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VALOR DA CAUSA
ACESSÃO DA POSSE
Sumário
I - Com a entrada em vigor do DL n.º 303/2007, de 24/8, atribuiu-se ao juiz o poder-dever de fixar o valor da causa mesmo quando o valor aceite pelas partes, tácita ou expressamente, não esteja em flagrante oposição com a realidade. II - Pretendendo-se o reconhecimento do direito de propriedade sobre bens imóveis por usucapião, o valor da causa deve reflectir o valor desses imóveis, devendo, na sua fixação, atender-se aos elementos que constam do processo, sendo determinante o preço que as partes fixaram para a sua venda. III - Para fazer funcionar a acessão é necessário que exista um título abstractamente idóneo para, pelo menos formalmente, transferir o direito.
Texto Integral
Proc. nº 5978/08.3TBMTS.P1 – 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos
Rel. F. Pinto de Almeida (R. 1351)
Adj. Des. Teles de Menezes; Des. Mário Fernandes
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. B…, Lda deduziu a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra C…, S.A., D…, Limited e E…, S.A..
Pediu que se reconheça a aquisição pela A. do direito de propriedade livre de ónus e encargos, por via de usucapião com recurso ao instituto da acessão na posse, dos prédios sitos na R. …, …, Avenida …, …/… e R. …, … todos na cidade de Matosinhos; que se condene os RR a reconhecerem o direito de propriedade plena, livre de quaisquer ónus ou encargos da A sobre os prédios atrás identificados; que se declare nulas as hipotecas constituídas sobre os identificados prédios sitos na Av. … e sobre o prédio sito na R. … a favor das 2ª. e 3ª. RR, respectivamente; que se ordene o cancelamento dos registos de constituição das hipotecas voluntárias inscritos a favor das 2ª. e 3ª. RR e que se ordene o cancelamento dos registos de penhora que incidem sobre os três referidos prédios.
Após requerer a alteração da causa de pedir e ampliação do pedido e a intervenção principal provocada do F…, S.A. e G…, Lda, pediu a condenação do primeiro dos referidos intervenientes a reconhecer o direito de propriedade livre de ónus e encargos da A sobre o prédio sito na R. …, … em Matosinhos e o segundo a reconhecer o direito de propriedade livre de ónus e encargos da A sobre o prédio sito na Av. …, …/… em Matosinhos; a declaração de nulidade entre a 1ª. R. e o F…, S.A. e de ineficácia perante a A do negócio jurídico de constituição de hipoteca sobre o prédio sito na R. …, … em Matosinhos a favor do F…, S.A.; a declaração de nulidade entre a 1ª. R. e G…, Lda e de ineficácia perante a A do negócio jurídico de compra e venda do prédio sito na Av. …, …/… em Matosinhos e o cancelamento dos indicados registos de constituição da hipoteca voluntária a favor do F…, S.A e de aquisição pela G…, Lda.
Como fundamento, alegou que em 2 Agosto de 2001 celebrou com a 1ª. R. um contrato-promessa de compra e venda nos termos do qual a primeira lhe prometeu vender os prédios atrás identificados, pelo preço total de PTE 1.590.000.000$00 (€ 7.930.886,56), preço esse que foi pago na totalidade em 6 de Agosto de 2001 e do qual a 1ª. R. deu quitação; que nesse mesmo dia entrou na posse dos referidos prédios em conformidade com o disposto na cláusula quinta do contrato-promessa; que no mesmo dia a 1ª. R. outorgou uma procuração irrevogável através da qual concedeu poderes especiais à A para proceder à venda dos indicados imóveis, concedendo-lhe ainda poderes para celebração de negócio consigo mesmo; que a celebração da escritura pública estava condicionada à obtenção prévia do licenciamento dos prédios; que em 2001 efectuou o registo provisório da aquisição da propriedade dos três imóveis, registo que foi sucessivamente renovando até 2006, altura em que o mesmo foi recusado; que de imediato encetou diligências necessárias ao deferimento do pedido de licenciamento dos prédios junto da Câmara Municipal …; que os prédios em causa estão inscritos a favor da 1ª. R., o da Av. … desde 15 de Maio de 1928, o da R. … desde 11 de Abril de 1911 e o da R. … desde 31 de Março de 1992, tendo a mesma, desde as indicadas datas, exercido sobre os mesmos uma actuação não só correspondente ao direito de propriedade, como também à qualidade de possuidora que lhe é inerente; que logo em Agosto de 2001 os referidos imóveis deixaram de constar no activo imobilizado da 1ª. R. para passarem a integrar o activo imobilizado da A., tendo, terminado o processo contabilístico de integração dos três imóveis no seu património e de actualização e regularização das obrigações fiscais e administrativas prementes, requerido, junto da R., a entrega das chaves, o que veio a ocorrer em finais de Setembro de 2002; que logo a partir de 2 de Agosto de 2001 a R. passou a endossar-lhe todas as responsabilidades inerentes à qualidade de proprietária dos três imóveis, remetendo-lhe todas as cartas que lhe eram dirigidas pelos arrendatários, assim como quaisquer notificações das autoridades oficiais e referentes aos imóveis dos autos, sendo que, como a 1ª. R. figurava como proprietária do imóvel inscrita no registo, as respostas a tais interpelações eram preparadas pela A mas subscritas pela R., o mesmo ocorrendo em relação ao IMI, que embora fosse pago pela A, as guias para o respectivo pagamento continuavam a ser remetidas para a sede e em nome da 1ª. R., sendo por estas remetidas para a A para que esta procedesse ao seu pagamento, procedimento seguido até final de 2006, altura que coincidiu com a recusa da Conservatória em renovar o registo provisório, tendo a 1ª. R. deixado de remeter à A as guias para pagamento do IMI; que, mediante acordo com a 1ª. R., assumiu os custos de uma acção de despejo interposta contra o inquilino do prédio sito na Av. …, disponibilizando os serviços dos seus próprios mandatários; que em acção que correu termos no 4º. Juízo deste Tribunal foi-lhe reconhecida a qualidade de possuidora de boa-fé do referido prédio; que depois da recusa da renovação do registo recaiu sobre os imóveis dos autos um conjunto de ónus e encargos, tendo a A interposto embargos de terceiro; que a 1ª. R., após a recusa de renovação do registo de aquisição provisória dos identificados prédios promoveu a constituição e respectivo registo de hipotecas voluntárias sobre os mesmos, hipotecas essas que, por incidirem sobre bens que, materialmente, não pertenciam à 1ª. R. origina a sua nulidade; que como preliminar de acção de execução específica requereu o arrolamento dos referidos imóveis que veio a ser levantado na sequência do trânsito em julgado da decisão que julgou improcedente a referida acção; finalmente, que mantém a posse que lhe foi transmitida pela 1ª. R., posse essa titulada, de boa-fé, pública e pacífica e que, acrescida aos seus anos de posse, resulta que já completou os 15 anos requeridos para a aquisição do direito de propriedade por usucapião e que, sendo a aquisição por usucapião uma aquisição originária, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse, sendo nulas as hipotecas entretanto constituídas pela 1ª. R. porquanto já não era proprietária desses imóveis aquando da celebração dos actos jurídicos tendentes à constituição das referidas garantias.
A 1ª. R., C…, S.A. invocou na contestação a sua ilegitimidade passiva por já não ser proprietária do prédio sito na …, …/… por o ter vendido a G…, Lda.
Em sede de impugnação diz que não houve tradição dos imóveis; que não foi paga a totalidade do preço; que o contrato foi celebrado com o intuito de garantir o negócio relativo à compra e venda de acções entre a H…, S.A e I…, S.A.; que a A só submeteu a registo o contrato-promessa em 9 de Novembro de 2006, impugnando os demais factos alegados pela A.
Concluiu defendendo que a A nunca entrou na posse dos prédios dos autos, mesmo que se entendesse o contrário tal posse, porque não titulada, presume-se de má-fé, não tendo a A ilidido a presunção consagrada no artº. 1260º. do C.C.; defende ainda que também não estamos perante uma posse pública porque nem os vizinhos reconhecem a A como possuidora dos imóveis; acrescenta que a acessão da posse a que se reporta o artº. 1256º. do C.C. exige que a transmissão do anterior para o actual possuidor seja titulada, sendo título o que a lei exige para que o negócio de transmissão seja formal e substancialmente válido, o que não ocorre no caso dos autos. Termina pedindo a condenação da A como litigante de má-fé porquanto a A não poderia ignorar a falta de fundamento da acção, para além de ter alterado a verdade dos factos e omitido outros relevantes.
A 3ª R., E…, S.A. impugna por desconhecimento toda a matéria de facto alegada na P.I. com excepção da constituição da hipoteca voluntária a seu favor. Mais defende que o contrato-promessa invocado não tem eficácia translativa, não sendo a posse da A titulada, que a A não alega a prática de actos materiais sobre os prédios, que a interposição da acção de execução específica por parte da A revela que a A não tinha verdadeiro animus possidendi, não se sabendo igualmente se passou a tratar dos assuntos dos prédios à vista de todos e sem qualquer oposição, sendo que os actos elencados são de administração e praticados em nome da 1ª. R., sendo que a própria A alega que a partir de Novembro de 2006 a atitude da R. mudou.
Finalmente alega que são aplicáveis à usucapião as regras da prescrição - cfr. artº. 1292º- nomeadamente o disposto no artº. 325º. do C.C. - tendo a A, com a interposição da acção de execução específica, reconhecido o direito de propriedade da primeira R. sobre os prédios.
A D…, Limited vem dizer que já procedeu ao distrate da hipoteca constituída sobre o prédio sito na …, …/…, cuja declaração de nulidade e cancelamento do respectivo registo é pedido pela A, pelo que deve ser absolvida do pedido. Alega depois que é titular de uma hipoteca voluntária constituída sobre o prédio sito na R. …, …. Em sede de impugnação diz que desconhece os factos alegados e relativos às relações entre a A e a 1ª. R. sendo que, mesmo que se aceite como verdadeiros os factos alegados pela A, dos mesmos não resulta que tenha havido tradição material do imóvel da 1ª. R. para a A, nem que a mesma tenha praticado qualquer acto material sobre o imóvel; mais alega que do facto alegado de ter sido conferida à A uma procuração que, entre outros, lhe confere poderes para administrar o imóvel em representação da 1ª. R., resulta que se a A alguma vez teve a disponibilidade do imóvel foi enquanto representante da R. sendo mera detentora do mesmo, pelo que, para que pudesse tornar-se verdadeira possuidora, teria de ter invertido o título da posse, nos termos do artº. 1265º. do C.C., o que não resulta dos factos por si alegados; mas mesmo que a A fosse possuidora tal posse não poderia ser considerada titulada porquanto um contrato-promessa não é "um modo legítimo de adquirir" o direito de propriedade e não sendo titulada presume-se de má-fé, não tendo a A. ilidido tal presunção, ou seja, não alegou que ao adquirir a posse ignorava que lesava o direito de propriedade da 1ª. R., nem podia ignorar porquanto sabia quem era a proprietária do imóvel e que a transferência do direito de propriedade estava dependente da outorga da escritura de compra e venda para a qual a referida procuração lhe conferia poderes. Acrescenta que foi sempre a R. quem surgiu publicamente como proprietária do imóvel, não podendo, assim, ser considerada pública a alegada posse exercida pela A.. Finalmente alega que, a entender-se que a A é possuidora, a duração da sua posse é de apenas 7 anos; para adquirir por usucapião teria que aceder à posse da sua antecessora; o artº. 1256º. nº. 1 do C.C. exige um título válido para a transmissão do direito e título válido para a transmissão do direito de propriedade sobre um imóvel é apenas a escritura pública. Termina pela improcedência da acção.
Na Réplica a A vem renovar o pedido de ampliação do pedido e intervenção principal provocada principal formulado anteriormente pugnando pela legitimidade da 1ª. R..
Quanto à contestação da D… defende que a mesma não deve ser absolvida do pedido porquanto, embora seja certo que ocorreu o distrate da hipoteca cuja nulidade se pedia o certo é que, como reconhece a R., a mesma mantém a qualidade de credora hipotecária sobre um outro imóvel dos autos, requerendo a alteração da causa de pedir e do pedido em conformidade com o atrás alegado, pedindo que se declare a nulidade entre a 1ª. R. e a D… e ineficácia perante a A do negócio jurídico de constituição de hipoteca sobre o prédio sito na R. … em Matosinhos a favor da 2ª. R. e a que se refere a Ap. 40 de 2008/09/04.
Por despacho de 9 de Maio de 2009 foi admitida a ampliação da causa de pedir e do pedido formulado pela A e admitida a intervenção principal provocada, aos lados das RR, do F…, S.A. e de G…, Lda.
Citadas as intervenientes veio a G… contestar e deduzir reconvenção dizendo que desconhece as relações da A com as três RR contra quem foi proposta a acção, impugnando a matéria de facto por desconhecimento. Mais alega que aquando da celebração da escritura pública, para além do registo provisório de aquisição, mostravam-se inscritas quatro penhoras a favor da Fazenda Nacional, uma hipoteca a favor da D… e uma hipoteca a favor do F…, estando assegurados os cancelamentos de tais inscrições, o que veio a ocorrer posteriormente. Alega ainda que nas negociações tendentes ao imóvel que comprou sempre lhe foi dito que o imóvel pertencia à R. não havendo no mesmo qualquer sinal de ser utilizado pela A, estando o mesmo desocupado e tendo-lhe sido entregue aquando da escritura de compra e venda, tendo de seguida mandado colocar cadeados nas portas e mandado fazer o levantamento topográfico do imóvel, sendo que os técnicos andaram no interior do mesmo sem que ninguém a tal se opusesse, não tendo tido conhecimento de qualquer pretensão da A sobre o dito imóvel até ter sido citada para a presente acção, sendo que desde 4 de Agosto de 2008 tem utilizado o imóvel à vista de toda a gente, de forma ininterrupta e pública, sem oposição de ninguém e na intenção de que o imóvel lhe pertence, sendo que o mesmo imóvel, inscrito a favor da 1ª. R. desde 15/5/1928, tem vindo por esta a ser utilizado desde a data da referida inscrição e até 4 de Agosto de 2008, de forma ininterrupta, na intenção e convicção de que o imóvel lhe pertence, usando-o para a sua actividade, arrendando-o e tirando dele rendimento, tudo de forma pública e sem oposição de outrem. Alega ainda que a tradição no âmbito do contrato-promessa confere ao promitente-comprador a mera detenção; que os factos alegados pela A consubstanciam meras actuações formais e não materiais sobre o imóvel, não tendo a A o animus de proprietária, como resulta do facto de ter proposto acção de execução específica na qual veio ampliar o pedido, pedindo indemnização pelo incumprimento do contrato-promessa. Finalmente alega que não pode haver acessão na posse porque a alegada posse da A não é titulada porquanto o contrato-promessa não é um modo legítimo de aquisição do direito a que se reporta a posse, não podendo a acessão ser invocada contra o registo.
Termina concluindo pela improcedência da acção, requerendo que se declare a reconvinte legítima proprietária do prédio urbano sito na Av. ….
Por sua vez o F… veio contestar dizendo que em 4 de Junho de 2008 concedeu um empréstimo à I…, S.A.; que para garantia do pagamento do mesmo foi constituída hipoteca sobre o prédio descrito sob o nº. 00736 de Matosinhos, hipoteca essa registada sob a Ap. 70 de 2008.06.25; que a mutuária não pagou nenhuma das prestações a que se obrigara, mantendo o banco Réu interesse na manutenção da referida garantia, o que já não ocorre relativamente à hipoteca registada sob a Ap. 77 de 2008.06.06 uma vez que o crédito cujo pagamento garantia já se mostra satisfeito, tendo já sido emitido o respectivo distrate. Quanto à pretensão da A defende que, mesmo dando-se por verdadeiros todos os factos por aquela alegados, não deve a mesma proceder porquanto a posse não é titulada, não podendo, por tal facto aceder na posse dos antepossuidores.
A A replicou, terminando como na petição inicial e pedindo a improcedência do pedido reconvencional formulado pela interveniente G…, Lda.
No saneador foi fixado à acção o valor de € 7.930,886,56.
Foi ainda julgada improcedente a invocada excepção de ilegitimidade.
E, conhecendo-se do mérito, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, tendo as rés sido absolvidas de todos os pedidos formulados pela autora.
Discordando da decisão que alterou o valor da acção e da sentença proferida, delas interpôs recurso a autora, tendo apresentado as seguintes
Conclusões:
A) Nos termos do artigo 311.° do CPC " Se a acção tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa ".
B) O valor da coisa deve corresponder ao seu real valor de mercado, isto é, ao valor que a mesma tem face à generalidade dos seus potenciais interessados, e não face a um interessado em concreto.
C) No caso dos autos, tendo o valor da causa sido acordado pelas partes, o Senhor Juiz a quo poderia fixar o valor em montante diverso, caso entendesse existir uma clamorosa desconformidade entre o valor acordado entre as partes e o real valor de mercado dos prédios dos autos.
D) É de uso excepcional o poder conferido ao Juiz de fixação do valor da causa em montante diverso do acordado entre as partes, e apenas deve ocorrer em caso de manifesta desconformidade.
E) O preço acordado entre os contraentes não traduz necessariamente o real valor de mercado da coisa objecto de transacção, o que se verifica in casu, pois conforme resulta dos factos assentes, a aquisição dos imóveis e o preço a pagar pela sua aquisição inseriam-se no âmbito de um acordo mais vasto de reestruturação da sociedade Apelada C… (cfr. alínea i) dos factos tidos por assentes pelo Tribunal a quo).
F) O real valor de mercado da coisa cuja propriedade se reclama deve ser apurado na data da fixação do valor da causa (com a prolação do despacho saneador) e não na data em que as partes fixaram por acordo o preço de transacção dessa coisa.
G) Nada na lei impõe, para efeitos de acessão na posse, um negócio jurídico que consubstancie um acto de alienação de um direito sobre determinado bem donde derive a posse.
H) Pelo contrário, determinante é que a transmissão da posse (e não do direito a que se refere) resulte de um acto concreto do transmitente e que permita aferir que a posse que este exercia sobre determinado bem passou a ser assumida, a partir de determinada data, pelo seu sucessor.
I) É irrelevante, para efeitos de recurso à acessão na posse e consequente reconhecimento da aquisição originária da propriedade por via da usucapião, a qualificação da posse como titulada, uma vez que nesta questão rege apenas o artigo 1256.° do CC, alheio à existência de qualquer "modo legítimo de adquirir ".
J) A decisão recorrida de fixação do valor da causa proferida pelo Tribunal a quo violou, assim, o disposto no artigo 311.°, n." 1, do CPC;
K) Assim como a decisão recorrida que julgou do mérito da presente acção proferida pelo Tribunal a quo violou o disposto no artigo 1256.° do Cc.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
a) Ser o valor da causa fixado no montante acordado entre as partes;
b) Ser revogada a decisão de mérito recorrida.
As rés contra-alegaram, concluindo pela improcedência da apelação.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Questões a resolver:
São duas, no essencial, as questões suscitadas no recurso:
- Se, no caso, era admissível a fixação de valor da causa diferente do acordado tacitamente pelas partes;
- Se a autora pode recorrer à acessão da posse para reconhecimento da aquisição originária do direito de propriedade sobre os prédios por usucapião.
III.
Na decisão recorrida foram considerados os seguintes factos:
a) A A é uma sociedade que se dedica à actividade de construção, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, sua exploração e administração, sendo o seu capital integralmente detido pela sociedade de direito espanhol denominada H…, S.A. – Doc. de fls 73 a 76 dos autos.
b) Em 05 de Junho de 2001, H…, S.A. e I…, S.A. celebraram um acordo que denominaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda de Acções”, nos termos constantes do documento que se mostra junto aos autos a fls. 77 a 124 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
c) Em 06 de Agosto de 2001 a H…, S.A. e I…, S.A. celebraram um acordo que denominaram de “Contrato de Compra e Venda de Acções”, conforme consta do documento junto aos autos a fls. 125 a 136 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
d) Em 2 de Agosto de 2001 a A e a 1ª. R., subscreveram um documento que denominaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda” no qual a segunda declarou prometer vender e a primeira declarou prometer comprar os seguintes prédios:
- Prédio urbano sito na R. …, …, freguesia de …, Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº. 736 e inscrito na matriz urbana daquela freguesia sob o artigo 1747;
- Prédio urbano sito na R. …, …, freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº. 1074 e inscrito na matriz urbana daquela freguesia sob o artigo 4772;
- Prédio urbano sito na Av. …, …/…, freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº. 912 e inscrito na matriz urbana daquela freguesia sob o artigo 390. - Doc. de fls 149 a 154 dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
e) Nos termos da cláusula terceira o preço da compra e venda prometida era de PTE. 1.590.000.000$00, já recebidos pela promitente vendedora e dos quais a mesma dava quitação.
f) Ainda nos termos do mesmo contrato a data e local de realização de escritura de compra e venda seria da responsabilidade da A, entregando a R. à mesma uma procuração irrevogável, outorgada no interesse da promitente compradora, conferindo-lhe poderes para outorgar a escritura pública na qualidade de vendedora, permitindo, assim, a celebração de negócio consigo mesma – - Doc. de fls 149 a 154 dos autos.
g) Nos termos da cláusula quarta do mesmo contrato a 1ª. R. entregaria à A os prédios em causa no mesmo dia da outorga do contrato, obrigando-se esta a obter as licenças de utilização relativas aos prédios prometidos vender, comprometendo-se a R. a cooperar com a A na obtenção das mesmas.
h) No dia 2 de Agosto de 2001, no Primeiro Cartório Notarial do Porto a R. constituiu sua procuradora a aqui A, conferindo-lhe poderes especiais para prometer vender e vender, transferir, onerar, permutar e por qualquer forma dispor, na totalidade ou em parte, judicial ou extrajudicialmente, pelo preço e na data que a mandatária considerar conveniente os prédios em causa nos presentes autos, podendo celebrar negócio consigo mesmo ou em que seja interessada, sendo-lhe ainda conferidos, com a possibilidade de substabelecer, os poderes para requerer licenças de construção e/ou utilização junto das respectivas Câmara Municipais, requerer a realização de vistorias, junto de autoridades administrativas, bombeiros ou outras entidades que para o efeito sejam competentes, requerer junto das respectivas conservatórias registos provisórios ou definitivos, neles fazendo declarações complementares, proceder a actualizações de cadernetas prediais, fazer declarações complementares tudo junto das respectiva repartições de finanças– Doc. de fls 156 a 158 dos autos.
i) Da cláusula quinta do contrato de compra e venda de acções celebrado em 6 de Agosto de 2001 entre a H…, S.A. e a I…, S.A. consta que “A C… não pôde, por razões formais, conforme previsto na REESTRUTURAÇÃO, celebrar até à presente data, a escritura pública de compra e venda ...”, entre outros, dos prédios dos autos, tendo prometido “vendê-los à B…., Lda, sociedade integralmente detida pela Primeira Contraente, de quem recebeu a totalidade do preço e para quem transmitiu já a respectiva posse, tendo outorgado procuração para alienar e administrar os referidos prédios da forma que entender, ...” – Doc. de fls 125 a 136 dos autos.
j) Ainda nos termos da mesma cláusula “O Segundo Contraente reconhece a existência dos referidos contratos promessa e procuração e obriga-se, na qualidade de accionista única da C…, a respeitar e a fazer respeitar as obrigações deles emergentes” considerando as partes que “com o contrato promessa acima referido e com a escritura pública que constitui o Anexo 3 a este contrato está efectuada a transmissão dos imóveis ...” – Doc. de fls 125 a 136 dos autos.
l) Em 30 de Maio de 2008 estavam em vigor, relativamente ao prédio descrito sob o nº. 00736 de … as seguintes inscrições:
- G.1 - Ap 36/060683 - aquisição a favor da J…;
- G.2 - Ap 18/110491 - aquisição a favor da C…, S.A.;
- F.2 - Aps 57 e 58/19022007 - penhora para garantia da quantia exequenda devida a K…, S.A.
- F.3 - Ap 31/12032007 - acção movida pela B…, Limitada contra C…, S.A. a pedir sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos réus, a que estes estão adstritos por contrato de promessa de compra e venda celebrado com o autor;
- F.4 - Ap 26/15032007 - arrolamento requerido pela B…, Lda.
- F.5 - Ap 68/2002008 - penhora para garantia da quantia exequenda devida à Fazenda Nacional - Doc. de fls 159 a 164.
m) Em 30 de Maio de 2008 estavam em vigor, relativamente ao prédio descrito sob o nº. 1074 de Matosinhos as seguintes inscrições:
- G - Ap 4 de 1992/03/31 - aquisição a favor C…, S.A.;
- F - Ap 16 de 2006/12/12 - penhora para garantia da quantia exequenda devida a L…;
- F - Ap 57 de 2007/02/19 - penhora para garantia da quantia exequenda devida a K…, S.A.
- F - Ap 31 de 2007/03/12 - acção movida pela B…, Limitada contra C…, S.A. a pedir sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos réus, a que estes estão adstritos por contrato de promessa de compra e venda celebrado com o autor;
- F - Ap 26 de 2007/03/15 - arrolamento requerido pela B…, Lda.
- F - Ap 96/2007/12/12 - penhora para garantia da quantia exequenda devida à Fazenda Nacional;
- C - Ap 75 de 2008/02/13 - hipoteca voluntária a favor da E…, S.A., registada provisoriamente;
- F - Ap 17 de 2008/03/18 - arresto requerido pelo M…, S.A.- Doc. de fls 165 a 169.
n) Em 30 de Maio de 2008 estavam em vigor, relativamente ao prédio descrito sob o nº. 912 de Matosinhos as seguintes inscrições:
- G - Ap 1 de 1928/05/15 - aquisição a favor da C…, S.A.;
- F - Ap 23 de 2001/09/20 - penhora para garantia da quantia exequenda devida à Fazenda Nacional;
- F - Ap 23 de 2001/09/20 - penhora para garantia da quantia exequenda devida à Fazenda Nacional;
- F - Ap 31 de 2007/03/12 - acção movida pela B…, Limitada contra C…, S.A. a pedir sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos réus, a que estes estão adstritos por contrato de promessa de compra e venda celebrado com o autor;
- F - Ap 26 de 2007/03/15 - arrolamento requerido pela B…, Lda.
- C - Ap 63 de 2007/05/10 hipoteca voluntária a favor da D…, Limited;
- F - Ap 96 de 2007/12/12 - penhora para garantia da quantia exequenda devida à Fazenda Nacional. -Doc. de fls 170 a 174
o) O registo provisório da aquisição a favor da A foi sendo sucessivamente renovado desde 2001 até 2006 – Docs. de fls 165 a 169 e 437 a 444.
p) A A propôs contra a 1ª. R. e I…, S.A., acção declarativa de condenação que correu termos no 4º. Juízo Civel deste tribunal sob o nº. 6751/06.9TBMTS, acção que não foi contestada, tendo, no Acórdão da Relação do Porto cuja cópia se mostra junta de fls 260 a 272 dos autos e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, sido-lhe reconhecida a qualidade de possuidora de boa fé do imóvel sito na Av. ….
q) A A deduziu embargos de terceiro à execução movida pelo M…, S.A. contra a 1ª. R. a correr termos neste juízo sob o nº. 7559/07.0TBMTS - Doc. de fls 277 a 305 dos autos.
r) A A deduziu embargos de terceiro à execução movida por L… contra a 1ª. R. a correr termos no 2º. juízo deste Tribunal sob o nº. 853/06.9TBMTS - Doc. de fls 306 a 319 dos autos.
s) A A deduziu embargos de terceiro à execução movida por K…, S.A. contra a 1ª. R. a correr termos no 2º. juízo deste Tribunal sob o nº. 5887/06.0TBMTS - Doc. de fls 320 dos autos.
t) A A deu entrada em juízo de uma acção contra a embargada C… pedindo seja decretada a execução específica do acordo referido em E), declarando-se transmitida para si a propriedade dos imóveis do mesmo constantes, acção essa que foi julgada improcedente, tendo igualmente sido ordenado o levantamento do arrolamento ordenado nos autos de procedimento cautelar que corriam por apenso aos referidos autos – Doc. de fls 446 a 460.
u) Em 25 de Junho de 2008 foi inscrita a favor do F… uma hipoteca voluntária sobre o prédio descrito sob o nº. 736 de Freguesia de … a que corresponde a AP. 70.
v) No dia 1 de Agosto de 2008 no Cartório Notarial da Licenciada N… foi outorgada uma escritura de compra e venda nos termos da qual a 1ª. R. declarou vender a G…, Lda, e esta declarou comprar o prédio urbano sito na Av. …, …/…, descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº. 912, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4546 – Doc. De fls 771 a 776 dos autos.
x) Em 31 de Julho de 2008 foi inscrita na Conservatória do Registo Predial a favor da interveniente G…, Lda a aquisição provisória do prédio descrito sob o nº. 912 de freguesia de …- Doc. de fls 590 a 594 dos autos.
z) Em 5 de Agosto de 2008 foi a inscrição atrás referida convertida em definitiva – idem.
aa) Em 25 de Setembro de 2008 foi inscrita a presente acção, em 2 de Outubro de 2008 foi inscrita, sob a AP 68, em relação ao mesmo prédio, uma penhora a favor da Fazenda Nacional e em 20 de Outubro, sob a Ap. 7 nova penhora a favor da mesma entidade, não constando, em 18 de Dezembro de 2008, qualquer outra inscrição sobre o referido prédio –idem.
bb) Em 23 de Junho de 2008 foi convertida em definitiva a hipoteca provisória a que respeita a apresentação 75 de 2008/05/27 incidente sobre o prédio descrito sob o nº. 1074 da freguesia de … e o arresto a que respeita a inscrição 17 de 2008/03/18 incidente sobre o mesmo prédio – Doc. De fls 595 a 600.
cc) Em 4 de Agosto 2008 foi inscrita a favor da D…, Limited sobre o prédio descrito sob o nº. 1074 da freguesia de …, uma hipoteca voluntária sob a Ap 40 – Doc. De fls 595 a 600.
dd) Em 23 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de O…, foi outorgada uma escritura de mútuo com hipoteca nos termos da qual o F…, S.A. concede à I…, S.A. um financiamento no valor de um milhão seiscentos e sessenta e um mil quatrocentos e dezasseis euros, constituindo a C…, S.A., a favor daquele banco, hipoteca sobre o prédio sito na R. …, …, freguesia de …, concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 736 da referida Freguesia – Doc. De fls 717 a 732 dos autos cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
ee) A hipoteca atrás referida mostra-se registada sob a inscrição Ap. 70 de 2008/06/25
ff) Em 29 de Julho de 2008 o F… emitiu uma declaração a autorizar o cancelamento da inscrição hipotecária C – Ap. 77 de 2008/06/06 a incidir sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 912/19910411 – Doc. de fls 734 e 735
IV.
1. Valor da causa
A este respeito, foi proferida a seguinte decisão:
Como resulta do disposto o artº. 305º. do C.P.C. o valor da acção deve representar a utilidade imediata do pedido.
A A pretende que se reconheça que adquiriu por usucapião os imóveis que identifica na petição inicial e pelos quais terá pago a quantia de €7.930.886,56 pelo que, pelo menos, será este o valor dos imóveis em causa e, consequentemente, deverá ser este o valor a atribuir à acção – cfr. artº. 311º. nº. 1 do C.P.C.
Pretende a Reconvinte, por sua vez, que se reconheça ser ela a proprietária de um dos imóveis objecto da acção, não havendo, assim, e por força do disposto no nº2 do artº. 308º. do C.P.C. que adicionar ao valor da acção o valor da reconvenção.
Termos em que se fixa à acção o valor de € 7.930,886,56.
A Recorrente discorda desta decisão, alegando que, tendo o valor da causa sido acordado entre as partes, o Sr. Juiz só poderia fixar o valor em montante diverso caso entendesse existir uma flagrante desconformidade entre esse valor e o valor real de mercado dos prédios dos autos, o que no caso não se verifica, uma vez que o preço acordado não traduz necessariamente esse valor real de mercado.
Afigura-se-nos que não tem razão.
Segundo dispõe o art. 315º nº 1 do CPC, compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.
A redacção deste preceito, introduzida pelo DL 303/2007, de 24/8, difere substancialmente da anterior – o valor da causa é aquele em que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo se o juiz, fixados os articulados, entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso fixará à causa o valor que considere adequado.
A regra da fixação obrigatória do valor da causa pelo juiz foi claramente assumida como uma das medidas inseridas no "desígnio de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça" (cfr. preâmbulo do citado diploma).
O objectivo, no fundo, foi, pois, o de controlar efectivamente o valor da causa, em muitos casos desfasado da realidade e indicado pelas partes em função do mínimo necessário para aceder ao tribunal superior (sob pena de a alteração das alçadas não ter qualquer efeito útil na aludida racionalização).
Atribuiu-se assim ao juiz o poder-dever de fixar o valor da causa, mesmo quando o valor aceite pelas partes, tácita ou expressamente, não esteja em "flagrante oposição com a realidade"[1].
O uso pelo juiz do referido poder-dever não é assim excepcional e não ocorre apenas em caso de manifesta desconformidade entre o valor acordado pelas partes e o valor real, como refere a Recorrente.
De qualquer modo, se entre esse valor acordado e o valor real existe uma diferença de mais de três milhões de euros, a desconformidade será mesmo manifesta e justificaria a intervenção do juiz, mesmo sem a indicada alteração legislativa.
No caso, como se considerou na decisão recorrida, pretendendo a autora que se reconheça que adquiriu o direito de propriedade sobre os imóveis por usucapião, o valor da causa deve reflectir o valor desses imóveis, como resulta do disposto no art. 311º nº 1 do CPC.
Para determinação desse valor deve atender-se aos elementos que constam do processo (cfr. art. 317º do CPC) e, desses elementos, será determinante, naturalmente, o preço que as próprias partes fixaram para a venda dos imóveis, por ser o que reflecte o valor real desses imóveis.
Não vemos melhor critério para aferir deste valor, por ser o acordado livremente pelas partes como preço de venda dos imóveis, sendo de presumir que é esse o valor de mercado dos bens, não sendo, por isso, necessária a realização de quaisquer diligências para a sua determinação.
É esse valor real o atendível[2].
Daí que se nos afigure que a decisão recorrida, que fixou o valor da acção, não merece censura.
2. Acessão na posse e usucapião
Na fundamentação da sentença recorrida, após explanação sobre o regime da posse, que se subscreve inteiramente, e enumeração dos factos atendíveis, afirma-se o seguinte:
Da análise dos factos acabados de descrever, e mormente do constante do contrato-promessa celebrado entre a A e a primeira R. e do conteúdo da procuração que no mesmo dia lhe foi conferida, pode retirar-se do acordo de tradição estabelecido que a vontade de ambas foi que a partir dessa data a A agisse com plenos poderes sobre os imóveis, como se sua proprietária fosse, e não que actuasse em nome da promitente-vendedora, por acto de mera tolerância desta, do que resultaria que, a partir daí, e pelo menos até 2006, a A teria actuado em relação aos imóveis dos autos como verdadeira possuidora.
Concluindo-se pela qualidade de possuidora da A, impunha-se verificar se a dilação de tempo entretanto ocorrida seria suficiente para concluirmos pela pretendida verificação da usucapião, regendo sobre tal matéria os artºs 1294º. a 1297º. do C.C.
Diz o primeiro destes dispositivos legais que, na existência de título e registo deste, a usucapião tem lugar assim que sejam decorridos dez anos desde a data do registo se a posse for de boa-fé e quinze anos se for de má fé.
O registo é o previsto no artº. 2º. do C. Registo Predial, sendo justo título o regulado nos artºs 1259º.do C.C.
Diz este dispositivo legal que a posse é titulada quando “fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico”. Resulta daqui que tem título todo aquele que filia a posse “num negócio abstractamente idóneo para a transferência da propriedade ...” ( Antunes Varela, anot. ao artº. 1259º. do C.C).
A posse da A não é titulada. Como já em cima referimos, título válido para transmitir o direito de propriedade é a escritura pública e não um contrato-promessa.
Como decorre do disposto no artº. 1260º. nº. 2 a posse não titulada presume-se de má-fé, impendendo sobre a A a prova do contrário, ou seja, que ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem - cfr. artº. 1260º. nº. 1 do C.C.
Como afirma Menezes Cordeiro é de boa fé a posse que, não sendo, na sua origem, violenta, se tenha constituído pensando o possuidor:
- que tinha, ele próprio, o direito;
- que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.
Acrescentando porém que “... a publicidade existente hoje nos direitos reais reduz, consideravelmente, a boa fé de terceiros: todos podem e devem conhecer da existência dos direitos reais”. E citando Derruppé, acrescenta “hoje em dia todas as coisas estão, praticamente, apropriadas. Daí que ninguém possa, de boa fé, pretender ignorar direitos reais alheios sobre uma coisa, ...” (Direitos Reais, 1979 (reprint), pág. 316).
Temos pois que é possuidor de boa fé quem, no momento da sua aquisição, ignorava “que aquele de que adquiriu o direito não é, ao contrário do que pensava, o seu titular” (Manuel Rodrigues, A Posse, pág. 295). Neste sentido pode ainda ver-se, a título meramente exemplificativo, Acs STJ de 30/4/91, 26/4/95, 11/3/99 e 7/6/01, todos in www.dgsi.pt e de 20/3/01 in CJ, tomo I, 180.
Dos factos constantes das alíneas l), m) e n) dos factos assentes resulta que a 1ª. R era a titular inscrita dos bens prometidos vender à data da celebração do acordo referido na al. e) dos mesmos facto. Do que se podia retirar que ao tempo de aquisição da posse a Autora ignorava a lesão do direito de outrem, uma vez que a teria adquirido do seu legítimo proprietário, do que se teria que concluir que a posse da A era de boa-fé.
Sendo de boa-fé, e como resulta do disposto no artº. 1296º. do C.C., a A só poderia adquirir por usucapião os prédios dos autos quando tivessem decorridos quinze anos desde a data da celebração do contrato-promessa referido em d) dos factos assentes, não tendo decorrido tal prazo quando foi interposta a presente acção.
Impõe-se, finalmente, aferir da possibilidade da A aceder na posse dos seus antepossuidores, com vista à junção da sua posse com a destes, lançando mão do instituto da acessão na posse, previsto no art. 1256º do CC.
São requisitos da acessão na posse que a transmissão da mesma tenha sido efectuada por título válido e que a posse do antecessor seja da mesma natureza da posse do sucessor.
Como já referimos em cima a A não adquiriu a posse por título válido, não podendo, assim, aceder na posse que a transmitente detinha sobre os prédios dos autos.
Temos assim que, ainda que demonstrados todos os factos alegados pela A, e ainda que se entenda que dos mesmos se pode retirar que desde a data da celebração do contrato-promessa a mesma tem actuado em relação aos prédios dos autos como verdadeira possuidora, tem a sua pretensão que improceder na totalidade uma vez que, não podendo a mesma beneficiar do instituto da acessão na posse, não decorreu, sobre o inicio da alegada posse, o prazo de 15 anos para que a mesma pudesse adquirir por usucapião.
A Recorrente discorda desta fundamentação no que respeita ao entendimento aí preconizado quanto à acessão da posse.
Afirma que, para este efeito, nada na lei impõe um negócio jurídico que consubstancie um acto de alienação de um direito sobre determinado bem; pelo contrário, determinante é que a transmissão da posse (e não do direito a que se refere) resulte de um acto concreto do transmitente e que permita aferir que a posse que este exercia sobre determinado bem passou a ser assumida, a partir de determinada data, pelo sucessor.
Crê-se, porém, que se decidiu bem.
Dispõe o art. 1256º do CC:
1. Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor.
2. Se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito.
A acessão da posse é, assim, a faculdade de, designadamente para efeitos de usucapião, o possuidor juntar à sua a posse do antecessor.
O seu regime é dominado pelas seguintes regras[3]:
- a acessão é possível apenas na aquisição derivada da posse ("aquele que houver sucedido[4] na posse…");
- a acessão é facultativa: diversamente do que ocorre com a sucessão mortis causa, o sucessor inter vivos poderá, conforme lhe convenha, invocar apenas a sua posse, apenas a do antecessor ou ambas conjuntamente;
- a acessão só é admissível em relação a posses consecutivas;
- é admissível a junção de posses de natureza diferente, dentro dos limites da que tiver menor âmbito.
Existe, porém, divergência, mais doutrinal que jurisprudencial, sobre se, para a referida aquisição derivada da posse, será exigível um acto translativo da posse, formalmente válido. Pires de Lima e Antunes Varela sustentam que "o emprego das palavras sucessão e sucessores mostra que o legislador quis prever todo e qualquer acto translativo da posse. Esta pode resultar tanto de um negócio jurídico (venda, troca, doação), como duma expropriação, duma execução, etc. Mas é necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse, que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores, fenómeno que não se verifica, por exemplo, entre o vencedor da acção de reivindicação e o detentor ou possuidor nela vencido. Há-de tratar-se, por outro lado, de uma relação jurídica formalmente válida, o que não acontece, por exemplo, na venda de imóveis por acordo verbal"[5].
Este entendimento, assumido já no domínio do actual Código Civil, segue a tese já antes defendida por Manuel Rodrigues para quem a acessão exige "um vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor.
E este vínculo pode revestir várias modalidades.
Pode ser um negócio jurídico, uma venda, ou troca, ou doação em pagamento; mas pode ser uma expropriação, uma execução, etc.
Este vínculo deve todavia ser válido.
Se o acordo de transmissão do direito não é válido, não há transmissão do jus possidendi que aqui é a causa da junção dos jus possessionis, embora o negócio jurídico nulo caracterize a posse"[6].
E acrescenta noutro passo[7]:
O título há-de ser real. Não basta que exista no pensamento do possuidor (…). É preciso que exista de facto. O título putativo com o valor de justo título é inadmissível.
E é preciso que exista de direito, que tenha as condições formais ou substanciais, necessárias para existir. Justus titulus non est titulus invalidus.
Da mesma opinião, mais recentemente, é Santos Justo, invocando o direito romano, que considerava a acessio possessionis com grande rigor, "exigindo que o anterior e o actual possuidor realizassem um negócio jurídico real"[8].
Diferente é a posição de Menezes Cordeiro:
"Exige-se que haja um «vínculo» entre os dois possuidores sucessivos. Tal vínculo redunda na presença dum fenómeno de transmissão da posse, requerendo-se – pois estamos no domínio possessório e não no petitório – uma transferência de facto do poder sobre a coisa.
A transferência da posse há-de operar por uma das formas idóneas para tanto e, designadamente, por tradição ou por constituto possessório. Essa transmissão terá de assentar num título abstractamente idóneo para permitir o direito correspondente à posse: por ex., não há acessão na posse a favor do (mero) promitente adquirente que não possa invocar um título bastante de aquisição da posse. Concretamente, porém, o título poderá ser inválido, sofrendo dos mais diversos vícios"[9].
Acrescenta depois que "o essencial, na acessão, é que a posse se transmita. Ora a transferência da posse opera, sabidamente:
- por tradição;
- por constituto possessório.
Em parte alguma a lei portuguesa exige, para a transmissão da posse títulos, negócios ou «vínculos» válidos. Estamos no domínio do possessório e não do petitório"[10].
Opinião idêntica é a de José Alberto Vieira:
"O possuidor actual pode juntar a sua posse à posse do seu antecessor caso tenha adquirido a posse deste por qualquer um dos modos de transmissão da posse que o direito português reconhece (a tradição e o constituto possessório), independentemente da validade do título de transmissão. O título pode mesmo faltar de todo, sem que a acessão da posse seja prejudicada"[11].
Temos adoptado a primeira solução indicada, desde tempos, aliás, em que tal orientação se tinha por pacífica. E, apesar do devido respeito pela posição contrária, crê-se que aquela será ainda a que melhor se ajusta ao regime legal positivo, mesmo após o Código Civil de 66.
No art. 1266º nº 1 alude-se à sucessão operada por título diverso da sucessão por morte e, por isso, não parece que possa deixar de exigir-se a existência de um título para fazer funcionar a acessão.
Título que, à luz do disposto no art. 1259º nº 1 do mesmo diploma, deve ser abstractamente idóneo para, pelo menos formalmente, transferir o direito.
Assim, fazendo jus ao conceito originário – como acima dissemos, a acessio possessionis exigia que o anterior e o actual possuidor realizassem um negócio jurídico real – a posse do adquirente deve assentar num acto susceptível de, em abstracto, transferir o direito real que lhe corresponde.
Mesmo nesta solução, discute-se se o vínculo que tem de ligar o novo ao antigo possuidor deve ser válido e eficaz[12] ou se será suficiente apenas a sua validade formal[13], questão que não interessará desenvolver por não assumir relevância para a decisão a tomar nestes autos.
Relevo evidente tem, porém, esta última nota: a de que não parece aceitável que a autora possa valer-se da posse da 1ª ré contra esta mesma ré.
Isso mesmo resulta da exposição de José Alberto Vieira, tantas vezes citado pela Recorrente:
"A acessão da posse está centrada na usucapião, permitindo ao possuidor actual beneficiar do tempo de posse dos seus antecessores para o cômputo do prazo de posse respectivo. Este instituto tem, porém, um limite natural de aplicação, que nunca vem explicitado pela doutrina: a acessão não pode ocorrer mediante a junção da posse daquele contra o qual a usucapião funciona. (…)
Admitindo-se a acessão sem o limite indicado, vai-se permitir que a usucapião actue mesmo em prejuízo daquele que transmitiu a posse ao possuidor actual, abrindo-se a porta a um intolerável aproveitamento do tempo de posse do titular do direito real que vai ser prejudicado com a invocação da usucapião.
Assim, o possuidor actual apenas poderá recorrer à acessão da posse do seu transmitente caso a usucapião não venha a funcionar contra ele"[14].
Portanto, mesmo na tese defendida pela Recorrente, a posse invocada por esta não poderia acrescer à posse da anterior possuidora, a 1ª ré, para efeito de reconhecimento, contra esta, da pretensão exercida nesta acção, de reconhecimento da aquisição do direito de propriedade sobre os imóveis por usucapião.
As conclusões do recurso devem, por conseguinte, improceder.
V.
Em face do exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Porto, 26 de Janeiro de 2012
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
_________________
[1] Abílio Neto, CC Anotado, 21ª ed., 487.
[2] Cfr. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 40; Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, Vol. II, 3ª ed., 96.
[3] Henrique Mesquita, Direitos Reais, 104 e 105.
[4] Termo que, como é reconhecido pacificamente, não é utilizado aqui em sentido técnico-jurídico, mas em sentido vulgar – Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 4ª ed., 118.
[5] CC Anotado, Vol. III, 2ª ed., 14.
[6] A Posse, 3ª ed., 252 e 253. No mesmo sentido, na vigência do Código anterior, Dias Marques, Prescrição Aquisitiva, 2º Vol., 96 e 97.
[7] Ob. Cit., 292.
[8] Direitos Reais, 198. A favor desta tese tradicional pronunciaram-se ainda, entre outros, Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, 280; Moitinho de Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 3ª ed., 79 e Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 245 e ss e 459; cfr. também Massimo Bianca, Diritto Civile – La Proprietà, 754, que alude a título abstractamente idóneo à transferência do direito ("…può avvalersi di un titolo astrattamente idoneo, pure se radicalmente viziato, a giustificare la traditio della cosa…"). Na jurisprudência, cfr. os Acórdãos do STJ de 22.11.2005, de 27.11.2007 e de 07.04.2011 e da Rel. do Porto de 05.05.2005, de 07.10.2008 e de 06.05.2010, todos em www.dgsi.pt.
[9] A Posse: Perspectivas dogmáticas actuais, 132 e 133.
[10] Ob. Cit., 135.
[11] Direitos Reais, 417. No mesmo sentido, Vassalo de Abreu, Uma relectio sobre a acessão da posse, em Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, Homenagem (…) Vol. II, 167 e ss. e P. Soares do Nascimento, Acessão da posse e posse não titulada, em CDP 21º-45 e ss.; na jurisprudência, cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 20.05.2010, em www.dgsi.pt.
[12] É, como vimos, a posição de Manuel Rodrigues; também de Penha Gonçalves e Durval Ferreira, Obs. e locs. acima citados e do referido Acórdão do STJ de 27.11.2007.
[13] Como se depreende das palavras que se transcreveram de Pires de Lima e Antunes Varela; também o citado Acórdão do STJ de 22.11.2005.
[14] Ob. Cit., 419.