Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário
I - A exoneração do passivo restante constitui mecanismo cujo objectivo final é a extinção das dívidas e libertação do devedor de parte de seu passivo, de forma mais breve e leve que a prescrição tradicional.
II - O retardamento da apresentação de pessoa singular à insolvência (que a essa apresentação não esteja obrigada por lei), só por si, não é fundamento para o indeferimento liminar da exoneração do passivo e só o será, se, nomeadamente, lhe sobrevier o prejuízo dos credores da responsabilidade do devedor apresentante.
III - Não há assim prejuízo que, automaticamente, decorra do retardamento na apresentação, nomeadamente, pelo facto de os juros associados aos créditos em dívida se acumularem no decurso desse atraso, pois que tais juros, no actual regime da insolvência, se continuam a contar mesmo depois da apresentação.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
I.
AA e mulher BB, requereram, em 7.04.2010, no Tribunal Judicial da Marinha Grande, a sua declaração de insolvência, alegando, em suma, a impossibilidade de satisfazerem pontualmente as suas obrigações, situação criada, designadamente, por doença da Requerente mulher que deixou de contribuir com regularidade para os rendimentos do casal, de tal forma que foram contraindo sucessivos créditos pessoais e de consumo, descritos e identificados em lista anexa que, adicionados ao crédito à habitação que já subsistia, somam €97.775,62 a que corresponde um total mensal de €2.200,93 de encargos, sendo que o requerente marido aufere um ordenado mensal ilíquido, no montante de 579,00 € e a requerente mulher o de 550,00 €; entraram, em consequência, em incumprimento generalizado das suas obrigações desde Setembro de 2009, pois, não têm quaisquer outros bens para além dos relacionados de que sobressai uma fracção de um prédio urbano, sito na Marinha Grande, que se encontra hipotecado ao BPI e um veículo automóvel, que foi avaliado em €350,00.
Concomitantemente, com o pedido de declaração de insolvência, deduziram o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 235.º e ss do CIRE por, segundo alegam, preencherem todos os requisitos nos mesmos exigidos, em função do que se predispõem a ceder o rendimento disponível no montante que viesse a ser fixado.
No decurso da assembleia de credores, o Sr. Administrador da Insolvência deu a sua aprovação a esta providência, ao contrário dos credores que se lhe opuseram. E no seu termo foi proferido despacho de indeferimento que foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Sem êxito, porém, pois esse Tribunal confirmou o aludido despacho de indeferimento.
E, de novo, inconformados os Requerentes vieram pedir revista que foi admitida, conforme despacho nos autos, com fundamento na oposição de julgados a que se refere o nº1 do artº14º do CIRE.
Na sua alegação, os Recorrentes, além de fundamentarem essa oposição de julgados, concluíram, quanto à substância do recurso, em síntese, o seguinte: 1. A decisão proferida no presente processo não fez uma análise adequada e ajustada do significado de prejuízos a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE. 2. O que leva a que exista o prejuízo, a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE, para os credores é o agravamento da situação económica dos devedores, no lapso de tempo decorrido desde a verificação da situação de insolvência até ao momento em que os devedores se apresentam à insolvência, tendo necessariamente de existir um agravamento do passivo. 3. O vencimento de juros é o evento normal gerado pelo incumprimento do devedor. 4.Caso o legislador tivesse pretendido equiparar o prejuízo estabelecido no artigo 238.0, n.O 1, d), do CIRE ao simples vencimento de juros, não teria certamente individualizado este requisito nessa mesma disposição.
Não foi oferecida contra-alegação.
Ora, corridos os vistos, cumpre apreciar.
A questão da revista, tal como a apresentam os Recorrentes, consiste em saber se “vencimento de juros de mora, decorrentes do atraso na apresentação à insolvência, configura o prejuízo a que se refere a alínea d) do nº1 do artº238º do CIRE.
II. A - A contextualização fáctica do recurso é a que acima vai descrita e que, ora, se não vai repetir, cumprindo salientar, porém, o seguinte:
Os Requerentes apresentaram o seu pedido de insolvência em 7 de Abril de 2009, e, desde logo, solicitaram a exoneração do passivo restante alegando para o efeito os necessários requisitos.
Desde Setembro de 2009, entraram os Requerentes em incumprimento generalizado de suas obrigações assumidas perante os respectivos credores.
Os encargos mensais com o cumprimento de tais obrigações importa em €2.200,93, ascendendo o salário do Requerente marido a €579,00 e o da Requerente mulher a €550. B – Vejamos, pois:
1 - O Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas ( C.I.R.E., a que pertencem as disposições que hão-de citar-se sem menção de origem) abriu a porta da insolvência ao cidadão comum (na pele de pessoa singular – nomen juris -, do consumidor ao comerciante ou ao trabalhador independente) permitindo-lhe tal como às pessoas colectivas, a liquidação total de seu património a favor dos respectivos credores.
Porém, e ao invés destas que se dissolvem ou extinguem, por regra, com o registo do encerramento do processo, às pessoas singulares reconhece-se-lhe a possibilidade de sua reabilitação económica, beneficiando de uma segunda oportunidade (fresh start), de começar de novo a sua actividade económica, sem o ferrete da insolvência e o peso das obrigações de que se liberaram (artº235º).
O instrumento que a lei, nesse sentido, põe ao dispor do devedor é a exoneração do passivo restante, mecanismo cujo objectivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor de parte de seu passivo, de forma mais breve e leve que a prescrição tradicional (artº309º do CC). Como se escreve no preâmbulo do C.I.R.E., o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedido ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos… que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
Se bem que, pelo que já se adiantou, seja evidente a protecção do devedor, não se pense, porém que estejamos perante qualquer maniqueísmo proteccionista que desampare os direitos dos credores já que estes, não só concorrem à liquidação da massa insolvente, mas também, após o encerramento da insolvência, podem aspirar à repartição do saldo proveniente da cessão do rendimento disponível do devedor nos cinco anos que se seguem a esse encerramento, não sendo despeciendos, ainda, os potenciais ganhos directos e indirectos, plausíveis no processo de fresh start do devedor que o sistema económico parece preferir à sua inabilitação improdutiva.
É, portanto, do equilíbrio e da ponderação dos interesses conflituantes na insolvência que a exoneração do passivo restante há-de provir e recordando que sua apreciação e concessão pode ter lugar em momentos distintos, decerto que a que tem lugar no despacho inicial, deve ser cautelosa, não só porque serão, naturalmente, parcos os elementos que sem margem para dúvida a podem inviabilizar, mas também porque o prosseguimento da paralela liquidação universal do património do devedor permite conjugá-la, por exemplo, com a decisão quanto à qualificação da insolvência que lhe é muito próxima no que se refere à boa fé e à etica das condutas do insolvente.
2. Em termos gerais, o procedimento inicia-se com a formulação do pedido de exoneração que, se não for, liminarmente indeferido, é objecto de despacho inicial a determinar que o devedor fica obrigado à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário no período de cessão de 5 anos, posterior ao encerramento do processo de insolvência – artº239,1 e 2. No final desse período decide o juiz sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (artº244º,1); e se a exoneração for concedida dá-se a extinção de todos os créditos que ainda subsistam, com as excepções a que se alude no artº245º.
Foi naquele primeiro momento que se instalou a controvérsia nos autos, pois os Recorrentes não lograram ultrapassar com êxito a fase preliminar de sua admissão à exoneração, indeferido que foi o seu requerimento, formulado naquele sentido.
Constituem fundamentos do indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, os enunciados nas diversas alíneas do artº238º que compreendem comportamentos, situações ou condutas do devedor, anteriores ou contemporâneas do processo de insolvência que, como refere Carvalho Fernandes, Colectânea De Estudos Sobre a Insolvência, 276 e 277, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular…é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém”, fundamentos que, segundo Assunção Cristas ( Novo Direito de Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 264), exigem ao devedor um comportamento anterior e actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta.
Daqueles fundamentos, releva, para a solução do vertente caso, apenas aquele a que se alude na al.d) do citado artº238º, isto é, a tardia apresentação à insolvência por parte dos Recorrentes que a ela não estão, legalmente, obrigados mas que a devem observar se pretendem beneficiar da exoneração do passivo.
Nessa alínea prescreve-se o seguinte: 1 – O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: …………… d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; …………..
Fundamento algo complexo, desmultiplica-se em requisitos de verificação cumulativa em ordem ao indeferimento da exoneração:
a)o incumprimento pelo devedor da obrigação de apresentação à insolvência ou a abstenção dessa apresentação nos seis meses subsequentes à situação de insolvência,
b) a verificação de prejuízos para os credores daí decorrentes e
c) o conhecimento pelo devedor da falta de perspectiva séria de melhoria de sua situação económica.
Os Recorrentes aceitam que se encontram em situação de insolvência desde Setembro de 2009 e se apresentaram em 7 de Abril do ano seguinte, isto é, cerca de um mês depois do termo daquele prazo de seis meses que aquele dispositivo define. Também não põem em causa que, pelo menos, desde aquela primeira data, sabiam que não existia perspectiva séria de ver melhorada a sua situação económica.
Ou seja, para a verificação do fundamento contido naquela norma falta apenas a demonstração de que os Recorrentes se abstiveram de apresentação tempestiva à insolvência com prejuízo para os credores.
3. Em torno deste segmento do normativo em questão, uma corrente jurisprudencial vem defendendo que, ínsitos à apresentação intempestiva do devedor, se tornam evidentes os prejuízos dos credores, dado o avolumar de seus créditos com o atraso em tal apresentação, desde logo, face ao vencimento dos respectivos juros e consequente aumento do passivo do devedor.
Esta orientação foi seguida no acórdão impugnado, como o fora na sentençaa proferida na 1º instância, mas o fundamento que postula não se afigura convincente, pois não leva na devida conta, desde logo, os elementos literal e racional do preceito.
De facto, o retardamento da apresentação de pessoa singular à insolvência que a essa apresentação não está obrigada pela lei, só por si, não tem consequências danosas para o devedor.
De forma consentânea e congruente com o disposto no nº5 do artº186ºonde se não considera que o retardamento na apresentação por banda da pessoa singular, ainda que determinante de agravamento de sua situação económica, não serve de fundamento à qualificação como culposa da própria insolvência, também naquela al.d), aqui em análise, se estatui que essa apresentação tardia, só por si, não constitui fundamento de indeferimento da exoneração do passivo. Só o integrará se, além dela, nomeadamente, se verificar pejuízo dos credores.
Por outras palavras, e, citando autores que são referência na matéria, “para além da não apresentação à insolvência, a relevância deste comportamento do devedor, para efeito de indeferimento ,liminar, depende ainda…de haver prejuízo para os credores…”- cfr Luís Carvalho Fernandes, in Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, no estudo sobre A Exoneração do Passivo Restante…, p. 280.
Daí que, tal como se faz notar no Acórdão deste Tribunal, de 21.10.2010, proferido no processo nº3850/09.9TBVLG, presumindo-se no nº3 do artº9º do CC que o legislador não só consagra as soluções mais acertadas mas também sabe exprimir-se por forma correcta, entender-se “que pelo facto de o devedor se atrasar a apresentar-se à insolvência resultavam automaticamente prejuízos para os credores, então não se compreendia por que razão o legislador autonomizou o requisito do prejuízo”.
E continuando: “Só se compreende esta autonomização se este prejuízo não resultar automaticamente do atraso, mas sim de factos de onde se possa concluir que o devedor teve uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé e que dessa conduta resultaram prejuízos para os credores.”
Factos, crê-se, na linha daqueles que integram as condutas ou comportamentos e situações a que se reportam os demais fundamentos do indeferimento da exoneração das alíneas b), c), e), f) e g) do citado artº238º ou, por exemplo, os que autorizam as presunções de insolvência culposa previstos no já citado artº186º, todos eles, relacionados com os “deveres associados ao processo de insolvência” a que já se aludiu e que, repete-se, dão especial ênfase à ética e transparência das condutas e actos do devedor com repercussão sobre a massa insolvente.
4. Pretende-se na orientação adoptada no acórdão sob recurso que o avolumar dos juros decorrente do atraso na apresentação à insolvência configuram o prejuízo dos credores que se vem questionando.
Sem dúvida que o tempo interfere com o seu montante pelo que não custa aceitar que daí resulte incremento da dívida de capital a que estão adstritos. Sucede, porém que, o prejuízo ( isto é, o dano concreto, real) resultante desse agravamento, para o titular dessa dívida, só contará se essa mesma dívida não for liquidada.
Ora, no procedimento da exoneração pode ter lugar a sua satisfação, podem até ser integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência – cfr nº4 do artº243º - e, se assim é, prematuro ao menos será, em sede de despacho liminar, inviabilizar o incidente com esse fundamento.
De qualquer modo, e regressando à citação do acórdão deste Tribunal, acima mencionado, os juros contados até à data de apresentação, a ela acrescentados por ser tardia, não causam prejuízo aos credores: “ na verdade, o regime estabelecido na primeira parte do nº 2 do artº151º do CPEREF que estabelecia a cessação da contagem de juros “na data da falência” deixou de existir com o CIRE, passando os juros a ser considerados créditos subordinados nos termos da al. b) do nº1 do art48º deste Código – neste sentido, ver Carvalho Fernandes e João Labareda, ob citada, anotação ao artº91. Quer dizer… se no regime anterior…se podia pôr a hipótese de quanto mais tarde o devedor se apresentasse à insolvência, mais tarde cessaria a contagem de juros, com o consequente aumento do volume da dívida, no regime actual…tal hipótese não tem cabimento, uma vez que os credores continuam a ter direito aos juros, com a consequente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência para o avolumar da dívida.”
5. Resta acrescentar que os demais elementos, à disposição nos autos, não revelam ou qualificam quaisquer outros prejuízos para os credores resultantes da apresentação tardia à insolvência dos Recorrentes pelo que se não verifica fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante por eles formulado.
Sumariando:
a exoneração do passivo restante constitui mecanismo cujo objectivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor de parte de seu passivo, de forma mais breve e leve que a prescrição tradicional;
o retardamento da apresentação de pessoa singular à insolvência ( que a essa apresentação não esteja obrigada pela lei), só por si, não é fundamento para o indeferimento liminar da exoneração do passivo e só o será, se, nomeadamente, lhe sobrevier o pejuízo dos credores da responsabilidade do devedor apresentante;
não há assim prejuízo que, automaticamente, decorra do retardamento na apresentação, nomeadamente, pelo facto de os juros associados aos créditos em dívida se acumularem no decurso desse atraso, pois que tais juros, no actual regime da insolvência, se continuam a contar mesmo depois da apresentação.
III.
Termos em que se concede a revista, revoga-se o acórdão recorrido e ordena-se que o pedido de exoneração do passivo restante prossiga, devendo proferir-se o respectivo despacho inicial.
Custas pela massa.