1. O tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito ( art. 664º do CPC) - podendo, consequentemente, com plena autonomia, qualificar juridicamente os factos alegados como integradores da causa de pedir (ou que estão na base de uma excepção peremptória, deduzida pelo R), suprindo uma omissão da parte na indicação do fundamento jurídico da sua pretensão ou corrigindo oficiosamente uma qualificação jurídica que tenha por incorrecta , imperfeita ou inadequada.
2. Pode configurar um mandato sem representação o acordo informal das partes, vivendo em união de facto, em função do qual uma delas encarrega a outra de intervir na celebração de negócio de aquisição de um imóvel, cujo preço foi pago pelo mandante, impossibilitado circunstancialmente de comparecer na escritura, sem outorgar ao mandatário procuração bastante, ficando assente que o bem seria adquirido no interesse comum , apesar de o mandatário outorgar na escritura em nome próprio – ficando vinculado a transmitir ulteriormente para o mandante a sua quota parte na titularidade dos bens adquiridos.
3. O que identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico.
4. Nesta perspectiva, é lícito ao tribunal convolar de um improcedente pedido de reconhecimento, no plano dos direitos reais, de uma situação de compropriedade no imóvel adquirido, em nome próprio, pelo mandatário desprovido de poderes representativos para o reconhecimento do direito, estritamente obrigacional, – e, portanto, desprovido de eficácia «erga omnes», dependendo decisivamente o cumprimento da obrigação do mandatário de este ainda conservar a titularidade e o poder de disposição do bem adquirido - de ver transferido para o património do mandante a quota que lhe caberia no imóvel adquirido , nos termos previstos no nº1 do art. 1181º do CC.
Com a presente acção, pretende a apelante AA ver reconhecida “a comunhão do bem em causa”(1) - prédio urbano designado por Lote 000/00, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº 00000000, freguesia de Quarteira -, registado em nome do Réu BB. Em causa, pois, uma pretendida justaposição de um direito igual ao já existente, mas em benefício da demandante, o que permite situar a questão no âmbito da constituição de um direito real, e não da sua transmissão ou modificação.
Para o efeito, alegou, em síntese, a apelante AA que “pagou a totalidade do preço” e que havia acordado, com o demandado BB - com quem vivia em união de facto e havia já planeado casar, na altura em que este outorgou a escritura de compra e venda -, “ que a casa seria um bem do casal”. (2)
Sucede, porém, que estes factos jurídicos são inidóneos para produzir efeitos reais, uma vez que o direito, em abstracto, assim os considera. Ou seja: dos factos jurídicos invocados não deriva o direito real que a apelante AA pretende fazer valer.
Já em sede de alegações, veio a apelante AA, rotulando o demandado / recorrido BB de mandatário sem representação, situar a presente acção no âmbito cumprimento da obrigação consagrada no artigo 1181º., nº 1 do Código Civil.
Acontece que, para além da manifesta desconformidade com o pedido formulado inicialmente e não alterado, os factos alegados não apontam para uma vinculação jurídica do referido demandado para com a apelante AA, mas antes para uma situação de obsequiosidade, decorrente de uma relação amorosa e, mesmo que assim não fosse, a alegada acção de cumprimento da obrigação de transferência de bens carece de eficácia real.
2. Novamente inconformada, interpôs a A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões que, como é sabido, lhe delimitam o objecto:
1. O presente recurso é interposto do Acórdão proferido pela Veneranda Relação de Évora que julgou a Apelação improcedente mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
2. O Acórdão enferma de erro de interpretação e aplicação da lei.
3. A presente acção foi intentada contra BB, sendo pedida a sua condenação a reconhecer a Autora como comproprietária do imóvel em causa nos autos sendo o Réu é a pessoa em nome da qual se encontra registado o imóvel.
4. Da matéria de facto dada como provada resulta que a Recorrente e o Recorrido foram confrontados com a possibilidade de adquirirem, a bom preço, uma moradia no Algarve - cfr. facto 7 -, tendo o Recorrido dificuldades financeiras, porém a Recorrente tinha possibilidades de, aos poucos, pagar o preço do imóvel - cfr. facto 8.
5. Mais resulta que a Recorrente e o Recorrido, conjuntamente acordaram com o proprietário a compra do imóvel e o respectivo preço - cfr. facto 9 - e que o preço foi pago exclusivamente pela Recorrente, de acordo com as suas possibilidades - cfr. factos 10 e 11.
6. Ficou, ademais provado, que existiu um prévio acordo entre a Recorrente e o recorrido para que a aquisição fosse realizada conjuntamente, ficando o bem registado em nome dois - cfr. factos 12, 13 e 14.
7. A Recorrente articulou factos reveladores da invalidade da escritura de compra e venda do prédio, com base na qual fundara a iiisão da presunção do direito de propriedade derivada do registo predial da titularidade de outrem, factos que foram dados como provados.
8. O Recorrido não pode beneficiar da presunção derivada do registo do prédio a que procedeu a seu favor, na conservatória, nos termos do artigo 7.° do Código do Registo Predial.
9. O registo foi feito exactamente com base nas declarações, impugnadas e infirmadas pelos factos dados como provados, concretamente em violação do acordado com a Recorrente e do mandato conferido por esta para a celebração da escritura.
10. A presunção derivada do mesmo, deveria ter sido julgada ilidida pelo Acórdão Recorrido.
11. O pagamento integral do preço pela Recorrente referido na sentença é apenas um dos elementos a considerar para aferir da violação da representação por parte do Recorrido, que agiu com reserva mental aquando da celebração da escritura de compra e venda, produzindo declarações que não coincidiam com a declaração real correspondente ao acordado com a apelante e ao mandato conferido
12. A enumeração do art 1316.° do ÇC não é taxativa e não impede, como se julgou, que seja proferida sentença que declare que a Recorrente é comproprietária do imóvel na proporção de ½ e condene o réu a reconhece-lo.
13. Existiu ainda, face aos factos provados, clara violaçjqjdo mandato por parte do recorrido.
14. Ao adquirir o prédio para ele exclusivamente, o Recorrido agiu contra os interesses do mandante, a ora Recorrente.
15. O réu agiu, pois, na sequência de um mandato sem representação, - artigo 1180 – pelo que adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio em causa, porque agiu em nome próprio, mas na sua qualidade de mandatário é obrigado a transferir para o mandante ( a Recorrente) o direito a 1/2 do prédio, que adquiriu em execução do mandato - artigo 1181 do Código Civil.
16. Embora um terceiro seja o destinatário dos actos, os efeitos destes verificam-se na esfera jurídica do mandatário, - artigo 1180 - assim se revelando como lícita a interposição real do mandatário sem representação, ainda que oculte a sua posição em relação ao mandante ( cf. Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 3a edição, página 747 ).
17. Decorre do artigo 1181, como correlativa ao princípio geral nele consignado, uma acção do mandante d. carácter pessoal e não de carácter real.
18. A acção do mandante destina-se apenas a obter o cumprimento de uma obrigação – a de transferir os bens, (v. Antunes Varela, "ibidem", página 748, e anotação de Vaz Serra ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/78, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 111, página 248 ).
19. No caso de incumprimento daquela obrigação, o mandante, pode, como sucede na presente acção, com base em mandato não representativo, exigir do interposto-mandatário o cumprimento da obrigação de transferência, nos termos do artigo 1181 do Código Civil.
20.De tudo o exposto resulta que o Tribunal recorrido deveria ter julgado a apelação procedente alterando a sentença em conformidade.
21. A O Acórdão Recorrido recorrida violou ou fez errada interpretação e aplicação, além do mais, do disposto nos arts. 7.° do CRP, e arts. 1316.° e 1157, 1178, 1180, 1181, do Código Civil e deve em consequência ser revogado e substituído por outra que declare a procedência da Apelação.
3. As instâncias consideraram fixada a seguinte matéria de facto:
1º. - Autora e Réu, depois de vários anos de vida em comum, contraíram casamento em Dezembro de 1987;
2º. - Em Janeiro de 1985, Autora e Réu iniciaram vida em conjunto, como se de um casal se tratasse, em Benfica, Lisboa, onde instalaram a casa de morada de família e onde, desde então, partilharam a casa, a cama e a mesa, nessa residência tomando refeições em conjunto e partilhando o mesmo quarto;
3º. - Em tal residência recebiam os amigos, filhos e correspondência;
4º. - As despesas eram partilhadas e suportadas por ambos;
5º. - Compravam bens em conjunto, supriam as diversas despesas com os filhos em comum sem qualquer distinção ou preocupação de equidade;
6º - A Autora sustentava a casa, um vez que o Réu estava em dificuldades financeiras;
7º. - No início de 1987, surgiu a possibilidade de, a bom preço, Autora e Réu adquirirem uma moradia no Algarve;
8º. - O Réu estava com dificuldades financeiras mas a Autora tinha todas as possibilidades de, aos poucos, conseguir pagar o imóvel;
9º. - Foi então que acordaram com CC comprar o prédio urbano, sito em Vilamoura, designado por lote 000/00 da freguesia de Quarteira, pelo valor de 9.500.000$00, ou seja, € 47.385,80, tendo sido celebrado contrato promessa entre a Autora e os vendedores;
10º. - O preço foi pago a prestações até à celebração da escritura, de acordo com as possibilidades da Autora;
11º. - Todos os pagamentos do preço foram efectuados pela Autora, ora em cheque, ora em numerário, ora por transferência bancária;
12º. - No dia em que se encontrava designada a celebração da escritura, a Autora foi acometida de doença e não pôde deslocar-se ao cartório para assinar a mesma;
13º - Dada a dificuldade de agendamento da escritura, pois os vendedores era vários e porque a Autora confiava plenamente no Réu foi este quem outorgou a escritura, acordando previamente com aquela que o faria como representante do casal e que a casa seria um bem comum do casal;
14º. - Na altura, Autora e Réu já tinham planeado casar e aquela seria a casa de férias da família, como de resto sempre foi;
15º. - No dia 20 de Junho de 1987, no 20º. Cartório de Lisboa, perante a notária, CC, DD, EE e mulher, na qualidade de primeiros outorgantes e BB, viúvo, na qualidade de segundo outorgante, “pelos primeiros foi dito: que vendem ao segundo outorgante, livre de ónus ou encargos, e pelo preço de nove milhões e quinhentos mil escudos, que declaram já ter recebido, o prédio urbano, sito em Vilamoura, designado por” Lote ............. ......., um / ......, freguesia de Quarteira (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob o número ............da dita freguesia (…) pelo segundo outorgante foi dito: Que aceita a presente venda, nos termos exarados, destinando-se o imóvel ora adquirido a sua habitação permanente (…);
16º. -Todas as obras efectuadas no imóvel em referência forma suportadas por Autora e Réu, designadamente a construção da piscina, acabamento da sala de jantar e o jardim, pintura da casa toda por dentro e por fora;
17º. - Todas as despesas de manutenção com o fornecimento de energia eléctrica, água, telefone e empregados, pintura, reparações, gás forma suportadas pelos dois;
18º. - Sempre foi no imóvel em referência que a Autora e o Réu passaram as suas férias na companhia dos respectivos filhos;
19º. - O prédio urbano sito em Vilamora, designado por Lote 000/00 da freguesia de Quarteira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob o artigo 00000000 tem registo de aquisição (G-1, A 0000000000) registada a favor do Réu casado com AA, em comunhão de adquiridos, com a menção especial de “o bem é próprio do referido BB”.
4. Reeditando nesta acção a argumentação deduzida no âmbito dos embargos de terceiro, opostos à entidade bancária que havia penhorado, em acção executiva, o imóvel em litígio, peticiona a A. o seu reconhecimento como comproprietária do imóvel e a declaração do referido prédio como bem comum do extinto (por separação judicial) casal.
Como causa de pedir de tal pretensão material, invoca-se, no essencial, que a aquisição do imóvel, mediante negócio jurídico em que apenas outorgou, em nome próprio, o R. teria ocorrido no âmbito de um acordo informal entre os interessados, vivendo à época em união de facto, segundo o qual o R. deveria outorgar na escritura pública de aquisição como «representante do casal», já que a A. teria pago a totalidade do preço devido e o destino acordado para o imóvel seria a comunhão conjugal ( invocando-se a existência de um «contrato promessa», não documentado nos autos, celebrado apenas pela A. com os vendedores) – o qual teria sido incumprido pelo R. ao outorgar na escritura em nome próprio, registando apenas na sua titularidade o imóvel e recusando-se a partilhá-lo com a A.
De salientar que , na petição inicial apresentada, a A. omite totalmente a indicação das razões de direito que deviam servir de suporte ao pedido formulado, não especificando minimamente as normas e a concreta via jurídica que permitiriam alcançar o efeito jurídico – o reconhecimento do direito ( de compropriedade) que se arrogava.
O R. não contestou a acção, o que naturalmente levou a que ficasse assente a versão fáctica apresentada pela A.
Consideraram, porém, as instâncias, de modo coincidente, que tais factos eram inidóneos para produzir o efeito jurídico pretendido pela A., já que deles não emerge manifestamente o efeito real de aquisição da compropriedade.
Saliente-se que a omissão de indicação das razões de direito da pretensão – qualificando juridicamente a factualidade alegada e estruturando, em termos minimamente consistentes, uma via jurídica idónea para produzir a aquisição da compropriedade – apenas foi suprida nas alegações apresentadas no recurso de apelação, ensaiando-se a seguinte linha argumentativa:
- a escritura de aquisição do imóvel seria «inválida», por desrespeitadora do acordo informal celebrado anteriormente pelas partes, pelo que o recorrido não poderia beneficiar da presunção emergente do registo predial, lavrado com base nas suas declarações;
- os factos aduzidos na petição permitiriam considerar celebrado entre os interessados um mandato sem representação, enquadrável no art. 1180º do CC, estando o mandatário que adquiriu o prédio obrigado a transferir para o mandante o direito a metade daquele imóvel , por força do estatuído no art. 1181º do CC. – obrigação cujo cumprimento se pretenderia alcançar através da presente acção.
Confrontada com a rejeição de tal linha argumentativa no acórdão ora recorrido – que entendeu que a invocação de um contrato de mandato apenas e pela primeira vez no âmbito de um recurso de apelação consubstanciava uma inadmissível alteração do pedido inicialmente formulado – insiste a A. na mesma tese na alegação que apresentou no recurso de revista.
5. Note-se, desde já, que a primeira via argumentativa seguida pela recorrente é manifestamente improcedente, por ser evidente que a circunstância de um dos contraentes outorgar em nome próprio numa escritura de compra e venda de imóvel , desrespeitando um eventual acordo informal ( aliás, não acompanhado pela atribuição de poderes representativos mediante procuração dotada de forma adequada à realização de negócios relativos a bens imobiliários) com terceiro, que o vincularia a actuar também em nome e representação deste, de modo a que os efeitos do negócio jurídico se projectassem também – e desde logo – na respectiva esfera jurídica , não implica qualquer invalidade da escritura ou do subsequente registo de aquisição : na verdade, tal situação apenas poderá implicar que tenha havido violação da obrigação contratualmente assumida com o terceiro, estranho à celebração do negócio formal aquisitivo da propriedade, que naturalmente é insusceptível de contender com a plena validade e eficácia do negócio documentado pela escritura pública de compra e venda e do correspondente registo predial .
Já, pelo contrário, a segunda via argumentativa seguida pela recorrente poderá ter alguma plausibilidade – tudo dependendo da resposta que se der a duas questões:
- a matéria de facto alegada poderá preencher a celebração – e o posterior incumprimento – de um contrato de mandato sem representação, subsumindo-se, deste modo, ao art. 1180º do CC?
- será possível convolar do estrito pedido formulado – de reconhecimento de um direito de compropriedade sobre o imóvel litigioso - para um pedido que – abandonando o seu enquadramento normativo no plano dos direitos reais, da eficácia real do contrato – se conforme antes como visando obter, no plano estritamente obrigacional, a condenação do R. a transferir para a A. metade do direito de propriedade que adquiriu através da celebração, em nome próprio, do negócio de compra e venda, enquadrável no preceituado no art. 1181º do CC?
Como é sabido, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito ( art. 664º do CPC) - podendo, consequentemente, com plena autonomia, qualificar juridicamente os factos alegados como integradores da causa de pedir (ou que estão na base de uma excepção peremptória, deduzida pelo R.), suprindo uma omissão da parte na indicação do fundamento jurídico da sua pretensão ou corrigindo oficiosamente uma qualificação jurídica que tenha por incorrecta , imperfeita ou inadequada.
Ora, poderá a factualidade alegada na petição preencher a celebração entre os litigantes de um contrato de mandato sem representação, como pretende agora a recorrente?
Seguindo de perto a fundamentação explanada no acórdão de 22/6/04, proferido pelo STJ no p. 04A1937, pode efectivamente considerar-se que :
Na verdade, o art. 1157 do C.C. define o mandato como sendo o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.
Mas a lei distingue entre mandato com representação e mandato sem representação.
No mandato com representação, o mandatário a quem hajam sido conferidos poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas também em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada - art. 1.178.
Quanto ao mandato sem representação, o art. 1.180 do mesmo Código, estabelece o seguinte :
"O mandatário que agir em nome próprio adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido de terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes".
Da conjugação de ambos os preceitos, resulta que, no mandato sem representação, o mandatário, apesar de intervir por conta e no interesse do mandante, não aparece revestido da qualidade de seu representante.
Pelo contrário, age em nome próprio e não em nome do mandante, pelo que é ele, mandatário, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra.
Todavia, em cumprimento das suas obrigações contratuais para com o mandante, o mandatário deve depois transferir para aquele a titularidade desses direitos - art. 1.181, nº1.
Se o mandatário não cumprir essa obrigação, o mandante pode pedir ao tribunal que o condene a cumprir.
O princípio geral é, pois, o de que o mandatário fica obrigado a transferir para o mandante os direitos que tenha adquirido.
A acção do mandante sobre o mandatário tem, assim, no nosso direito, carácter pessoal e não real.
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Cód. Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 748) " a acção não é de reivindicação, porque, antes da transferência, o mandante não tem nenhum direito sobre os bens adquiridos; a acção destina-se apenas a obter o cumprimento de uma obrigação - transferir os bens.
Daqui uma consequência: o mandante não goza do direito de sequela, nem sequer do direito de separação, no caso do mandatário se tornar entretanto insolvente.
Se os bens ou direitos forem entretanto alienados pelo mandatário, este responde nos termos gerais, pelo prejuízo causado ao mandante com a falta de cumprimento da obrigação, mas não pode o mandante reivindicá-los do património de terceiros".
Consequentemente, o mandatário é o titular dos direitos adquiridos por força dos actos que pratica no exercício do mandato, os quais ingressam na sua esfera jurídica, e não na do mandante.
Por isso, em princípio, a situação do mandante é estranha às pessoas que contratam com o mandatário e estas pessoas, por sua vez, também não é com o mandante, mas com o mandatário, que estabelecem relações negociais.
Tais pessoas não passam de terceiros, em relação ao mandato.
A afirmação contida na parte final do citado art. 1.180 vem pôr em evidência a licitude da interposição do mandatário sem representação, mesmo que este procure ocultar a sua posição em relação ao mandante.
Tal interposição é lícita, " porque é real e verdadeira, e não fictícia ou simulada, e porque não há interesse jurídico, social ou moral em a proibir ( Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 747).
3.
Consequentemente, pode concluir-se serem elementos essenciais do mandato sem representação:
a) - O interesse de uma pessoa na realização de um negócio, sem intervenção pessoal;
b) - A interposição de outra pessoa a intervir no negócio, por incumbência, não aparente, do titular do interesse ;
c) - A celebração do negócio pela interposta pessoa, sem referência ao verdadeiro interessado;
d) - A transmissão para o mandante dos direitos obtidos pelo mandatário.
Todavia, para a configuração do mandato sem representação não é necessário que o direito adquirido pelo mandatário se mostre já transferido para o mandante .
Basta a perspectiva da transmissão e não que tal transmissão já esteja efectivamente concretizada.
Quando tal acontecer, terá o significado de ter sido cumprida a obrigação de transmitir o direito adquirido, assumida pelo mandatário, ou de ter sido exercido o correspondente direito do mandante, nos termos do art. 1181, nº1, do Cód. Civil.
É o que resulta do apontado carácter obrigacional da relação que se estabelece entre o mandatário e o mandante .
Este tem o direito de obter para si a transmissão do bem adquirido pelo mandatário, mas é suficiente a constatação da existência desse direito, a ser exercitável quando o mandante o exija ou após ter decorrido o prazo concertado com vista à concretização do epílogo contratual.
Quanto à forma, pode afirmar-se que o mandato não representativo é consensual, vigorando o princípio da liberdade da forma consagrado no art. 219 do C.C. (Ac. S.T.J. de 22-2-00, Col. Ac. S.T.J., VIII, 1º, 114; Ac. S.T.J. de 11-5-00, Bol. 497-357; Ac. S.T.J. de 21-1-03, Col. Ac. S.T.J., XI, 1º, 31).
Com efeito, se o mandato não é com representação, não se pode falar em formalidade do mandato (Vaz Serra, R.L.J. 111-247).
É que, no mandato, não há forma solene, vigorando o princípio da liberdade da forma.
Estabelecendo a distinção entre procuração e mandato, observa Vaz Serra (R.L.J. Anos 112-222 e 109-225) que a procuração é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa confere a outra poderes de representação para, em seu nome, concluir um ou mais negócios jurídicos ; diversamente, o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.
Sendo a procuração o acto pelo qual alguém confere poderes de representação, tal significa que se o procurador celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram atribuídos esses poderes, o negócio produz efeitos em relação ao representado.
O mandato, por sua vez, é independente da procuração, podendo ser com representação ou sem ela.
A procuração, salvo disposição em contrário, tem de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (art. 262, nº2, do C.C.), enquanto o mandato não está sujeito a forma especial.
Por isso, o mandato pode ser concluído sem observância de forma especial, nos termos gerais decorrentes do art. 219 do C.C.
Ora, transferindo estas considerações para a peculiar situação dos autos, pode efectivamente considerar-se que estão presentes os elementos essenciais da figura do mandato sem representação, já que:
- a A. teria efectivamente interesse na realização do negócio de compra e venda do imóvel, documentado pela escritura pública realizada, por ter, segundo afirma, pago inteiramente o respectivo preço e destinar-se o prédio a utilização familiar conjunta pelos interessados, vivendo à época em união de facto, estando circunstancialmente impedida de outorgar pessoalmente na escritura;
- pela circunstância de não terem sido atribuídos, de forma adequada, poderes representativos ao R., mediante procuração que revestisse a forma exigida pelo negócio a realizar pelo procurador, nos termos do art. 262º do CC, a interposição do R. no negócio só poderia resultar de incumbência informal , não aparente, da própria A. , enquanto co-titular do interesse na respectiva celebração;
- determinando tal circunstancialismo que o negócio tivesse sido efectivamente celebrado por interposta pessoa – o ora R. – sem referência à A., também interessada na sua celebração;
- bastando, porém, o referido acordo informal para fundamentar a ulterior obrigação do mandante de transferir para a esfera jurídica da A. a sua quota no bem adquirido.
Não consideramos, quanto a este ponto, que da situação de união de facto existente entre as partes se possa extrair a insusceptibilidade de uma vinculação jurídica quanto aos termos em que o negócio deveria ser efectuado e os seus efeitos ulteriormente projectados na esfera jurídica dos interessados – não demonstrando a matéria de facto fixada a existência de uma situação de mera obsequiosidade ou de puras «obrigações naturais» entre os interessados, desprovidas em absoluto de efeitos vinculativos para o R., - e emergentes, desde logo, de, perante a matéria de facto fixada por não impugnação do R., a causa fundamental e substantiva da aquisição patrimonial ter residido na integral e prévia satisfação do preço por parte do mandante.
6. Assente que a estrita factualidade alegada pela A. – e tida por provada, em consequência da admissão por parte do R. revel – pode subsumir-se sem esforço à figura do mandato sem representação, importa analisar a segunda questão atrás suscitada : será possível convolar do pedido deduzido – da pretensão material formulada pela A na petição inicial e não modificada durante o decurso do processo na 1ª instância – para pretensão juridicamente diferenciada, apenas invocada na fase de recurso?
É que, como é óbvio, representam pedidos juridicamente bem diferenciados o do reconhecimento da aquisição de um direito de compropriedade sobre determinado imóvel, por mero efeito do contrato celebrado por mandatário (como se viu, manifestamente desprovido de poderes representativos válidos) e o do reconhecimento da existência de uma mera obrigação de transferência para património da A. da sua quota nos bens adquiridos, em nome próprio, pelo mandante – naturalmente insusceptível de produzir os efeitos «erga omnes», típicos das relações jurídicas providas de natureza real : o cumprimento de tal obrigação pelo mandatário destituído de poderes representativos dependerá naturalmente e em termos decisivos de, nesse momento, ele ainda ser titular do direito adquirido em nome próprio e de ter um poder de disposição sobre o bem em causa.
Ou seja: a pretensão para que convolou a A. na fase de recurso representa obviamente , por um lado, uma realidade jurídica diversa da que esteve subjacente à tese sustentada na petição inicial e mantida durante o curso do processo na 1ª instância ; e, por outro lado, representa um «minus» relativamente à tutela que decorreria da originária pretensão, resultando naturalmente mais frágil a posição da parte que apenas invoca uma relação estritamente obrigacional com o mandante, apenas passível de cumprimento se ele ainda mantiver a disponibilidade dos bens adquiridos em nome próprio ( e devendo naturalmente ser ressarcida por este dos danos sofridos, nos termos gerais, se ele tiver entretanto perdido a titularidade ou o poder de disposição dos bens adquiridos através do mandato sem representação).
Embora se trate de matéria menos linear e mais controversa do que a simples – e corrente - alteração da qualificação jurídica da factualidade integradora da causa de pedir, tem sido admitido, com fundamento numa visão funcional e menos rigidificante do processo, que, em certos casos, possa o tribunal corrigir e adequar , quer a pretensão material, reconfigurando no plano normativo o efeito jurídico pretendido pelos litigantes, quer as próprias pretensões adjectivas formuladas pelas partes convolando da configuração jurídica que os litigantes lhes haviam erroneamente atribuído para a que se mostra adequada à realidade normativa ( veja-se, de forma paradigmática, o acórdão uniformizador 2/10, estendendo o tradicional regime do «erro na forma do processo» ao suprimento da forma incorrecta que revestiu a impugnação deduzida pela parte, convertendo, em consequência, o inadmissível requerimento de interposição de recurso de decisão do relator na reclamação para a conferência prevista no nº3 do art. 700º do CPC).
Neste último tipo de situações, o que normalmente se pretenderá através da convolação e correcção realizadas pelo tribunal é evitar a sujeição da parte a um gravoso – e, porventura, desproporcionado - efeito preclusivo, que inelutavelmente decorreria do erro cometido acerco do âmbito dos meios procedimentais utilizados, não sendo já possível à parte, pelo jogo dos prazos peremptórios que a oneravam, fazer uso do meio procedimental próprio, no momento em que ficasse assente a impropriedade do meio processual erroneamente utilizado.
Por sua vez, no primeiro grupo de situações, consubstanciadas no correcção da qualificação ou «coloração» jurídica dada à pretensão material, o que, no essencial, se pretende evitar com a convolação operada é, no plano da celeridade e da eficácia processuais, dispensar a propositura de uma nova acção, em que apenas fosse corrigido pelo autor o modo como este havia configurado normativamente o efeito jurídico extraído dos
mesmos factos : sendo naturalmente admissível a propositura de uma acção nova em que, apesar de fundada exactamente nos mesmos factos, se deduzisse um pedido diferente ( art. 498º do CC), a repetição do litígio envolveria um desproporcionado esforço de alegação de factos e de prova dos mesmos, quando o que, afinal, estava em causa era apenas a reconfiguração – no estrito plano normativo - da via jurídica através da qual se pretendia alcançar o reconhecimento do direito a determinados bens.
E, nesta perspectiva, pode afirmar-se que o que, afinal, identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico .
Assim, será lícito ao tribunal convolar, mesmo oficiosamente, por exemplo, de um pedido de anulação do negócio jurídico para a declaração da respectiva ineficácia, sem que tal permita afirmar que, ao fazê-lo, o tribunal julgou objecto diverso do que havia sido peticionado ( veja-se o acórdão uniformizador 3/01, de 23 de Janeiro, facultando ao juiz a correcção oficiosa , em acção de impugnação pauliana, do pedido de «declaração de nulidade ou anulação» do negócio impugnado para o de «ineficácia do acto em relação ao autor») ; ou a possibilidade ( reconhecida pelo Assento de 28/3/95) de fazer derivar o direito do autor a determinada prestação, não da via jurídica por ele construída e estruturada ao longo do processo – o cumprimento de determinada relação contratual – mas de via juridicamente diversa, resultante de o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade desse contrato, acabando por atribuir o bem pretendido pelo autor por força da actuação da regra da restituição do recebido, com fundamento no nº1 do art. 289º do CC ( e não no cumprimento do contrato tido por nulo, invocado pelo autor no pressuposto de que seria válido).
Ora, aderindo a esta visão substancialista e desformalizadora do processo civil, considera-se possível operar a convolação pretendida, a título subsidiário, pela A., reconhecendo-lhe, não obviamente, no plano dos direitos reais, a quota parte que lhe caberia, em termos de compropriedade, no imóvel adquirido, em nome próprio, pelo R., ( como sustentava, em primeira linha, na sua alegação - conclusões 7 a 12) mas o direito, estritamente obrigacional – e, portanto, desprovido de eficácia «erga omnes» - a ver transferido para o seu património a sua quota de metade no imóvel adquirido pelo mandatário sem poderes representativos, nos termos previstos no nº1 do art. 1181º do CC.
E, como atrás se realçou, embora a possibilidade de cumprimento desta obrigação do mandatário dependa decisivamente de ele ainda ser titular de um poder de disposição sobre o imóvel em litígio ( o que dependerá, em primeira linha, do decidido no âmbito dos enxertos declaratórios deduzidos no âmbito da execução em que o imóvel em causa foi penhorado por terceiro), o reconhecimento da sua vinculação no confronto da A à obrigação prevista no art. 1181º, nº1, do CC. tem a virtualidade de, ao menos no plano das «relações internas» entre os cônjuges, deixar assente a titularidade de um direito de crédito da A. sobre o R., com todas as consequências inerentes em sede de relações patrimoniais entre os cônjuges separados – dispensando, por esta via, a propositura de nova acção em que, com base na mesma realidade fáctica, apenas se peticionasse, desde o início da causa, o reconhecimento do direito obrigacional emergente da referida norma.
7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados:
a) nega-se provimento à revista, na parte em que a recorrente pretende obter o reconhecimento de um direito real de compropriedade sobre o imóvel em litígio;
b)concede-se parcial provimento à revista e, em consequência, face à configuração dos requisitos de um mandato sem representação, julga-se a acção parcialmente procedente, convolando-se para a condenação do R. na obrigação pessoal de transmitir para a A., por força do preceituado no nº1 do art. 1181º do CC, a quota parte de metade do prédio urbano sito em Vilamoura , designado por Lote 000/00 da freguesia da Quarteira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o artigo 000000007, registado a favor do R. pelo registo de aquisição G-1.A.40/170789.
Custas da acção e dos recursos em partes iguais, por recorrente e recorrido, nos termos do art. 446º, nº3, do CPC.
Lisboa, 2 de Março de 2011
Lopes do Rego (Relator)
Orlando Afonso
Cunha Barbosa
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(1) Artigo 34º. da petição inicial
(2) Artigos 23º. e 24º. da petição inicial.