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ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
VENDA A PRESTAÇÕES
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CONSUMIDOR
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Sumário
I - O denominado contrato de ALD retrata uma pluralidade multilateral de contratos interligados por uma relação de coligação funcional de três tipos contratuais distintos que constituem o seu esqueleto estrutural, ou seja, de um contrato de aluguer de longa duração, de um contrato de compra e venda a prestações e de um contrato-promessa de compra e venda do bem alugado. II - A aludida coligação funcional do triângulo contratual em que se consubstancia o ALD é subsumível à matriz do contrato de mandato sem representação, cujos elementos em que o seu conteúdo típico se desdobra nele se revêem, igualmente, ou seja, por um lado, a vinculação do mandatário [locador], em nome próprio, mas por conta do mandante [locatário], que se obriga a adquirir o bem, por este, expressamente, escolhido e indicado, a terceiro, transferindo, em seguida, para este os direitos que haja adquirido na execução do mandato, a propriedade do bem adquirido por sua conta, para depois lhe proporcionar o gozo, e, por outro lado, o dever do mandante em reembolsar o mandatário das despesas que este haja efectuado no cumprimento do encargo de que fora incumbido com a aquisição do bem. III - Deste modo, o ALD seria um contrato de concessão de crédito ao consumo, que opera, não mediante o empréstimo de dinheiro, mas antes através de um instrumento técnico-jurídico capaz de permitir que alguém conceda, temporariamente, a outrem o poder de compra de que este não dispõe, fraccionando e diferindo a execução da obrigação do mandante [o locatário] reembolsar o mandatário [o locador] da despesa efectuada na aquisição do bem objecto do contrato. IV - A única semelhança que existe entre o contrato de compra e venda a prestações, instrumento pioneiro da concessão de crédito ao consumidor, em que o crédito é concedido pelo próprio vendedor, através do diferimento da exigibilidade da obrigação de pagamento do preço para um momento futuro, posterior ao imediato cumprimento do dever de entrega da coisa, e o ALD, traduz-se em que, em ambos os casos, existe uma obrigação pecuniária de execução fraccionada, no primeiro, de pagamento do preço, e, no segundo, de reembolso dos fundos adiantados pelo locador. V - Embora no ALD, o efeito da transferência da propriedade só se produza com a celebração, em cumprimento do contrato-promessa que a operação comporta, de um futuro contrato prometido de compra e venda entre o locatário e o terceiro interposto pelo locador, este apenas adquire os bens que lhe são, especificamente, solicitados pelo locatário carecido, ao qual cabe suportar os riscos inerentes à qualidade de proprietário do bem de que usufrui o gozo, porquanto o locador age, por conta e risco do locatário. VI - O desequilíbrio real de poder negocial entre as partes, que neste tipo de contrato de adesão desfavorece o consumidor, beneficiário de uma particular tutela constitucional que supra a «assimetria informativa» que o penaliza, não é suficiente, na hipótese do presente contrato de ALD, para excluir ou limitar o princípio da liberdade negocial, na vertente que aqui se coloca da liberdade de celebração ou conclusão dos contratos..
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1):
O Ministério Público propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra o AA- “Banco S... C... Portugal, SA”, pedindo que, na sua procedência, na parte que ainda interessa considerar com vista à decisão desta revista, seja declarada a nulidade da cláusula sétima, nºs 3, c), 4 e 5, das Condições Gerais do Contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor, sob a epígrafe “Responsabilidade, Risco e Seguro”, que estipula o seguinte: “3. Em caso de sinistro que tenha como consequência a perda total ou parcial do bem locado, o locatário obriga-se a: c) Em caso de perda total, após peritagem e decisão da seguradora, ou em caso de furto ou roubo, o contrato será considerado extinto por caducidade; 4. Verificada a caducidade, o locatário pagará ao locador o montante dos alugueres vincendos e o valor da opção de compra, actualizado com a taxa de juro referida na cláusula quinta, adicionado ao montante das rendas vencidas e não pagas;5. Qualquer atraso, ainda que parcial, no pagamento da indemnização referida no número anterior, acarretará o vencimento dos juros de mora à taxa referida na cláusula décima terceira" [a], condenando-se a ré a abster-se de utilizar a referida cláusula, em todos os contratos que no futuro venha a celebrar com os seus clientes, especificando-se o âmbito de tal proibição [b],a dar publicidade a tal proibição e a comprová-la nos autos, em prazo a determinar, sugerindo que tal seja efectuado em anúncio a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem, editados em Lisboa e no Porto, durante dois dias consecutivos, em tamanho não inferior a ¼ de página [c], dando-se cumprimento ao disposto no artigo 34º, do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, remetendo-se ao Gabinete de Direito Europeu certidão da sentença, para os efeitos previstos na Portaria 1093/95, de 6 de Setembro, invocando, para o efeito, e, em síntese, no que releva para a matéria do recurso, que os contratos em apreço são contratos de adesão, sujeitos ao regime das «Cláusulas Contratuais Gerais», mas que são ilegais vários pontos de determinadas cláusulas, nomeadamente, ao “afirmar-se que em caso de perda total ou parcial ou sinistro, o locatário terá de pagar, quer as rendas vencidas, quer as vincendas e o valor da compra e encargos”, por tal violar o artigo 1044°, e ao “fazer correr por conta do locatário o risco de perda e defeito de funcionamento”, por desrespeito ao disposto no artigo 1032°, ambos do Código Civil.
Na contestação, o réu conclui no sentido da improcedência da acção, alegando, em resumo, sobre a matéria aqui em questão, que os contratos em apreço devem ser analisados na perspectiva da locação financeira e não da locação civil, por existirem maiores semelhanças com aquela do que com esta.
No que toca à distribuição do risco, a ré refere que as aludidas cláusulas não assumem a natureza de cláusula penal, não tendo de observar o regime da locação, sendo certo que o convencionado mais não é do que uma forma de distribuir o risco, fazendo-o recair sobre o locatário, para o responsabilizar pelo bem, cabendo a este, aliás, o direito de receber o valor da indemnização a ser paga pelo seguro.
Decidindo sob a forma de saneador-sentença, o Tribunal de 1ª instância julgou a acção improcedente, neste particular, não declarando a nulidade da cláusula sétima, nºs 3, c), 4 e 5, das Condições Gerais do Contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor.
Deste saneador-sentença, o autor interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente a apelação e, em consequência, revogou, na parte recorrida, aquela decisão, declarando a nulidade da cláusula 7.ª, n.ºs 3, c), 4 e 5 das Condições Gerais do Contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor, condenando a ré a abster-se de utilizar a referida cláusula e com a extensão indicada nos contratos que, actualmente e no futuro, venha celebrar com os clientes, bem assim como a publicitar tal proibição, nos mesmos termos determinados na decisão de 1.ª instância, com comunicação ao Gabinete de Direito Europeu.
Do acórdão da Relação de Lisboa, interpôs agora a ré recurso de revista, terminando as alegações no sentido da sua revogação, mantendo-se, integralmente, a decisão da 1ª instância, formulando as seguintes conclusões, que, integralmente, se transcrevem:
1ª – Deve ser concedida a revista, e revogar-se o acórdão recorrido, concluindo pela validade da cláusula 7.a, n.°s 3, c), n.° 4 e n.° 5, das Condições Gerais do Contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor, pelos seguintes fundamentos:
A) Como resulta provado, o recorrente, é uma instituição de crédito, mais concretamente um banco, que tem por objecto social [entre outros] a “Realização de operações bancárias e financeiras e a prestação de serviços conexos", e, ainda, “Operações de crédito, incluindo a concessão de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring” e a "Locação de bens móveis, nos termos permitidos às sociedades de locação financeira."(art.°s 2.°, 3.° e ai. b) e q), do n.° 1, art.° 4.°, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras - RGICSF);
B) No âmbito da sua actividade celebra com os seus clientes contratos de locação de bens móveis (iguais aos dos autos), tal como definido no artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 72/95, de 15 de Abril, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 285/2001, de 03 de Novembro;
C) E, através de tais contratos, é objectivo único do ora recorrente, assegurar aos respectivos clientes, a compra de veículo próprio, através do modelo contratual seguinte: a) - Existência de acordo de transferência de propriedade no final do prazo da locação; b) - O prazo da locação abranja a maior parte da vida útil do veículo; c) - À data do início da locação, o valor presente da totalidade dos pagamentos a efectuar seja igual ou superior ao justo valor do veículo; e d) - Os veículos locados sejam escolhidos directamente pelo próprio cliente, sendo o veículo adquirido pelo ora recorrente exclusivamente em função e razão da escolha feita pelo cliente/locatário;
D) Os referidos contratos contêm normas, designadamente, as cláusulas 8.a, n.° 3, e 9.a, n.° 5, que estipulam que no final do contrato o locatário poderá adquirir o bem pelo preço fixado no contrato promessa subjacente ao presente contrato;
E) A expectativa de aquisição da propriedade do veículo no termo do contrato de locação, decorrente da celebração entre as partes do contrato de promessa de compra e venda, a ele subjacente, estabelece uma afinidade substancial e similitude com o regime jurídico da locação financeira, pelo que a ele lhe deve ser aplicado o regime legal nele contido;
F) Nos termos do regime jurídico do contrato de locação financeira, plasmado no Decreto-Lei n° 149/95, de 24 de Junho, o risco da perda do bem locado corre por conta do locatário - art.° 15.°;
G) A cláusula sétima n.° 3, alínea c) e n.° 4 e 5, do contrato dos autos, na medida em que reproduzem o regime jurídico da locação financeira, não é abusiva nem ofensiva da lei, uma vez que a liberdade contratual o permite sem ser ofensivo da boa fé, como ainda resulta do regime legal aplicável, analogicamente, ao contrato dos autos;
H) Não configura a mesma qualquer cláusula penal, até porque esta pressupõe um incumprimento, e a situação em apreço prende-se com a caducidade do contrato em virtude da perda total, roubo ou furto;
I) Não é a mesma «manifestamente desproporcionada face aos danos a ressarcir», por três ordens de razões:
(i) "O locatário, embora tendo de pagar as rendas vencidas e o valor de compra, recebe a indemnização do seguro;
(ii) Sendo o locatário quem detém a posse do objecto locado, tal torna impossível à locadora prevenir o risco de furto, roubo ou perda;
(iii) Por fim, o prejuízo que advém para a locadora em caso de caducidade é maior que para o locatário, pois este teve apenas de pagar o valor mensal até esse momento, e a locadora teve de efectuar o pagamento total do objecto do contrato, logo no inicio deste, e o modo de recuperar as verbas investidas é por via das rendas que se vencem ao longo do contrato." (Ac. Rel. Lisboa de 15-01-2009, in www.dqsi.pt).
J) Não há violação do artigo 21.°, alínea f) do DL 446/85, de 25 de Outubro, em virtude do regime jurídico do contrato dos autos, em matéria de distribuição do risco, não se subsumir ao disposto no artigo 1044.°, do Código Civil.
K) O douto acórdão recorrido, salvo o muito e devido respeito, fez errada interpretação e aplicação da lei, violando por isso, entre outros, o disposto no artigo 405.°, do Código Civil e artigo 15.° do Decreto-Lei n.° 149/95, de 24 Junho.
Nas suas contra-alegações, o autor conclui no sentido de que deve ser negada a revista, porquanto se trata de uma cláusula absolutamente proibida, cuja nulidade tem de ser declarada.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando-se, porém, dois novos factos suplementares, sob os nºs 9 e 10, com base no teor do documento de folhas 25 a 30 e bem assim como no disposto pelos artigos 373º, nº 1 e 376º, nº 1, do Código Civil, 659º, nº 3, 713º, nº 2 e 726º, do CPC:
1. O réu é uma instituição de crédito que tem por objecto social a realização de operações bancárias e financeiras e a prestação de serviços conexos;
2. No exercício da sua actividade, o réu celebra com os seus clientes contratos intitulados de "contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor", em termos que constam de folhas 25 a 30 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;
3. O clausulado contém várias páginas impressas, e apenas a primeira contém espaços em branco, destinados à identificação dos locatários, à identificação do bem, local de entrega, restituição do bem, prazo do contrato, data de início e data de termo, valor dos alugueres e das retribuições, valor do penhor, número de pagamentos a efectuar e respectiva periodicidade, modalidade de pagamento, com identificação da conta bancária onde deve ser efectuado o débito automático, garantias do contrato, seguro e valor dado em penhor;
4. Todas as cláusulas das demais páginas estão, previamente, elaboradas e os locatários limitam-se a aceitá-las;
5. A cláusula sétima n° 3, c) e n.°s 4 e 5, sob a epígrafe de "responsabilidade, risco e seguro", estatui o seguinte:
“3. Em caso de sinistro que tenha como consequência a perda total ou parcial do bem locado, o locatário obriga-se a:
c) Em caso de perda total, após peritagem e decisão da seguradora, ou em caso de furto ou roubo, o contrato será considerado extinto por caducidade.
4. Verificada a caducidade o locatário pagará ao locador o montante dos alugueres vincendos e do valor de opção de compra, actualizado com a taxa de juro referida na cláusula quinta, adicionado ao montante das rendas vencidas e não pagas.
5. Qualquer atraso, ainda que parcial, no pagamento da indemnização referida no número anterior, acarretará o vencimento dos juros de mora à taxa referida na cláusula décima terceira".
7. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, os riscos de perda, deterioração, defeito de funcionamento e imobilização correm por conta do locatário, em tais casos este responderá perante a locadora apenas no âmbito e dos limites do valor do seguro previsto, a menos que tenha celebrado tal seguro ou o mesmo não se encontre em vigor, por motivo que lhe seja imputável, caso em que o locatário responderá pela totalidade do valor em causa”.
6. A cláusula oitava, sob epígrafe de “resolução e denúncia”, preceitua, nos seus números 3, 4 e 5, o seguinte:
“3. A resolução por incumprimento não exime o locatário da restituição do bem e do pagamento de quaisquer dívidas vencidas para com a locadora, do pagamento da reparação de danos que o veículo apresente da responsabilidade do locatário e ainda, de uma indemnização por lucros cessantes correspondentes a 25% do somatório dos alugueres vincendos e do valor relativo ao preço de compra mencionado no número um do contrato de promessa de compra e venda subjacente ao presente contrato.
4. Ao locatário é expressamente facultado o direito de denunciar o presente contrato, a partir de um período inicial de vigência de seis meses, operando essa denúncia os seus efeitos à data da restituição do veículo na sede da locadora ou noutro local convencionado pelas partes, data essa de que a locadora deverá ser informada pelo locatário, por carta registada com aviso de recepção expedida com, pelo menos, trinta dias de antecedência. Em caso de prazo contratual inferior a um ano esse prazo de aviso prévio será de apenas 15 dias.
5. À denúncia praticada nos termos no número anterior é aplicável o regime previsto no número três desta cláusula devendo o montante apurado ser liquidado pelo locatário à locadora, no acto de restituição do veículo sob pena de ineficácia de denúncia”.
7. A cláusula nona, n.º 3, sob a epígrafe de “Termo de Contrato”, preceitua o seguinte:
“3. Em caso de resolução do presente contrato, e a verificar-se a não restituição do veículo e dos respectivos documentos que o acompanham, o locatário será considerado possuidor de má fé e as penas de furto ser-lhe-ão impostas se alienar, onerar, modificar, destruir ou desencaminhar o referido bem, sem autorização escrita do AA-Banco S... C... Portugal SA”.
8. A cláusula décima quinta, n.º2, sob a epígrafe de “despesas e encargos”, preceitua o seguinte:
“2. Decorrem, igualmente, por conta do locatário e serão por ele pagas quaisquer despesas ou encargos resultantes da execução do presente contrato que o AA-Banco S... C... Portugal SA faça para garantir a cobrança dos seus créditos e restituição do veículo de sua propriedade, incluindo as judiciais, extrajudiciais, honorários de advogado e solicitador, bem como a subcontratação de serviços a terceiras entidades, as quais a título de cláusula penal se fixam desde já em 12,5% (doze e meio por cento) sobre o valor em dívida”.
9. A cláusula nona, n.º 5, sob a epígrafe de “Termo de Contrato”, preceitua o seguinte:
“5. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, no termo do presente contrato de aluguer, o locatário poderá adquirir o bem pelo preço fixado no Contrato Promessa de Compra e Venda, subjacente ao presente contrato, acrescido dos encargos e impostos que lhe forem devidos, e desde que não se encontre vencida e não paga qualquer quantia que seja devida ao locador por via do presente contrato de aluguer”.
10. A cláusula décima-quarta, n.º 1, sob a epígrafe de “Coligação de Contratos”, preceitua o seguinte:
“1. Quaisquer contratos celebrados entre o AA-BANCO S... C... PORTUGAL.SA e o LOCATÁRIO anterior ou posteriormente à assinatura do presente contrato, consideram-se automaticamente celebrados em coligação com este, passando a verificar-se uma estreita e efectiva interdependência entre todos e cada um dos contratos coligados nos termos abaixo indicados.
4. A coligação de contratos convencionada nos termos dos números anteriores não prejudica a individualidade própria de cada um dos contratos singulares, mantendo-se o regime legal e convencional que lhes são específicos, nomeadamente quanto ao início e termo da sua vigência.
5. Os contraentes reconhecem, de forma inequívoca, o seu interesse mútuo em estabelecer a coligação dos contratos entre eles celebrados, a qual se justifica pela conexão entre bens e serviços envolvidos”.
*
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão do regime jurídico aplicável ao contrato de aluguer de longa duração.
II – As consequências da definição do regime jurídico aplicável, em relação à validade da cláusula contratual de distribuição do risco.
I. DO CONTRATO DE AUGUER DE LONGA DURAÇÃO
I. 1. A questão essencial coloca-se em determinar qual o regime jurídico aplicável aos contratos de aluguer de veículo sem condutor inseridos em operações de financiamento, nos quais se preveja a possibilidade da transferência da propriedade do bem para o locatário, aquando do respectivo termo, mediante a celebração de promessa de compra e venda, sem que as partes tenham determinado ou tornado determinável o preço residual, se, analogicamente, o regime jurídico da locação financeira, tal como foi decidido pelo Tribunal de 1ª instância e o réu sustenta nas suas alegações de revista, ou o regime geral do contrato de locação civil, conforme o entendimento do acórdão recorrido ou, finalmente, outro regime, designadamente, o contrato indirecto, o negócio misto ou a figura da coligação contratual revestida pelo contrato de concessão de crédito.
Efectuando uma síntese do essencial relevante com vista à decisão das duas questões pertinentes abarcadas na presente revista, importa registar que, no exercício da sua actividade, que tem por objecto social a realização de operações bancárias e financeiras e a prestação de serviços conexos, o réu celebra com os seus clientes, contratos intitulados de "contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor", em cujo protótipo da respectiva minuta, todas as várias páginas impressas contêm cláusulas, previamente, elaboradas que os potenciais locatários se limitam a aceitar, pois que apenas a primeira apresenta espaços em branco, destinados à identificação dos referidos locatários, à identificação, local de entrega e restituição do bem, data de início e termo do contrato, valor dos alugueres, das retribuições e do penhor, número, periodicidade e modalidade dos pagamentos, com identificação da conta bancária onde deve ser efectuado o débito automático, garantias do contrato, seguro e valor dado em penhor.
Efectivamente, o aludido "contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor" contempla a opção de compra pelo locatário, pelo valor relativo ao preço mencionado no contrato de promessa de compra e venda subjacente ao mesmo.
Por outro lado, na cláusula em apreço, sob a epígrafe de "responsabilidade, risco e seguro", estatui-se que “os riscos de perda, deterioração, defeito de funcionamento e imobilização correm por conta do locatário, em tais casos este responderá perante a locadora apenas no âmbito dos limites do valor do seguro previsto, a menos que tenha celebrado tal seguro ou o mesmo não se encontre em vigor, por motivo que lhe seja imputável, caso em que o locatário responderá pela totalidade do valor em causa”.
Defende o réu, na esteira do decidido pela sentença proferida em 1ª instância, que o negócio jurídico celebrado pelas partes se configura como um contrato de locação financeira.
I. 2. O contrato de locação financeira é um contrato, a médio ou a longo prazo, destinado a «financiar» alguém, não através da prestação de uma quantia em dinheiro, mas mediante o uso de um bem, tendo subjacente a intenção de proporcionar ao «locatário», não tanto a propriedade de determinados bens, mas antes a sua posse e utilização, para certos fins (2).
Na figura do contrato de locação financeira com amortização integral [full-pay-out leasing], que a ordem jurídica nacional institucionalizou, prevêem-se pagamentos do utente, calculados de modo a cobrir a totalidade dos desembolsos do locador, bem como a margem de lucro deste, contendo ainda, ou uma cláusula de devolução do bem ao locador, terminado o contrato, ou a faculdade de prorrogação da compra do bem, em benefício do locatário, neste caso, mediante o pagamento de um preço residual, mais ou menos simbólico (3).
São elementos, essencialmente, constitutivos do contrato de locação financeira, como decorre da conceitualização estabelecida pelo artigo 1º, do DL nº 149/95, de 24 de Junho (4), a cedência, pelo locador, do gozo temporário de uma coisa [1], a obrigação do locador adquirir ao fornecedor a coisa imóvel ou móvel, por indicação do locatário, mediante celebração do contrato de compra e venda [2], a obrigação do locatário pagar ao locador uma renda, que funciona, simultaneamente, como retribuição correspondente pelo serviço financeiro e amortização do financiamento prestado [3] e o direito do locatário comprar, total ou parcialmente, a coisa, pelo respectivo preço residual, no termo do contrato [4].
O protótipo do denominado contrato de aluguer do uso de veículo automóvel de longa duração (ALD), concebido pela ré, e que tinha como destinatários potenciais consumidores indiferenciados, de natureza especial, tem por objecto a cedência do gozo temporário de coisa móvel, mediante retribuição, e constituiria uma das modalidades do contrato de locação, designada por aluguer, sendo regulado pelas normas do Código Civil (CC) que regem o contrato de aluguer e pelas respectivas cláusulas contratuais nele insertas que não contendam com qualquer normativo de natureza imperativa, atento o preceituado pelos artigos 16º e seguintes, do DL nº 354/86, de 23 de Outubro, e 1022º e seguintes, do CC(5).
O contrato de ALD seria, assim, para esta corrente doutrinária, com forte expressão jurisprudencial, em que se entronca o acórdão recorrido, um subtipo do contrato de aluguer e, consequentemente, do contrato de locação, revestido de particularidades especiais.
I. 3. Porém, diferentemente, o designado contrato de ALD tem sido configurado como um contrato atípico ou inominado, desprovido de estrita natureza locatícia e, por isso, sem se encontrar, directamente, sujeito ao regime consagrado pelo artigo 1022º e seguintes, do CC.
Assim, o contrato de ALD de automóveis novos seria um contrato indirecto, em que o tipo de referência é o aluguer, e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade, um verdadeiro contrato misto, em que o fim indirecto prosseguido pelos contraentes é alcançado, através da conjugação de estipulações típicas dos contratos de aluguer e da venda a prestações com reserva de propriedade (6), podendo conter uma promessa, bilateral ou unilateral, de venda ou até uma proposta irrevogável de venda inserida na própria locação(7), ou configurar-se como uma simples relação bilateral, sem qualquer intermediação financeira especializada (8), sob a forma de uma locação acoplada a uma promessa unilateral de proposta irrevogável de venda (9).
I. 4. O denominado contrato de ALD seria antes uma pluralidade multilateral de contratos interligados por uma relação de coligação funcional, e não um único contrato, ainda que, teleologicamente, indirecto, consubstanciando um conjunto integrado de negócios distintos, bem diverso da compra e venda a prestações, que não ultrapassa a fronteira de uma simples e linear relação de contrato bilateral.
Tratar-se-ia de uma coligação funcional de três tipos contratuais distintos que constituem o seu esqueleto estrutural, ou seja, de um contrato de aluguer de longa duração, donde deriva, por metonímia, a sigla ALD, de um contrato de compra e venda a prestações e de um contrato promessa de compra e venda do bem alugado (10).
Este triângulo contratual existente no ALD ocorreria entre o locador que se obriga a adquirir o bem a terceiro, sob indicação do locatário, para depois lhe proporcionar o gozo, o locatário carecido da coisa e o terceiro vendedor ou fornecedor da mesma.
Esta pluralidade contratual, de natureza triangular, afasta, desde logo, a recondução do ALD à categoria dogmática do negócio misto (11). e à do contrato indirecto (12).
Há, porém, identidades entre o ALD e o contrato de locação financeira, desde logo, na obrigação, a cargo do locador, de adquirir o bem a terceiro, sob proposta do locatário, para depois lhe proporcionar o respectivo gozo temporário, em segundo lugar, a faculdade do locatário exigir ao locador, em certas circunstâncias, a celebração do contrato de compra e venda que opere a transferência do direito de propriedade sobre o bem locado e, finalmente, as rendas devidas pelo locatário, acrescidas dos juros remuneradores da intermediação financiadora, em que, afinal, se traduz a intervenção do locador, o correspondente lucro financeiro, que não são a simples contrapartida do valor do uso do bem locado, mas, antes, representam uma antecipação do pagamento do preço, tendo em vista a sua aquisição futura pelo locatário, constituindo a execução parcelar da obrigação de reembolso dos fundos adiantados pelo locador na sua aquisição, caso queira optar pela compra do bem, findo o período da locação.
Contudo, diversamente do que acontece no contrato de locação financeira, no ALD, o locatário não se torna, automaticamente, proprietário do bem locado, mas tal acontece, apenas, na hipótese de o pretender, atento o disposto pelos artigos 2º, nº 1, a), 3º, a), parte final, e 9º, nºs 1 e 5, do DL nº 359/91, de 21 de Setembro.
No termo do prazo do contrato, o bem encontra-se, integralmente, pago, pelo que o locatário tem todo o interesse na sua aquisição, procedendo-se à venda depois de manifestar essa vontade ao locador, pois só, então, se transfere a propriedade do bem, por um preço pré-determinado, em regra, equivalente ao valor do objecto à data do aluguer de longa duração (13).
Assim sendo, o designado contrato de ALD, pese embora a componente funcional-económica de fruição temporária do bem locado que regista, não é, de modo algum, um contrato «a se», assimilável à mera locação do direito civil, isto porque o preço da renda pode visar a amortização do preço do bem de que o consumidor goza da faculdade de comprar, esgotado o prazo por que vigora o contrato, se tiver sido estabelecida opção de compra ou celebrado contrato promessa de compra e venda, ainda que unilateral (14), sendo certo, como já se disse, que do que se trata, não é de retribuir o locador pela concessão temporária do gozo da coisa locada, mas antes de o reembolsar da quantia que adiantou na sua aquisição, acrescida dos juros remuneradores da intermediação financiadora em que, afinal, se traduz a sua intervenção(15) .
Porém, tendo sido convencionada a opção de compra e, aliás, celebrado contrato promessa de compra e venda bilateral, como sucede no caso em apreço, nem, por isso, se estará, sem mais, apesar da relação de afinidade existente, perante um contrato de locação financeira, pese embora, no plano funcional dos interesses, possa constituir uma operação de natureza similar ou com resultados económicos equivalentes.
A aludida coligação funcional dos três tipos contratuais distintos, isto é, de um contrato de aluguer de longa duração, de um contrato de compra e venda a prestações e de um contrato promessa de compra e venda do bem alugado, em que se consubstancia o ALD, é subsumível à matriz do contrato de mandato sem representação, a que se reporta o artigo 1180º, cujos elementos em que o seu conteúdo típico se desdobra, nele se revêem, igualmente, ou seja, por um lado, na vinculação do mandatário [locador], em nome próprio, mas por conta do mandante [locatário], a adquirir o bem por este, expressamente, escolhido e indicado, transferindo, em seguida, para o mesmo os direitos que haja adquirido na execução do mandato, a propriedade do bem adquirido por sua conta, nos termos do disposto pelo artigo 1181º, nº1, e, por outro lado, no dever do mandante em reembolsar o mandatário das despesas que este haja efectuado no cumprimento do encargo de que fora incumbido com a aquisição do bem, atento o estipulado pelos artigos 1182º e 1167º, c), todos do CC.
Numa primeira fase do percurso evolutivo pós-revolução industrial, a concessão de credito ao consumidor apoiou-se, predominantemente, no esquema contratual da compra e venda a prestações, sendo o crédito concedido pelo próprio vendedor, através do diferimento da exigibilidade da obrigação de pagamento do preço para um momento futuro, posterior ao imediato cumprimento do dever de entrega da coisa.
Afinal, trata-se da única semelhança que existe entre o contrato da compra e venda a prestações e o ALD, ou seja, em ambos os casos, existe uma obrigação pecuniária de execução fraccionada, no primeiro, de pagamento do preço, e, no segundo, de reembolso dos fundos adiantados pelo locador.
E, para que de um contrato de concessão de crédito se possa falar, importa que se trate de um instrumento técnico-jurídico capaz de permitir que alguém conceda, temporariamente, a outrem o poder de compra de que este não dispõe.
Deste modo, o ALD seria um contrato de concessão de crédito ao consumo, em que a concessão de crédito se opera, não mediante o empréstimo de dinheiro, mas antes através do fraccionamento e inerente deferimento da execução da obrigação de o mandante [o locatário] reembolsar o mandatário [o locador] da despesa efectuada na aquisição do bem objecto do contrato (16).
Assim, seria aplicável ao ALD o regime de concessão de crédito ao consumo, definido pelo artigo 2º, nº 1, a), do DL nº 359/91, 21 de Setembro, com as alterações subsequentes dos DL’s nºs 101/2000, de 2 de Junho, 82/2006, de 3 de Maio e 133/2009, de 2 de Junho [RJCC].
II. DA INCIDÊNCIA DO REGIME APLICÁVEL AO ALD NA CLÁUSULA DE DISTRIBUIÇÃO DO RISCO
II. 1. Defende ainda o réu que o risco da perda do bem locado corre por conta do locatário, nos termos do regime jurídico do contrato de locação financeira, plasmado no artigo 15º, do DL n° 149/95, de 24 de Junho, inexistindo violação do artigo 21°, f), do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, decorrente do regime jurídico fixado no contrato, em matéria de distribuição do risco.
Para além do controlo repressivo, dispõe o artigo 25º, do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, que “as cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15º, 16º, 18º, 19º, 21º e 22º, podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares”, devendo, para o efeito, os Estados-membros providenciar que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para por termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional (17).
Trata-se do denominado controlo preventivo e abstracto que, a nível nacional, se realiza, através das acções inibitórias, como a presente, e a que alude o já citado artigo 25º, do DL nº 446/85, de 25 de Outubro.
Neste particular, ficou provado que, na cláusula objecto de declaração de nulidade em discussão, sob a epígrafe de "responsabilidade, risco e seguro", estatui-se que “os riscos de perda, deterioração, defeito de funcionamento e imobilização correm por conta do locatário, em tais casos este responderá perante a locadora apenas no âmbito e dos limites do valor do seguro previsto, a menos que tenha celebrado tal seguro ou o mesmo não se encontre em vigor, por motivo que lhe seja imputável, caso em que o locatário responderá pela totalidade do valor em causa”.
II. 2. Em termos materiais, o principio da autonomia da vontade liga-se ao reconhecimento da iniciativa privada, resultando do cruzamento de duas forças opostas, isto é, o poder de autodeterminação de cada pessoa, por um lado, e os limites da ordem jurídica, assentes na vontade e na liberdade, como expressão da tutela geral da personalidade, por outro, como decorre do disposto nos artigos 1º, 27º, nº1 e 61º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 70º, do Código Civil (CC).
A liberdade contratual vem definida, no artigo 405º, nºs1 e 2, do CC, como sendo a faculdade que as partes têm, dentro dos limites da lei, de fixar, livremente, o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, e bem assim como reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente, regulados na lei.
Embora o principio da autonomia da vontade encontre a sua máxima expressão nas figuras do contrato de tipo clássico, existem hoje novas categorias contratuais, que se individualizam pelas particularidades do seu modo formativo e pela maior ou menor debilitação do aspecto voluntarista.
Nestes casos, a liberdade dos contraentes quase se elimina, tornando-se problemática a inclusão de tais hipóteses no conceito de contrato, como acontece com os denominados contratos de adesão, no âmbito da comercialização dos bens e serviços, produzidos e distribuídos, em larga escala, em que os consumidores são indeterminados, limitando-se a aceitar ou a rejeitar o contrato proposto e o respectivo clausulado constante de modelo impresso, prévia e unilateralmente, redigido para todos, que não têm hipótese de o discutir (18).
Com vista a combater estes desvios ao principio da liberdade contratual, na tentativa de conciliar o legitimo interesse das empresas na racionalização dos seus negócios e na adequação dos regimes dos contratos à crescente especialização da actividade comercial, com as exigências da justiça comutativa e da protecção devida à parte económica ou, socialmente, mais fraca, surgiu, na legislação portuguesa, o DL nº 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo DL nº 220/95, de 31 de Agosto, que consagrou o regime das «cláusulas contratuais gerais», sujeitando-as a uma disciplina tendente à defesa dos aderentes a contratos onde figurassem cláusulas desse tipo, como sucede, por exemplo, com o contrato de ALD, que aqui se discute.
Ao fixar os limites do conteúdo das cláusulas contratuais gerais, o artigo 16º, do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, consagrou a boa fé como princípio geral de controlo, enumerando, em seguida, nos respectivos artigos 18º, 19º, 21º e 22º, um extenso rol de cláusulas, absoluta ou relativamente, proibidas, que têm a sua matriz normativa no aludido princípio da boa fé, completando a tutela que decorre desta cláusula geral com as previsões específicas daquelas estatuições proibidas(19).
Tratou-se de uma resposta normativa à instauração, por iniciativa privada, de uma ordem contratual, significativamente, divergente dos critérios legais de uma equilibrada composição de interesses, em prejuízo de um amplo círculo de contraentes (20).
E as limitações à livre fixação do conteúdo negocial, nos denominados contratos de ALD, estão bem patentes no protótipo de minuta contratual existente nos autos, que compreende algumas cláusulas já declaradas nulas nesta acção, com trânsito em julgado, revestindo a forma de um projecto de contrato de adesão.
A instituição das cláusulas contratuais gerais destinou-se a coordenar o uso de cláusulas abusivas e a uniformizar, na medida do possível, os critérios dessa coordenação, ou seja, a consagrar o regime das cláusulas contratuais gerais consideradas abusivas.
Para este efeito, é decisiva a circunstância de a cláusula, contrariando as exigências da boa fé, originar um significativo desequilíbrio entre os direitos e deveres que para as partes decorrem do contrato, em detrimento do destinatário.
As cláusulas contratuais gerais são, em princípio, as cláusulas elaboradas, sem prévia negociação individual, como elementos de um projecto de contrato de adesão, destinadas a tornar-se vinculativas quando proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a subscrever ou aceitar esse projecto, com vista a proteger o destinatário ou aderente, pondo-o ao abrigo de cláusulas iníquas, por ele não negociadas.
Como resulta dos próprios termos da sua definição, são características necessárias das cláusulas contratuais gerais, a generalidade e a rigidez, e eventuais, a desigualdade entre as partes, a complexidade das cláusulas e a sua natureza formulária (21).
A lei portuguesa submete as condições gerais do contrato a um apertado sistema de controlo, que funciona, a vários níveis, isto é, em primeiro lugar, ao nível da inclusão das cláusulas, no contrato singular, depois, no âmbito da interpretação, e, finalmente, em sede do próprio conteúdo das condições gerais.
O propósito de tutela do consumidor estende-se a todas as cláusulas que não tenham sido, individualmente, negociadas, que se referem a estipulações que são pré-elaboradas para uma pluralidade de contratos, instituindo um sistema de protecção de todos os contraentes que concluam acordos com quem recorre a condições negociais gerais.
Mais do que um controlo destinado a atender à típica necessidade de tutela do cliente, que resulta da pura e simples utilização de condições gerais do contrato, pretende-se controlar a integridade da autonomia da vontade, reconduzindo-a à sua matriz originária, pela desautorização do seu unilateral exercício(22).
II. 3. Dispõe o artigo 21º, f), do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, que “são em absoluto proibidas, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que alterem as regras respeitantes à distribuição do risco”.
Nos contratos com eficácia real «quoad effectum», “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”, atento o estipulado pelo artigo 408º, nº 1, do CC.
Ora, o momento da transferência do direito, quando se trate do direito de propriedade, assume significado na resolução da questão do risco, porquanto esta matéria continua a ser regida pelo princípio romanista clássico, segundo o qual “res suo domino perit”, a menos que as partes fixem ao contrato uma eficácia que se afaste das regras supletivas estabelecidas por lei.
A este propósito, preceitua o artigo 796º, do CC, no seu nº 1, que “nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente”.
As soluções constantes do normativo legal, acabado de transcrever, são apenas aplicáveis aos contratos comutativos, que contendem com o denominado «risco da contraprestação» (23), e não com o risco negocial, que está sujeito a princípios distintos.
Aquele princípio tradicional do “res suo domino perit” recebe a sua «ratio» na consideração de que o alienante que transferiu a propriedade da coisa cumpriu a sua principal obrigação, enquanto que o alienante que a conservou em seu poder, depois de transferir a sua propriedade, fica sendo mero depositário do bem, não recebendo, em regra, qualquer benefício com essa conservação, não se justificando, consequentemente, que suporte o respectivo risco (24).
Assim sendo, por força das disposições conjugadas dos artigos 796º, nº 1 e 408º, nº1, ambos do CC, o risco do perecimento ou destruição da coisa, por causa não imputável ao alienante, fica a cargo do adquirente, logo que lhe é transmitida a propriedade, o que acontece, por mero efeito do contrato de alienação, independentemente da entrega da coisa.
Com efeito, no contrato de compra e venda a prestações, com cláusula de reserva de domínio, a transferência do direito de propriedade opera, automaticamente, com o pagamento da última prestação, sendo certo que o risco, se a coisa tiver continuado em poder do alienante, só se transfere, em princípio, com o vencimento do termo ou a entrega da coisa, enquanto que se esta tiver sido entregue ao adquirente, e o contrato estiver dependente de condição resolutiva, o risco do perecimento corre por conta deste, ao passo que se a condição for suspensiva, já corre por conta do alienante, durante a pendência da condição, nos termos do preceituado pelo artigo 796º, nºs 2 e 3, do CC (25).
Por seu turno, no ALD, esse efeito da transferência da propriedade só se produz com a celebração, em cumprimento do contrato promessa que a operação comporta, de um futuro contrato prometido de compra e venda entre o locatário e o terceiro interposto pelo locador, porquanto esta figura contratual se limita ao desempenho exclusivo e especializado da função de concessão de crédito, ao passo que o contrato de compra e venda a prestações combina com esta, igualmente, a função de intermediação na circulação dos bens.
O vendedor a prestações, ainda que com o fim último de revender os bens, compra os mesmos para os integrar na sua esfera patrimonial, assumindo, por isso, os riscos próprios de um vulgar proprietário, agindo por sua conta e risco.
Ao invés, no ALD, o locador apenas adquire os bens que lhe são, especificamente, solicitados pelo locatário carecido, sendo a este que cabe suportar os riscos inerentes à qualidade de proprietário do bem de que usufrui o gozo, porquanto o locador age, por conta e risco do locatário.
O desequilíbrio real de poder negocial entre as partes que, neste tipo de contrato de adesão, desfavorece o consumidor, beneficiário de uma particular tutela, com assento constitucional, por força do disposto pelo artigo 60º, nº1, da CRP, que supra a «assimetria informativa» (26) que o penaliza, não é suficiente, na hipótese em discussão, para excluir ou limitar o princípio da liberdade negocial, na vertente que aqui se coloca da liberdade de celebração ou conclusão dos contratos.
E esta liberdade consiste no poder de iniciativa que as partes têm de contratarem ou não contratarem, como melhor lhes aprouver, quer no sentido de que ninguém é obrigado a contratar contra a sua vontade ou a ninguém podem ser aplicadas sanções, por recusa de contratar, quer no sentido de que a ninguém pode ser imposta a abstenção de contratar (27).
Aliás, o artigo 15º, do DL nº 149/95, de 24 de Junho, que consagra o regime jurídico do contrato de locação financeira, dispõe que “salvo estipulação em contrário, o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário”.
Deste modo, a cláusula contratual geral consagrada no protótipo da minuta contratual em análise não altera as disposições legais respeitantes à distribuição do risco, com referência ao artigo 21º, f), do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, não devendo, consequentemente, ser declarada, “em absoluto proibida”, tal como vem pedido no articulado inicial.
Procedem, assim, embora com fundamentação, em parte, diversa, as conclusões constantes da revista da ré.
CONCLUSÕES:
I - O denominado contrato de ALD retrata uma pluralidade multilateral de contratos interligados por uma relação de coligação funcional de três tipos contratuais distintos que constituem o seu esqueleto estrutural, ou seja, de um contrato de aluguer de longa duração, de um contrato de compra e venda a prestações e de um contrato promessa de compra e venda do bem alugado.
II - A aludida coligação funcional do triângulo contratual em que se consubstancia o ALD é subsumível à matriz do contrato de mandato sem representação, cujos elementos em que o seu conteúdo típico se desdobra nele se revêem, igualmente, ou seja, por um lado, a vinculação do mandatário [locador], em nome próprio, mas por conta do mandante [locatário], que se obriga a adquirir o bem, por este, expressamente, escolhido e indicado, a terceiro, transferindo, em seguida, para este os direitos que haja adquirido na execução do mandato, a propriedade do bem adquirido por sua conta, para depois lhe proporcionar o gozo, e, por outro lado, o dever do mandante em reembolsar o mandatário das despesas que este haja efectuado no cumprimento do encargo de que fora incumbido com a aquisição do bem.
III – Deste modo, o ALD seria um contrato de concessão de crédito ao consumo, que opera, não mediante o empréstimo de dinheiro, mas antes através de um instrumento técnico-jurídico capaz de permitir que alguém conceda, temporariamente, a outrem o poder de compra de que este não dispõe, fraccionando e diferindo a execução da obrigação do mandante [o locatário] reembolsar o mandatário [o locador] da despesa efectuada na aquisição do bem objecto do contrato.
IV – A única semelhança que existe entre o contrato de compra e venda a prestações, instrumento pioneiro da concessão de credito ao consumidor, em que o crédito é concedido pelo próprio vendedor, através do diferimento da exigibilidade da obrigação de pagamento do preço para um momento futuro, posterior ao imediato cumprimento do dever de entrega da coisa, e o ALD, traduz-se em que, em ambos os casos, existe uma obrigação pecuniária de execução fraccionada, no primeiro, de pagamento do preço, e, no segundo, de reembolso dos fundos adiantados pelo locador.
V – Embora no ALD, o efeito da transferência da propriedade só se produza com a celebração, em cumprimento do contrato promessa que a operação comporta, de um futuro contrato prometido de compra e venda entre o locatário e o terceiro interposto pelo locador, este apenas adquire os bens que lhe são, especificamente, solicitados pelo locatário carecido, ao qual cabe suportar os riscos inerentes à qualidade de proprietário do bem de que usufrui o gozo, porquanto o locador age, por conta e risco do locatário.
VI - O desequilíbrio real de poder negocial entre as partes, que neste tipo de contrato de adesão desfavorece o consumidor, beneficiário de uma particular tutela constitucional que supra a «assimetria informativa» que o penaliza, não é suficiente, na hipótese do presente contrato de ALD, para excluir ou limitar o princípio da liberdade negocial, na vertente que aqui se coloca da liberdade de celebração ou conclusão dos contratos.
DECISÃO (28):
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista, e, em consequência, revogando o acórdão recorrido, julgam a acção improcedente, por não provada, neste particular, não declarando a nulidade da cláusula sétima, nºs 3, c), 4 e 5, das Condições Gerais do Contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor, sob a epígrafe “Responsabilidade, Risco e Seguro”, no mais confirmando o acórdão impugnado.
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A revista não é tributada com custas, por delas estar isento o autor, nos termos do disposto pelos artigos 446º, nº 1, do CPC, e 2º, nº 1, a), do Código das Custas Judiciais.
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Notifique.
Supremo Tribunal de Justiça,
Lisboa, 1 de Fevereiro de 2011.
Helder Roque (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
________________________________
(1) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Sebastião Póvoas; 2º Adjunto: Conselheiro Moreira Alves.
(2) Leite de Campos, Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXIII, 1987, 10.
(3) Leite de Campos, Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXIII, 1987, 5.
(4) Com as alterações introduzidas pelos DL´s nºs 265/97, de 2 de Outubro, 285/01, de 3 de Novembro, e 30/08, de 25 de Fevereiro.
(5) STJ, de 22-3-2007, Pº nº 07B708; de 12-7-2005, Pº nº 05B2352, www.dgsi.pt; e de 5-12-95, CJ (STJ), Ano III, T3, 135.
(6)Pedro Pais Vasconcelos, Contratos Atípicos, 1995, 245 e 246.
(7) F. Gravato de Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, 2007, 57.
(8) Teresa Anselmo Vaz, Alguns Aspectos do Contrato de Compra e Venda a Prestações e Contratos Análogos, Almedina, 1995, 86.
(9) Teresa Anselmo Vaz, Revista Portuguesa de Direito de Consumo, nº 14, 125 e 126.
(10) Paulo Duarte, Algumas Questões sobre ALD, Estudos de Direito do Consumidor, BFDC, Centro Direito do Consumo, nº 3, 2001, 302, 303 e 326.
(11) Em que se verifica “a fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste”, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 194 e 195.
(12) Que consiste no aproveitamento de um negócio típico para a satisfação de um fim concreto e que seria “idóneo, só por si, a constituir o objectivo capaz de um negócio jurídico diferente daquele que as partes, em concreto, queriam actuar”, Orlando de Carvalho, Negócio Jurídico Indirecto (Teoria Geral), BFDC, Suplemento X, 1952, 14.
(13) F. Gravato de Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, 2007, 57, citado.
(14) STJ, de 14-5-2009, Pº nº 08P4096, www.dgsi.pt
(15) Paulo Duarte, Algumas Questões sobre ALD, Estudos de Direito do Consumidor, BFDC, Centro Direito do Consumo, nº 3, 2001, 310; e STJ, de 4-10-2000, CJ (STJ), Ano VIII, T3, 59, no âmbito do contrato de locação financeira, mas a propósito do lugar paralelo da “função amortizante de uma dívida de reembolso”.
(16) Paulo Duarte, Algumas Questões sobre ALD, Estudos de Direito do Consumidor, BFDC, Centro Direito do Consumo, nº 3, 2001, 324, 317 e 318.
(17)Artigo 7º, nº 1, da Directiva 93/13/CEE.
(18) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 189.
(19) Joaquim de Sousa Ribeiro, Responsabilidade e Garantia em Cláusulas Contratuais Gerais, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra Editora, 2007, 101 e 103 e notas (3) e (4).
(20)Joaquim de Sousa Ribeiro, Responsabilidade e Garantia em Cláusulas Contratuais Gerais, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra Editora, 2007, 184.
(21)Almeno de Sá, Cláusulas Contratuais Gerias e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas, 2ª edição, revista e aumentada, 2001, 212.
(22) STJ, de 30-6-2009, Revista nº 129/09.0YFLSB.
(23) Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 57 e 58
(24) Vaz Serra, Do cumprimento como Modo de Extinção das Obrigações, nº 10, BMJ nº 34, 35 e 36.
(25) STJ, de 22-2-1983, BMJ nº 324º, 578.
(26) Fernando Araújo, Teoria Económica do Contrato, Almedina, 2007, 463.
(27)Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, 2006, 230, 231, 239 e 240.
(28) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Sebastião Póvoas; 2º Adjunto: Conselheiro Moreira Alves.