ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE REVISTA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FACTOS CONCLUSIVOS
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRÉDIO CONFINANTE
DEMARCAÇÃO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
ESTREMA
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
CONTRAPROVA
Sumário

I - O erro na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto da revista (art. 722.º, n.º 2, do CPC) na qual o STJ se limita a aplicar-lhes o regime jurídico adequado (art. 729.º, n.º 1, do CPC).
II - Saber qual a finalidade da colocação «de pedras» que os autores/recorrentes sustentam ser a delimitação dos lotes, e que o réu/recorrido defende ser a sua orientação, é nitidamente uma questão de facto cuja decisão compete às instâncias.
III - A expressão «para referência própria» não envolve qualquer juízo de valor, nem é conclusiva.
IV - No conteúdo do direito de propriedade relativamente aos prédios confinantes, inclui-se o direito de exigir dos proprietários destes o respectivo concurso para a demarcação das estremas, visando-se, assim, a individualização da área ou extensão da superfície terrestre sobre a qual se exerce o direito de propriedade.
V - O objecto da acção de demarcação é apenas o de fixar os confins incertos ou duvidosos entre duas propriedades contíguas, assumindo uma natureza quer declarativa (quando o objecto se restringe ao estabelecimento ou marcação no terreno de limites cuja localização fosse indiscutida), quer constitutiva (quando com ela se pretende dirimir um conflito sobre limites de localização incerta, caso em que se discute uma determinada área de terreno entre os proprietários confinantes).
VI - A efectivação da demarcação extrajudicial pode assentar no comportamento de um dos proprietários susceptível de dúplice interpretação: (i) ou como declaração tácita de vontade; (ii) ou como mera execução oi actuação de vontade, exteriorizando ou denunciando um certo conteúdo de vontade negocial.
VII - O conjunto de sinais formados pelas estacas colocadas em linha num determinado prédio e a limpeza deste até à linha das mesmas pode configurar-se, e socialmente assim é entendido, como significando a marcação do limite deste; logo, essa actuação material pode qualificar-se como comportamento concludente neste sentido de delimitar a área do prédio por essa linha.
VIII - Todavia, tal presunção resulta ilidida com a demonstração pelo réu de que tais marcos foram colocados para sua própria referência, pondo assim em causa o facto presumido e logrando convencer da sua inocuidade e irrelevância jurídicas, neutralizando, assim, o significado socialmente típico da colocação de sinais constituídos por estacas, como linha divisória e delimitadora de prédios confinantes.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


RELATÓRIO

A Comarca do Baixo Vouga, por sentença de 25-02-2010, julgou improcedente a acção proposta por AA e BB contra CC com vista à definição da demarcação da estrema entre os respectivos terrenos, sitos na ..................., na freguesia de Esmoriz, concelho de Ovar, confinantes entre si, absolvendo este do pedido, e procedente a reconvenção deduzida pelo Réu, declarando que a extrema ou linha divisória entre os prédios dos AA e do Réu é constituída por uma linha recta que une o marco existente na extremidade sul/nascente dos terrenos (distando 10,70 metros do marco existente na extremidade sul/poente) e um ponto situado na extremidade norte do terreno que dista também 10,70 metros do marco situado na extremidade norte/poente, isto é, o marco que divide o terreno dos AA do confinante a poente.

Inconformados, apelaram os AA para a Relação do Porto, mas sem êxito, pois por acórdão de 12-10-2010, foi a apelação julgada improcedente e confirmada a sentença.

Ainda inconformados, recorrem de revista para este STJ, pugnando pela revogação do acórdão recorrido.

O Réu contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido.

Remetido o processo a este STJ, depois de recusado o recurso, foi, mediante reclamação dos AA, reformado tal despacho, após o que foram corridos os vistos legais.

Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.

FUNDAMENTAÇÃO

- Matéria de facto:

As instâncias mostram-nos como provados os seguintes factos:

1. Mediante escritura outorgada em 11 de Agosto de 2006, os autores compraram um terreno, destinado a construção urbana, sito na Rua ......., freguesia de Esmoriz, concelho de Ovar, a confrontar a nascente com o réu, a sul com caminho, a poente com DD e a norte com a Rua ..................., inscrito na matriz urbana sob o na 00000 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o nº 000 de Esmoriz. (A)

2. O mencionado terreno encontra-se registado na competente Conservatória do Registo Predial a favor dos autores. (B)

3. Os autores, por si e antepossuidores desse terreno, há mais de 30 anos, que cuidam dele, cortando árvores e mato, pagando os impostos, o que vêm fazendo à vista de toda a gente, de forma continuada, e sem oposição de ninguém, na convicção de que são os seus donos. (C)

4. O mencionado terreno dos autores encontra-se demarcado do terreno que com ele confronta pelo poente através de marcos existentes quer na extremidade norte quer na extremidade sul junto aos arruamentos respectivos. (D)

5. Sendo, nessa parte, a linha divisória constituída por uma recta que vai de marco a marco referidos. (E)

6. O marco da extremidade sul é uma pedra colocada junto ao arruamento, que dista 10,7 metros do marco que nessa extremidade sul demarca o terreno dos autores do do vizinho a poente. (F)

7. O réu é proprietário, entre outras, de duas parcelas de terreno destinadas a construção urbana, actualmente inscritas na matriz predial urbana de Esmoriz sob os artigos 3703° e 3708°, correspondentes aos lotes nº 00 e nº 00 do Alvará de Loteamento n°000 emitido, em 13.06.1984, pela Câmara Municipal de Ovar. (G)

8. As referidas parcelas de terreno, sitas no lugar de ......, freguesia de Esmoriz, concelho de Ovar, confrontam do nascente com os lotes 00 e 00, respectivamente, do mesmo loteamento, do, sul com Rua EE, do norte com a Rua ....... e do poente com o prédio dos autores. (H)

9. O réu adquiriu essas parcelas de terreno mediante escritura de partilha por óbito de seus pais, realizada no 2° Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, em 21.09.2004, e as mesmas encontram-se registadas a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Ovar. (I)

10. Foi o pai do réu o requerente do Loteamento, cujo Alvará foi emitido pela C.M.O. em 1984. (J).

11. Após um processo de expropriação levado a cabo, em 1981, pela referida Câmara Municipal, com vista à aquisição dos terrenos onde viria a ser construída a Escola Primária da ....... (K)

12. No âmbito do referido processo de expropriação, foram expropriadas parcelas de terreno pertencentes a vários proprietários, entre os quais os pais do aqui réu e os antepossuidores do prédio dos aqui autores. (L)

13. Assim, a C.M.O. denominou como parcela 19 a parcela a expropriar pertencente aos antepossuidores do prédio dos autores e parcela 20 a parcela a expropriar pertencente aos pais do réu. (M)

14. Os lotes do réu, confinantes com o prédio dos autores, têm a área de 630 m2 e de 660 m2, respectivamente lote sito a sul e lote sito a norte. (N)

15· Quer um quer outro dos prédios de autores e réu eram e são terrenos a mato e pinhal. (1°)

16. Quando os autores compraram o referido terreno este também se encontrava demarcado do terreno do réu com marcos existentes quer na extremidade norte, apenas do lado poente, quer na extremidade sul, junto aos respectivos arruamentos. (2º)

17. Na extremidade norte, do lado nascente, estava colocada uma estaca em betão parcialmente enterrada no solo, colocada junto ao arruamento (a norte), que distava 16 metros [do marco] que nessa extremidade (norte) demarca o terreno dos autores do vizinho a poente. (3°)

18. A linha divisória entre os terrenos dos autores e do réu é uma linha recta, partindo do marco colocado na extremidade sul dos terrenos em direcção a norte. (4°)

19. O réu mandou colocar várias estacas de betão ao longo do terreno a definir uma linha obliquada entre o marco a sul e a estaca colocada a norte, lado nascente, que distava aproximadamente 16 metros do marco da extremidade norte, lado poente. (6°)

20. Os autores aceitaram essa estaca de betão colocada na extremidade norte, do lado nascente, como um marco que definia as estremas do seu terreno com o do réu e as estacas de cimento colocadas pelo réu ao longo do terreno, ligando, em linha oblíqua, o marco existente na extremidade sul com aquela estaca de betão colocada a norte, lado nascente, como a linha divisória dos terrenos. (8° e 9°)

21. O réu mandou cortar os arbustos existentes numa faixa de terreno do seu lado, até à linha onde viriam a ser colocados os blocos (estacas) de cimento. (10º)

22. As estacas de cimento estiveram no terreno antes dois ou três meses de os autores terem concluído as negociações para a compra do terreno e até cerca de um mês após a compra. (11°)

23. Os autores só compraram o terreno por terem visto aí colocadas pelo réu as aludidas estacas de cimento. (12°)

24. E por terem sido informados por técnico que contrataram que, com essas medidas, era viável a construção de uma moradia como pretendiam. (13º)

2S. Cerca de um mês após os autores terem comprado o referido terreno o réu mandou arrancar os blocos de pedra que tinha mandado colocar quer na extremidade norte do terreno quer ao longo do terreno. (14°)

26. O réu tentou colocar, depois, estacas em madeira com a largura de aproximadamente 10,70 m, que os autores não permitiram. (16°)

27. Os autores, por si e antepossuidores do terreno, sempre o usaram com as dimensões e configurações constantes em F) dos factos assentes, sendo que a largura do terreno, na extremidade norte é igual à do lado sul (10,70 m). (17°)

28. Cortando o mato e arbustos. (18º)

29. O que fazem desde há mais de 20 e 30 anos. (19°)

30. À vista de toda a gente. (20°)

31. De forma continuada (21°)

32. Sem oposição de ninguém. (22°)

33. Na convicção de que são os seus donos. (23º)

34. Desde a abertura da actual Rua ....... não existe marco na extremidade norte/nascente do prédio dos autores. (24º).

35. O marco da extremidade sul é um marco de material e características iguais aos dois marcos norte e sul que limitam a poente o terreno dos autores e igual a outros dois que desapareceram, um a meio dos terrenos e outro na sua extremidade norte. (25°).

36. O réu só teve conhecimento da compra do terreno pelos autores, por esta lhe ter sido comunicada por carta, datada de 11.10.2006. (26°)

37. As “pedras” cujas fotografias juntam com doe. 4, 5 e 6 foram colocadas para referência própria, dentro dos prédios do réu. (27°)

38. O prédio dos autores não tem viabilidade de construção face à respectiva área confinante com a via pública. (28°)

39. A linha divisória entre os prédios dos autores e do réu sempre foi uma linha recta paralela à linha a poente (29°)

40. Constituída por uma linha recta que une o marco existente na extremidade sul/nascente dos terrenos (distando 10,70 metros do marco existente na extremidade sul/poente) e um ponto situado na extremidade norte do terreno que dista também 10,70 metros do marco situado na extremidade norte/poente, isto é, o marco que divide o terreno dos autores do confinante a poente. (30°)

41. O réu, por si e antepossuidores do terreno e respectivos lotes, sempre o usaram com as definições constantes do loteamento e respectivo Alvará emitido pela C.M.O. em 13.06.1984. (31º).

42. A Rua ....... foi implantada a sul daquilo que no processo de expropriação e loteamento se encontra em todas as plantas previsto. (32°)

43. Tendo essa deslocação para sul da referida Rua sido feita pela C.M.O. em prejuízo dos prédios dos autores e do réu, por determinar perda de área para ambos. (33°).

- O Objecto do Recurso:

Como se sabe, o objecto do recurso, ou seja, as questões que o recorrente pretende ver apreciadas pelo Tribunal Superior, são delimitadas pela síntese conclusiva por ele proposta (art. 690º nº1 CPC).

Enunciaram os AA as seguintes conclusões:
1ª - Mesmo sem violar o disposto no art. 722º do Código de Processo Civil, no recurso de revista pode ser considerada não escrita uma resposta à base instrutória quando se trate de mera conclusão.

2ª - O nº 27 da base instrutória é uma mera conclusão ou, se se quiser, uma afirmação sem qualquer conteúdo factual. Por esse motivo deve a resposta que lhe foi dada ser considerada não escrita.

3ª - O objecto da acção é a demarcação entre os prédios de autores e réu, que são confinantes. Trata-se de uma acção de natureza pessoal em que o que se pretende é a definição da linha divisória (estrema) entre esses prédios. Essa definição torna-se necessária por o réu ter retirado os marcos que havia colocado, pretendendo colocar outros.

4ª - Autores e réu aceitam que a estrema é constituída por uma linha recta que parte do marco existente a sul (este também aceite).

5ª - A demarcação foi feita extrajudicialmente pelo réu que colocou várias estacas em betão formando uma linha recta a partir do marco existente a sul até à extremidade dos terrenos a norte.

6 - Essas estacas em betão estiveram aí colocadas durante dois a três meses antes dos autores comprarem o agora seu terreno e um mês após essa compra.

7ª - A demarcação extrajudicial pode fazer-se por acordo verbal entre as partes, ficando as mesmas vinculadas ao cumprimento desse acordo.

8ª - Nada na lei obriga a que esse acordo tenha que ser reduzido a escrito para se tornar válido e eficaz, contrariamente ao que dá a entender o douto acórdão recorrido.

9ª - A questão fundamental a decidir é a de saber, na sequência dos factos provados (nºs 17 e 19 articulados com os nºs 21, 22 e 25)), que efeito atribuir à colocação dos blocos de betão que o R. efectuou. Importa analisar se a colocação desses blocos de betão integram uma declaração negocial feita pelo réu e que os autores aceitaram, dando assim corpo a um contrato a que as partes se devem considerar vinculadas.

10ª - As estacas ou blocos de betão colocados são adequadas a serem considerados marcos pelos autores ou qualquer pessoa minimamente instruída e capaz. Estavam parte enterradas no solo e parte salientes e, sendo várias, formavam uma linha recta (ainda que oblíqua) entre o marco existente a sul e a extremidade dos terrenos a norte.

11ª - «Pode definir-se declaração de vontade negocial como o comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência de exteriorização de um certo conteúdo de vontade negocial, caracterizando, depois a vontade negocial como a intenção de realizar certos efeitos práticos, com ânimo de que sejam juridicamente tutelados e relevantes» (C. A. Mota Pinto - Teoria Geral do Direito Civil - 3º edição acto pag. 416).

12ª - Neste entendimento trata-se não apenas «de dar expressão à vontade do declarante mas também que tutelar a confiança das pessoas em certas exteriorizações, mesmo quando apenas na aparência se mostrem negociais» (A. Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil Português, I, 2a ed., pag. 339).

13ª - Essa declaração negocial vinculante chegou ao conhecimento dos autores verificando-se assim a perfeição da declaração negocial. A lei não distingue se o declaratário tem de estar presente ou ausente; o que importa é que essa declaração chegue ao âmbito do poder ou da actuação do destinatário de modo a que ele possa conhecê-la.

14ª - Está provado que os autores tomaram conhecimento da colocação pelo réu dos blocos de betão com as características e no alinhamento referidos e o corte de arbustos no terreno do réu até esse limite.

15ª - E está provado que os autores aceitaram essa colocação de blocos de betão como sendo definidores da estrema.

16ª - Os autores confiaram nessa exteriorização e com base nela compraram o terreno e deram início á elaboração do projecto da construção da sua casa.

17ª - Se assim não se entender, a demarcação também não observou o disposto no art. 1354° C. Civil, pois não havia títulos com definição da estrema. A posse que a lei exige não é a posse da usucapião mas aquela que resulta dos actos praticados que possam significar uma demarcação. E esses praticou-os o réu apenas até à linha onde colocou os blocos de betão.

18ª - Se assim não se entendesse, deveria ter-se utilizado o critério de dividir a área nos termos do n? 2 do art. 1354° do C. Civil dividindo a área em litígio em partes iguais.

19ª - O douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 219º nº 1, 405º, 406°, 244° nº 1 e 1354° do Código Civil.

- Apreciação:

1 - O erro na fixação da matéria de facto é ininvocável na revista.

         Nas 1º e 2ª conclusões da sua alegação, os recorrentes questionam a expressão “para referência própria” constante do facto elencado sob o nº 37 da matéria de facto:

As “pedras” cujas fotografias juntam com doc. 4, 5 e 6 foram colocadas para referência própria, dentro dos prédios do réu. (27°)

Sustentam que tal expressão deve ter-se por não escrita por ser uma conclusão inócua que não se compreende desacompanhada de factos que possam integrar o que se pretende dizer.

O recorrido, depois de relevar a ausência deste questionamento perante as instâncias, escçlareceu tal expressão “para referência própria” como significando “para sua orientação”.

Conforme, aliás, alegara na contestação.

Ora, como se sabe, o erro na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto da revista (art. 722º nº2 CPC) na qual o STJ se limita a aplicar-lhes o regime jurídico adequado (art. 729º nº1 CPC).

A questão, portanto, consiste em determinar se tal expressão envolve um juízo de facto ou um juízo conclusivo.

Por outras palavras, importa apurar a finalidade da colocação das “pedras” que os AA e ora recorrentes sustentam ser a delimitação dos lotes e o Réu, ora recorrido, defende ser a sua própria orientação.

E neste sentido, estamos perante uma óbvia questão de facto cuja decisão compete às instâncias.

Referência é, em termos de facto, “o que permite encontrar algo”, um elemento de localização, em suma, algo que serve para orientar.

Como os AA aliás, tacitamente reconheceram, pois que só nas alegações da revista suscitaram tal questão, nunca o tendo feito perante a 1ª instância nem perante a Relação, pretendendo, com a criação de decisões sobre questões novas, subverter a lógica e o fim do recurso que é o reexame das questões apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido.

Logo, sendo certo que os juízos de valor, não sendo factos, devem considerar-se - tal como as decisões sobre questões de direito - não escritas (art. 646º nº 4 CPC) e são sindicáveis pelo STJ, a expressão “para referência própria” não envolve, todavia, qualquer juízo de valor.

Portanto, não sendo um juízo conclusivo, improcede a pretensão de considerar “não escrita” tal expressão.

2 – Relevância do contexto na interpretação do significado do comportamento concludente como declaração tácita de vontade e critérios para aferição desta – a recondução dos factos concludentes a presunções:

Começaremos por afirmar uma verdade que temos por apodíctica: o contexto em que tem lugar o comportamento concludente é essencial para a interpretação deste, ou seja, para a descoberta do seu significado.

Defendem os recorrentes que, com a colocação de estacas pelo Réu e a aceitação por eles desse limite, existiu uma demarcação extrajudicial tácita.

No conteúdo do direito de propriedade relativamente aos prédios confinantes, inclui-se o direito de exigir dos proprietários destes o respectivo concurso para a demarcação da estremas (art. 1353º CC).

Visa-se, assim, a individualização da área ou extensão da superfície terrestre sobre a qual se exerce o direito de propriedade para o que importa estabelecer determinados limites ou extremas.

Estes, ao mesmo tempo que definem o objecto jurídico – o prédio – estabelecem os limites da extensão horizontal em que pode ser exercido o direito de propriedade.

Esses limites são constituídos por linhas ideais e convencionais que podem ser “marcadas” na superfície terrestre e, assim, tornadas visíveis, através da colocação de objectos determinados (v. g., marcos, muros de pedra, etc).

É isso que os AA pretendem nesta acção - que o seu prédio seja delimitado do prédio do Réu por uma linha recta que une o marco de pedra existente na extremidade sul dos terrenos (distando 10,7 metro do marco existente na extremidade sul-poente) e um ponto situado na extremidade norte do terreno que dista 16 m do marco situado na extremidade norte-poente, isto é, o marco que divide o terreno dos AA do confinante a poente – linhas divisórias estas com que o Réu não concorda.

O objecto da acção de demarcação é, portanto, apenas fixar os confins incertos ou duvidosos entre duas propriedades contíguas.

A acção de demarcação tem uma dupla natureza: declarativa e constitutiva.

A acção é meramente declarativa quando o respectivo objecto se restringe ao estabelecimento ou marcação no terreno de limites cuja localização fosse indiscutida, caso em que se esgota na verificação e declaração da fixação desses limites no terreno.

Mas pode ser também constitutiva, quando com ela se pretende dirimir um conflito sobre limites de localização incerta, caso em que, para além da fixação dos limites dos prédios, a acção faz também ingressar dentro dos limites de um dos prédios confinantes, uma determinada área de terreno discutida entre os proprietários confinantes; neste caso, a acção de demarcação é também uma acção de reivindicação do domínio relativamente a essa faixa de terreno.

Todavia, o seu objecto típico é o exercício do direito de demarcação que integra o conteúdo do direito de propriedade de prédios contíguos, não o reconhecimento do direito de propriedade sobre parte do prédio contíguo (cfr. L. Diez-Picazo, Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial, III, 5ª ed., p. 247 e segs).

Tal direito não tem que ser exercido judicialmente, concretizando-se amiúde extrajudicialmente entre os proprietários de prédios confinantes.

Como anotam Pires de Lima e A. Varela, “não havendo quaisquer dúvidas acerca dos limites dos prédios, assim como o proprietário de qualquer deles o pode murar, valar, rodear de sebes ou tapá-lo, também pode limitar-se na esfera do seu direito de propriedade, a colocar marcos divisórios. Se o proprietário vizinho se conforma com eles, não há problemas a resolver; se não se conforma, é porque há dúvidas quanto aos limites, e são então aplicáveis as disposições dos artigos 1353º e seguintes, que se referem à actio finium regundorum” (cfr. Código Civil Anotado, vol.III, 2ª ed., p. 198).

A efectivação da demarcação extrajudicial assenta, neste caso, no comportamento de um dos proprietários susceptível de dúplice interpretação: ou como declaração tácita de vontade (com escopo notificativo dirigida aos confinantes) ou como mera execução ou actuação de vontade (operação jurídica, também designados actos materiais ou reais), caso este em que se “traduzem na efectivação ou realização de um resultado material ou factual a que a lei liga determinados efeitos jurídicos” (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., p. 2005, p. 358).

Como actuação de vontade, “o comportamento do declarante exterioriza ou denuncia um certo conteúdo de vontade negocial, aparecendo, todavia, como dirigido, não a patenteá-lo, mas antes a realizá-lo, a dar-lhe efectivação ou execução. O comportamento não declara (sequer indirectamente) o respectivo conteúdo de vontade, senão que apenas o actua ou executa, e por isso mesmo o revela, constituindo – ex post facto – indício dele, quando não até a sua cabal demonstração. Falta aqui o escopo notificativo” (cfr. Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1966, p. 123).

Logo, grosso modo, pode reconduzir-se a uma declaração negocial tácita (cfr. Mota Pinto, ob cit, p. 357, nota 419).

Ora, por força do art. 295º CC, são aplicáveis aos actos jurídicos as disposições do capítulo antecedente relativamente à declaração negocial na medida em que a analogia das situações o justifique.

Quanto a nós, o conjunto de sinais formado pelas estacas colocadas em linha num determinado prédio e a limpeza deste até à linha das mesmas pode configurar-se, e socialmente é assim entendido, como significando a marcação do limite deste; logo, essa actuação material (e também jurídica) pode qualificar-se como comportamento concludente neste sentido de delimitar a área do prédio, ou seja, como declaração tácita de demarcação por essa linha – esse é, repetimos, o seu significado socialmente típico.

É o que os AA e recorrentes sustentam na presente acção, fundando-se na colocação pelo Réu de uma determinada linha de estacas e na limpeza do seu prédio até essa linha, antes da aquisição por aqueles do seu prédio.

Como se disse, tal colocação (e limpeza) configuram factos concludentes dos quais é possível deduzir a conclusão da demarcação, pois, em princípio, há que reconhecer a susceptibilidade de ser interpretada, como facto que, com toda a probabilidade revela a vontade ou a declaração, de “marcar” a fronteira entre os prédios -  logo, como declaração tácita (art.  217º nº1 CC) – e de, como tal, com esse sentido ser interpretada pelo proprietário contíguo, tido pelo declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (art. 236º nº1 CC).

Como numa perspectiva objectivista, tal actuação pode ser encarada como mero comportamento exterior, susceptível de criar uma mera aparência declarativa de que a confinância entre os prédios se faz por essa linha de estacas.

Em ambas as perspectivas, é essencial estarmos perante um comportamento concludente – no sentido de que dele ou a partir dele, se pode tirar uma conclusão - dirigido à demarcação de prédios.

A aposição de estacas, se com elas se pretende sinalizar a delimitação de um dado prédio, é um acto material (e, como tal, é um acto comunicativo – consistente na transmissão por um emissor de uma mensagem e na sua recepção por um receptor - usando um sistema de sinais com um dado significado) mas só tem o significado de delimitação (ou de proposta de delimitação) num contexto de desconhecimento, incerteza ou controvérsia sobre os limites dos prédios confinantes; a determinação do significado desses sinais depende assim da relação entre eles e o seu emprego nesse contexto.

Fora desse contexto, pode ter outros significados (v.g, divisão do prédio, marcação da localização de uma obra dentro dele, etc; no caso em apreço, como se apurou, a colocação de estacas servia para orientação do Réu e identificação por ele do espaço do prédio).

A “dedução” da declaração a partir dos factos “que com toda a probabilidade a revelam” deve ser realizada sobre a base dos factos e das circunstâncias que os envolvem; a relação entre os factos concludentes e a declaração tácita assenta em critérios lógicos de inclusão e continência (a conclusão deve estar pressuposta e implicada no facto concludente) e de incompatibilidade e exclusão (os factos concludentes devem excluir outra conclusão que não seja a declaração tácita). (cfr. Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, 1995, p. 760 e segs).

Quer isto dizer que, por um lado, a colocação das estacas e a limpeza do terreno até ao limite das mesmas deve implicar e pressupor o significado de que tal linha delimitava o prédio do Réu do dos AA e que o Réu queria que assim fosse e, por outro, que tal actuação excluía qualquer outro significado.

A este critério lógico, contrapõem outros um critério prático ou funcional baseado nas circunstâncias e nas realidades da vida.

Como se disse, a exigência normativa de que a declaração é tácita “quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem” - (ocorre perguntar: revelem o quê: a declaração? a vontade? – questão esta controvertida) – aponta, como se disse, para os factos concludentes, os quais devem ser também inequívocos.

Escreve, a propósito, Rui Alarcão:

Esta inequivocidade ou univocidade dos facta concludentia é, como bem se compreende, aferida por um critério prático, que não por um critério estritamente lógico.

E citando o Prof. Manuel Andrade, escreve:

«Existirá ela sempre que, conforme os usos da vida, haja quanto aos factos de que se trata toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões) – ainda que porventura não esteja absolutamente precludida a possibilidade de outra significação. Em tal caso deverá reputar-se tacitamente declarada aquela vontade». Dado o carácter relativo ou pragmático da apontada inequivocidade, é preferível, em vez de falar em «inequivocamente» ou, como fazia o Cód de 1867 (art. 648), em «necessariamente», dizer que a declaração tácita se deduz dos factos concludentes com toda a probabilidade - e assim faz, de resto, o Código actual (art. 2 I 7, . nº 1)” (cfr. A Confirmação dos negócios anuláveis, vol. I., p. 192).

Quer isto dizer que, diversamente do que acontece nas declarações expressas, “na declaração tácita, entre os factos concludentes e a declaração há um nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo. A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles. A vontade funcional ou negocial é necessariamente, pelo menos logicamente, anterior aos facta concludentia, que não têm no plano jurídico ontologicamente nada a ver com ela” (cfr. Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 1979, p. 61, negrito nosso).

E continua este Prof.:

Este nexo de presunção que está inerente a toda a declaração tácita pode ser presunção legal (ou júris) e judicial ou de facto (hominis). (…). Aplica-se aqui, note-se, todo o regime das presunções: a ilidibilidade – regra prevista no art. 350°, n.o 2 (“a presunção júris tantum constitui a regra; a júris et de jure, a excepção”) quanto às legais, as restrições dos arts. 351º e 393º-394º quanto às judiciais”.

Os factos concludentes funcionarão, pois, como factos indiciários (ou base) da presunção, e a declaração (tácita) como facto presumido; a relação entre os factos concludentes e a conclusão é, afinal, uma presunção, ou seja, uma ilação que “a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (art. 349º CC).

A operação de dedução da declaração “de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”, pressupõe a elaboração mental de um raciocínio a partir daqueles factos e, com base nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, a formulação da conclusão da declaração tácita; para a inferência desta a partir daqueles, é necessário que, de acordo com um critério prático e social, e não rigorosamente lógico-formal, se verifique “aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas tomarem as suas decisões”; todavia, como meios de prova por sua natureza falíveis e precários, a sua força probatória pode ser afastada por simples contra-prova (cfr. Pires de Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., p. 208 e 310).

Assim, da colocação das estacas pelo Réu e da limpeza, também por ele, do seu prédio até à linha daquelas, decorre a presunção de que, com isso, ele fazia coincidir a delimitação entre os seu prédio e o dos AA com a linha formada por aquelas estacas.

Todavia, o Réu, não só ilidiu tal presunção, como demonstrou que tais marcos foram colocadas para sua própria referência, dentro do seu prédio; por outras palavras, a sua contraprova, para além de pôr em dúvida o facto presumido (o significado de linha divisória dos prédios) logrou convencer da sua inocuidade e irrelevância jurídicas.

         Por outras palavras, operou a “neutralização” do significado socialmente típico da colocação de sinais constituídos por estacas (ou “pedras” ?) como linha divisória e delimitadora de prédios confinantes.

3 – Inexistência de relação negocial entre proprietários de prédios confinantes e consequências:

A relação entre os AA e o Réu é uma relação de carácter real, assente na titularidade de direitos de propriedade sobre prédios confinantes.

O direito de demarcação é, com efeito, uma das faculdades compreendidas no direito de propriedade sobre imóveis contíguos e confinantes e a relação entre esses proprietários uma relação de vizinhança (cfr. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2002, p. 75 e segs).

Não é, nem foi, uma relação negocial ou obrigacional; logo, a colocação unilateral (por um deles) de sinais susceptíveis de serem interpretados como delimitadores do prédio contíguo não tem o valor de proposta ou declaração negocial; será, como se disse, apenas uma operação material (mas com reflexos jurídicos), uma actuação jurídica a que, por força do art. 295º CC, se aplicam, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições sobre a declaração negocial.

Logo, as alusões, na argumentação expendida, a esta devem ser entendidas em termos hábeis, pois nenhum negócio ou relação obrigacional foi celebrado entre as partes.

Significa isto que eventual erro dos AA quanto à área do prédio – como eles sustentam pois que se teriam convencido que os limites do prédio que iam adquirir e adquiriram eram os definidos pelas estacas colocadas pelo Réu, limites esses que teriam sido decisivos para a sua decisão de compra - deve ser discutido com o vendedor do prédio e não com o Réu (art. 251º e 247º CC).


ACÓRDÃO

Pelo exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

         Custas pelos AA.


Lisboa e STJ,

Os Conselheiros


Lisboa e STJ, 07 de Junho de 2011

Fernando Bento (Relator)
João Trindade
Tavares de Paiva