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ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CONDUÇÃO DE ANIMAL
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Sumário
I - Mostrando-se provados, entre outros, os seguintes factos “No dia … ocorreu um acidente de viação consubstanciado num atropelamento, ao Km 75,360 da estrada nacional n.º …, em que foi interveniente o veículo ligeiro de mercadorias, marca…. Este seguia no sentido de trânsito …, na hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha, transportando na caixa do veículo duas paletes com 160 blocos de cimento, a uma velocidade aproximada de 38,5Km/h. A faixa de rodagem ao Km 75 apresenta-se como uma recta, a que se segue uma curva com pouca visibilidade, tem 6,20 metros de largura, sendo constituída por uma via de trânsito no sentido em que o arguido transitava, e uma via no sentido oposto, delimitadas, naquele local, por marcas rodoviárias constituídas por uma linha longitudinal de cor branca, marcada no pavimento e bem visível. Naquele local e no momento do acidente, a visibilidade não era superior a 25 metros. Naquele troço, o pavimento é asfaltado e, no momento do acidente, estava seco e em bom estado de conservação. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, M encontrava-se a atravessar a estrada, já a meio da faixa de rodagem reservada à circulação de veículos em sentido contrário, circulando da esquerda para a direita. Ao chegar ao Km 75 o arguido foi surpreendido pelo surgimento repentino de animais de raça caprina, em número não concretamente determinado, que invadiram cerca de 1,5 a 2 metros da faixa de rodagem onde aquele seguia. Tais animais vinham de um carreiro em terra batida, com inclinação descendente, que desemboca directamente na estradam, encontrando-se tal carreiro, à data dos facto, tapado por pedras e arvoredo para quem circulava no sentido de trânsito do arguido. Dirigiam-se os animais à berma da hemi-faixa de rodagem contrária, no sentido …, que coincide, aproximadamente, com o fim do caminho por onde surgiram. M tomava conta dos animais. Naquele local não existe qualquer sinalização de perigo para os condutores. O arguido, para não atropelar os animais, guinou o volante para a esquerda, perdendo o controlo do veículo, transpondo a linha contínua e invadindo a via de trânsito reservada à circulação em sentido contrário. Acto contínuo, embateu com a parte da frente do seu veículo, a meio, no corpo de M, projectando-a para a berma da via de trânsito no sentido …, continuou a sua marcha, invadiu essa berma esquerda e caiu numa ribanceira com cerca de 100 metros de altura M apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,81g/l”. II - Contrariamente ao referido no acórdão recorrido [do Tribunal da Relação que considerou o arguido o único responsável pelo embate, revogando a decisão de 1.ª instância, de absolvição], o comportamento da vítima também concorreu para a ocorrência do acidente, numa proporção que se fixa em 25% das responsabilidades no sinistro, já que competia a M impedir a entrada dos animais na via pública, enquanto não se tivesse assegurado de que tal não representaria perigo para o trânsito (art. 97.º, n.º 1, do CEst), não tendo sido este o caso, porque os animais de facto surgiram na frente do veículo e repentinamente. III - Quanto ao comportamento do arguido, em relação à «manobra de esquiva», o mesmo, surpreendido com o aparecimento dos animais, não deveria ter guinado para a esquerda para não atropelar os animais; a perícia exigida pela condução não se compadece com «reacções espontâneas e instintivas» que se revelam claramente precipitadas, com consequências bem mais gravosas do que as que ocorreriam se tivessem sido omitidas. IV - O condutor circulava com um traço contínuo à sua esquerda, conduzia um veículo com notório excesso de carga, o que tornava arriscada qualquer mudança de direcção brusca e não deveria invadir a faixa contrária àquela por onde circulava sem se aperceber minimamente se aí havia trânsito ou aí estava alguém, como efectivamente não viu, e ainda que do facto resultasse o atropelamento de um ou outro animal. V - Também não pode subestimar-se o excesso de peso no veículo pois não fora esse excesso e o arguido ou teria travado e imobilizado o veículo, ou não teria perdido o controlo deste, como perdeu, ao desviar-se.
Texto Integral
AA, casado, empreiteiro, nascido em 28 de Maio de 1950, na freguesia e concelho de ..., onde reside na Rua ..., foi julgado nos autos de processo comum n° 81/04.8GACDR no Tribunal Judicial de ..., por ter sido acusado da prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punível pelo artigo 137.° n.° 1, com referência ao artigo 15.° do Código Penal, e pelas contra-ordenações estradais previstas nas disposições conjugadas dos artigos 13.° n.°s 1 e 3, 17.° n.°s 1 e 2, 23.°, 24.° n.°s 1 e 3, 25.° n.° 1 alínea f) e n.° 2 e 146.° alíneas d) e j) do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.° 44/2005 de 23 de Fevereiro, e actualmente previstas nas disposições conjugadas dos artigos 13.° n.°s 1 e 3, 17.° n.°s 1 e 2, 19.°, 24.° n.°s 1 e 3, 25.° n.° 1 alínea f) e n.° 2 e 146.° n.° 1 alínea o), todos do Código da Estrada.
Os cinco herdeiros habilitados de BB, CC, DD, EE, FF e GG deduziram pedido cível, a 28/9/2007 (fls. 215), contra a Companhia de Seguros "G... -Companhia de Seguros, S.P.A." no montante global de € 67.500,00 pedido notificado por carta registada emitida a 2/4/2008 (fls. 282).
O arguido foi absolvido da prática do crime e contra-ordenações em referência e o pedido de indemnização deduzido contra a Companhia de Seguros demandada considerado improcedente.
O Mº Pº conformou-se com o decidido, mas, insatisfeitos, os demandantes civis recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, que decidiu conceder provimento ao recurso. Consequentemente, ordenou que se retirasse o seguinte facto da matéria considerada provada: "BB não assinalou a entrada dos animais na faixa de rodagem".
Mais se considerou o arguido condutor do veículo como o único responsável pelo embate e morte da vítima, e assim a seguradora demandada ficou condenada nos montantes peticionados pelos assistentes a título de indemnização, vencendo juros de mora a contar da data deste acórdão, à taxa legal de 4%, até efectivo e integral pagamento. A saber, € 5 000€ (cinco mil), pelo dano sofrido pela vítima antes de morrer, € 25 000€ (vinte e cinco mil) pelo dano morte da vítima, e € 7 500€ (sete mil e quinhentos) pelo dano sofrido por cada um dos filhos da vítima.
Inconformada, a Companhia de Seguros "G... -Companhia de Seguros, S.P.A." interpôs recurso para este Supremo Tribunal a 28/5/2010 (fls.598).
A - DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÃNCIA
Retira-se da decisão absolutória de primeira instância a seguinte factualidade dada por provada e por não provada:
“ Factos Provados:
1. No dia 04 de Maio de 2004, cerca das 14 horas e 35 minutos, ocorreu um acidente de viação, consubstanciado num atropelamento, ao km 75,360 da estrada nacional n.° 225, freguesia de S. Joaninho, concelho de ..., em que foi interveniente o veículo ligeiro de mercadorias, marca Bedford, modelo NKR 575/35, com a matrícula LQ-...-..., propriedade e conduzido por AA.
2. Este seguia na estrada referida em 01), no sentido de trânsito ... -..., na hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha, transportando na caixa do veículo duas paletes com 160 blocos de cimento, a uma velocidade aproximada de 38,5 Km/hora.
3. A faixa de rodagem ao km 75 da estrada nacional n.° 225 apresenta-se como uma recta, a que se segue uma curva com pouca visibilidade, tem 6,20 metros de largura, sendo constituída por uma via de trânsito no sentido ... - ... e uma via no sentido oposto, delimitadas, naquele local, por marcas rodoviárias constituídas por uma linha longitudinal continua de cor branca, marcada no pavimento e bem visível.
4. Naquele local, e no momento do acidente, a visibilidade não era superior a 25 metros.
5. Naquele troço, o pavimento é asfaltado e, no momento do acidente, estava seco e em bom estado de conservação.
6. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 01), BB encontrava-se a atravessar a estrada, já a meio da faixa de rodagem reservada à circulação de veículos em sentido contrário, circulando da esquerda para a direita.
7. Ao chegar ao km 75 da estrada referida em 01), AA foi surpreendido pelo surgimento repentino de animais de raça caprina, em número não concretamente determinado, que invadiram cerca de 1, 5 a 2 metros da faixa de rodagem onde aquele seguia.
8. Tais animais vinham de um carreiro em terra batida, com inclinação descendente, que desemboca directamente na estrada, encontrando-se tal carreiro, à data dos factos, tapado por pedras e arvoredo para quem circula no sentido de trânsito ... - ....
9. Dirigiam-se os animais à berma da hemi-faixa de rodagem contrária, no sentido de trânsito ... - ..., que coincide, aproximadamente, com o fim do caminho por onde surgiram.
10. BB tomava conta dos ditos animais nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 01).
11. Naquele local, não existe qualquer sinalização de perigo para os condutores.
12. AA, para não atropelar os animais, guinou o volante para a esquerda, perdendo o controlo do veículo, transpondo a linha contínua e invadindo a via de trânsito reservada à circulação em sentido contrário.
13. Acto contínuo, embateu com a parte da frente do seu veículo, a meio, no corpo de BB, projectando-a para a berma esquerda da via de trânsito no sentido ... - ..., continuou a sua marcha, invadiu essa berma esquerda e caiu numa ribanceira com cerca de 100 metros de altura.
14. AA não se apercebeu de que BB se encontrava na faixa de rodagem destinado ao trânsito em sentido contrário ao seu.
15. Como consequência directa e necessária do embate frontal, resultaram para BB lesões consistentes em edema encefálico difuso, laceração do pericárdio e da aorta torácica e da pleura, hemotorax, contusão do coração, zonas de contusão pulmonar, hemoperitoneu, laceração do fígado e do baço, fractura das apófises transversas das vértebras, das costelas e da bacia e fractura do membro inferior direito, tendo a sua morte sido devida às lesões traumáticas torácicas e abdominais descritas, as quais constituem causa adequada da morte.
16. BB apresentava, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 01), uma taxa de álcool no sangue de 1,81g/litro.
17. BB não assinalou a entrada dos animais na faixa de rodagem.
18. O pavimento onde ocorreu o acidente não apresentava marcas ou vestígios de travagem.
Mais se provou que:
19. O veículo conduzido por AA tem um peso bruto de 3.500kg e a tara do veículo é de 2.350kg.
20. Transportava uma carga de cerca de 3.000kg.
21. AA aufere um salário mensal entre € 500,00 e € 600,00.
22. A esposa ganha cerca de € 5,00 por dia.
23. Vivem em casa própria.
24. Tem duas filhas, de 23 e 18 anos, estando esta a seu cargo.
25. Tem o 4.° ano de escolaridade.
26. É pessoa bem considerada no meio onde vive.
27. É titular de carta de condução há cerca de 20 anos.
28. É proprietário do veículo referido em 01) há 19 anos.
29. Não tem antecedentes criminais.
30. Não tem antecedentes contra-ordenacionais.
31. BB deixou como herdeiros os seus filhos CC, DD, EE, FF e GG.
32. AA celebrara contrato de seguro através da apólice n.° 008410095498 com a companhia "G... - Companhia de Seguros, S.P.A." relativamente ao veículo tripulado por aquele.
33. À data do acidente, BB tinha 58 anos de idade.
34. CC, DD, EE, FF e GG sofreram com a morte da mãe.
35. Existiam laços de união, amor e carinho entre todos.
*
Factos não provados:
Não se provaram todos os factos que não se compaginam com a factualidade supra descrita, designadamente:
A. Que AA conduzia o seu veículo a uma velocidade superior a 50 km/hora.
B. Que o embate ficou a dever-se à velocidade excessiva que AA imprimia ao seu veículo.
C. Que podia prever as consequências - produção do resultado morte dos utentes da via pública onde circulava - que poderiam advir da sua condução.
D. Que circulava com absoluta imprudência e falta de cuidado.
E. Que omitiu os deveres de diligência e de cuidado a que era obrigado e de que era capaz, segundo as circunstâncias, os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, de forma a evitar a produção do resultado morte de outros utentes da via pública em que circulava.
F. Que durante o período de tempo que permaneceu viva após o atropelamento, BB sofreu fortes dores.
G. Que BB gozava de boa saúde.
H. Que CC, DD, EE, FF e GG vinham a Portugal passar férias com a mãe.
I. Que estes também providenciavam para que a mãe passasse períodos da sua vida em França e em Armação de Pêra com os filhos.
J. Que CC, DD, EE, FF e GG perderam todo o entusiasmo em vir passar as férias à casa paterna.”
B - DECISÃO RECORRIDA
Na decisão recorrida apresentou-se, entre o mais, a seguinte fundamentação:
Reportando-se inicialmente à posição assumida pela primeira instância, transcreveu-se da sentença aí lavrada:
" Mas não cremos que esse resultado morte seja consequência da omissão, por parte de AA, dos deveres de cuidado e diligência que se lhe impunham naquelas circunstâncias.
Resultou provado nos autos que o Arguido conduzia numa estrada nacional à velocidade de 38,5Km/hora. De forma alguma se pode pretender estabelecer uma qualquer conexão entre esta velocidade e o atropelamento [cfr. 01) e 02) dos factos provados].
Resumindo, não podemos imputar ao Arguido qualquer violação das regras estradais atinentes à velocidade.
Também não dispomos de quaisquer elementos ou indícios que nos permitam dizer que o Arguido conduzia distraído, como sejam, a falar ao telemóvel, a ler ou a mexer no rádio, que estivesse cansado, ou que conduzisse com sonolência e que tivesse adormecido por breves instantes.
É verdade que a viatura conduzida pelo Arguido ia carregada com 160 blocos de cimento. Assim, o Arguido circulava com uma carga acima do que lhe era permitido por lei - cfr. artigo 57.° do Código da Estrada.
Temos, então, uma contra-ordenação que, em abstracto, poderia funcionar como a chave que desvenda o mistério, a causa do acidente.
Só o facto de estarmos perante uma contra-ordenação gera uma presunção - ilidível, claro está, ou seja, presunção iuris tantum quanto à causa do acidente. De resto, não basta a verificação de uma contra-ordenação. "Não pode prescindir-se da existência do nexo de causalidade entre a embriaguez do condutor e a ocorrência do acidente" - acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Novembro de 2008, www.dgsi.pt. No caso dos autos, a infracção imputada ao Arguido não é a condução em estado de embriaguez, mas sim a condução com carga excessiva, mas o princípio é igualmente válido.
De qualquer modo, o que releva para a decisão a tomar é que o facto de o Arguido conduzir com o veículo carregado não dispensa a prova do nexo de causalidade entre essa carga e o atropelamento.
Constituiu a carga do veículo conduzido pelo Arguido "conditio sine qua non" da morte de BB? Está provado, sem margem para qualquer dúvida, que, se o Arguido conduzisse sem carga, não teria havido atropelamento? Não está.
O que está demonstrado é que a verdadeira causa do acidente foi, na verdade, o surgimento repentino das cabras, em plena faixa de rodagem, invadindo-a, vindas dum carreiro onde não podiam ser avistadas, estando o veículo a cerca de um metro de distância, conjugado com a travessia inesperada de BB da faixa de rodagem numa curva de visibilidade reduzida.
Dir-se-á que o Arguido deveria ter travado ou até ferido ou matado uma cabra, porque tal seria preferível á morte de um peão.
Mas, de facto, não é assim.
Em primeiro lugar porque, como já se disse supra, há um instinto natural, espontâneo e, como todos os instintos, incontrolável, do ser humano em se desviar dos obstáculos repentinos.
Instinto é "impulso espontâneo independente de reflexão"," Tendência", "aptidão inata" -www.priberam.sapo.pt.
Portanto, o guinar para a esquerda efectuado pelo Arguido, foi uma conduta natural e inconsciente, a chamada "manobra evasiva".
Repare-se que tudo se passa numa fracção de segundos. Não estamos a falar de uma situação em que o ser humano tem segundos para ponderar a situação e realizar uma acção consciente.
Em segundo lugar, a questão de optar por travar ou matar uma pessoa não pode, de todo, ser colocada nesses termos.
Na verdade, quando o Arguido foi surpreendido pelas cabras em plena via, o raciocínio instantâneo foi o de delas se desviar para não as ferir, sem mais. Como faz qualquer um de nós quando surge um animal ou um buraco na estrada.
O Arguido não sabia que havia um peão no meio da faixa de rodagem contrária - não o tinha visto; e assim o quadro factual com que se deparou foi ou atropelar as cabras ou desviar-se delas invadindo a faixa de rodagem contrária, sem danos para ninguém - tanto mais que nem sequer circulavam veículos em sentido contrário ao seu.
Tudo visto e ponderado, será que nestas circunstâncias, alguma vez este condutor poderia ter previsto que, com a sua acção poderia matar uma pessoa?
Claro que não. Repare-se que estava fora duma localidade; nem sequer existem bermas a marginar a totalidade desta estrada nacional; não existem quaisquer passadeiras para atravessamento de peões, nem sequer sinalização de perigo; não sinalizou a falecida BB, seja por que modo fosse, a travessia das cabras indiferente ao seu percurso, criando, ela sim, grandes perigos para todos os condutores que, naquela hora circulavam por aquele locai.
A conduta de BB é que foi temerária, podendo ter originado graves acidentes.
Já se sabe que levava carga a mais, mas justamente por isso circulava a 38 km/hora e, com toda a probabilidade, nada teria acontecido naquele curva se não fosse o cruzamento com BB e as suas cabras.
Exercia BB a sua actividade de pastorícia em perfeito estado de embriaguez. Perguntamos: se um condutor não está em condições de conduzir um veículo, com ou sem motor, com 1,20g/l de sangue, estará uma pastora em condições de conduzir um rebanho em plena travessia duma estrada nacional? Cremos que não.
Pelo exposto, não estava o Arguido AA em condições de prever tal cenário, nem isso, na realidade, lhe era exigível, à luz das circunstâncias do caso concreto. Por um lado, não podia prever que do carreiro da direita iam saltar cabras para a sua faixa de rodagem e, em segundo lugar que, aliado a isto, vinha uma peão a atravessar a estrada em cima de uma curva, fora da localidade e onde não há qualquer passadeira.
Nos termos do artigo 99.° do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-lei n.° 114/94 de 03 de Maio, ora aplicável, os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas (n.° 1).
A situação dos autos, traduz-se na ocorrência de um lamentável atropelamento, que ocorreu na faixa de rodagem contrária à que o Arguido circulava, na sequência da travessia, pelo peão, daquela estrada nacional.
Todavia, como resulta nítido da prova produzida e da matéria de facto como provada, tal sinistro ocorre em virtude da conjugação de duas faltas: a entrada dos animais de que BB tomava conta na hemifaixa do Arguido e, contrariamente à normalidade do acontecer comum, sem qualquer explicação ou razão plausível, a travessia daquela da esquerda para a direita, sem condições de segurança, sem se certificar das consequências que daí poderiam advir por ser em cima de uma curva, estar a caminhar na direcção do veículo do Arguido e estar embriagada, sem capacidade - ou com capacidade diminuída - para reagir a tempo.
Convém realçar, os peões não podem "deambular" na estrada e não é exigível aos condutores que prevejam, em cada minuto, a imprevidência dos demais utentes da via pública.
Sem previsibilidade não há culpa.
Que estas duas faltas constituem a "conditio sine qua non" do acidente, o Tribunal não tem dúvidas.
Em suma, o acidente de viação tratado nestes autos deveu-se a culpa única e exclusiva da falecida BB, a qual violou claramente o disposto no artigo 97.° n°s 1, 3, 5 e 6 e 99.° n.°s 1 e 2 do Código da Estrada vigente à data dos factos".
O acórdão recorrido acrescenta ainda o passo da decisão de primeira instância seguinte:
" Motivação:
Para esta credibilidade contribui decisivamente o facto de se encontrar comprovado cientificamente que o primeiro instinto do ser humano quando se depara abruptamente com um obstáculo à sua frente é dele se desviar - o que se verificou no caso concreto, pois que o Arguido, para se desviar dos animais, guinou instintivamente para a esquerda (uma vez que provinham da direita), justamente, para contornar o obstáculo.
Trata-se, como diz o relatório pericial, de uma manobra evasiva.
Está ainda o Tribunal convicto de que o Arguido não avistou as cabras a provirem do carreiro do lado direito, nem a falecida BB a caminhar na faixa contrária.
Em primeiro lugar, porque a atitude normal e recomendável de qualquer condutor não é a de conduzir a olhar para os lados - para as serras e carreiros com receio de que venha de lá alguma cabra desgarrada, mas sim para a frente, para a sua faixa de rodagem.
Em segundo lugar, o dito carreiro está tapado por pedras e arvoredo, logo, não é razoável exigir ao Arguido que visse o que por lá circula - além de que, qualquer pessoa, ainda que tivesse visto as cabras, suporia, com razão, que estavam controladas por um pastor e que parariam no fim do caminho.
Em terceiro lugar, é bastante razoável a hipótese de o Arguido não ter visto a falecida BB na faixa contrária, uma vez que estamos a falar de um local com pouca visibilidade, em cima de uma curva fechada, que diminui bastante a percepção de que se passa mais à frente (cfr. fls. 117 do mencionado relatório pericial).
Há que conjugar este dado com um outro que nos ressaltou nesta nova análise da questão: ao contrário do que considerámos, o relatório diz que a vítima vinha da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do Arguido - ou seja, a vítima é que caminhava na direcção do veículo. Não foi o veículo que apanhou de costas a vítima, mas esta é que veio a atravessar a hemifaixa da esquerda, em cima ou antes da curva - atento o sentido .../....
É verdade que é um comportamento bizarro da vítima, desconhecendo-se qual a intenção, mas também não se pode olvidar que aquela estava notoriamente embriagada.
Por outro lado, quando um condutor está a descrever uma curva perigosa, naturalmente, não está atento ao que se passa dos lados, mas sim à sua faixa de rodagem, tanto mais que o Arguido circulava com carga pesada o que exige atenção redobrada na descrição da curva. E justamente por isso circulava a uma velocidade de 38 km/hora.
Também não podemos olvidar que o Arguido foi surpreendido pelas cabras logo no início da curva, pelo que também não é razoável supor que, nestas condições, o condutor fosse olhar para a sua esquerda, a ver se ia lá alguém, pois não se espera que venha um peão a atravessar uma estrada nacional, naquelas condições, muito menos em cima de uma curva. Mais uma vez anota-se que quem inicia a curva não vê o final da curva, muito menos, no lado da hemifaixa contrária, donde provinha o peão. Que BB não assinalou a entrada dos animais na faixa de rodagem resulta das declarações do Arguido, que nem sequer a viu, e do depoimento da testemunha A...S..., pois nenhuns vestígios dessa sinalização foram encontrados" (negrito do relator da decisão da Relação)
Rebatendo estes pontos de vista disse o acórdão recorrido:
“6. Em primeiro lugar, afiguram-se inusitadas as afirmações sobre a presença e a forma ou razão de a vítima estar na faixa de rodagem onde foi colhida pelo veículo.
É verdade que o local da via onde a vítima foi colhida pelo veículo, se situa fora de uma localidade; não existe no local passadeira para peões (!) e que estes não podem deambular, sem mais, na via.
Mas também é verdade que a vítima não deambulava na estrada. A sua presença no local estava mais que justificada, como o próprio tribunal reconheceu: a vítima era a pastora daquele gado caprino que atravessava a via.
E como pastora, tudo o indica, a mesma encontrava-se, na altura do embate, sensivelmente a meio da faixa de rodagem em sentido contrário ao do veículo, exactamente porque estaria preocupada em orientar a travessia do gado.
Pelo que, não temos para nós como um comportamento "bizarro" - como qualificado pelo tribunal a quo -, o facto de a vítima se encontrar no meio da faixa de rodagem, caminhando mesmo na direcção dos animais que já se encontravam na via por onde circulava o arguido. Esta conduta revela, repete-se, que a vítima tinha noção que alguns animais já se encontravam na via, que o veículo se aproximava do local e que existia algum risco na travessia dos animais.
Contrariamente ao interpretado pela 1a instância, a experiência diz-nos que esta poderá ser uma atitude normal de um pastor, no sentido de ou sinalizar ou controlar melhor a travessia dos animais.
Repare-se que a vítima estava, de todo o modo, na faixa de rodagem contrária à circulação do veículo, virada de frente para os animais e para a faixa por onde circulava aquele; a meio desta, logo, não invadindo a faixa por onde circulava o veículo; num momento em que não circulava qualquer veículo por essa mesma faixa, ou seja, em sentido contrário ao do arguido.
De onde resulta e é legítimo concluir, que para a vítima, não seria de esperar, em concreto, qualquer perigo, nomeadamente o vir a ser atropelada pelo veículo que transitava na outra faixa de rodagem!
E fazemos aqui um parêntesis para anotar sobre esta matéria, mais uma afirmação temerária do tribunal a quo ao referir a fls. 411 (1) o seguinte:
" Há que conjugar este dado com um outro que nos ressaltou nesta nova análise da questão: ao contrário do que considerámos, o relatório diz que a vítima vinha da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do Arguido - ou seja, a vítima é que caminhava na direcção do veículo. Não foi o veículo que apanhou de costas a vítima, mas esta é que veio a atravessar a hemifaixa da esquerda, em cima ou antes da curva - atento o sentido .../...".
Desta breve passagem pretende dizer-se que a vítima é que foi à procura do embate com o veículo conduzido pelo arguido. E o tribunal a quo só encontra explicação para esta atitude, o facto de a vítima estar alcoolizada.
Ora, não olvidando que efectivamente a vítima tinha um grau de alcoolémia superior ao recomendável, também é verdade e inequívoco que a mesma, no seu percurso pela faixa de rodagem nas circunstâncias já supra apontadas, não corria qualquer ou nenhum risco, caso não tivesse o veículo deixado de circular na faixa por onde o fazia e era obrigado a fazê-lo segundo as regras estradais e não tivesse invadido esta faixa onde se encontrava a vítima BB.
De todo o modo, não se configura qualquer nexo causal entre a taxa de alcoolémia da vítima e o embate por esta sofrido peio veículo. Apesar desta ter sido embatida a meio da faixa de rodagem, nos termos descritos.
É que, contrariamente à interpretação do tribunal a quo, ao afirmar que, no fundo, a vítima caminhava em direcção ao veiculo, - levando a crer que a vítima tudo fez para que pudesse vir a ser atropelada - para além da possível e razoável explicação por nós já avançada para esta atitude - pese embora não tenha ficado demonstrado que a mesma assinalava de facto a presença ou travessia do gado -, a verdade é que a BB o fez em momento em que o veículo que a atropelou se encontrava bem distante de si, na outra faixa de rodagem e naquele momento também não era previsível que o seu condutor, repentinamente, iniciasse uma manobra de invasão da faixa contrária!
7. Passando agora da análise do comportamento da vítima para a análise da conduta estradai do arguido, verificamos que também aqui encontramos afirmações ou conclusões bastante temerárias do tribunal a quo.
O primeiro facto relevante a ponderar é que o veículo do arguido circulava com uma carga manifestamente superior à legalmente permitida. Diríamos mesmo, manifestamente perigosa para uma condução estradai que se quer conforme ao designado princípio da segurança rodoviária, consagrado no art. 3.°, n°2, do Cód. da Estrada, logo, responsável.
Segundo o qual o condutor de um veículo deve adoptar na condução todas as medidas necessárias para garantir a segurança do tráfego, evitando riscos e respeitando as regras ou condutas estradais.
A estabilidade e a segurança reclamadas pela circulação rodoviária exigem, pois, dos condutores, não apenas o respeito pelas regras e sinais de trânsito especialmente previstos pelo Código da Estrada, mas ainda uma atitude particularmente previdente e cautelosa que proporcione uma interpretação oportuna e atenta das circunstâncias do momento, de modo a garantir a tranquilidade e estabilidade rodoviárias.
Pelo que vem sendo pacificamente entendido que o condutor de um veículo está obrigado a prever, até onde humanamente seja possível, o deficiente comportamento dos demais utentes da via pública (2)
7.1. Como resulta da conjugação peso bruto do veículo - 3 500Kg -, tara - 2 350Kg - e carga que este transportava - 3 000Kg -, o veículo em causa apenas poderia transportar 1 150kg de carga, transportando em excesso, 1 850kg!
Esta diferença de peso ou carga em excesso de 1 850 kg pouco representará para um veículo que pode transportar mais de 20 ou 30 toneladas. Mas é claramente significativo para um veículo com uma tara e peso bruto de pequena dimensão, como é o veículo dos autos.
O concreto excesso de carga é manifestamente desproporcionado com os demais valores inerentes a toda a estrutura e segurança do veículo. É do senso comum e das regras da experiência que um veículo a circular com um excesso de carga desta natureza, é um veículo de risco fortemente acrescido na circulação.
Não é por mero capricho ou sem fundamento racional, que o peso bruto para os veículos de carga é fixado em determinados valores. Esta fixação resulta de razões técnicas - estrutura, cilindrada ou potência do motor, capacidade da caixa e outras - e de segurança para o veículo e sua circulação rodoviária. A carga admissível para determinado veículo, constituirá, pois, o limite tido como normal e razoável para uma circulação eficiente e segura desse veículo.
Ora, um veículo que apenas pode transportar 1150 kg de carga, ao transportar 3000Kg - 1850Kg em excesso -, não está apenas a violar a disposição legal que proíbe esta circulação mas sim e para o que no caso interessa, a por à prova e em risco, a sua circulação, pois um excesso de carga nesta proporção, retira ao veículo toda a capacidade de segurança rodoviária, essencialmente na capacidade de funcionamento do sistema de travões e consequente imobilização.
Pelo que não seria por mera vontade ou opção do condutor do veículo que no momento do embate, circulava a apenas 38,5km/hora, apesar do bom piso da estrada e do bom tempo que fazia.
O condutor tinha, em nosso entender, consciência ou conhecimento do risco e perigo que é circular com o excesso de peso com que circulava e das dificuldades em conseguir imobilizar o veículo, se necessário bem como da estabilidade do veículo em circular numa estrada com determinadas curvas e algum declive. E com certeza que apesar de tudo, o risco será sempre menor se se circular a 38 Km/hora do que a 60 Km/hora ou mais.
Assim, contrariamente ao afirmado na sentença recorrida - que entendeu não circular o arguido em excesso de velocidade -, temos para nós como certo que este veículo circulava, pelo que já dissemos, em excesso de velocidade.
Não é só e apenas o número 38,5Km/hora de velocidade, que dita a regra do excesso.
Como se define no artigo 24°, do C. da Estrada,
"O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever, e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente".
Admitindo, como o admitiu o tribunal a quo - que não nós, como se referirá mais adiante -, que o condutor/arguido apenas fez uma manobra evasiva, esta dita manobra não afasta o excesso de velocidade em que circulava o veículo.
Veja-se que, apesar de o mesmo invadir a faixa contrária atento o sentido em que seguia para se desviar do gado, acontece que veio a embater na BB e prosseguiu a sua marcha despenhando-se pela ribanceira.
Ou seja, o condutor deste veículo não conseguiu em momento algum fazer parar o veículo no espaço que tinha visível à sua frente, nem no espaço que, embora na sua versão, tinha como não visível na outra faixa de rodagem!
É manifesto que este facto de o condutor não ter parado o veículo, em qualquer circunstância, se deve à correlação entre a velocidade a que efectivamente seguia e à carga que transportava (3)
. Aliada, sem dúvida, a alguma imperícia e destreza no momento em que lhe surgiram as cabras à sua frente.
Esta imperícia resulta, desde logo, no facto de o condutor não ter usado, em momento algum, do travão do veículo, tentando, pelo menos, a sua imobilização.
É que o pavimento é asfaltado, estava em bom estado de conservação e estava seco.
Três factores cumulativos a apontar para boas condições de travagem do sistema de travões do veículo, caso estivesse em bom funcionamento.
Mas a verdade é que não existiam quaisquer sinais de travagem e o veículo seguiu a sua marcha até se despistar na ribanceira.
É verdade, mas também é a confirmação de que este veículo de modo algum deveria circular numa via pública com o excesso de carga que transportava, podendo-se mesmo dizer que, em determinadas circunstâncias, até a sua simples paragem ou imobilização representaria perigo para a circulação.
Concluir, como se concluiu na sentença recorrida, que a carga em excesso não é nexo de causalidade ou pelo menos forte contributo para o despiste e atropelamento da vítima, é não querer ver e aceitar o que é praticamente óbvio.
7.2. Temerárias são ainda, em nosso entender, as seguintes afirmações do tribunal a quo:
" Também não dispomos de quaisquer elementos ou indícios que nos permitam dizer que o Arguido conduzia distraído, como sejam, a falar ao telemóvel, a ler ou a mexer no rádio, que estivesse cansado, ou que conduzisse com sonolência e que tivesse adormecido por breves instantes (4) .
Em primeiro lugar, porque a atitude normal e recomendável de qualquer condutor não é a de conduzir a olhar para os lados - para as serras e carreiros com receio de que venha de lá alguma cabra desgarrada, mas sim para a frente, para a sua faixa de rodagem (5) .
Por outro lado, quando um condutor está a descrever uma curva perigosa, naturalmente, não está atento ao que se passa dos lados, mas sim à sua faixa de rodagem, tanto mais que o Arguido circulava com carga pesada o que exige atenção redobrada na descrição da curva. E justamente por isso circulava a uma velocidade de 38 km/hora (6)
Também não podemos olvidar que o Arguido foi surpreendido pelas cabras logo no início da curva, pelo que também não é razoável supor que, nestas condições, o condutor fosse olhar para a sua esquerda, a ver se ia lá alguém, pois não se espera que venha um peão a atravessar uma estrada nacional, naquelas condições (7) .
Um condutor que não vê a vítima na outra faixa de rodagem, que a atropela com a parte frontal do veículo, que mesmo assim continua a afirmar que não a viu, em pleno dia 4 de Maio pelas 14 horas e 35 minutos, com bom tempo, não conduz distraído? A não ser que deliberadamente minta sobre esta aspecto!
Com certeza que uma condução prudente, atenta, exige que o condutor observe não só o que se passa na faixa de rodagem por onde circula mas também o que se passa na faixa contrária, quando é sabido que a via tem apenas 6,20 metros de largura (8) .
Mais que o ser razoável no sentido de o arguido dever ou não olhar para os lados da via e concretamente para o lado esquerdo - leia-se faixa de rodagem do lado esquerdo - entendemos que essa conduta é obrigatória para uma condução responsável e prudente. Só assim o arguido poderá estar atento ao trânsito em sentido contrário. Só assim um condutor pode efectuar manobras de ultrapassagem. Só assim um condutor pode estar atento a qualquer manobra executada por um veículo em sentido contrário e a tantos outros exemplos ou factos que possam ocorrer quer na faixa em que se circula quer na faixa contrária do condutor, quer em faixas paralelas, no mesmo sentido de marcha, se for o caso.
7.3. Fixemo-nos agora no aspecto desencadeador de todo o processo causal do acidente: o aparecimento repentino das cabras ao arguido.
Segundo o factualismo provado, ao chegar ao km 75 da estrada onde seguia, no sentido ... ..., surgiram ao arguido condutor, algumas cabras que ocupavam cerca de 1,5 a 2 metros da faixa de rodagem.
Segundo ainda os elementos processuais, neste local a visibilidade era de cerca de 25 metros.
Com o aparecimento das cabras, o condutor guinou o volante para a esquerda, perdendo o controlo do veículo, transpondo a linha longitudinal contínua, invadindo a faixa contrária, onde embateu na vítima nas circunstâncias já referidas.
Entendeu mais uma vez o tribunal a quo normal e instintiva esta reacção, considerando-a uma manobra evasiva.
O problema não está no facto deste condutor ter invadido a faixa de rodagem contrária mas sim, segundo o tribunal a quo, no facto de a vítima estar nessa mesma faixa contra toda a previsibilidade do condutor. E sobretudo quando não é exigível ao condutor que olhe ou tivesse olhado para essa faixa para saber se a podia invadir sem qualquer risco ou perigo. E finalmente quando se considera normal que este condutor não tenha visto a vítima nessa faixa!
Entendemos que não deve nem pode ser assim.
O dever geral e especial de cuidado na circulação rodoviária, tendo por base o princípio de segurança já assinalado ao ponto de o condutor dever prever o que é humanamente possível e exigível, leva-nos a que, também neste caso, fosse de exigir ao condutor que, desde logo, não iniciasse sequer uma condução com o excesso de carga da dimensão em que o fez. Aqui surge o seu primeiro acto de forte negligência na circulação que encetou, desconsiderando todos os hipotéticos e reais perigos que poderiam surgir quer para si quer para terceiros, dessa circulação.
Mas o arguido tinha, apesar da infracção em que circulava, consciência do perigo que tal facto representava, ao ponto de apenas imprimir ao veículo uma velocidade de 38,5km/hora.
Mas como também já se assinalou, esta velocidade só por si não é suficiente para não a considerar excessiva, tendo em conta exactamente a carga do veículo.
Apesar da circulação nestas circunstâncias e apesar de surgirem ao arguido as cabras na sua faixa de rodagem, a uma distância visível de pelo menos 25 metros (9)
, era ao mesmo exigível que, desde logo pela dita velocidade instantânea reduzida, efectuasse uma manobra de travagem, tentando imobilizar o veículo no espaço, se não no visível, pelo menos no possível, à sua frente, na sua faixa de rodagem.
Esta atitude de não travar, de não tentar imobilizar o veículo, conjugada com outros factos que resultam provados, nomeadamente de que o arguido não sabia que havia um peão no meio da faixa de rodagem contrária por o não ter visto, revela uma enorme imperícia na condução que efectuava.
Temos para nós como certo que, circulando a uma velocidade de 38,5 km/hora, em condições normais - sem a dita carga excessiva de 1850 Kg -, e segundo as condições climatéricas e do piso em causa, era possível imobilizar o veículo neste espaço.
E ainda que se admitisse como evasiva a manobra do arguido ao ver os animais na estrada, guinando para o seu lado esquerdo, não está toda a sua conduta estradal explicada e desculpada, pois o arguido não teve perícia para travar ou tentar travar (10) nem ainda para manter o veículo na faixa de rodagem, ainda que contrária, não se despistando pela ribanceira!
Poderá argumentar-se que a seguir a esta manobra evasiva o arguido já nada poderia fazer porque perdeu o controlo do veículo.
Da nossa parte não aceitamos este argumento, pois temos como exigível ao arguido, enquanto condutor, a destreza normal para, a uma velocidade instantânea reduzida a que seguia e nos vários metros que ainda teve à sua frente, fazer alguma manobra, fosse ela qual fosse!
A explicação, segundo os concretos factos que se mostram assentes e as regras da experiência, é que efectivamente o arguido perdeu o controlo do veículo e não o imobilizou, devido ao excesso de carga.
Pelo que a expressão do tribunal a quo ao afirmar que:
" O Arguido não sabia que havia um peão no meio da faixa de rodagem contrária - não o tinha visto; e assim o quadro factual com que se deparou foi ou atropelar as cabras ou desviar-se delas invadindo a faixa de rodagem contrária, sem danos para ninguém - tanto mais que nem sequer circulavam veículos em sentido contrário ao seu", redunda em algumas contradições que, em nosso entender, não podem favorecer o arguido:
Se este não sabia que havia um peão na faixa de rodagem contrária, tinha a obrigação de, circulando atento, de o ter visto; o julgador a quo, ora afirma que o arguido teve uma manobra reflexiva e evasiva, desviando-se dos animais, ora vem agora dizer que o arguido tinha como opção ou atropelar as cabras ou desviar-se delas tanto mais que nem sequer circulavam veículos em sentido contrário ao seu.
Se a manobra foi evasiva, não se percebe como teria o arguido racionalizado o seu desvio dos animais, preferindo invadir a faixa contrária por aí não circularem veículos. Mas, se o arguido percepcionou que na faixa contrária não circulavam outros veículos, como perceber que o mesmo não percepcionou nesse mesma faixa, mais próximo do seu veículo, a vítima? Mais grave ainda será considerar que o arguido invadiu a faixa contrária sem sequer ter percepcionado se aí circulava qualquer veículo!
Mas tudo isto não passam de conjecturas ou hipótese, que não têm consistência nos factos provados.
7.3.1. O próprio tribunal a quo acaba por reconhecer que o veículo circulava devagar, a 38,5Km/hora, devido à carga que transportava.
Mas mais uma vez não podemos concordar com a conclusão tirada a este propósito, demasiado temerária, quando afirma:
" Já se sabe que levava carga a mais, mas justamente por isso circulava a 38 km/hora e, com toda a probabilidade, nada teria acontecido naquela curva se não fosse o cruzamento com BB e as suas cabras".
Racional e legítimo é também concluir:
Apesar do aparecimento das cabras, não fora o manifesto excesso de carga que o veículo transportava, o arguido teria conseguido imobilizar o veículo ou pelo menos este não teria invadido a faixa de rodagem contrária, aí atropelando a vítima e despenhando-se na ribanceira.
A este propósito, é elucidativa a conclusão número 4, do relatório de peritagem realizado pelo Instituto de Engenharia e Mecânica, Pólo do Instituto superior Técnico, citado pelo tribunal a quo e no qual motiva a sua decisão, quando aí se afirma:
" Se o veículo tivesse seguido na sua faixa de rodagem ou mesmo travado de forma a evitar o eventual (11) atropelamento das ovelhas(12), o atropelamento do peão não teria ocorrido".
Nesta conclusão - de técnicos - reside tudo o que vimos dizendo sobre a responsabilidade do arguido quanto à ocorrência do embate e consequente morte da vítima, concluindo-se que a este se deve e não àquela, como decidiu o tribunal a quo.
Responsabilidade que assenta na forte negligência do arguido ao iniciar uma condução com um veículo em excesso de carga desmesurado e desproporcionado para o caso, que teve a sua manifestação efectiva na situação de perigo que lhe surgiu com o infeliz epílogo do atropelamento e morte da vítima. (…)”
C - RECURSO PARA O S. T. J.
Foram as seguintes as conclusões da motivação do recurso interposto pela demandada:
“I. O acidente que provocou a morte de BB resultou única e exclusivamente da conduta da própria vítima, tendo em conta que se BB não tivesse atravessado a estrada numa curva com má visibilidade, invadindo a faixa de rodagem contrária à de AA, notoriamente embriagada e não cumprindo correctamente o seu dever de vigilância dos animais que pastoreava o acidente e consequente atropelamento fatal não teria ocorrido.
Ou seja, aquela escolheu atravessar as cabras no local errado, a curva supra descrita, e colocar-se a ela, durante essa travessia, no local errado, na faixa de rodagem.
Deverá, por isso, ser considerado que a conduta de BB violou o disposto no artigo 97° do Código da Estrada, assim como o dever de vigilância prescrito no artigo 493° n° l do Código Civil, tendo sido o único comportamento culposo e causal do sinistro em apreço.
II. Da aplicação do artigo 24° do Código da Estrada não se pode extrair a conclusão de que o veículo conduzido pelo arguido seguia em excesso de velocidade.
Não resultou provado nos autos ter o arguido espaço suficiente para imobilizar o veículo por si conduzido no espaço livre e visível à sua frente
III. Nem também, de resto, tal imobilização se lhe impunha, atenta a forma como lhe surgiu o obstáculo — as cabras — perante o qual a melhor manobra de esquiva era antes a por ele efectivamente executada, o desvio para a respectiva esquerda.
IV. Deverá também ser considerado que o excesso de carga com que o veículo do arguido circulava, não constitui fundamento bastante para construir um nexo de causalidade entre o dito excesso de carga e o despiste e atropelamento da vítima, conclusão que o tribunal a quo apenas atinge devido a uma errada aplicação do direito, em concreto, do artigo 24° do Código da Estrada.
V. O tribunal a quo fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do disposto nos art°s 24° e 97° do Código da Estrada e nos art°s 483°, 487°, 505° e 570° do Código Civil.
TERMOS EM QUE o presente recurso deverá ser julgado procedente, absolvendo-se a recorrente do pedido, com o que se fará
JUSTIÇA!”
Na sua resposta o demandante e recorrido CC apresentou as conclusões que se seguem:
“A - O condutor do veículo, atropelante, tendo perfeito conhecimento do risco elevado que acarretava a carga excessiva que decidiu colocar-lhe agiu com negligência grosseira omitindo os mais elementares deveres de cuidado exigíveis ao condutor médio no exercício da condução.
B - Não fora a carga excessiva ou seja o transportar mais 1 850Kg acima da que podia e devia e simultaneamente a desatenção e incúria com que seguia o motorista do veiculo segurado na recorrente e o acidente então teria ocorrido.
C - É que, nem o comportamento da vítima nem as cabras deram causa ao acidente;
D- Até porque, o condutor do veículo atropelante, tinha livre e disponível 2,65 ou pelo menos 2,55 metros de largura da via que, não fora a carga excessiva, a velocidade e a desatenção com que seguia o acidente não tinha ocorrido.
Com efeito,
E - Como conclui o Instituto de Engenharia e Mecânica, Pólo Instituto Superior Técnico, conclusão ns. 4 ... "se o veículo tivesse seguido na sua faixa de rodagem ou mesmo travado de forma a evitar o eventual atropelamento das ovelhas o atropelamento do peão não teria ocorrido".
Termos em que:
O elevado sentido de justiça atingido na douta decisão do Venerando Tribunal da Relação não merece o mínimo reparo, e, por isso, deve ser mantido na integra e, assim, será mantida a justiça que integra a douta decisão recorrido, e assim, se fará
JUSTIÇA”
Já neste Supremo Tribunal o Mº Pº teve vista nos autos. Colhidos os vistos foram os mesmos presentes a conferência.
D - APRECIAÇÃO
Se tivermos em análise as quatro conclusões formuladas, facilmente verificamos que a primeira se destina a afirmar a culpa exclusiva da infeliz vítima no acidente, e as outras três conclusões procuram ilibar de responsabilidades o arguido AA. Recusando-se que o mesmo circulasse com excesso de velocidade, considerando completamente justificada a “manobra de esquiva” levada a cabo, e negando qualquer nexo de causalidade adequada entre o excesso e peso e o acidente.
A primeira instância considerou que a culpa no acidente era exclusivamente da infeliz vítima, e a Relação transferiu essa culpa, em exclusivo, para o segurado condutor do veículo. A longa transcrição a que atrás se procedeu, do acórdão recorrido, visa, pensamos que com utilidade, ilustrar a fundamentação de que foi lançada mão para defesa das posições antagónicas assumidas.
Tudo visto, adiantaremos desde já que nos revemos em grande parte da interpretação dos factos veiculada pela tese do acórdão recorrido, escusando-nos de os voltar a referir. Factos esses que, nesta sede, evidentemente já se não discutirão.
Porém, teremos de concluir pela atribuição de uma parcela, embora reduzida, de culpa, à infeliz vítima.
Assim:
1. Começando por este ponto de apuramento das responsabilidades da vítima BB (conclusão I), importará antes do mais relembrar o disposto no art. 97º nº 1 do Código da Estrada (C E), de acordo com o qual “Os condutores de veículos de tracção animal ou de animais devem conduzi-los de modo a manter sempre o domínio sobre a sua marcha e a evitar impedimento ou perigo para o trânsito”. Diz o nº 3 do preceito que “A entrada de gado na via pública deve ser devidamente assinalada pelo respectivo condutor e fazer-se por caminhos ou serventias a esse fim destinados”.
Sabe-se que a via tem no local do sinistro 6,20 metros e largura e que os animais ocuparam 1,5 a 2 metros da faixa por onde o veículo seguia (factos 3 e 7).
BB atravessava a estrada da esquerda para a direita do condutor, estando a meio da faixa de rodagem contrária àquela por onde seguia o veículo (facto 6).
Ao mesmo tempo, os animais desembocavam do caminho que ficava à direita do condutor do veículo, e iriam, ao que parece, atravessar a estrada (factos 8 e 9), pelo que é possível configurar que a vítima se dirigisse ao encontro dos animais. Seja como for, não é de considerar provado, depois do acórdão recorrido, que "BB não assinalou a entrada dos animais na faixa de rodagem". Do que resulta que pode ou não ter feito algum esforço para conter os animais.
No entanto, dúvidas não restam que lhe competia, a ela BB, impedir a entrada dos animais na via pública, enquanto se não tivesse assegurado de que tal não representaria perigo para o trânsito. Não foi o caso, porque os animais de facto surgiram na frente do veículo, e repentinamente (facto 7), o que não teria ocorrido, com toda a probabilidade, se a vítima estivesse por exemplo, à sua frente, na desembocadura do caminho de onde vinham.
Por um lado, ficou provado que a infeliz BB apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1, 81 g/litro. Nada se disse porém sobre a medida em que esse estado influiu numa sua falta de cuidado. Por outro, tratou-se, como refere a recorrente (fls. 622), do “atropelamento mortal de uma pastora no cimo de uma montanha”. Pastora que, atenta a sua idade de 58 anos, com grande probabilidade não seria a primeira vez que conduzia rebanhos no local, pelo que conheceria o modo de conduzir cabras e ser-lhe-ia exigível que tivesse tomado, na ocasião, os cuidados adequados.
Ora, o art. 493º do C C (“Danos causados por coisas, animais ou actividades”), refere no seu nº 1 que “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
Os demandantes não lograram provar que a infeliz vítima não tivesse tido culpa alguma no sinistro, porque ficou indemonstrado ter feito tudo o que estava ao seu alcance para evitar que os animais entrassem na faixa de rodagem, na altura em que nela circulava o arguido. E também não ficou provado, evidentemente, que mesmo que a BB tivesse feito o que lhe fosse exigível para evitar o acidente, este teria tido, de qualquer modo, lugar.
A infeliz vítima acompanhava os animais e tomava conta deles (facto 10), certo que o art. 502.º do C C atribui responsabilidade nos seguintes termos: “Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”.
O art. 570º do C C (Culpa do lesado) considera no seu nº 1 que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
E o art. 572.º do mesmo Código (Prova da culpa do lesado), refere: “Àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada”.
De tudo isto resulta que se considere, que o comportamento da vítima também concorreu para a ocorrência do acidente, e que concorreu numa proporção, que se pauta de acordo com o dito art. 570º nº 1 do C C, em 25% das responsabilidades no sinistro. Daí que a indemnização a cargo da recorrente deva ser concedida, e numa proporção de 75% do montante dos danos.
2. Como se viu, a recorrente pretendeu ilibar de todas as responsabilidades no sinistro o arguido AA.
É sabido que o art. 562º do C C (“Princípio geral”) estabelece que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
E o art. 503º do C C (“Acidentes causados por veículos”), estabelece no seu nº 1 que: “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.” E o seu nº 3 diz-nos que “Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do nº 1.”
Certo ainda que, segundo o art. 496º, sempre do C C (“Danos não patrimoniais”),
“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior”.
Vejamos então.
2. 1. Quanto à pretensão da recorrente de excluir o excesso de velocidade do veículo (conclusão II), dir-se-á o seguinte:
O art. 24º do C E refere que “O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja e prever, e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
Quanto ao estado da via nada há que aponte para uma situação menos satisfatória. Pavimento asfaltado, seco e em bom estado de conservação (facto 5). O veículo levava uma carga notoriamente excessiva, de mais 1 850Kg do que aquilo que podia (factos 19 e 20). Não chovia, como se disse, e eram 14 horas e 35 minutos da tarde (factos 1 e 5). Não consta que houvesse outros veículos a circular na altura do sinistro. O pavimento não apresentava qualquer marca de travagem (facto 18).
Naquele local, e no momento do acidente, a visibilidade não era superior a 25 metros (facto 4).
O veículo circulava aproximadamente a 38,5 km/h (facto 2).
Conjugando toda esta factualidade, somos levados a considerar que dificilmente o condutor teria deixado de imobilizar o veículo, assim tivesse travado, e caso evidentemente os travões estivessem em condições satisfatórias de funcionamento. Então, propendemos a concluir que inexistem elementos suficientes, a partir da a matéria de facto provada, que permitam dizer com segurança que o veículo atropelante circulava com excesso de velocidade.
Em vez de travar o condutor optou por se esquivar, mas nada nos diz que quis esquivar-se porque não conseguiu travar, e isto porque circulava com excesso de velocidade.
2. 2. Em relação “à manobra de esquiva” praticada, acompanhamos o acórdão recorrido, no sentido de que, surpreendido com o aparecimento dos animais, o condutor não deveria ter guinado para a esquerda para não atropelar os animais (facto 12). A perícia exigida pela condução não se compadece com “reacções espontâneas e instintivas” que se revelam claramente precipitadas, com consequências bem mais gravosas do que as que ocorreriam se tivessem sido omitidas.
Aquilo que se apresenta como uma manobra de recurso justificada não pode ser aceite como tal.
O condutor circulava com um traço contínuo à sua esquerda (facto 3), conduzia um veículo com notório excesso de carga, o que tornava arriscada qualquer mudança de direcção brusca. Não deveria invadir a faixa contrária àquela por onde se circulava sem se aperceber minimamente se aí havia trânsito ou aí estava alguém, como efectivamente não viu (facto 14). Ainda que do facto resultasse o atropelamento de um ou outro animal. Repita-se que a faixa estava ocupada por estes em apenas 1,5 a 2 m de largura.
2. 3. Finalmente, quanto ao excesso de peso do veículo e seu contributo para o acorrido (conclusão IV), também concordamos com o acórdão recorrido: “A explicação, segundo os concretos factos que se mostram assentes e as regras da experiência, é que efectivamente o arguido perdeu o controlo do veículo e não o imobilizou, devido ao excesso de carga”.
Ao guinar o volante para a esquerda o condutor perdeu o controle do veículo, transpôs a linha contínua, invadiu a faixa contrária, depois de embater na infeliz vítima continuou a sua marcha, invadiu a berma esquerda e caiu numa ribanceira de 100 m de altura (factos 12 e 13). Parece-nos claro que, não fora o excesso de peso, e AA ou teria travado e imobilizado o veículo, ou não teria perdido o controlo deste, como perdeu, ao desviar-se. Não deve pois subestimar-se, como pretende a recorrida, esse excesso de peso.
Por todo o exposto se decide ser justo ter em conta a proporção de culpas já atrás assinalada, e assim revogar a decisão recorrida e condenar a recorrente em € 3 750 (três mil setecentos e cinquenta euros), pelo dano sofrido pela vítima antes de morrer, em € 18 750 (dezoito mil e setecentos e cinquenta euros) pelo dano morte da vítima, e € 5 625 (cinco mil e seiscentos e vinte e cinco euros) pelo dano sofrido por cada um dos filhos da vítima. Ao que acrescerão juros de mora a contar da data da decisão.
E - DECISÃO
Tudo visto, acorda-se nesta Supremo Tribunal e em conferência, considerar parcialmente procedente o recurso, e assim condenar a companhia de seguros "G... -Companhia de Seguros, S.P.A." a pagar aos assistentes CC e outros, € 3 750 (três mil setecentos e cinquenta euros) pelo dano sofrido pela vítima antes de morrer, € 18 750 (dezoito mil e setecentos e cinquenta euros) pelo dano morte da vítima, e € 5 625 (cinco mil e seiscentos e vinte e cinco euros) pelo dano sofrido por cada um dos cinco filhos da vítima, ou seja, € 28 125 (vinte e oito mil cento e vinte e cinco euros). O que perfaz o montante global de € 50 625 (cinquenta mil seiscentos e vinte e cinco euros), ao que acrescerão juros de mora a contar da data da decisão recorrida. Mantém-se no mais o decidido.
Custas do recurso pela recorrente e pelos cinco demandantes, estes solidariamente entre si, na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 27 de Janeiro de 2011
Souto Moura (relator) **
Isabel Pais Martins (“Confirmaria a decisão da relação, no aspecto da culpa exclusiva do arguido na produção do acidente…. Deu-se como provado que o arguido foi surpreendido pelo aparecimento de cabras, que invadiram, em cerca de 1,5 metros a 2 metros, a faixa de rodagem, no seu sentido de marcha, sendo que a estrada tem a largura total de 6,20 metros. Não se sabe a que distância se encontrava o veículo quando as cabras surgiram na estrada, mas do facto de o arguido ter realizado a manobra descrita (a implicar tempo de reacção) e não ter a final, embatido em nenhum dos animais, pode inferir-se que estes surgiram a alguma distância do veículo (ainda que poucos metros. A questão que se deve colocar é a de saber por que realizou aquela manobra e não travou, tentando imobilizar o veículo, tanto mais quanto, se se considerar, apenas, a velocidade a que seguia – cerca de 38,5 Km/h – poderia parar a uma distância não superior a 16 metros (segundo as tabelas das distâncias de paragem, habitualmente usadas). E parece não haver dúvidas de que a resposta se encontrará no excesso de carga que transportava. Por outro lado, a vítima encontrava-se a meio da metade esquerda da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha do arguido, facto de que o arguido não se apercebeu, como se deu por provado. Tratando-se de uma estrada de 6,20 metros de largura, do facto de o arguido não se ter apercebido da vítima infere-se que conduzia com manifesta desatenção. E é essa desatenção, aliada ao excesso de carga do veículo que conduzia, que estão na origem da desastrada manobra realizada pelo arguido. A manobra de salvamento ou manobra de último recurso corresponde a um impulso de auto-defesa em situações de perigo manifesto e iminente. O condutor realiza a manobra em infracção às regras de trânsito como meio de evitar um mal maior, seja para si, seja para terceiro. Ora, no caso, com a manobra realizada o arguido terá, eventualmente, evitado atropelar algumas cabras e alguns danos que, em consequência disso, pudessem resultar no veículo. Ou seja, para evitar danos pouco significativos o arguido causou o maior dos danos (a morte de uma pessoa). Com o que se quer dizer que a manobra realizada pelo arguido não foi imposta por uma situação de extrema necessidade que a possa justificar. Na ponderação deste circunstancialismo, afastaria o nexo de causalidade adequada entre a omissão da vítima e o dano, pressuposto na solução da concorrência de culpas”)
Carmona da Mota (“com voto de desempate a favor do relator”) ___________________
(1) Passagem da motivação que se encontra supra transcrita
(2) Neste sentido, sentença do Tribunal Supremo Espanhol de 15/10/1977, citada sem críticas ou reservas por Maza Martin, A negligência e outras infracções penais cometidas por ocasião da circulação de veículos automóveis, ín La Imprudência, Consejo General dei Poder Judicial, pag. 135.
(3) Poder-se-á dizer que, circular a menos de 38,5Km/hora é circular praticamente parado!
(4) Fls.418.
(5) Fls. 411
(6) Fls. 411
(7) Fls. 411
(8) Significando que o grau de visão para o condutor está perfeitamente ao seu alcance para visionar as duas faixas de rodagem, se o desejar, como é natural que assim seja
(9) Não se percebe o afirmado apelo tribunal a quo, a dado momento da sua fundamentação, a não ser a mero lapso, quando diz:
"O que está demonstrado é que a verdadeira causa do acidente foi, na verdade, o surgimento repentino das cabras, em plena faixa de rodagem, invadindo-a, vindas dum carreiro onde não podiam ser avistadas, estando o veículo a cerca de um metro de distância, conjugado com a travessia inesperada de BB da faixa de rodagem numa curva de visibilidade reduzida" – negrito nosso.
(10) Pois um facto é simplesmente não travar, outro, diferente, é travar e os travões não obedecerem , ou seja, não travarem.
(11) Pois o atropelamento nem sequer era um facto notório, inevitável ou consumado.
(12) Rectifica-se para cabras.