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CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DOCUMENTO PARTICULAR
ASSINATURA
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
RENDA
RASURA
FALSIFICAÇÃO
VÍCIOS DA VONTADE
PROVA TESTEMUNHAL
ADMISSIBILIDADE
Sumário
I - Uma fotocópia simples de um contrato escrito de arrendamento com assinaturas das partes – da autora primitiva, como senhoria, e da ré, como arrendatária – sem qualquer reconhecimento notarial ou outro das mesmas e sem qualquer intervenção de autoridade oficial, trata-se de um documento particular. II - Em princípio, se as partes reconheceram aquele documento como tendo sido assinado por ambas, deve o seu conteúdo fazer prova plena contra a parte que o tenha assinado, desde que tal conteúdo lhe seja desfavorável (cf. arts. 373.º, 374.º e 376.º do CC), prevendo o n.º 1 do art. 376.º do CC uma excepção a essa força probatória plena, no caso de ser arguida e provada a falsidade do documento. III - Tendo a autora, desde a petição inicial com que apresentou aquele documento, alegado a falsificação dos montantes das rendas estipuladas, falsificação essa atribuída à ré, e provando tal adulteração pela ré, o referido documento, na parte falsificada, não faz prova plena do seu conteúdo, ou seja, da renda que dele consta, mas prova a renda que dele constava antes da falsificação. IV - A proibição constante do art. 393.º do CC não obsta a que seja provada por testemunhas a falta de vontade ou a existência de vícios de vontade dos declarantes. Desta forma, não há qualquer razão para a não aplicação da referida excepção à regra da proibição da prova testemunhal para apurar da falsificação apontada pela autora. V - É pacificamente aceite que a prova documental prevista no art. 376.º, n.º 1, do CC, reduz-se ao que foi declarado no documento em causa, ou seja, apenas abrange a prova de que as partes fizeram aquelas declarações, mas não se estende à coincidência dessas declarações com a realidade, podendo a parte fazer prova por testemunhas da falta de coincidência da referida declaração com a realidade.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Nas Varas de Competência Mista do Tribunal Judicial de Coimbra, em 28-02-2005, AA instaurou contra BB, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento que descreve; que a Ré seja condenada a despejar o locado; e que a Ré seja condenada a pagar à A. as rendas vencidas, no valor de € 19.153,92, e todas as vincendas até à efectiva entrega do locado.
Para tanto e muito em resumo, alegou que deu de arrendamento à Ré, por contrato escrito de 1/11/1999, o 1º andar direito, correspondente à fracção autónoma designada pela letra C, do prédio urbano sito na Av. …, nº …, em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santo António dos Olivais sob o artigo 6285;
Que esse contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, prorrogável, com início em 1/11/1999, destinando-se o locado a habitação da Ré;
Que foi convencionada a renda anual de Esc. 720.000$00 (€ 3.591,34), a ser paga mensalmente no montante de Esc. 60.000$00 (€ 299,28);
Que a Ré nunca depositou a renda devida, pelo que deve o montante peticionado e vencido até 1/02/2005.
Contestou a Ré alegando, também muito resumidamente, que não deve qualquer renda à A., na medida em que tem vindo regularmente a liquidar a renda mensal contratualmente devida, que é apenas de € 24,99.
Terminou pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição dos pedidos.
No desenvolvimento do processo a A. informou que a Ré fez entrega do locado em Novembro de 2005 – fls. 94 -, na sequência do que foi proferido despacho a declarar extinta a instância relativamente aos pedidos de resolução do contrato de arrendamento e de despejo, por inutilidade superveniente da lide, tendo prosseguido a acção apenas quanto ao reclamado crédito de rendas vencidas entre 1/02/1995 e Novembro de 2005 – fls. 96.
Também sucedeu que a A. veio a falecer, em 1/01/2008, conforme fls. 110, tendo sido habilitado como seu sucessor, para com ele prosseguir a acção, CC – fls. 133.
Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade processual da acção, com selecção da matéria de facto alegada e tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da causa.
Seguiu-se a instrução, com realização de uma perícia pelo Laboratório de Polícia Científica, conforme fls. 171 e 172.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova testemunhal produzida, finda a mesma foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação.
Proferida a sentença, nela foi decidido condenar a Ré a pagar a quantia de € 19.748,88, acrescida de juros de mora desde a data do respectivo vencimento até integral pagamento.
Dessa sentença interpôs recurso a Ré, recurso que foi admitido como apelação e foi julgado improcedente na Relação de Coimbra.
Mais uma vez inconformada, veio a ré interpor a presente revista tendo nas suas alegações formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas, e das quais se deduz que aquela, para conhecer neste recurso, levanta as seguintes questões: a) A renda mensal fixada no contrato de arrendamento em causa no presente litígio foi a de 5.000$00, sendo a renda anual de 60.000$00, renda essa que a ré depositou na conta da autora e que esta aceitou ? b) O documento de fls. 9 e 10 faz prova plena do facto referido na alínea anterior, nos termos do art. 544º do Cód. de Proc. Civil e do art. 376º do Cód. Civil ? c) A prova testemunhal não prova que as declarações negociais contidas no referido documento tenham sido produzidas com falta ou com vício de vontade, únicas circunstâncias em que este tipo de prova seria admissível “contra vel praeter scriptum”? d) O valor da acção deve ser actualizado para valor superior a € 30.000,01, tendo em conta que na presente data os juros vencidos calculados nos termos peticionados acrescidos dos juros vincendos até à prolação do acórdão neste tribunal ultrapassarão aquele montante ?
O recorrido não apresentou contra-alegações.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-lei nº 303/2007 de 24/08, aqui aplicável, atenta a data da instauração da presente acção e o disposto nos arts. 11º e 12º do mesmo decreto-lei, redacção essa a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem –, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Já vimos acima as concretas questões que a aqui recorrente levantou.
Mas antes de mais há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por provada e que é a seguinte:
1 – Por acordo escrito constante de fls 9 e 10, cujo teor aqui se dá por reproduzido, celebrado em 1 de Novembro de 1999, a A deu de arrendamento à Ré, para habitação desta, o 1º andar direito, correspondente à fracção autónoma designada pela letra “…”, do prédio urbano sito na Av. …, nº …, Santo António dos Olivais, em Coimbra, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 6285.
2 - Esse arrendamento incluía um estacionamento automóvel na cave…
3 – A Ré entregou à A. a dita fracção em 1/11/2005, entrega que a A. aceitou.
4 – A título de pagamento da renda da dita fracção, a Ré depositou mensalmente em conta bancária da A. o montante de Esc. 5.000$00 (€ 24,99).
5 – O original do doc. referido no ponto 1 supra, na parte relativa ao valor da renda foi rasurado pela Ré ou por alguém a seu pedido.
6 – Aí constando aquando da celebração do acordo, o valor de Esc. 720.000$00, a pagar em duodécimos de Esc. 60.000$00.
7 – A renda relativa a fracção e estacionamento foi fixada pelas A. e Ré no valor anual de Esc. 720.000$00, a pagar em duodécimos de Esc. 60.000$00.
Antes de passarmos para o conhecimento de cada uma das concretas questões acima apontadas como objecto deste recurso, queremos referir que, com excepção da última pretensão da recorrente – sobre a actualização do valor da acção –, todas as questões aqui levantadas o foram já no recurso de apelação, constituindo, nessa parte, as conclusões apresentadas pela recorrente na presente revista a reprodução praticamente textual das conclusões apresentadas no recurso de apelação, sem que as fundamentadas considerações alinhadas no douto acórdão recorrido que as rejeitou tenham sido minimamente tomadas em conta pela recorrente.
Daí que bastaria remeter para aquele acórdão para rejeitar aquelas questões, nos termos do art. 713º, nº 5.
Porém, sem a pretensão de dizer nada de novo, sempre iremos apreciar as referidas questões, embora de forma mais sintética.
a) Nesta primeira questão defende a recorrente que a renda fixada no contrato de arrendamento aqui ajuízado é de 5.000$00 mensais e de 60.000$00 anuais, renda essa que foi depositada pela recorrente na conta da autora que a aceitou.
Ora em relação a esta questão apenas diremos que não corresponde essa afirmação à matéria de facto dada por apurada nas instâncias e acima apontada.
Com efeito, dos factos provados acima descritos sob os números 5, 6 e 7 consta que os montantes mensais e anuais da renda acordada no mesmo arrendamento foram, respectivamente, de 60.000$00 e de 720.000$00.
Também resulta provado que a recorrente apenas depositou a título de pagamento da renda em causa, na conta da autora e mensalmente a importância de 5.000$00.
Logo se vê que a presente pretensão da recorrente tem de improceder.
b) Nesta segunda pretensão da recorrente esta defende que o documento de fls. 9 e 10 faz prova plena do facto pretendido na questão anterior, ou seja, de que a renda acordada foi de apenas 5.000$00 por mês e de 60.000$00 por ano.
Também aqui e como bem apontou o acórdão recorrido carece a recorrente de razão.
Com efeito, o documento em causa constitui uma fotocópia simples de contrato escrito de arrendamento com assinaturas das partes: da autora primitiva como senhoria e da ré como arrendatária, sem qualquer reconhecimento notarial ou outro das mesmas, e sem qualquer intervenção de autoridade oficial.
Trata-se, assim, de um documento particular que, porém, foi reconhecido pelas partes como tendo sido assinado por ambas.
Daí que, nos termos dos arts. 373º, 374º e 376º do Cód. Civil, deve o seu conteúdo fazer prova plena contra a parte que o tenha assinado, desde que tal conteúdo lhe seja desfavorável.
Porém, o nº 1 do citado art. 376º prevê uma excepção a essa força probatória plena no caso de ser arguida e provada a falsidade do documento.
Tendo a autora desde a sua petição inicial com que apresentou aquele documento alegado a falsificação dos montantes das rendas estipuladas, falsificação essa atribuída à ré, provou tal adulteração pela ré nos presentes autos, tal como já havia sido provado na anterior acção interposta pela mãe da primitiva autora – e de que esta foi sucessora habilitada naquela, por morte da mesma ali autora – acção essa proposta contra a mesma ré, tal como consta dos documentos juntos aos autos não impugnados pela ré.
Desta forma, o referido documento na parte falsificada não faz prova plena do seu conteúdo, ou seja, da renda que dela consta, mas prova a renda que dela constava antes da falsificação.
Por isso, improcede este fundamento do recurso.
c) Aqui a recorrente defende que a prova testemunhal não é admissível para a prova daquela falsificação por não estar em causa qualquer vício ou falta de vontade dos declarantes.
Também aqui a recorrente carece de razão na pretensão.
Com efeito, o art. 392º do Cód. Civil estipula que a prova testemunhal é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada.
Por seu lado, o art. 393º do mesmo diploma legal estipula no seu nº 1 que se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida a prova testemunhal.
E o seu nº 2 acrescenta que também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
Apesar disso, tal como aceita a recorrente, aquela proibição não obsta a que seja provada por testemunhas a falta de vontade ou a existência de vícios de vontade dos declarantes – cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 275.
No caso em apreço, o que está em causa é a vontade contratual da autora em acordar nos montantes de renda que constam agora do referido documento de fls. 9 e 10, pois a autora, desde o início, alegou que a sua vontade declarada - e até aposta inicialmente no documento - foi a dos montantes da renda de 60.000$00 por mês e 720.000$00 por ano e que subsequentemente a ré, ou alguém a seu mando, rasurou para os montantes que ali constam agora.
Desta forma não qualquer razão para a não aplicação da referida excepção à regra da proibição da prova testemunhal para apurar da falsificação apontada pela autora.
Além disso, tal como é pacificamente aceite – citando-se como exemplo o ac. do STJ de 13-02-2003, no recurso nº 4551/02-2ª secção -, a prova documental prevista no nº 1 do art. 376º apontado reduz-se ao que foi declarado no documento em causa, ou seja, apenas abrange a prova de que as partes fizeram aquelas declarações, mas não se estende à coincidência dessas declarações com a realidade, podendo a parte fazer prova por testemunhas da falta de coincidência da referida declaração com a realidade.
De igual modo, não há qualquer razão para não aplicar a mencionada excepção à regra da inadmissibilidade da prova testemunhal à situação aqui em apreço.
E tal como decidiu o acórdão da Relação do Porto de 21-11-2005, Col. Jur., ano XXX, tomo V, pág. 188, relatado pelo aqui 1º Conselheiro-Adjunto: “mesmo nas declarações negociais que devem, sob pena de nulidade, obedecer a forma solene ( escrita ) se admite a prova testemunhal para a interpretação do contexto do documento – nº 3 do art. 393º do Cód. Civil -, por maioria de razão deve tal tipo de prova ser admitido para provar a falsidade ou adulteração do conteúdo do documento”.
Acresce que no presente caso a prova daquela adulteração resultou quer da prova testemunhal quer da prova pericial – decisão de fls. 334 e 335 dos autos.
Improcede, desta forma, mais este fundamento do recurso.
d) Resta a pretensão da recorrente no sentido da actualização do valor da acção para montante não inferior a € 30.000,01 por força da procedência do pedido de juros vencidos e vincendos, o que faz elevar o valor do pedido a esse montante.
Pensamos que a recorrente também aqui labora em erro.
Com efeito, nos termos do art. 315º, nº 2, o valor da acção fica definitivamente fixado logo que seja proferido o despacho saneador.
Logo a presente pretensão é intempestiva.
E acrescente-se ainda que a pretensão da recorrente deve ter tido em mente permitir a admissibilidade do presente recurso, por a alçada do Tribunal da Relação ter sido fixada em € 30.000,00 pelo art. 5º do Decreto-Lei nº 303/2007 de 24/08, e atendendo à regra da alçada fixada no nº 1 do art. 678º.
Assim, a recorrente devia pretender que a presente revista fosse admissível por o valor da acção ser alterado para € 30.000,01.
Porém, tal alteração não é necessário para admissibilidade da presente revista, dado que o valor da alçada da Relação atendível para o presente processo é o de € 14.963,94, nos termos do art. 24º da Lei nº 3/99 de 13/01, na redacção dada ao mesmo pelo Decreto-Lei nº 323/2001 de 17/12.
É que a alteração do valor das alçadas levada a cabo pelo referido art. 5º não é aplicável ao presente processo, em face do disposto no art. 11º, nº 1 do mesmo Decreto-Lei 303/2007, e atendendo à data de instauração da presente acção.
Soçobra, desta forma, mais este fundamento do recurso e com ele toda a revista.
Pelo exposto, nega-se a revista pedida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 2 de Março de 2011
João Camilo (Relator)
Fonseca Ramos
Salazar Casanova