VALORAÇÃO PROIBIDA DE PROVA
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

Constitui valoração proibida de prova – logo, nulidade insanável - o uso na sentença de documento junto aos autos depois de encerrada a audiência de julgamento e sem que o mesmo tivesse sido notificado aos sujeitos processuais.

Texto Integral

Processo n.º 632/08.9TAVFR.P1

Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
No 1º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, por sentença datada de 12/05/2011, constante de fls. 673 a 686, além do mais, foi o Arg.[1] B…, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 173[3]) condenado nos seguintes termos:
Em face do exposto:
A) Julgo parcialmente procedente a acusação pública deduzida e, em consequência:
i) absolvo o arguido C…, da prática do crime de descaminho, p.p. no art. 355º do CP, de que vinha acusado.
ii) condeno o arguido B…, pela prática, em autoria material, de um crime de descaminho, p.p. no art. 355.º do CP, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa (ao abrigo do disposto no art. 43.º, n.º 1 do CP), à taxa diária de € 10,00, no montante global de € 1.800,00.
B) julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e, consequentemente:
i) absolvo o arguido C… do mesmo;
ii) condeno o arguido B… a pagar, à demandante civil, D…, a quantia de € 21.947,11, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde o dia 29/02/2008, até efectivo e integral pagamento.
C) condeno ainda B… nas custas cíveis e penais e demais encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s (cf. art. 513.º, 514.º e 523.º do CPP e 446.º do CPC).
…”.

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Não se conformando, o Arg. B… interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 754 a 766, com as seguintes conclusões:
“…Primeira: Deve ser eliminada por ser falsa a matéria constante do nº 4 da matéria de facto enumerada na fundamentação de facto da sentença;
Segunda: Deve ser eliminada por ser falsa a matéria constante do nº 8º da matéria de facto enumerada na fundamentação de facto da sentença;
Terceira: A admoestação sobre as implicações da nomeação de depositário apenas vale para o cidadão que é constituído depositário e não para quem assiste, pelo que é incorrecta a matéria de facto constante do nº 9º dos factos enumerados na fundamentação de facto da sentença;
Quarta: Apesar da matéria constante do nº 10 dos factos enumeradas na fundamentação de facto da sentença ser verdadeira importa clarificar que tais actos se inscrevem no direito que o recorrente tinha de gerir a empresa de que era sócio e que tais actos representavam o cumprimento da ordem e consentimento de quem tinha o poder sobre o veículo confiado à oficina do recorrente para reparação.
Quinta: Deve ser eliminada a expressão “por intermédio do arguido B…” constante do nº 13 da matéria de facto da sentença por tal afirmação resultar do depoimento do arguido C1..., ser rejeitada pelo recorrente e não existir qualquer outro depoimento em que tal afirmação se possa fundamentar.
Sexta: Deve ser eliminada por ser falsa e contrária a documento junto ao processo aquando da abertura de instrução, este elaborado no ano de 2001 por perito de companhia de seguros (perito de todo alheio ao processo) a matéria constante do nº 19º da matéria de facto da fundamentação da sentença.
Sétima: O Senhor Doutor Juiz que proferiu a sentença em primeira instância não atentou em que o agente policial que cumpriu a ordem de apreensão do veículo e que nomeou depositário o seu titular inscrito no registo automóvel português declarou ao depositário na presença do gerente da oficina em que o mesmo se encontrava para ser reparado que o veículo não podia ser vendido, doado ou por qualquer forma onerado e apenas poderia ser efectuada a sua reparação normal.
Oitava: A reparação normal dum veículo que no ano de 2001 tinha o valor comercial de perto de quatro mil e quatrocentos contos e com danos cuja reparação com substituição do motor danificado por motor usado ascendia a mais de dois mil contos implicava a sua desmontagem para ser elaborado orçamento de reparação.
Nona: Achando-se o veículo desmontado e em início de reparação, o gerente da oficina não está obrigado a completar a reparação se o dono do veículo e seu depositário o não desejar e se não responsabilizar pelo pagamento de tal reparação (ou der ordem em sentido diverso).
Décima: Tendo o dono do veículo pedido a transferência de partes desse veículo para outro veículo da mesma marca e tendo abandonado o veículo desmontado na oficina onde veio a ser encontrado nesse estado passados sete anos, nem por isso o dono da oficina pode ser punido pelo crime de descaminho desse veículo.
Décima Primeira: E, mesmo que o recorrente viesse a ser punido por tal crime, em caso algum poderia ser condenado a indemnizar quem quer que fosse pelo valor comercial do veículo que entrou na oficina com danos cuja reparação ascendia a mais de metade do seu valor comercial e empregando um motor usado em substituição do danificado.
Décima Segunda: A sentença recorrida faz uma errada aplicação do disposto no artigo 355º do C.P. uma indevida aplicação ao caso em apreciação do disposto no artigo 483º do CC por se não verificar ilicitude ou sequer um dano praticado pelo recorrente, nem haver qualquer nexo de causalidade entre a actuação do recorrente e o prejuízo sofrido pelo assistente.
Décima Terceira: A sentença recorrida mostra-se extremamente desequilibrada, injusta e ofensiva da justiça,
Devendo ser revogada e substituída por outra que acolhendo a lei, absolva o recorrente, assim se fazendo JUSTIÇA.
…”.
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Responderam Demandante civil, a fls. 773 a 777, e a Exm.ª Magistrada da MP[4], a fls. 780 a 781, ambas pugnando, em suma, pela improcedência do recurso.
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Neste tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 783, pronunciando-se, em suma, pela improcedência do recurso.
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A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis ou seja o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e o princípio “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.
A decisão em crise fixou da seguinte forma a matéria de facto:
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Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[5] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.
No cumprimento desse dever, a decisão recorrida fundamentou da a sua decisão de facto seguinte forma:
Para dar como provados os factos descritos supra o Tribunal fundou a sua convicção:
- na análise da certidão de fls. 2 a 21, que serviu para provar que o veículo identificado foi efectivamente apreendido, à ordem do processo n.º 220/99.9JAAVR da Comarca do Baixo-Vouga, em 18/06/2001, quando se encontrava na oficina do arguido B… e, bem assim, que foi entregue, nessa mesma oficina e no estado em que se provou, à assistente D…, em 29/02/2008, na sequência do levantamento da apreensão – vejam-se os autos de apreensão e entrega, bem como as fotografias do veículo de fls. 13 a 19 e note-se, ainda, que o próprio arguido B… não negou que o carro tivesse sido entregue à assistente no estado nelas «imortalizado»;
- na análise das declarações do legal representante da assistente E… e do inspector da PJ, F…, que estiveram presentes do acto de entrega do veículo àquela e confirmaram que o seu estado correspondia ao retratado nas fotografias de fls. 12 a 19 e que se provou;
- na análise do depoimento da testemunha de defesa G…, funcionário da oficina do arguido B… há cerca de 12 anos e das próprias declarações deste último, que apesar de se mostrarem muito pouco credíveis noutros aspectos (como veremos infra), sempre coincidiram quanto ao facto do veículo ter sido desmontado na referida oficina por ordens directas do segundo; e, por fim,
- na análise do depoimento da testemunha H…, Inspector da Polícia Judiciária que procedeu à diligência de apreensão do veículo na oficina do arguido B… e que esclareceu, de forma manifestamente convicta, segura e imparcial que este último esteve presente nessa mesma diligência e foi, por si, informado de que o veículo ficaria apreendido até ordem judicial em contrário, não podendo, por qualquer forma, ser destruído, mexido ou, sequer, utilizado – permitindo assim concluir que este arguido sabia perfeitamente que o veículo estava apreendido, quando ordenou que fosse desmontado.
Neste último sentido, aliás, outros factores são de ponderar:
Por um lado e desde logo, deve considerar-se que da certidão extraída do aludido Proc. Comum Colectivo n.º 220/99.9JAAVR e junta aos autos já durante a audiência de julgamento, resulta que o arguido B… foi aí inquirido sobre um carro, que também havia comprado à mesma pessoa que lhe forneceu o veículo descaminhado (Sr. I…), 6 dias antes da concretização da apreensão deste último à ordem desse mesmo processo, pelo que é de presumir que o Sr. Inspector H… – que conduzia a investigação desse processo – tivesse o cuidado e todo o interesse em dar a conhecer ao arguido B…, em cuja a garagem o mesmo se encontrava, tal facto.
Depois, deve atentar-se que o próprio arguido declarou que, num primeiro contacto, havia referido ao Inspector H… que também tinha comprado o Passat ao tal I…, tendo este tirado umas fotografias ao mesmo e dito que depois o informava se também tinha sido furtado. Declarações, essas, que, a serem verdade, mais contribuem para que se conclua que o Sr. Inspector terá – como, aliás, afirmou categoricamente – informado o arguido de que o carro foi apreendido na data que se provou.
Depois, ainda, note-se que o arguido não negou que o veículo tivesse sido apreendido quando se encontrava na sua oficina para ser reparado, pelo que mesmo que se admitisse que não estava presente aquando da apreensão – o que só se concede a título de mera hipótese de raciocínio – deve convir-se que, na qualidade de dono da oficina, certamente teria sido informado de tal facto pelos funcionários que estariam ali a trabalhar aquando da sua concretização.
E, por fim, veja-se que o arguido, em boa verdade, nunca logrou explicar a razão pela qual, para si, o veículo ficou depositado na sua oficina durante quase sete anos: Foi deixado, pura e simplesmente, pelo co-arguido C… sem receber nada em troca? Ficou ali depositado para que aquele o viesse buscar quando quisesse levantar? E se sim, porque é que o arguido não se importou de tê-lo, tanto tempo, a ocupar espaço na sua oficina que, certamente, poderia utilizar de forma mais proveitosa?
Já para dar como provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente de que estava a violar a custódia pública decorrente daquela apreensão, partiu-se do facto de se ter concluído que o mesmo tinha perfeito conhecimento da sua existência e, bem assim, da análise da conduta que objectivamente encetou à luz das regras da experiência comum.
No que concerne, por outro lado, aos factos relativos à situação sócio-económica do arguido e aos seus antecedentes criminais, valoraram-se as suas próprias declarações e o respectivo CRC junto aos autos.
Já no que diz respeito aos factos que interessam, exclusivamente, ao pedido de indemnização civil (designadamente os inscritos nos §§ 15.º a 19.º), valoraram-se:
- os documentos juntos com o mesmo a fls. 267 e ss.: que serviram para provar os factos descrito nos §§ 15.º a 18.º:
- as declarações do legal representante da assistente, E… e da testemunha J…: que serviram para provar que o que restou do veículo em causa nos autos foi dado para abate logo após a sua entrega à assistente em 29/02/2008; e,
especificamente, quanto ao valor atribuído ao mesmo,
- a certidão do despacho de acusação proferido no âmbito do Processo Comum Colectivo 220/99.9TAAVR, do Tribunal da Comarca do Baixo-Vouga, junta aos autos já durante a audiência de julgamento, de onde resulta que a viatura foi sujeita a exame pericial no âmbito desse processo, tendo-lhe sido atribuído, à data da apreensão, o valor de € 21.947,11 – o qual, ademais, se afigura objectivamente razoável e acertado, tendo em consideração as características específicas do veículo em causa e os valores usualmente praticados no mercado nesse período temporal.
Já resposta de não provado aos factos descritos na respectiva rubrica, deveu-se, essencialmente, ao facto de não se ter produzido prova suficiente de que o arguido C… tenha participado na decisão de desmontar e retirar peças ao veículo apreendido, sendo certo que a únicas provas produzidas nesse sentido, foram as declarações do arguido B… e das testemunhas K… (sua esposa) e G… (seu funcionário) que, no entanto, se mostraram muito pouco circunstanciadas e credíveis nesta parte, denotando claramente a intenção de “sacudir para o capote” do arguido C…, a culpa daquele.”.
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É pacífica a jurisprudência do STJ[6] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que as questões fundamentais que a Recorrente suscita no seu recurso são as seguintes:
I – Para dar como provado o facto 19º, o tribunal recorrido não podia ter valorado a certidão do processo 220/99.9JAAVR, porque a mesma só foi junta aos autos após o encerramento da audiência de discussão e julgamento;
II – O tribunal recorrido não devia ter dado como provada a matéria de facto provado sob os n.ºs 4º, 8º, 9º, 10º, 12º, 13º e 19º, porque não foi isso o que resultou da prova produzida em audiência;
III – Só pode ser autor do crime de descaminho o depositário do bem em causa.
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Cumpre decidir.
I – A audiência de discussão e julgamento desdobrou-se em 2 sessões (15/02/2011, acta de fls. 567 a 569, e 11/03/2011, acta de fls. 606 a 610), tendo nesta última sido encerrada, após as alegações.
Após este encerramento, foi junta aos autos a certidão do processo 220/99.9JAAVR, que se encontra a fls. 691 a 746 e deu entrada no tribunal recorrido (através do envio por fax documentado a fls. 616 a 669) no dia 05/04/2001 (cf. fls. 616).
Não consta dos autos que este documento tenha sido notificado a qualquer dos sujeitos processuais.
Na sentença em crise tal documento foi valorado como prova nos seguintes termos:
“… - na análise do depoimento da testemunha H…, Inspector da Polícia Judiciária que procedeu à diligência de apreensão do veículo na oficina do arguido B… e que esclareceu, de forma manifestamente convicta, segura e imparcial que este último esteve presente nessa mesma diligência e foi, por si, informado de que o veículo ficaria apreendido até ordem judicial em contrário, não podendo, por qualquer forma, ser destruído, mexido ou, sequer, utilizado – permitindo assim concluir que este arguido sabia perfeitamente que o veículo estava apreendido, quando ordenou que fosse desmontado.
Neste último sentido, aliás, outros factores são de ponderar:
Por um lado e desde logo, deve considerar-se que da certidão extraída do aludido Proc. Comum Colectivo n.º 220/99.9JAAVR e junta aos autos já durante a audiência de julgamento, resulta que o arguido B… foi aí inquirido sobre um carro, que também havia comprado à mesma pessoa que lhe forneceu o veículo descaminhado (Sr. I…), 6 dias antes da concretização da apreensão deste último à ordem desse mesmo processo, pelo que é de presumir que o Sr. Inspector H… – que conduzia a investigação desse processo – tivesse o cuidado e todo o interesse em dar a conhecer ao arguido B…, em cuja a garagem o mesmo se encontrava, tal facto.

especificamente, quanto ao valor atribuído ao mesmo,
- a certidão do despacho de acusação proferido no âmbito do Processo Comum Colectivo 220/99.9TAAVR, do Tribunal da Comarca do Baixo-Vouga, junta aos autos já durante a audiência de julgamento, de onde resulta que a viatura foi sujeita a exame pericial no âmbito desse processo, tendo-lhe sido atribuído, à data da apreensão, o valor de € 21. 947,11 – o qual, ademais, se afigura objectivamente razoável e acertado, tendo em consideração as características específicas do veículo em causa e os valores usualmente praticados no mercado nesse período temporal. …”.
Pelo que, o tribunal levou em conta este meio de prova para, em conjugação com outro, dar como provado o facto 8º e para, por si só, fazer prova do valor do carro descaminhado.
Ora, nos termos do disposto no art.º 355º do CPP, tal meio de prova, porque não foi produzido nem examinado em audiência, nem se encontrava nos autos aquando da realização desta, não podia ter sido valorado.
Sendo certo que a existência de tal vício não implica sempre a anulação do julgamento, como decidiu o acórdão da RP de 18/06/2007[7], no presente caso, o vício apontado não se pode sanar com a simples eliminação dos factos provados que se basearam nessa prova, uma vez que, por um lado, essa prova foi valorada em conjugação com outra e, por outro lado, dando-se como não provado o valor do carro, ficaria inviabilizada a apreciação do pedido cível.
Em casos como o presente, a sanação do vício implica a anulação do julgamento, como se decidiu no acórdão da RP de 17/11/2004[8], do qual citamos: “… A violação do art. 355º, 1 do C.P.Penal, isto é, a valoração de meios de prova que a lei não permite, gera nulidade da sentença, implicando (como diz o MP) a repetição do julgamento.
Na verdade, foi valorada prova que a lei não consente.
Como defende Costa Andrade, o direito português associou as proibições de prova à figura e regime de nulidades, o que significa que, nos termos do art. 122º do CPP, tornam inválido o acto em que se verificarem bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar – cf. “Sobre as proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, pág. 313.
O próprio art. 355º, 1 do C.P.P., sob a epígrafe “Proibição de valoração de provas” estipula que a sua violação, ou seja, a valoração de provas proibidas tem como consequência “não valerem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.
Consagra expressamente este artigo 355º CPP afloramentos dos princípios da imediação e do contraditório, enformadores do nosso processo penal e que se traduzem, fundamentalmente, no facto de (em regra) toda a prova que serve para formar a convicção do julgador dever ser produzida ou examinada oralmente em audiência e ser objecto de apreciação, em contraditório, pelos sujeitos processuais. E, “porque as provas hão-de ser objecto de apreciação em contraditório, na audiência, fica excluída a possibilidade de decisão com base em elementos de prova que nela não tenham sido apresentados e discutidos (arts. 327º, 355º, 348 e 360 do Cód Proc. Penal)” – cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Ed. Verbo, 2000, pág. 77.
Deste modo, verificando-se a nulidade de valoração de prova não produzida em audiência, relativamente a aspectos cruciais do julgamento (a matéria de facto onde se narravam os elementos constitutivos do crime por que o arguido foi condenado, foi considerada provada com base em tal prova - declarações para memória futura) todo ele não pode deixar de estar afectado pela referida nulidade, o que conduz à sua repetição.
Este entendimento foi igualmente defendido por esta Relação, Ac. da Rel. do Porto, de 4/07/01[9], CJ, tomo IV, pág. 222 e segs., e pelo Supremo Tribunal de Justiça, Ac. do STJ, de 5/6/91, BMJ, 405/408, onde se decidiu que a nulidade resultante da violação de proibições de prova é insanável. …”.
No sentido da nulidade parece inclinar-se João Conde Correia[10].
Impõe-se, assim, anular a decisão recorrida bem como o julgamento efectuado, devendo proceder-se a novo julgamento com observância do disposto no art.º 355º CPP.
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A solução encontrada para a questão I obsta ao conhecimento das restantes.
Sempre diremos, no entanto, que, se não fosse a nulidade que vimos de apreciar, a sentença sempre padeceria dos vícios resultantes de não se terem dado como provados ou não provados os factos alegados nos n.ºs 1º a 7º e 9º a 23º da contestação do Recorrente, junta a fls. 397 a 401.
Na verdade, sendo certo que só sobre os factos fundamentais o tribunal tem que se pronunciar[11], os referidos factos podem ter especial relevância, não só quanto à extensão da responsabilidade penal do Recorrente, como quanto ao valor do veículo em causa e, consequentemente, quanto à indemnização a fixar, sendo caso disso.
Neste caso, tal omissão configura um vício com uma dupla vertente:
Por um lado, constitui nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (art.º379º/1-c) do CPP), que deve ser arguida e conhecida em sede de recurso (art.º 379º/2 do CPP), sendo de conhecimento oficioso[12].
Por outro lado, constitui uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que para que exista este tipo de vício, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto, é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito e seja de concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão[13], como foi o caso.
Nesse sentido se pronunciaram entre outros o acórdão do STJ de 03/07/2002[14], de cujo sumário citamos: “O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na a al. a) do nº. 2 do art. 410º do CPP, é o que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, porque o Tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão. …”, e o acórdão do STJ de 18/03/2004[15], de cujo sumário citamos: “… 4 - A insuficiência a que alude a al. a) do nº. 2 do art. 410º do CPP decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão. …”,
No presente caso, também este vício obrigaria ao reenvio, uma vez que os autos não dispõem dos elementos necessários à sua sanação (art.ºs 430º e 431º/a) do CPP).
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos parcialmente provido o recurso e, consequentemente, anulamos a decisão recorrida e respectivo julgamento, nos termos acima expostos.
Sem custas (art. 513º/1 do CPP).
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
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Porto, 01/02/2012
João Carlos da Silva Abrunhosa de Carvalho
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
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[1] Arguido/a/s.
[2] Termo/s de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 22/05/2009.
[4] Ministério Público.
[5] Código de Processo Penal.
[6] Supremo Tribunal de Justiça.
[7] Relatado por Pinto Monteiro, in www.gde.mj.pt, Processo 0741423, do qual citamos: “…Verifica-se, assim, uma mera irregularidade, que este tribunal pode sanar, bastando para tanto ordenar a eliminação aqueles factos da matéria de facto provada e, consequentemente, não os ter em conta para a determinação do quantitativo diário das multas. …”.
[8] Relatado por Élia São Pedro, in www.gde.mj.pt, processo 0414002.
[9] Deste acórdão, relatado por Maria da Conceição Simão Gomes, retemos a seguinte passagem: “…A lei não indica claramente quais os efeitos da admissão no processo de uma prova proibida. A prova proibida é nula, o que significa que é inválida, bem como os actos que dela dependerem e que ela possa afectar (artº 122º). O efeito primeiro desta invalidade é que a prova não pode ser utilizada no processo, não podendo, por isso servir para fundamentar aquela decisão.
A consequência essencial que a obtenção de uma prova proibida provoca vem a ser a sua não utilização: trata-se pois de a não tomar em conta para qualquer fim processual, é como se a referida prova não existisse, sendo configuráveis pelo menos três situações diversas. A proibição da prova é descoberta antes da sua admissão no processo, depois de admitida, mas antes de valorada e depois de valorada.
No primeiro caso a proibição há-de comportar a não admissão da prova, no segundo a sua não valoração e no terceiros a viciação da decisão por violação de lei".
3.4.2. Quanto ao conhecimento do vício da proibição de prova, isto é, se enquadra nas nulidades insanáveis ou se dependente de arguição, o regime das proibições de prova não há-de reconduzir-se pura e simplesmente ao regime das nulidades, pois se assim fora seria dificilmente explicável o nº 3, do artº 118º, seguindo, porém, o regime das nulidades insanáveis. Por isso, a nulidade resultante da produção de prova proibida será do conhecimento oficioso até decisão final, só se convalidando com o trânsito em julgado da decisão.
No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 5/6/91, in BMJ, 408-405, decidiu que a nulidade resultante da violação de proibições de prova é insanável.
Neste sentido, o acórdão recorrido é nulo por valoração de prova não produzida em audiência, relativamente a aspectos fundamentais de julgamento, nulidade esta que afecta todo o julgamento, porque dela dependente, implicando a sua repetição. …”.
[10] In “Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais”, Stvdia Jvridica, 44, Coimbra Editora, 1999, págs. 160 e 161, nota 367.
[11] Conforme jurisprudência pacífica do STJ. Cf., por todos: Ac. do STJ de 28/09/1994, in CJSTJ, T. III, p. 207; Ac. STJ de 11/02/1998, in BMJ 474/151, e Ac. de 14/02/2001, in www.gde.mj.pt, processo 2836/00-3ª.
[12] Neste sentido, cf. o ac. da RP de 21/01/2002, relatado pelo Sr. Desembargador Ernesto Nascimento, in www.gde.mj.pt, processo 0846847, do qual citamos: “…Antes das alterações introduzidas pela Lei 59/98, não havia dúvidas de que as nulidades da sentença constantes das alíneas a) e b) (as únicas então existentes) do artigo 379º C P Penal, eram nulidades sanáveis e, portanto, dependentes de arguição. Nesta conformidade, de resto, sobre o caso particular da nulidade prevista na alínea a) do art. 379º C P Penal, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo art. 374º nº 2, do mesmo diploma, decidiu o STJ, pelo Assento de 6.5.1992, in DR-I Série-A, de 6.8.1992, com dois votos de vencido, que tal nulidade não era insanável, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119º C P Penal. Na mesma linha, pressupondo a necessidade de arguição, veio o Acórdão 1/94 do Plenário das secções criminais do STJ, in DR-I Série-A, de 11.2.1994, dispor apenas sobre a tempestividade dessa arguição, firmando jurisprudência no sentido de que as nulidades da sentença, previstas então nas alíneas a) e b) do artigo 379º C P Penal, poderiam ser ainda arguidas em motivação de recurso para o tribunal superior, à semelhança do que para o processo civil resulta da 2ª regra da 1ª parte do nº 3 do artigo 668º do C P Civil. No entanto, o enquadramento legal da questão sofreu modificação. Com a alteração introduzida através da Lei 59/98 de 25.8, no C P Penal, foi o artigo 379º foi reformulado, tendo-se aditando-se uma nova alínea, c) ao nº 1, bem como o nº 2, com a seguinte redacção: “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 414º, nº 4”. Se a nova alínea introduzida no nº. 1 do artigo 379º C P Penal, tem redacção semelhante à contida na alínea d) do nº 1 do artigo 668º C P Civil, já o novo nº. 2 do artigo 379º C P Penal corresponde a uma transposição parcial do nº 3 do art. 668º CPC e à adopção da doutrina contida no Acórdão 1/94, indo, porém, mais longe. Enquanto no regime do C P Civil, a arguição das nulidades pode ser feita em sede de motivação de recurso, no nº 2 do artigo 379º, impõe-se essa arguição nessa altura, “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”. A parte final desta expressão só pode significar o conhecimento oficioso dessas nulidades, justificando-se o afastamento do regime previsto no processo civil, que diversamente do penal, é enformado pelo princípio da livre disponibilidade das partes processuais, neste sentido cfr. Ac. STJ de 12.9.2007, relator Silva Flor, consultável no site da dgsi. No sentido de que a nulidade do alínea a) do nº. 1 do artigo 379º C P Penal é do conhecimento oficioso, decidiram, entre outros, os Ac.s STJ de 12.9.2007, relator Raul Borges e de 17.10.2007….”.
E o ac. da RP de 25/03/2009, relatado pelo Sr. Desembargador Cravo Roxo, in www.gde.mj.pt, processo 0740063, do qual citamos: “…É aqui que a jurisprudência se tem dividido, entendendo uma parte que tais vícios não são de conhecimento oficioso e uma outra, não menos importante, que os considera passíveis de ser conhecidos em recurso, mesmo que não alegados. No sentido do conhecimento oficioso das nulidades da sentença, vejam-se os Ac. desta Relação, de 29.9.2994, processo nº 0442419, relatado por António Gama (dgsi.pt) e da Relação de Coimbra, de 24.2.2004, processo nº 2701/04, relatado por João Trindade, entre muitos outros, ainda inéditos (sendo mesmo hoje a posição maioritária no Supremo Tribunal de Justiça).
E tem razão de ser tal conclusão, desde logo em sede de interpretação hermenêutica: a norma explicita, taxativamente, que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, argumento fundamental no sentido do seu conhecimento oficioso; de outra forma, o termo “conhecidas” não faria qualquer sentido, ao surgir depois do termo “arguidas”. Propendemos, decididamente, para o conhecimento oficioso das nulidades da sentença, previstas no citado Art. 379º do Código de Processo Penal. …”.
E o acórdão da RL de 25/10/2011, relatado por Jorge Gonçalves, in www.gde.mj.pt, de cujo sumário citamos: “…IIIº Essa nulidade é de conhecimento oficioso, visto que as nulidades da sentença enumeradas naquele preceito têm tramitação própria e diferenciada do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais; …”.
[13] Cf. Ac. do STJ de 20/10/1999, tirado no Proc. n.º 1452/98-3ª Secção, que traduz jurisprudência pacífica.
[14] Relatado por Armando Leandro e citado por Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, II ed., 2011, pág. 1246.
[15] Relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, processo 03P3566.