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NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
ALIENAÇÃO DE IMÓVEL
VENDA A RETRO
VENDA EM GARANTIA
PACTO COMISSÓRIO
NULIDADE DO NEGÓCIO
OPONIBILIDADE A TERCEIROS
Sumário
1. Não pode configurar-se como venda «a retro» o negócio jurídico de venda de imóvel, celebrado por escritura pública, que omite qualquer cláusula resolutiva, validamente estipulada, reconhecendo ao vendedor o direito potestativo de resolver o contrato, mediante restituição do preço e acessórios – não sendo possível inferi-la do acordo verbal e informal subjacente à escritura , de que resulta tratar-se, afinal, de venda com o fim indirecto de garantia de dívida emergente de mútuo, reconhecendo as partes o carácter meramente temporário da alienação.
2. Na verdade, a razão determinante da forma legal e imperativamente imposta para a celebração de negócios de alienação de imóveis aplica-se plenamente à estipulação da dita cláusula resolutiva, que não pode deixar – enquanto produtora de efeitos reais, susceptíveis de afectar a consolidação do efeito aquisitivo do direito de propriedade pelo comprador - de revestir a forma exigida para o negócio pela lei civil.
3. Pode qualificar-se como venda fiduciária em garantia o negócio jurídico de venda de imóvel celebrado com um fim indirecto de garantia de uma relação obrigacional, de que era credor o comprador no confronto do vendedor, emergente de um mútuo entre eles celebrado, consubstanciando-se o carácter «temporário» da alienação das fracções prediais na estipulação de uma obrigação pessoal de conservar e revender a coisa que lhe foi alienada logo que se mostrasse exaurido o fim de garantia que estava subjacente à venda – e resultando tais obrigações de um pacto fiduciário, informalmente acordado, embora de forma encoberta ou oculta, pelos interessados.
4. A estrutural diversidade jurídica entre as figuras da constituição de direitos reais de garantia ( ainda que a oneração do bem seja acompanhada de uma inadmissível estipulação do pacto comissório) e da venda fiduciária em garantia, imediatamente geradora de um efeito transmissivo do direito de propriedade, obsta à directa subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694º do CC, cujo programa normativo se dirige – e confina - ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso – e no momento - em que o devedor não cumprir a obrigação garantida.
5. Não é de admitir a «extensão teleológica» da proibição contida no citado art. 694º, determinante do vício de nulidade, à venda fiduciária em garantia de bens imóveis, por tal envolver restrição desproporcionada do princípio fundamental da segurança e confiança no comércio jurídico, ao facultar aos outorgantes a invocação e a consequente oponibilidade da nulidade a terceiros de boa fé, subadquirentes do imóvel alienado, nos termos do art. 291º do CC, mesmo nos casos em que o pacto fiduciário estivesse oculto e dissimulado, relativamente às cláusulas contratuais integradoras do negócio formal de alienação e do teor do respectivo registo, de modo a afectar a consistência jurídica dos direitos que aqueles fundadamente supunham ter adquirido.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA intentou acção declaratória, na forma ordinária, contra os RR. BB e CC, pedindo a declaração de nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda de várias fracções prediais que identifica e o consequente cancelamento dos registos de aquisição , bem como a nulidade, por falta de forma, do contrato de mútuo dissimulado sob a compra e venda simulada : na verdade, naquela escritura de compra e venda o 1º R., agindo em nome e representação do A., declarou vender ao 2º R. e este declarou comprar, pelo preço global de 35.000.000$00, as referidas fracções autónomas de que o A. era proprietário, sendo o negócio realizado pelo 1º R. sem conhecimento ou autorização do A., usando, para tal, procuração que anteriormente lhe havia outorgado, mas sem que, nem o A., nem o seu representante, tivessem recebido o preço do comprador ; assim, sustenta que nenhum dos declarantes na referida escritura quis efectivamente comprar ou vender as fracções em litígio – estando subjacente à venda simulada o empréstimo de uma quantia em dinheiro entre os RR. , negócio este nulo por falta de forma legal.
Apenas contestou o 2º R., impugnando que o procurador do A. não tivesse querido vender e o contestante não tivesse querido comprar as fracções em causa – pelas quais teria, aliás, pago, não o preço declarado na escritura, mas o valor de 55.000.000$00, preço real e justo, porquanto as fracções se encontravam arrendadas - passando a agir como verdadeiro proprietário das mesmas.
Foi requerida e admitida a oposição espontânea dos requerentes DD, EE e FF, invocando terem adquirido as fracções antes da presente acção ser desencadeada e peticionando que se declare a inoponibilidade aos intervenientes da simulação dos negócios cuja nulidade vem peticionada pelo A.
Após julgamento, foi proferida sentença em que se declarou a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda celebrado, bem como a nulidade, por falta de forma, do mútuo sob ele dissimulado, ordenando-se o cancelamento dos registos efectuados e julgando improcedente o incidente de oposição espontânea deduzido pelos subadquirentes das fracções em litígio.
Inconformados, apelaram da sentença o R.CC e os interessados que haviam deduzido oposição espontânea, tendo a Relação – no acórdão ora recorrido – julgado os recursos procedentes, revogando a sentença recorrida e decretando, em sua substituição, a improcedência do pedido de simulação do negócio de compra e venda de imóvel, deduzido pelo A., absolvendo, em consequência as partes do pedido de declaração de nulidade formulado.
Para tanto, considerou a Relação, em primeiro lugar, que inexistiam os pressupostos da simulação, por não se vislumbrar o intuito dos contraentes de enganar terceiros com as declarações negociais emitidas, que, aliás, traduziam uma vontade efectiva de comprar e vender : o que as partes teriam convencionado entre si seria antes o ulterior «desfazer da venda» realizada, convenção essa que não produziria nulidade, por se consubstanciar antes numa venda «a retro», plenamente consentida pelas actuais disposições do CC.
Por outro lado – e no que se refere à relação de representação voluntária que existia entre o A. e o 1º R. – considera o acórdão recorrido que a mesma terá sido regularmente exercida, notando, porém, que – mesmo que assim não fosse – não haveria fundamento para questionar a validade e eficácia do contrato quanto aos demais intervenientes, nos termos do disposto nos arts. 266º a 269º do CC.
2. Inconformado com tal sentido decisório, interpôs o A. a presente revista, acompanhada de douto parecer sobre as questões normativas controvertidas – que transcreve – e em que se formulam as seguintes conclusões:
a) Os outorgantes do contrato de compra e venda, de 3 de Agosto de 1999, quiseram, dar ao comprador, 2o R, garantia do empréstimo por este concedido ao 1° R., representante do A., pondo temporariamente em seu nome as fracções autónomas vendidas;
b) Não foi feita prova da intenção de enganar terceiros, pelo que, na falta deste elemento, esse contrato não é nulo por simulação;
c) Da escritura que titula o contrato referido na ai. a) não consta qualquer cláusula que reconheça ao vendedor o direito potestativo de resolver o contrato, mediante a restituição do preço e acessórios;
d) Não foi alegado, nem, correspondentemente, provado, que tal cláusula haja sido convencionada entre as partes:
e) De resto, ainda que o tivesse sido, não estando contida na escritura do contrato de compra e venda, seria nula por falta de forma;
f) Em face do que consta das ais. c) e e), o contrato de compra e venda referido na al. a) não c uma retro venda;
g) Esse contrato constitui um negócio fiduciário para fim de garantia (cum creditore):
h) Tal como foi celebrado e executado, este contrato é nulo por fraude à lei, pois envolveu consequências próprias do pacto comissório, proibido pelo sistema jurídico português:
i) Com efeito, o 2º R., pura e simplesmente, fez suas as tracções autónomas objecto do contrato de compra e venda da al, a), nomeadamente alienando três delas a terceiros:
j) Não decidiu, pois, acertadamente, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, quando considerou válido, como retro venda, o contrato de compra e venda da al. a);
l) Devia ter declarado a sua nulidade nos termos das als, g) a i);
m) A declaração de nulidade do contrato de compra e venda é oponível aos três subadquirentes das fracções autónomas;
ti) Com efeito, embora eles tenham adquirido a título oneroso e de boa fé uma coisa imóvel, o registo das suas aquisições é posterior ao registo da acção intentada para declaração de nulidade do contrato da ai. a);
o) Assim, mesmo desconsiderando o facto de a acção de declaração de nulidade ter sido proposta antes de decorrerem 3 anos após o contrato de compra e venda identificado na ai. a), não se verificam, na totalidade, os requisitos cumulativos de que o art° 291° do C.Civ. e o n° 2 do art° 17° do Código do Registo Predial fazem depender a inoponibilidade da declaração de nulidade do negócio jurídico ou do acto de registo a terceiros;
p) Pelo que, tal como o A. pediu na acção a. que se reporta este parecer, devem ser canceladas as inscrições registais de aquisição do 2° R e dos subadquirentes das tracções autónomas que são objecto do contrato da al. a);
q) E neste sentido devia também ter sido emitido o referido acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que, pelas duas razões expostas, não se pode manter.
Os recorridos pugnam pela manutenção do acórdão recorrido.
3. As instâncias fizeram assentar a solução jurídica do pleito na seguinte matéria de facto:
Através da escritura pública lavrada no Primeiro Cartório Notarial de Loulé, no dia 3 de Agosto de 1999, o 1o co-réu, agindo em nome e representação do autor, declarou vender ao 2 co-réu e este declarou comprar, pelo preço global de Esc: 35.000.0000$OO (trinta e cinco milhões de escudos), equivalente a € 174.579,26 (cento e setenta e quatro mil quinhentos e setenta e nove euros e vinte e seis cêntimos), as seguintes fracções, todas de um prédio urbano situado na Rua ........., freguesia da Sé, Concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo -.--- e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro, sob o n° 00000, do livro 00-00 e inscrito a favor do vendedor pela inscrição 00 apresentação 9, de 25 de Agosto de 1979 (Doe. 1 e 2):
a) A fracção "00, ....... esquerdo, para habitação, pelo preço de Esc: 4.000.000$00 (quatro milhões de escudos) o equivalente a € 19.951,92 (dezanove mil novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos);
b) Fracção "00, no .....esquerdo, para habitação, pelo preço de Esc: 4.000.000$00 (quatro milhões de escudos) o equivalente a € 19.951,92 (dezanove mil novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos) ;
c) Fracção "00", no ..... esquerdo, para habitação, pelo preço de Esc: 4.000.000$00 (quatro milhões de escudos) o equivalente a € 19.951,92 (dezanove mil novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos); e ainda mais duas fracções, a saber:
d) A fracção "00", .......esquerda, destinada a arrecadação, sita no prédio urbano, denominado Lote 00, situado na Urbanização ......., no 000000 em Faro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 5.647 e descrito na Conservatória do
Registo Predial de Faro sob o n° 0000000, inscrita a favor do vendedor, pela inscrição 00, pelo preço de Esc: 14.601.463$00 (catorze milhões seiscentos e um mil e quatrocentos e sessenta e três escudos) o equivalente a € 72.831,79 (setenta e dois mil oitocentos e trinta e um euros e setenta e nove cêntimos) (Doe. 3);
e) Fracção "00", no 00 andar 00, destinado a habitação denominado Lote n°00, situado em ......, freguesia da Sé, em Faro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 5.678, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n° 00000000 e inscrita a favor do vendedor, pela inscrição G-l, pelo preço de Esc: 8.398.537$00 (oito milhões trezentos e noventa e oito mil quinhentos e trinta e sete escudos) o equivalente a € 41.891,73 (quarenta e um mil oitocentos e noventa e um euros e setenta e três cêntimos) (Doe. 4) (A).
Estas fracções estavam registadas em nome do autor (B).
Por Escritura Notarial de Compra e Venda outorgada em 19 de Março de 2002 no Quarto Cartório Notarial de Lisboa, a interveniente, DD, declarou comprar e GG, na qualidade de procurador do réu CC, que declarou vender, a fracção autónoma designada pela Letra "00" correspondente ao ...... esquerdo, destinado à habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ........., em Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n° 0000 e inscrito na respectiva matriz sob o art° -.---, conforme documento junto e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, como Doe. n° 1 do Incidente de Oposição Expontânea (C).
Por Escritura Notarial de Compra e Venda outorgada em 19 de Março de 2002 no Quarto Cartório Notarial de Lisboa, o interveniente, EE, declarou comprar e GG, na qualidade de procurador do réu CC, que declarou vender, a fracção autónoma designada pela Letra "00" correspondente ao ..... esquerdo, destinado à habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ........., em Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n° 0000 e inscrito na respectiva matriz sob o art° -.---, conforme documento junto e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, como Doe. n° 2 do Incidente de Oposição Expontânea (D).
Por sua vez HH, pai dos também ora intervenientes, DD e EE, por Escritura Notarial de Compra e Venda outorgada em 01 de Março de 2002 no Quarto Cartório Notarial de Lisboa, declarou comprar e GG na qualidade de procurador do réu CC declarou vender, a fracção autónoma designada pela Letra "00" correspondente ao ...... esquerdo, destinado à habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ........., em Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n° 0000 e inscrito na respectiva matriz sob o art° -.---, conforme documento junto e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, como Doe. n° 3 do Incidente de Oposição Expontânea (E).
Em 22 de Outubro de 2002, faleceu HH, tendo deixado como herdeiros os seus filhos DD, EE e a sua mulher FF , estando por isso os mesmos habilitados a intervir neste processo, conforme documento junto e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, como Doe. n° 4 do Incidente de Oposição Expontânea (F).
A apresentação da requisição do registo das referidas aquisições foi efectuada, respectivamente, em 26 de Julho, 16 de Julho e 02 de Julho, tudo do ano de 2002, conforme documentos juntos e que se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, como Does. n°s 5, 6 e 7 (G).
Sucede que nos finais de Novembro de 2002, quando os intervenientes levantaram os registos e as respectivas certidões, verificaram que os registos de aquisição tinham ficado provisórios por natureza, porquanto o autor havia antes registado a Acção, conforme documentos juntos e que se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, como does. n°s 8, 9 e 10 (H).
O autor representado pelo seu procurador o réu Dr. BB, outorgou um Contrato de Promessa de Compra e Venda com o falecido HH, contrato este cujo objecto eram os Lotes de Terreno da já identificada Urbanização da ......, e onde mais uma vez foi usada a dita Procuração, conforme cópia de documento junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, como Doe. n° 11 (I).
Uma das fracções constantes da escritura de venda — a fracção "00", no ...andar 00, destinada a habitação, sita no prédio urbano, denominado Lote n° 00. situado em Vale de ....., em Faro, descrito em A)
— era a própria casa de família do referido co-réu, esposa e filhos, onde todos viviam (J).
O Projecto de Loteamento, localizado na ...... de Baixo, que estava a ser preparado e negociado pela "Paço Real — Sociedade de Fomento Imobiliário, Lda.", sediada em Faro e no qual, inclusive, o autor havia já investido uns largos milhões de escudos, era do maior interesse urbanístico e habitacional (K).
O co-réu Dr. BB vinha mantendo uma estreita colaboração com os gerentes dessa dita sociedade, promovendo a venda de lotes a potenciais interessados, pois a sociedade necessitava de obter fundos que lhe permitissem negociar ainda a compra de vários prédios contíguos onde se iria localizar o empreendimentos (L).
Por intermédio de um indivíduo de nome GG, travou conhecimento com o co-réu CC a quem expôs o seu projecto (M).
O co-réu Dr. BB age em representação do A. pelo menos desde 1990 e já usou variadíssimas vezes noutros negócios de compra e venda de imóveis a procuração que usou na escritura mencionada na alínea A) (N) .
Teor dos escritos denominados "procurações" de fls. 150 a 153 e da escritura pública esp. em A) (1º e 2º ).
O A. Nascimento é um homem de negócios que movimenta dezenas e centenas de milhares de euros (3º ).
O A. Nascimento comprava prédios urbanos e fracções autónomas destes (4º).
E não tinha necessidade de vender as ditas fracções, pois o que sempre faz é comprar (5º ).
Após a aquisição das fracções discriminadas na escritura pública aludida em A) dos factos assentes, o R.CC teve proveitos próprios sobre as mesmas (6º ).
E recebeu rendas dessas fracções, a partir do verão de 2002 (7º ).
Essas rendas foram recebidas pelo R. BB até ao verão de 2002 (8º ).
O R. BB tinha conhecimento do projecto de loteamento localizado na ...... de baixo, a nascente da Estrada de Nossa Senhora da Saúde, abrangendo uma área total de 184.562 m2, que seria dividida em 72 lotes, destinando-se 71 a edifícios de habitação e um a equipamento desportivo e caves para estacionamento (12°).
Projecto esse referido em K) (13°).
Graças à colaboração referida em L), o R. BB sabia que poderia adquirir lotes nesse empreendimento a preços vantajosos e revendê-los mais tarde, por forma a ganhar muito dinheiro (14°).
O R. BB tentou obter junto da Caixa de Crédito Agrícola de Tavira um financiamento para investir naquele projecto urbanístico (15°).
Ficou acordado entre os dois RR. que o CC emprestaria dinheiro ao BB, para este investir no dito projecto (16°).
Para garantir aquele empréstimo ficou acordado entre os dois RR. que as fracções constantes da escritura referida em A) dos factos assentes passariam temporariamente para o nome do R. CC (18°).
O R. BB recebeu do R. CC, pelo menos, a quantia de trinta e cinco milhões de escudos como contrapartida do ref°. em 18°, formalizado como se esp. em A) (19°).
Nunca o R. BB deu conhecimento ao A. da realização dessa venda, nem lhe entregou quaisquer quantias a esse título (22°).
As oponentes DD, EE e FF não tinham conhecimento dos negócios existentes entre o A. e o R. BB ou mesmo entre os RR. (25°).
E não sabiam como o R. CC havia adquirido as ditas fracções (27°).
O A. AA apenas tomou conhecimento de que as referidas fracções haviam sido vendidas pelo seu genro, o R. BB, ao R. CC, aquando da prestação de declarações na Polícia Judiciária (30°).
Teor da certidão emitida pelo 1º Juízo Cível da Comarca de Faro, extraída dos autos de Acção Ordinária n° 849/02, em que é A. CC e R. II de BB - transacção e sentença homologatória desta, transitada em julgado -, que aqui se dá por reproduzida na íntegra - doe. fls. 864 a 866.
4. Importa começar por caracterizar adequadamente os traços fundamentais da situação litigiosa.
Assim, estamos confrontados com a celebração - por procurador bastante do proprietário de determinadas fracções prediais, actuando no negócio em nome do seu representado - de um contrato de compra e venda com o 2º R., documentado por escritura pública, que menciona o preço da alienação e da qual nada transparece quanto aos possíveis fins indirectos de garantia que estariam subjacentes à transmissão da propriedade, operada através de tal negócio.
Na verdade, a existência de um fim de garantia de determinada obrigação pecuniária, decorrente de um mútuo, subjacente à dita venda, apenas decorre de um acordo verbal e informal, firmado entre o procurador e o comprador, e apurado através da prova produzida em audiência e livremente valorada pelas instâncias , reportado à seguinte matéria fáctica - fundamental para apreender adequadamente a presente situação litigiosa:
Ficou acordado entre os dois RR. que o CC emprestaria dinheiro ao BB, para este investir no dito projecto (16°).
Para garantir aquele empréstimo ficou acordado entre os dois RR. que as fracções constantes da escritura referida em A) dos factos assentes passariam temporariamente para o nome do R. CC (18°).
O R. BB recebeu do R. CC, pelo menos, a quantia de trinta e cinco milhões de escudos como contrapartida do ref°. em 18°, formalizado como se esp. em A) (19°).
Ou seja: no caso dos autos, o fim indirecto de garantia de uma obrigação, vinculativa do vendedor no confronto do comprador e subjacente ao acto de alienação praticado, está encoberto, oculto ou dissimulado das cláusulas contratuais formalmente acordadas e em que se consubstanciou a venda do imóvel, necessariamente realizada por escritura pública ; do mesmo modo, o carácter «temporário» da alienação das fracções prediais e a existência de uma obrigação de «retrovenda», a cargo do comprador no confronto do vendedor, logo que a dita finalidade de garantia se mostrasse exaurida, não transparece minimamente da referida escritura pública, não constando sequer de escrito particular, apresentado pelos litigantes ( o que, desde logo, implica que esta «obrigação» não possa sequer valer como contrato promessa de «revenda» do imóvel, face à exigência formal que consta do art. 410º, nº2, do CC).
Duas conclusões liminares se impõem – devendo salientar-se que, neste momento, elas são aceites pelo próprio A./ recorrente:
- a primeira delas é a de que o quadro fáctico apurado é manifestamente insuficiente para suportar a pretensão de obter a declaração de nulidade do contrato por simulação relativa, já que a venda ficcionada dissimularia um mútuo formalmente inválido : para além de se não vislumbrar manifestamente qualquer intenção de enganar terceiros, não ficou provado que, na escritura de compra e venda, os RR. não quiseram vender e comprar reciprocamente – ou seja, não se apurou, perante os factos provados, que eram fictícias as declarações negociais emitidas ( não tendo, consequentemente, o A. logrado cumprir o ónus probatório que sobre si recaia quanto aos pressupostos da invocada simulação);
- a segunda delas prende-se com os efeitos e relevância de um possível abuso dos poderes representativos por parte do 1ºR., eventualmente indiciado pela circunstância de não ter dado conhecimento ao seu representado das vendas realizadas, nem lhe entregando quaisquer quantias pecuniárias destas emergentes - actuando, deste modo, em desconformidade com as instruções que teria para uso da procuração e visando o negócio celebrado plausivelmente um fim de garantia de uma obrigação - que lhe era própria e pessoal - conexionada com um empréstimo acordado com o comprador no exclusivo interesse e benefício do representante: como expressamente se reconhece no douto parecer, a fls. 1617, se tal conclusão indicia uma situação de abuso de poderes representativos, todavia não se verificam os pressupostos , relativos à outra parte do negócio, de que, segundo o art. 269º do CC, depende a sua ineficácia em relação ao representado.
5. Como é evidente, o afastamento da simulação em que o A. fundava a sua pretensão material de invalidação do negócio não obsta a que –sem que seja naturalmente lícito introduzir qualquer alteração na matéria de facto processualmente adquirida, em termos de inovar quanto ao substrato fáctico da «causa petendi» - se possa qualificar juridicamente, com plena autonomia, a matéria de facto fixada, enquadrando-a normativamente na figura ou instituto jurídico que se tiver por preenchido.
Foi esta, aliás, a operação efectuada pela Relação no acórdão recorrido, subsumindo os factos apurados – e imodificados na apelação –no âmbito da figura da venda «a retro»- para concluir de seguida, no plano normativo, que a celebração de um tal tipo negocial, perfeitamente lícito face ao ordenamento civil vigente, não implicava qualquer valor negativo do negócio realizado pelas partes.
É contra tal qualificação jurídica que se insurge o recorrente, sustentando, com apoio no douto parecer apresentado, que os contornos da situação fáctica são insusceptíveis de preencher a referida figura, fazendo notar que da escritura que titula o contrato não consta qualquer cláusula que reconheça ao vendedor o direito potestativo de resolver o contrato, mediante restituição do preço e acessórios – e sendo evidente que, se, porventura, se quisesse inferir tal cláusula do acordo verbal e informal subjacente à escritura, ela sempre seria nula por falta de forma.
Considera-se que tal argumento é inteiramente procedente, não podendo efectivamente inferir-se a cláusula «a retro» de estipulações verbais acessórias, anteriores ou contemporâneas do documento autêntico que corporiza o negócio de alienação de bens imóveis : assim, ainda que, porventura, se pudesse entender que o «pactum fiduciae», o acordo «informal» das partes quanto ao carácter meramente «temporário» da venda das fracções prediais, tinha subjacente a intenção de instituir a referida cláusula potestativa, é evidente que a razão determinante da forma legal e imperativamente imposta para a celebração de negócios de alienação de imóveis se aplica plenamente à estipulação da dita cláusula resolutiva, que não pode deixar – enquanto produtora de efeitos reais, susceptíveis de afectar a consolidação do efeito aquisitivo do direito de propriedade pelo comprador - de revestir a forma exigida para o negócio pela lei civil, nos termos do disposto no art. 221º do CC.
E, nesta perspectiva, não temos qualquer objecção ao enquadramento jurídico do negócio celebrado, na peculiar situação dos autos, na categoria dos «negócios fiduciários com fim de garantia» ou, eventualmente, na sua inserção no âmbito da figura próxima da «alienação em garantia» que, em recente monografia (Alienação em Garantia, Catarina Monteiro Pires, 2009, pag. 99) é definido como o «negócio nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade».
Efectivamente, a venda realizada tinha subjacente um fim indirecto de garantia de uma relação obrigacional, de que era credor o comprador no confronto do vendedor, emergente de um mútuo entre ambos celebrado, consubstanciando-se o carácter «temporário» da alienação das fracções prediais em litígio na estipulação de uma verdadeira obrigação pessoal de revender a coisa que lhe foi alienada, cabendo ao credor o correspondente direito, meramente creditório, de exigir a revenda logo que se mostrasse exaurido o fim de garantia que estava por detrás da celebração da venda : como se referiu – e, desde logo, por razões de forma, - está excluído que o negócio fiduciário em causa possa produzir, na situação dos autos, efeitos reais, apenas podendo conduzir a estipulação verbal e informal das partes de que a venda seria, afinal, temporária e funcionalmente ligada à garantia de um crédito proveniente de um empréstimo em dinheiro a uma vinculação estritamente obrigacional e pessoal de revenda dos imóveis. E, na concreta situação em litígio, é evidente que o comprador, ao vender as fracções a terceiros, tornou impossível o cumprimento dessa obrigação de revenda dos bens – o que naturalmente – a não existir nulidade do contrato – apenas consentirá ao interessado o ressarcimento dos danos sofridos, no âmbito do instituto da responsabilidade civil.
Como o próprio recorrente admite, a doutrina portuguesa corrente é hoje favorável, em termos gerais, à admissibilidade da figura do negócio fiduciário com o credor, o qual terá, em princípio, de se considerar válido, enquanto emanação do princípio fundamental da autonomia da vontade dos contraentes.
Como se afirma, por ex. no Ac. de 17/12/02, proferido pelo STJ no P. 02A3267:
Pode entender-se por negócio fiduciário o negócio atípico pelo qual as partes adequaram através de um pacto - "pactum fiduciae" - o conteúdo de um negócio típico a uma finalidade diferente da que corresponde ao negócio instrumental usado por elas.
Sendo a fidúcia muito difícil de definir, dadas as cambiantes com que se apresenta, entendem alguns autores que é preferível proceder à descrição de tal negócio do que à definição do mesmo. Tratar-se-á assim de um "contrato atípico constituído geralmente por referência a um tipo contratual conhecido, susceptível de ser adaptado a uma finalidade diferente da sua própria, através de uma convenção obrigacional de adaptação" - Pedro Pais de Vasconcelos - "Contratos Atípicos" - Reimpressão, Almedina, pág. 259.
Constitui, saliente-se um único negócio e não uma dualidade negocial.
O dono do negócio, que é quem confere os poderes e o fiduciário a quem são conferidos, querem celebrar o negócio, não existindo assim simulação, mas não querem o negócio com todas as consequências jurídicas, todos os seus efeitos típicos, mas tão só para certo fim específico. O fiduciário fica obrigado a usar os poderes apenas para o fim tido em vista pelo dono do negócio.
É evidente que os contratos fiduciários assentam na confiança depositada pelo fiduciante no fiduciário, tendo a convicção firme de que este irá cumprir a sua vontade.
(…)
Não tem sido pacífica a admissibilidade de tal negócio jurídico.
No domínio do Código de Seabra era prevalente a tese da invalidade. Escreveu a propósito o Prof. Manuel de Andrade - "Teoria Geral da Relação Jurídica", Almedina, 1972, II, pág. 178, que "Não sendo válidos entre nós, portanto, os negócios fiduciários, segue-se que os interessados para realizarem objectivos semelhantes àqueles que seriam atingidos mediante esse negócio, terão de utilizar - sempre ou quase sempre - a simulação, fingindo concluir alguns dos negócios translativos causais previstos na lei (venda, doação, etc)".
Não é esse hoje o entendimento dominante.
O princípio da autonomia privada, que é uma ideia fundamental do nosso ordenamento jurídico-civil, tem como meio de actuação privilegiada o negócio jurídico.
É evidente que se a "fiducia", designadamente a "fiducia com creditore", envolver fraude à lei ou não se demarcar suficientemente da simulação relativa, existirá uma invalidade, mas por esse motivo e não pela causa "fiduciária".
É evidente também que a autonomia privada sofre limitações várias, desde logo a formação do contrato deve ser feita dentro dos limites da lei (artigo 405º do C. Civil), não sendo ainda dispiciendo lembrar os artigos 280º e 294º do mesmo Código, entre outros.
Não existindo nenhum desses obstáculos, parece nada impedir a admissibilidade dos negócios fiduciários.
Ora, o que está em causa no presente litígio é precisamente a questão de apurar se – através do «pactum fiduciae», apendiculado à celebração de uma (aparentemente normal e definitiva) compra e venda de imóvel, as partes não terão precisamente actuado em fraude à lei, contornando, no caso, a proibição do pacto comissório que o art. 694º estabelece imperativamente em sede de direitos reais de garantia.
E é esta precisamente a tese do douto parecer apresentado pelo recorrente, ao sustentar que a venda com fim indirecto de garantia, com o circunstancialismo que reveste a hipótese dos autos, atrás descrito, envolveria as consequências próprias do pacto comissório, proibido pelo sistema jurídico português, implicando a consequente nulidade por fraude a lei imperativa, oponível, nos termos gerais, aos subadquirentes das fracções prediais.
6. O Ac. de 21/12/05, proferido pelo STJ no P. 04B4479 analisou detalhadamente as razões que justificam o regime legal constante do referido art. 694º, fazendo-o nos seguintes termos, a que inteiramente aderimos:
Consigna o artº 694º do CC a proibição absoluta do pacto comissório, oriunda, como lembra Menezes Cordeiro, da "velha constituição de Constantino" "Direitos Reais", Lex, 1993, pág. 765), proibição essa, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, fundada "no prejuízo que do pacto comissório pode resultar para o devedor, que seria facilmente convencido, dado o seu estado de necessidade, a aceitar cláusulas lesivas dos seus interesses", tal fundamento sendo "paralelo ao da proibição da usura", a proibição abrangendo "também, pelo seu espírito, o pacto pelo qual e convencione o direito de venda particular", o pacto comissório, "por sua própria natureza", só se compreendendo "quando anterior ao vencimento do crédito (para o caso de não cumprir)"o sublinhado nosso cfr. Código Anotado" - 4ª Edição Revista e Actualizada -, vol. I, pág. 718.)
Acompanhamos, antes, a respeito da ratio da proibição do pacto comissório, o sustentado por Manuel Januário da Costa Gomes, quando escreve:
"A ideia dominante entre nós é a de que a proibição do pacto comissório é justificada pela necessidade de proteger o devedor face a eventuais extorsões por parte do credor, identificando-se com a ratio do art. 1146º que pune a usura, bem como com o pensamento subjacente à condenação dos negócios usurários (art. 282º).
No entanto, como observa ROPPO, esta justificação é susceptível de provocar perplexidades por razões de ordem sistemática, já que na lógica do sistema, a tutela de quem contrata em estado de necessidade ou coagido não passa pela nulidade, para além de que não se furta à sanção da nulidade um pacto que se mostre em concreto vantajoso para o devedor (em virtude, v.g., da desproporção existente entre o valor do bem que é objecto de garantia e o montante da obrigação garantida).
Daí que tenham surgido na doutrina e jurisprudência italianas outras justificações para a proibição do pacto comissório. Assim, BETTI associa a proibição à atribuição exclusiva ao Estado do controlo sobre o não cumprimento das obrigações; LOJACONO explica-a à luz da necessidade de efectivação do princípio par conditio creditorum; BIANC4 invoca a existência de um interesse geral em evitar um "prejuízo social", ideia grosso modo retornada por CARNEVALI, quando se reporta a um interesse geral no regular e correcto desenvolvimento das relações jurídicas; finalmente, the last but not the least, COSTANZA considera que muito provavelmente devem ser relevadas todas as razões apresentadas, que não são entre si incompatíveis ou contraditórias, "respondendo, antes, à lógica unitária da correcção negocial.
Aderindo, grosso modo, à ideia de COSTANZA, parece-nos que a ratio da proibição do pacto comissório é plúrima e complexa, relevando, a um tempo, o propósito de proteger o devedor da (possível) extorsão do credor e a necessidade, que corresponde a um interesse geral do tráfego, de não serem falseadas as "regras do jogo", através da atribuição injustificada de privilégios a alguns credores, em objectivo (seja ele efectivo ou potencial) prejuízo dos demais. A correcção negocial não se compadece com mecanismos que possam legitimar, directa ou indirectamente, a institucionalização de "castas" entre os credores, fora das vias transparentes e objectivas que justificam as excepções ao princípio par conditio creditorum ("Assunção Fidejussória de Dívida"- Almedina 2000 -, pág. 92 a 94).
Importa, por outro lado, realçar que a absoluta proibição legal do pacto comissório tem sido recentemente temperada ou mitigada – particularmente após ter sido introduzido no nosso ordenamento jurídico o regime especial do penhor financeiro, através do DL 105/04, cujo preâmbulo proclama, como relevante inovação, ter sido aceite, no âmbito do contrato aí regulado, o pacto comissório, em frontal desvio à regra imposta pelo art. 694º do CC: a doutrina tem, porém, notado que tal afirmação do legislador peca por excessiva, face ao estatuído no nº2 do art. 11ºdesse diploma legal , ao impor ao beneficiário a obrigação de restituir, a quem presta a garantia, a diferença entre o valor objecto do penhor e o montante das obrigações financeiras garantidas , consagrando, afinal, a lei, em bom rigor, um regime próprio do velho «pacto marciano».
É esta, aliás, a posição adoptada no parecer apresentado nos autos –generalizando tal entendimento para além do âmbito restrito do penhor financeiro - ao sustentar que o negócio fiduciário cum creditore só é válido se da cláusula fiduciária resultar a obrigação de restituição que caracteriza o pacto marciano, análogo, nas suas consequências, às estatuídas no nº2 do art. 11º do DL nº105/04. Se tal não se verificar, a transmissão atípica em função da garantis é nula.
Em sentido análogo, Catarina Monteiro Pires (ob. cit., pag. 272) define o âmbito do pacto comissório, efectivamente proibido, como a convenção mediante a qual ocorre a perda ou a extinção da propriedade de um bem do devedor, a favor do respectivo credor, em virtude do incumprimento de uma obrigação a cargo daquele e sem que estejam previstos mecanismos que assegurem, com efectividade e actualidade, que valor do bem apropriado não é superior ao valor da dívida garantida ou que, sendo aquele superior a este, o credor não se apropriará do valor que exceda o necessário para a satisfação do seu crédito.
7. Sem embargo das semelhanças que se possam descortinar entre a típica funcionalidade de um verdadeiro pacto comissório – facultando ao titular de um direito real de garantia a apropriação dos bens por ela onerados, em caso de incumprimento – e a venda tendo como função indirecta a garantia de um crédito, consubstanciada no «pactum fiduciae» acordado entre vendedor e comprador (frequentemente dissimulado, encoberto ou oculto pelos contraentes, não constando ou transparecendo minimamente do contrato formal de alienação que celebraram), importa acentuar a radical e estrutural diversidadede situações jurídicas subjacentes a cada uma de tais hipóteses.
São, na realidade, vias jurídicas estruturalmente diferenciadas a que, por um lado, se traduz em onerar um bem do devedor (ou de terceiro), vinculando-o à garantia de um crédito mediante constituição de um direito real e garantia, e estipulando-se que – se ocorrer incumprimento da obrigação e só nesse preciso momento – poderá o titular do direito real de garantia apropriar-se do bem hipotecado, «convertendo» a garantia real em direito de propriedade ; e a que, por outro lado, se traduz em proceder-se à imediata alienação de certo bem ao credor - produzindo, naturalmente, tal negócio de venda efeitos reais imediatos, transferindo sem mais a propriedade do bem para a esfera jurídica do comprador – estando, porém, subjacente a tal alienação um pacto «fiduciário» celebrado entre os contraentes, do qual resulta a vinculação do credor/comprador às obrigações de conservação do bem transmitido e de posterior revenda ou retransmissão em benefício do anterior proprietário, logo que o fim de garantia do crédito se mostre exaurido.
Esta diversidade estrutural das situações jurídicas em confronto – hipoteca com pacto comissório e venda em garantia, tendo subjacente o «pactum fiduciae» entre os contraentes - impede, desde logo, que se possa pretender «converter» ou convolar livremente de uma situação para a outra; como se afirma no Ac. de 19/9/06, proferido pelo STJ no P. 06A2092:
O nº 1 do art. 238º citado prescreve que tratando-se de negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Daqui resulta que nunca poderia ser interpretada a declaração negocial de compra e venda como de hipoteca, pois estando esta sujeita a forma especial - escritura pública, nos termos do art. 80º, nº 2 al. g) do Cód. do Notariado – nenhuma correspondência havia no texto que, mesmo que imperfeitamente, correspondesse à pretendida vontade real.
A natureza jurídica de ambos os institutos jurídicos é de tal modo diversa que nunca uma compra e venda poderia traduzir, sem mais, a vontade de dar de hipoteca, pois a declaração bilateral de compra e venda não contém o mínimo de correspondência com uma declaração unilateral de dar de hipoteca.
Consideramos, aliás, que a radical e estrutural diversidade entre a constituição de direitos reais de garantia ( ainda que a oneração do bem seja acompanhada de uma inadmissível estipulação do pacto comissório) e a alienação ou venda fiduciária em garantia, imediatamente geradora de um efeito transmissivo do direito de propriedade, obsta à directa subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694º do CC, cujo programa normativo se dirige – e confina - claramente ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso – e no momento - em que o devedor não cumprisse a obrigação garantida.
O que, deste modo, está verdadeiramente em causa é saber se se justificará a efectivação de uma verdadeira operação de «extensão teleológica» da proibição contida no citado art. 694º, de modo a nela incluir situações que, sendo embora, de um ponto de vista jurídico, estruturalmente diferenciadas da hipótese ali prevista, têm com ela alguma conexão funcional relevante: e a admissibilidade de realização de uma tal extensão teleológica da norma proibitiva dependerá naturalmente do balanceamento ou ponderação de todos os interesses envolvidos, tendo particularmente em conta os reflexos que a tese da nulidade da venda ou alienação fiduciária de imóveis – estabelecida com o fito essencial de protecção dos interesses do devedor/vendedor - poderá envolver no plano da tutela do princípio fundamental da confiança e da segurança do comércio jurídico.
Na verdade, não pode olvidar-se que, enquanto a proscrição do pacto comissório, confinada ao estrito âmbito das garantias reais, não tem reflexos negativos relevantes na segurança do comércio jurídico e na legítima confiança dos subadquirentes do bem imóvel indevidamente apropriado pelo credor, a sua extensão à venda fiduciária é susceptível de implicar lesão relevante desse princípio fundamental do ordenamento jurídico, ao conduzir à aplicação do típico regime da nulidade a uma venda de imóveis, aparentemente consolidada e definitiva (se atendermos ao teor da escritura pública e ao consequente registo predial), facultando aos outorgantes a invocação entre eles e a consequente oponibilidade a terceiros de boa fé do «pactum fiduciae», muitas vezes oculto e dissimulado relativamente às cláusulas contratuais do negócio formal de alienação ( como, aliás, o caso dos autos bem ilustra e documenta).
Assim, no caso de constituição de hipoteca, acompanhada da ilegal estipulação de pacto comissório, ainda que o credor consiga, em termos fácticos, apropriar-se do bem onerado no momento em que ocorrer o incumprimento da obrigação garantida, não logrará naturalmente registar a aquisição do direito de propriedade que lhe resultaria da cláusula ou convenção nula – sendo evidente que os serviços de registo predial rejeitarão seguramente inscrever uma pretensa aquisição do direito de propriedade pelo credor que tivesse como título jurídico uma convenção que a lei categoricamente fulmina com o valor negativo da nulidade : e daqui decorre que o credor hipotecário que, prevalecendo-se do ilegal pacto comissório convencionado, tenha logrado - em termos puramente práticos ou fácticos - apropriar-se do bem hipotecado , não conseguirá normalmente inscrever tal aquisição no registo predial, ficando por isso inibido de se apresentar no comércio jurídico como aparente titular de um direito de propriedade sobre tal bem, em termos de poder frustrar a confiança de terceiros subadquirentes no teor daquele registo.
Como é evidente, a situação é radicalmente distinta no caso da venda fiduciária em garantia, já que:
- o credor/comprador adquire imediatamente a propriedade do bem , através do acto de alienação, documentado por escritura pública e obviamente susceptível de imediata inscrição no registo predial, podendo passar a apresentar-se no comércio jurídico como legítimo proprietário do prédio;
- ulteriormente – se e quando não for cumprida a obrigação que se pretendia indirectamente garantir através da venda fiduciária realizada – é lícito ao interessado invocar o «pactum fiduciae», informalmente acordado com o credor, opondo-o , não apenas à contraparte, mas - pela via do art. 291º do CC - a eventuais subadquirentes de boa fé dos bens, entretanto transmitidos pelo credor/comprador a terceiros, em violação das obrigações pessoais de conservação e revenda do imóvel que lhe resultavam do pacto fiduciário;
- tal invocação e oponibilidade é possível mesmo nos casos – como o dos autos – em que o «pactum fiduciae» foi oculto, encoberto ou dissimulado pelos contraentes, não deixando qualquer rasto ou indício nos instrumentos que titulavam a alienação realizada - sendo, pois, absolutamente impossível que terceiros dele se pudessem ter apercebido.
Cumpre apurar se tais relevantes limitações ou restrições ao princípio fundamental da confiança e segurança no comércio jurídico, decorrentes da extensão teleológica da proscrição do pacto comissório à venda fidiciária em garantia, são necessárias, proporcionais e adequadas, face aos interesses contrapostos – desde logo, o interesse do devedor/ vendedor ( sujeito ao risco de significativa desproporção entre o valor do débito indirectamente garantido pelo acto de alienação e o valor real dos bens transmitidos) e o interesse de terceiros subadquirentes do prédio, sujeitos, através da via da nulidade do acto de alienação, à invocação e oponibilidade de um verdadeiro «ónus oculto», susceptível de destruir a consistência jurídica dos direitos que fundadamente supunham ter adquirido.
Deve, desde logo, notar-se que a alienação fiduciária tem uma margem incontornável de aleatoriedade , repousando decisivamente numa relação de confiança pessoal entre os outorgantes do «pactum fiduciae» – e devendo tal álea ou risco inelutável – decorrente da eventualidade de as obrigações de conservação e revenda dos bens transmitidos poderem não ser cumpridas - ser prioritariamente assumida no plano das «relações internas» entre os contraentes, em vez de, em primeira linha, recaírem os custos da possível infidelidade do fiduciário sobre terceiros de boa fé : na verdade, ao aceitar uma estipulação puramente informal do pacto fiduciário, o devedor ( no caso dos autos, um advogado, agindo profissionalmente no comércio imobiliário) tem necessariamente a noção da fragilidade da tutela do seu interesse na reaquisição do bem vendido e do risco que inelutavelmente irá correr, ao transmitir – em termos reais – a propriedade do imóvel, em troca de uma vinculação, puramente obrigacional e pessoal, de revenda ou retransmissão por parte do comprador.
E tal risco podia ter sido eliminado ou minimizado, optando as partes pela celebração de uma venda «a retro», estipulando, para tal, em termos formalmente válidos, a cláusula resolutiva e procedendo ao respectivo registo, de modo a conciliar plenamente a tutela do seu interesse em readquirir efectivamente a propriedade do bem vendido com a garantia da confiança de terceiros, nos termos do art. 932º do CC.
Não parece, por outro lado, que a não aplicação do regime de nulidade à venda fiduciária, sempre que se não mostre adequadamente assegurado o direito à restituição da diferença entre o valor do imóvel alienado e o montante das obrigações indirectamente garantidas, conduza a uma absoluta desprotecção dos interesses do devedor/vendedor – dispondo este, ainda assim, de meios de tutela jurídica que, ao menos nos casos de maior gravidade, poderão ainda satisfazer minimamente os seus interesses.
Assim, e em primeiro lugar, poderá dispor o vendedor/devedor da via da efectivação da responsabilidade civil obrigacional, decorrente do incumprimento das obrigações «pessoais» de conservação e retransmissão do imóvel alienado em garantia, assumidas no seu confronto pelo adquirente do bem, através do pacto fiduciário acordado: ao contrário do que ocorreria se tal pacto - ou a própria venda fiduciária - fossem fulminadas com o vício da nulidade – em que assistiria ao vendedor o direito a ser ressarcido pelo «dano negativo» decorrente da invalidação do negócio, - a subsistência jurídica e o incumprimento de tais obrigações de conservação e revenda dos bens transmitidos fiduciariamente poderá implicar, nos termos gerais, o surgimento na esfera jurídica do comprador de um dever de ressarcir o vendedor pelos danos decorrentes do incumprimento de tais obrigações, nomeadamente quando tenha entretanto alienado os bens transmitidos a terceiros, colocando-se em situação de impossibilidade de cumprimento da obrigação de revenda.
Por outro lado – e pelo menos nas situações de mais gravosa desproporção entre o valor da dívida indirectamente garantida e o «preço» por que os bens foram alienados «fiduciariamente» - não excluímos que a situação possa ser enquadrada normativamente no âmbito da disciplina dos negócios usurários, contemplada no art. 282º do CC – por essa via se obtendo a anulação da venda realizada : porém, e como é evidente, para poder beneficiar deste particular regime jurídico, será indispensável que o A. alegue factos que preencham a «fattispecie» ali prevista, não podendo limitar-se a invocar a natureza fiduciária da venda e a sustentar a aplicabilidade do regime de proibição do pacto comissório, fora do âmbito dos direitos reais de garantia.
No caso ora em apreciação, perante a pretensão formulada pelo A. na petição inicial, era objectivo deste obter – através da via da nulidade do acto de venda dos imóveis – a efectivação do seu direito, não apenas no confronto da outra parte no pacto fiduciário ( contra quem não deduz, aliás, qualquer pretensão indemnizatória) mas essencialmente perante os subadquirentes dos imóveis, entretanto vendidos pela parte que havia assumido o compromisso pessoal de retransmissão - o que, pelas razões atas apontadas , se tem por legalmente inadmissível ; e, por outro lado, não resultam da matéria de facto alegada e provada elementos bastantes para apurar com segurança a existência de uma situação de abuso intolerável do comprador ou de desproporção manifesta entre o valor dos prédios transmitidos em garantia e o montante da dívida emergente do «empréstimo» celebrado, - o que, desde logo, nos afasta liminarmente dos específicos requisitos de anulabilidade dos negócios usurários.
8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, nega-se provimento à revista, confirmando, embora por diferente fundamento, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Lopes do Rego (Relator)
Orlando Afonso
Cunha Barbosa