 14 [o M.mo Juiz quis certamente dizer pontos 14 e 15].
19. A Ré não procedeu ao pagamento das horas de trabalho prestadas pelo Autor para além do seu horário de trabalho desde Outubro de 2001 ou, em alternativa, ao pagamento do subsídio de [isenção de] horário de trabalho total que usufruiu até aquela data.
20. A ré não pagou ao A. a retribuição adicional de três meses, nos termos do n.º 6 da Cláusula 54.ª do Acordo Colectivo de Trabalho do Sector Bancário (na redacção publicada no Boletim de Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 31, de 22 de Agosto de 1990), prevista em caso de cessação do regime de isenção de horário de trabalho por iniciativa da entidade empregadora.
21. Em Novembro de 2006, data em que denunciou o contrato de trabalho com a Ré, o Autor encontrava-se ainda inscrito no Sindicato dos Bancários do Norte.
22. Era do conhecimento dos superiores hierárquicos do A. que o mesmo trabalhava frequentemente para além do seu horário normal de trabalho, tal como aqueles sabiam que os balcões de Valongo e de Matosinhos – onde o mesmo prestou serviço - não permitiam que todo o trabalho fosse feito pelo gerente/director de agência apenas durante sete horas diárias.
23. A agência de Matosinhos passou por duas fusões no espaço de pouco mais de um ano (em Maio de 2005, com o encerramento do balcão da N... de …., e outra, em Setembro de 2006, com o encerramento do balcão do B… também da …), passando o volume total de negócios e recursos daquelas agências para o balcão de Matosinhos, chefiado pelo Autor.
24. Tais processos são sempre complicados em termos de organização e gestão, e que foram considerados pela Ré como tendo sido conduzidos com sucesso pelo autor.
25. Não é prática generalizada no sector bancário que um gerente, Director de Agência ou Director de Sucursal cumpra horário de trabalho das 08h.30 às 16h.30, dado que as exigências destas funções comerciais obrigam à ultrapassagem de tal horário, sendo o cumprimento rigoroso daquele horário incompatível com os exigentes objectivos comerciais e concorrenciais que vigoram no sector bancário.
26. Neste sector de actividade não é considerado bom profissional, pelas diversas hierarquias, que um gerente ou um responsável por um balcão cumpra o seu horário ou preste “apenas” sete horas de trabalho por dia.
27. A generalidade das hierarquias do banco Réu (e da banca em geral) não encorajam que se proceda ao registo das horas de trabalho suplementar prestadas, não só pelos gerentes mas por quase todos os elementos dos balcões comerciais, apenas ficando registadas as horas suplementares no caso de haver uma visita surpresa da Inspecção de Trabalho.
28. Em Outubro de 2007, o Autor interpelou a Ré por escrito, a reclamar os valores em dívida, a qual, em resposta veio alegar que não se tinha verificado qualquer perda na retribuição atribuída.

3. O direito
As questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes:
- saber se o acórdão recorrido sofre da nulidade que lhe foi imputada;
- saber se a Relação podia dar como não escritos os n.os 14 e 15 da matéria de facto;
- saber se o autor tem direito à peticionada retribuição a título de trabalho suplementar prestado no período de Outubro de 2001 até 23 de Novembro de 2006.
Por sua vez, as questões colocadas pelo recorrido, no âmbito da ampliação do objecto do recurso por ele requerida, são as seguintes:
- saber se, a partir de Outubro de 2001, o autor continuou a trabalhar em regime de isenção de horário de trabalho, se ele, tacitamente, renunciou à correspondente retribuição especial e se esta lhe continuou a ser paga, integrada, embora, na retribuição base e no complemento de retribuição;
- saber se houve abuso de direito por parte do autor.

Anote-se que não se trata de uma verdadeira ampliação do objecto do recurso, uma vez que as questões referidas não chegaram a ser apreciadas pela Relação – não tendo, por isso, o réu ficado vencido relativamente a elas –, pelo facto do conhecimento das mesmas ter ficado prejudicado pela solução que aquele tribunal deu ao litígio, o que implica que o Supremo delas tenha obrigatoriamente de conhecer, por força do disposto no art.º 726.º, com referência ao art.º 715.º, n.º 2, do CPC, caso se venha a entender, ao contrário do que decidiu a Relação, que o autor tinha prestado trabalho suplementar ao réu, no período de Outubro de 2001 a 23 de Novembro de 2006.

3.1 Da nulidade do acórdão
No requerimento de interposição do recurso, o autor arguiu a nulidade do acórdão recorrido, alegando que o mesmo tinha conhecido da questão atinente à prestação de trabalho suplementar por parte do autor, questão esta que por ele não tinha sido suscitada no recurso de apelação, enfermando, por isso, o aresto em causa do vício previsto no art.º 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Carece, todavia, de razão o recorrente. Vejamos porquê.

Como supra já foi referido, na sentença da 1.ª instância entendeu-se que, a partir de Outubro de 2001, o autor tinha prestado trabalho suplementar ao réu e que esse trabalho não tinha sido remunerado como tal. Mas entendeu-se, também, que o autor não tinha direito à corresponde retribuição, pelo facto da sua conduta configurar um caso de abuso do direito.

O autor recorreu da sentença, arguindo a nulidade da mesma, por omissão de pronúncia no que toca aos juros de mora referentes à quantia que o réu foi condenado a pagar, e questionando o segmento decisório atinente ao abuso de direito.
Como é óbvio, a questão referente à prestação de trabalho suplementar não fazia parte do objecto do recurso interposto pelo autor, sendo certo que a mesma nem podia ter sido por ele suscitada, uma vez que, nessa parte, a sentença lhe tinha sido favorável.

Sucede, porém, que, nas contra-alegações, o réu requereu, ao abrigo do disposto no art.º 684.º-A, n.º 1, do CPC, a ampliação do objecto do recurso no que concerne à prestação do trabalho suplementar, sustentando que o autor sempre tinha trabalhado em regime de isenção de horário de trabalho e sempre tinha recebido a retribuição especial correspondente a esse regime, integrada embora na retribuição base e no complemento de retribuição.

Ao apreciar a questão referente ao abuso de direito, a Relação levou em consideração a referida ampliação e foi nesse contexto que veio a dar como não escritos os n.os 14 e 15 da matéria de facto dada como provada e, em consequência disso, a dar por não verificada a prestação do trabalho suplementar.

Deste modo, é por demais evidente que a Relação tinha total legitimidade para conhecer da mencionada questão, uma vez que o objecto do recurso abrangia não só as questões suscitadas pelo autor, mas também a que pelo réu tinha sido colocada na aludida ampliação.

Indefere-se, por isso, a arguida nulidade do acórdão.

3.2 Da eliminação dos n.os 14 e 15 da matéria de facto
Como supra já foi dito, a Relação deu como não escritos os n.os 14 e 15 (recorde-se que os factos dados como não escritos pela Relação correspondem aos n.os 14 e 15 e não aos n.os 13 e 14, como por manifesto lapso se disse no acórdão recorrido) da matéria de facto dada como provada na 1.ª instância, cujo teor era o seguinte:
“14. Frequentemente o A. entrava ao serviço no banco da Ré por volta das 08h.15m., saindo depois das 19h.00.
15. O A., muitas vezes, não usufruía da hora de almoço a que tinha direito, utilizando-a para concluir mais negócios.”

E fê-lo por ter considerado que os factos em questão se traduziam em “juízos de valor e conclusões sem o concreto suporte factual, ou seja, sem indicação dos concretos dias e em que prestou trabalho para além da omissão da indicação das horas efectiva e discriminadamente prestadas fora do horário, com referência a cada dia”, sendo que “só com a alegação e prova do concreto suporte fáctico, se pode perfectibilizar a existência do direito, em sede de acção declarativa, de molde a relegar, depois, para oportuno incidente a respectiva liquidação, art. 661º/2 do CPCivil”.

O autor discorda do assim decidido pela Relação e fá-lo com inteira razão, uma vez que o teor dos n.os 14 e 15 nada tem de valorativo ou de conclusivo.

Na verdade, ao afirmar que era frequente o autor entrar ao serviço por volta das 8h15 e sair depois das 19h00 e que, muitas vezes, ele não usufruía da hora de almoço a que tinha direito, utilizando-a para concluir mais negócios, o tribunal não está a emitir qualquer juízo de valor nem a extrair qualquer conclusão. Tal afirmação reporta-se indiscutivelmente a acontecimentos do mundo exterior, da realidade empírica-sensível, directamente captáveis pelas percepções do homem, ex propriis sensibus, visus et audictus (A. Varela e outros, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 407).

Julga-se, por isso, procedente o recurso, nesta parte, com a consequente reposição dos n.os 14 e 15 no elenco dos factos provados.

3.3 Do trabalho suplementar prestado, desde Outubro de 2001 até 23 de Novembro de 2006, e do direito do autor à respectiva retribuição
Para ajuizar das questões em referência há que ter em conta os dispositivos legais que, durante o período em causa, regularam a prestação do trabalho suplementar, a saber:
- até 1 de Dezembro de 2003, o disposto no Decreto-Lei n.º Decreto-Lei n.º 421/83, de 2/12:
- a partir de 1 de Dezembro de 2003, o disposto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto (CT/2003).

Ora, quer à luz do Decreto-Lei n.º 421/83, quer à luz do CT/2003, considera-se trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho (art.º 2.º, n.º 1, do D.L. n.º 312/83 e art.º 197.º, n.º 1, do C.T.).

A matéria de facto provada é omissa acerca do horário de trabalho praticado pelo autor, mas sabemos que, nos termos das convenções colectivas aplicáveis ao caso (que até 1.1.2002 foi o ACT para o sector bancário publicado no BTE, 1.ª série, n.º 31, de 22.8.90, e que, depois de 1.1.2002, passou a ser o ACT celebrado entre o Banco BB, S. A. e outros e o Sindicato dos Bancários do Norte e outros publicado no BTE, 1.ª Série, n.º 48, de 29.12.2001), o período normal de trabalho diário era de 7 horas (cláusula 50.ª, n.º 1, do ACT/90 e cláusula 46.ª, n.º 1, do ACT/2001), o que nos permite concluir, face ao teor dos n.os 14 e 15 da matéria de facto, que o autor trabalhou, frequentemente, mais de 7 horas por dia, pois provado ficou que entrava frequentemente ao serviço cerca das 8h15 e saía depois das 19h00, não usufruindo muitas vezes da hora de almoço e que tal sucedeu mesmo depois de Outubro de 2001 e até à data da cessação do contrato em 23 de Novembro de 2006 (factos n.os 2 e 16), o que vale por dizer que o autor prestou trabalho suplementar ao réu, no período de Outubro de 2001 até 23 de Novembro de 2006.

Não se apurou, é certo, qual foi o número de horas de trabalho suplementar que o autor efectivamente prestou, mas tal apuro pode ser efectuado em fase posterior à sentença, nos termos do art.º 661.º, n.º 2, do CPC.

Ajuizada que ficou a questão referente à prestação de trabalho suplementar, o que, agora, importa averiguar é se o autor tem direito a receber do réu a quantia por ele peticionada a título do trabalho suplementar prestado, desde Outubro de 2001 até à data da cessação do contrato.

A resolução desta questão tem de ser, todavia, equacionada com a questão que, desde a contestação, vem sendo colocada pelo réu, qual seja a de que, naquele período temporal, o autor tinha continuado a trabalhar no regime de isenção de horário de trabalho.

Com efeito, a ser verdadeira a tese do réu, o trabalho prestado pelo autor para além do seu período normal de trabalho deixa de ser considerado como trabalho suplementar, face ao disposto no art.º 2.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 421/83 e ao disposto no art.º 197.º, n.º 4, alínea a), do CT/2003, nos termos dos quais “[n]ão se compreende na noção de trabalho suplementar: a) O trabalho prestado por trabalhadores isentos de horário de trabalho em dia normal de trabalho”.

E compreende-se que assim seja, uma vez que o trabalho prestado em regime de isenção de horário de trabalho confere ao trabalhador o direito a uma retribuição especial que, nos termos do art.º 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27/9, e do art.º 256.º, n.º 3, do CT/2003 não podia ser “inferior à remuneração correspondente a uma hora de trabalho extraordinário por dia”.

Da matéria de facto (facto n.º 10) resulta que o autor trabalhou em regime de isenção de horário de trabalho, até Outubro de 2001, mas o mesmo já não acontece no que toca ao período posterior.

Sucede, porém, que, nas alegações do recurso, o autor reconhece que se manteve a trabalhar no regime de isenção de horário de trabalho, sendo que o documento por ele junto, com o n.º 1, na resposta à contestação, e que não foi objecto de impugnação por parte do réu, faz prova plena de que esse era de facto o regime de trabalho do autor (trata-se de um requerimento subscrito pelo réu e pelo autor, dirigido à Delegação do Porto do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho, com data de 11 de Outubro de 2001, requerendo a concessão da isenção de horário de trabalho, que por aquele organismo foi deferido em 25.10.2001, como do despacho nele aposto se constata).

E, sendo assim, é óbvio que o autor não tem direito ao trabalho suplementar por si prestado, pois apenas tinha direito ao chamado subsídio por isenção de horário de trabalho, que é aquilo que ele realmente acaba por pedir na presente acção.

Tal subsídio encontra-se, todavia, já pago, como decorre do teor do facto n.º 11.

Efectivamente, interpretando devidamente aquele facto, dele se depreende que, a partir de Outubro de 2001, o subsídio por isenção de horário de trabalho deixou de ser processado como tal e passou a ser pago em parte como retribuição e em parte como complemento de retribuição.

Na verdade, outro não pode ser o sentido a extrair do facto n.º 11. Sob pena de contradição entre os seus termos, a expressão “a Ré deixou de pagar” contida no n.º 11 só pode ser entendida com o sentido de que a ré deixou de processar autonomamente o subsídio de isenção de horário de trabalho, como – a fazer fé nos recibos de vencimento juntos aos autos –teria feito até Outubro de 2001.

E o mesmo se diga do teor do facto n.º 19, onde se deu como provado que a ré não procedeu ao pagamento das horas de trabalho suplementar prestadas pelo autor desde Outubro de 2001, nem, em alternativa, ao pagamento do subsídio de isenção de horário de trabalho, pois também aqui a expressão não procedeu ao pagamento, no que ao subsídio de isenção de horário de trabalho diz respeito, só pode ter o sentido de que tal subsídio não foi processado como tal.

E nem se diga, como faz o autor, que a integração do aludido subsídio, na retribuição, foi um expediente utilizado pelo réu para o ter promovido sem custos acrescidos, pois, ainda que assim fosse, tal não se mostra ilegal, uma vez o autor não alega que a retribuição por si auferida após a promoção, deduzida do montante que vinha auferindo a título de subsídio por isenção de horário de trabalho, era inferior à prevista, no ACT aplicável, para o nível salarial da categoria a que fora promovido.

Improcede, pois, o recurso, nesta parte, ficando, por via disso, prejudicado o conhecimento da questão do abuso de direito.

Aqui chegados, poderia questionar-se se a condenação do réu no que toca ao pedido subsidiário seria de manter, mas a verdade é que tal decisão nunca foi impugnada pelo réu, mostrando-se, por isso, transitada em julgado.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista e manter a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação.
Custas pelo autor.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2010

Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol