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ACIDENTE DE VIAÇÃO
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
CRIME
DANO
DOLO
Sumário
I - A expressão “acidente de viação” não é utilizada, no ordenamento jurídico nacional, no sentido tradicional, mas antes na acepção mais geral de fenómeno ou acontecimento estradal, anormal, fortuito e casual, decorrente da circulação de um veículo, que, manifestamente, comporta o acidente, dolosamente, provocado, porquanto, em ambos os casos, é idêntico o interesse que a lei quer tutelar, isto é, o interesse do lesado na indemnização pelos danos sofridos. II- O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, face ao condicionamento imposto pela lei do seguro obrigatório, reveste a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, directamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização. III - A exclusão da previsão dos acidentes que, envolvendo a circulação de veículos, constituam a prática de crimes, esvaziaria o conteúdo da norma do art. 8.º, n.º 2, do DL n.º 522/85, de 31-12, ou, actualmente, do art. 27º, n.º 1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21-08, reduzindo-a às situações factuais em que ocorresse o dano meramente culposo. IV- A exclusão da cobertura legal, no âmbito do contrato de seguro obrigatório, quanto ao dano, dolosamente, causado, por um veículo terrestre a motor, só se compreende se o mesmo já se encontrar acautelado, por outra disposição legal. V- Sendo o dolo directo a expressão mais grave da culpa, lato sensu, quando o resultado danoso querido acaba por coincidir com aquele que resulta do próprio acidente, como seu processo causal, esse nexo de imputação do facto danoso à condução do agente excluiria, necessariamente, a mera culpa, idealmente, imputável à condução do lesado.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AA, residente na Rua ......, ........, Braga, propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra a “Companhia de ........, SA”, com sede na Praça ..............., nº ..., Porto, o Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Rua ..............., nº ......., ...., Porto, e BB então, detido no Estabelecimento Prisional do Norte, pedindo que, na sua procedência, os réus sejam condenados a pagar ao autor a quantia de 33469,37 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral cumprimento.
Fundamenta o pedido no facto de ter sido vítima de um acidente de viação, a que deu origem o réu BB, condutor do veículo, de matrícula 00-00-00, por si furtado, resultando do mesmo prejuízos para o autor, de carácter patrimonial e não patrimonial, que ascendem ao montante peticionado.
Mais alega que o proprietário do veículo causador do acidente havia transferido a responsabilidade civil pela sua circulação, para a ré “Companhia de ........, SA”, por força do correspondente contrato de seguro automóvel, sendo, assim, esta a responsável pelo pagamento daqueles danos ou, caso não se venha a apurar quem o conduzia, no momento do acidente, o réu Fundo de Garantia Automóvel.
Na contestação, que apenas o réu BB não apresentou, o réu Fundo de Garantia Automóvel arguiu a sua ilegitimidade, em virtude de o proprietário do veículo, na ocasião, ter transferido para a co-ré “Companhia de ........, SA”, a responsabilidade civil proveniente de acidente de viação causado pelo mesmo, impugnando ambos os réus a versão do acidente e o montante dos danos sofridos, concluindo pela total absolvição do pedido.
No despacho saneador, julgou-se improcedente a excepção da ilegitimidade passiva invocada pelo réu Fundo de Garantia Automóvel, e o réu BB, parte ilegítima, que, consequentemente, foi absolvido da instância.
O réuFundo de Garantia Automóvel interpôs recurso de agravo desta decisão, propugnando pela sua revogação, mas que o Exº Juiz recorrido sustentou.
A sentença julgou a acção, parcialmente, procedente por provada e, em consequência, absolveu o réu Fundo de Garantia Automóvel do pedido e condenou a ré “Companhia de ........, SA”, a pagar ao autor AA, a quantia de €24.000,00, sendo €3.000,00, a título de danos não patrimoniais, quantia esta acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.
Desta sentença, a ré “Companhia de ........, SA”, interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado a apelação, totalmente, improcedente e, em consequência, confirmou a decisão impugnada, não tomando conhecimento do agravo, por o considerar prejudicado, nos termos do disposto pelo artigo 710º, nº 1, 2ª parte, do CPC.
Do acórdão da Relação do Porto, a ré “Companhia de ........, SA”, interpôs agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua absolvição, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, integralmente:
1ª – Salvo o devido respeito o tribunal recorrido parece confundir a responsabilidade civil e os seus pressupostos com a responsabilidade da seguradora ao abrigo do contrato de seguro referido no ponto 1 dos factos dados como provados. Uma coisa é a responsabilidade civil do condutor do veículo, relativamente ao qual basta a prova dos requisitos previstos no art. 483°ss ou 499° ss, outra é a responsabilidade da seguradora que terá de se basear no contrato celebrado entre as partes.
2ª - O risco,elemento fundamental do contrato de seguro, é tradicionalmente definido como o "evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro - JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, p. 127 - fortuito e não dependente da vontade do homem, sendo o sinistro a concretização do mesmo.
3ª - Ora, o embate em causa nos presentes autos, tendo sido propositado e, como tal, doloso, o que ambas as instâncias recorridas de resto admitem, está em clara contradição com as características de incerteza e fortuitidade exigidas quer pelo risco quer pelo sinistro em si.
4ª - O contrato de seguro em causa pretende cobrir, e cobre, os danos resultantes dos riscos próprios de circulação de veículos automóveis, pelo que de acidentes de viação.
5ª - Por acidente entende-se "o que é casual, fortuito, imprevisto, acontecimento infeliz, desgraça, desastre"- Grande Dicionário de Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, não cabendo nesta definição, porque intencional e propositado, o atropelamento em causa nos presentes autos, e diz-se viação "o modo de andar ou percorrer um caminho ".
6ª - Ora, o contrato de seguro aqui em causa destina-se a cobrir, e cobre, os riscos inerentes à normal circulação do veículo mas não de um acto intencional do condutor do mesmo que o utilizou para cometer um crime, como poderia ter sido utilizado um revólver, uma faca ou qualquer outro objecto.
7ª - A que tudo não obsta o facto de se tratar de um contrato obrigatório pois que o mesmo, sendo, para todos os efeitos, um contrato é sempre celebrado na base da boa fé das partes, ficando cada uma delas sujeita a diversas obrigações, entre as quais de não provocar o sinistro e, enquanto contrato aleatório que é, a seguradora sabe e define os riscos que assume ao segurar um certo e determinado veículo, sendo certo que nenhuma das partes, nem seguradora nem segurado, tiveram em mente, aquando da celebração do mesmo a cobertura de situações como a que está em crise nos presentes autos.
8ª - Ao confirmar a sentença proferida pela primeira instância o tribunal recorrido violou o disposto nos art°s 1° do DL. 522/85, de 31. XII, e no art° 437º do CCom, e fez uma errada interpretação do previsto no art° 8°/2 daquele primeiro diploma legal, pelo que a decisão recorrida deverá ser substituída por uma outra que absolva a recorrente do pedido.
9ª - Tanto mais quanto o art° 8°/2 do DL. 522/85, de 31.12., não prescinde, para a cobertura nele prevista, que os factos integrem um acidente de viação,a definir como atrás referido.
10ª - Se assim se não entender, os factos provados apenas permitem que se impute culpa concorrente, em partes iguais, a ambos os condutores dos veículos intervenientes no embate, pela violação do previsto no art° 13° do Código da Estrada, devendo sempre, ao menos, alterar-se o decidido nesse sentido.
11ª - O tribunal recorrido, ao não decidir como supra defendido, violou o disposto no art° 1° do DL. 522/85, de 31. XII, no art° 437°do C.Com., no art° 13º do C.Est. e nos art°s 406°/1 e 483° do CC.
Nas suas contra-alegações, o autor e o réu Fundo de Garantia Automóvel defendem a improcedência do recurso, devendo manter-se a sentença recorrida.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo 00-00-00 encontrava-se, em 19 de Junho de 2006, transferida para a ré “Companhia de ........, SA”, através de contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 000000000000.
2. O autor nasceu em 1 de Junho de 1974.
3. Por acórdão já transitado, proferido pela 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães, BB foi condenado, entre outros crimes, pela prática, em 18 de Junho de 2006, de um crime de furto, cujo objecto é o veículo 00-00-00, e por condução perigosa, por, em 19 de Junho de 2006, ter causado o acidente, referido em A), conforme documento junto a folhas 116 e seguintes, que aqui se dá por, integralmente, reproduzido.
4. O autor era agente da PSP, auferindo a remuneração mensal de 964,70 euros.
5. No dia 19 de Junho de 2006, pelas 18,30 h, na Rua Prof. ..........., no Porto, ocorreu um embate entre os veículos, de matrícula 00-00-00 e 00-00-00 este pertencente à PSP.
6. O veículo da PSP era conduzido pelo autor, ao serviço daquela.
7. O condutor do 00-00-00 tinha furtado este veículo, em 18 de Junho de 2006, cerca das 12,30 h, no Lugar d........., S. ........, Vizela.
8. O acidente deu-se quando, tendo o referido BB estacionado o VM, na Rua Prof. ........., os agentes da PSP, ao detectarem a viatura e porque tinham a informação de que a mesma tinha sido furtada, permaneceram no local a vigiar, até que o condutor aparecesse.
9. Pouco tempo depois, surgiu o BB que, munido da respectiva chave, o abriu e se sentou no lugar do condutor, e, imediatamente, um dos agentes da PSP, ali em vigilância, se colocou na frente da viatura e, exibindo o seu cartão profissional, para se identificar como agente da PSP, gritou para o condutor, dizendo: “Pára. Polícia”.
10. Contudo, o BB colocou o seu veículo em marcha e arrancou, seguindo em frente para fugir, e, logo de seguida, inverteu o sentido de marcha, passando a girar em direcção à Rua de .................., no sentido Nascente/Poente.
11. Para tentar impedir a sua fuga, pelo menos, um agente policial colocou-se à sua frente com a pistola empunhada.
12. Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o autor, agente da PSP, conduzia o veículo, ao serviço da PSP, descaracterizado, mas sinalizado com o sinal luminoso de emergência, denominado “pirilampo”, pela meia direita da faixa de rodagem da referida Rua Prof. ........., no sentido Poente/ Nascente, vindo da Rua de Santa Justa.
13. O condutor do VM direccionou o veículo que conduzia para o veículo policial, e embateu nele, apesar de o condutor deste ainda ter travado, tendo o embate ocorrido entre a parte frontal esquerda do VM e a frente esquerda do veículo policial.
14. O condutor do veículo da PSP conduzia-o pela Rua Prof. ........., no sentido Poente/Nascente, perto do eixo da via, e o embate ocorreu, junto deste eixo, com as viaturas a ocuparem parte das hemifaixas de rodagem de cada um dos respectivos sentidos de marcha.
15. O autor sofreu, pelo menos, traumatismo da cabeça, e, desse traumatismo, resultou-lhe hérnia posterior de base alargada do disco L5-S1.
16. O autor ficou afectado de uma incapacidade permanente geral de 5 pontos, sem rebate profissional, mas a implicar esforços suplementares.
17. À data do acidente, o autor era uma pessoa saudável, sem qualquer defeito físico, o que lhe permitiu efectuar o serviço militar nas tropas pára-quedistas, onde frequentou os seguintes cursos de elevada exigência física: pára-quedismo militar; apontador de mísseis anti-carro; pára-quedismo belga e cabos pára-quedistas.
18. O autor praticava diversos desportos, como amador, tais como, surf, body board, musculação, karaté e BTT.
19. Apesar de, clinicamente, curado, o autor continua a padecer de dores que o impedem de praticar os desportos que tanto contribuíram para a manutenção da sua saúde física e mental, até em virtude do desgaste emocional causado pelo exercício da sua profissão.
20. Dos desportos supra referidos, apenas pôde continuar a praticar musculação, mas com limitações.
21. Depois do acidente, e, actualmente, o autor não consegue estar, sentado ou de pé, por mais de algumas horas seguidas.
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão do acidente de viação, dolosamente, provocado.
II – A questão da culpa pela produção do acidente.
I. DA EXCLUSÃO DA COBERTURA CONTRATUAL DE SEGURO DO ACIDENTE DE VIAÇÃO DOLOSAMENTE PROVOCADO
I. 1. Defende a ré “Companhia de ........, SA” que o contrato de seguro a que se reportam os autos destina-se a cobrir os riscos inerentes à normal circulação do veículo, mas não de um acto intencional do seu condutor que o utilizou para cometer um crime, como se poderia ter servido de um revólver, uma faca ou qualquer outro objecto, restringindo-se a cobertura do contrato de seguro, ao âmbito material do acidente de viação, de que o presente sinistro não comunga.
Não questiona, assim, a ré seguradora a verificação, «in casu», dos restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a que alude o artigo 483º, do Código Civil (CC), ou seja, o facto ilícito, o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano, restringindo-se, portanto, o segmento do objecto da revista à análise do último dos pressupostos contidos no citado normativo legal, isto é, o nexo de imputação do facto ao agente, e do seu reflexo, no âmbito do contrato de seguro celebrado entre aquela ré e o proprietário do veículo interveniente no acidente, cujo condutor o havia subtraído, fraudulentamente, da esfera de disponibilidade do seu titular legítimo.
I. 2. Efectuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, impõe-se considerar que, no dia 19 de Junho de 2006, pelas 18,30 h, na cidade do Porto, o condutor do veículo, de matrícula 00-00-00, BB, que o havia subtraído, na véspera, ao ser abordado por agentes da PSP, que se identificaram e colocaram na frente da viatura, gritando “Pára. Polícia”, colocou-a em marcha e arrancou, seguindo em frente para fugir, e, logo de seguida, inverteu o sentido de trânsito, direccionando o veículo que conduzia para o veículo policial, de matrícula 000000 conduzido pelo autor, que tentava impedir a sua fuga, embatendo neste, apesar de o seu condutor ainda ter travado, tendo a colisão ocorrido entre a parte frontal esquerda da viatura furtada e a frente esquerda do veículo policial, junto ao eixo da via.
Na ocasião, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo, de matrícula 00-00-00, encontrava-se transferida para a ré “Companhia de ........, SA”, através de contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 000000000000.
I. 3. Dispõe o artigo 8º, nº 2, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de… acidentes de viação dolosamente provocados».
Deste modo, tudo está em saber, desde logo, qual o conceito de «acidente de viação» que se deve ter como reconhecido pelo ordenamento jurídico nacional, no contexto do nº 2, do artigo 8º, do aludido DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, em que se fala de «acidentes de viação dolosamente provocados», sendo certo, outrossim, que a nossa ordem jurídica não contém a noção de «acidente de viação», de que, aliás, prescinde como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, desde que verificados os requisitos contidos no já citado artigo 483º, nº 1, do CC.
Porém, o regime europeu de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, construído, sucessivamente, como modelo de harmonização legislativa, amplamente, imbuído de disposições comunitárias sobre as quais o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias se tem debruçado, reflete-se, não apenas no domínio do seguro, como, também, nos direitos nacionais, em matéria de responsabilidade civil, partindo de um pressuposto de aplicabilidade, traduzido em noções, simultaneamente, materiais e normativas, que enquadram todo o regime, mas que nem sempre coincidem nas respectivas formulações literais.
Assim, a pedra angular deste regime, atento o estipulado pelos artigos 2º, da 1ª Directiva, 1º, da 3ª Directiva e o considerando da 5ª Directiva, remete para a «circulação de veículos terrestres com motor» e, consequentemente, para os danos causados a terceiros que resultem da circulação de veículos desta natureza, o artigo 2º, da 2ª Directiva, refere-se à «utilização de veículo» e à «condução de veículos», o artigo 5º, da 3ª Directiva, utiliza a expressão «acidente de circulação rodoviária», o artigo 1º, da 4ª Directiva, recorre à formulação «danos sofridos em resultado de sinistros causados pela circulação de veículos», e o artigo 4º, da 5ª Directiva, serve-se do termo «acidente».
Deste modo, as várias formulações, por identificação material e teleológica, traduzem uma mesma realidade que é a da circulação automóvel, em vias abertas ao tráfego público ou com semelhantes condições de utilização, e dos danos que tal actividade provoque, nomeadamente, aos utilizadores das vias estranhos ao veículo, sem distinção, quer seja por circunstâncias do funcionamento do veículo, de deficiências da própria via, por causa fortuita ou por acto do próprio condutor, que se não desligue de uma qualquer imputação subjectiva, seja no domínio da falta de cuidado ou de impreparação, ou da negligência simples ou grosseira, sem excluir o acto voluntário.
Há, portanto, diversas possibilidades de enquadramento da noção de “acidente”, conforme o plano de apreciação que esteja em causa ou do qual se deva partir.
Assim, na perspectiva do lesado, constitui acidente um facto exterior do qual resultem consequências lesivas, no sentido de acontecimento que, involuntariamente, suporta, que lhe é estranho, que não prevê, que não condiciona e que escapa à sua capacidade de influência ou domínio, enquanto que, no sentido pressuposto pelo regime do seguro obrigatório do direito comunitário, incluindo o direito nacional que assume esse regime, a noção de “acidente” ou “sinistro” deve ser considerada e integrada, sob o ponto de vista e pela posição do lesado, ou seja, da «protecção», na expressão da intencionalidade legislativa «dos legítimos interesses dos lesados».
Com efeito, para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos, pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um «acidente de viação», no sentido de uma ocorrência exógena e não esperada, e, portanto, fortuita (1)
Efectivamente, a expressão «acidente» não está utilizada, no sentido tradicional, mas antes na acepção mais geral de fenómeno ou acontecimento anormal, decorrente da circulação de um veículo, que, manifestamente, comporta o acidente, dolosamente, provocado, tendo sobretudo em vista o relevo dado ao interesse e à perspectiva do lesado, razão pela qual, nesta acepção, acidente é o acontecimento estradal, fortuito e casual, bem assim como o acidente, dolosamente, provocado, porquanto, em ambos os casos, é idêntico o interesse que a lei quer tutelar, isto é, o interesse do lesado na indemnização pelos danos sofridos.
Deste ponto de vista, que é a perspectiva de que parte o regime da garantia do seguro obrigatório, ou seja, da protecção e centralidade do lesado, a ocorrência, voluntariamente, provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circular, na via pública, em movimento, constitui um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado» (2)
I. 4. A circulação de veículo automóvel, na via pública ou equiparada, por quem possa ser, civilmente, responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros, deve, sob pena de apreensão da viatura, encontrar-se coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar e dos legítimos detentores e condutores do veículo, até um determinado montante, desde que os danos não estejam, legalmente, excluídos da garantia do seguro, atento o preceituado pelos artigos 1º, nº 1, 2º, 7º e 8º, nº 1, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, e 168º, nº 1, f), do Código da Estrada, na redacção introduzida pelo DL nº 44/2005, de 23 de Fevereiro.
A referência à não exclusão do âmbito da garantia do seguro dos danos resultantes de «acidentes de viação dolosamente provocados» está consagrada, por lei, desde o diploma que, primeiramente, instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, isto é, o DL nº 165/75, de 28 de Março, apesar do mesmo, em consequência das vicissitudes do tempo histórico da sua publicação, em virtude das nacionalizações das companhias de seguros, não ter chegado a entrar em vigor, mas em cujo artigo 8º já se previa que “o seguro garante também a responsabilidade civil resultante de acto doloso, dispondo, neste caso, o segurador de direito de regresso contra o responsável”.
Seguidamente, o artigo 1º, do DL nº 408/79, de 25 de Setembro, estabeleceu que «o seguro garantirá igualmente os danos provenientes de acidentes de viação dolosamente provocados», mas com a ressalva de que «o seguro não garante» a responsabilidade dos autores, cúmplices ou encobridores de roubo, furto ou furto de uso, ou de acidentes de viação, dolosamente, provocados, para com o proprietário, usufrutuário ou adquirente com reserva de propriedade, constante do respectivo artigo 5º, nº 2.
Por sua vez, o artigo 1º, do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, que se justificou pela transposição da Directiva nº 2005/14/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11 de Maio [5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel], refere-se ao «objecto» do «seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis», mantendo a formulação verbal constante do regime antecedente, na redacção do artigo 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, estatuindo agora o respectivo artigo 15º, nº 2, que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados».
Trata-se da ideia de garantir a protecção das vítimas de acidentes de viação, que informa todo o articulado da chamada Lei do Seguro Obrigatório, assegurando, da forma mais alargada possível, o ressarcimento dos danos por elas sofridos, dando, assim, lugar a um regime legal em que a liberdade negocial, já, fortemente, condicionada, nos contratos de adesão, está agora, praticamente, ausente.
Impõe-se, por isso, concluir, em face de um regime legal tão apertado, que já pouco subsiste com carácter contratual no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, melhor lhe cabendo a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, directamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização (3).
E se o objectivo primacial do legislador foi proteger os interesses dos lesados, tal não pode deixar de verificar-se mesmo naqueles casos em que os danos resultam de acidente, dolosamente, provocado, podendo afirmar-se, resolutamente, que o segmento analisado do artigo 8º, nº 2, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, deve ser interpretado de modo a reconstituir o pensamento legislativo, dentro da letra da lei, com base no princípio da unidade do sistema jurídico, consagrado pelo artigo 9º, nºs 1 e 2, do CC.
A interpretação do artigo 8º, nº 2, 2ª parte, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, em conformidade com o direito comunitário e a jurisprudência do Tribunal de Justiça, alcança-se, considerando que “as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida”(4)
No caso de «acidentes dolosamente provocados», existe o direito de regresso da seguradora contra a causador do acidente, como dispunha, ao tempo dos factos, o artigo 19º, a), do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, e, actualmente, nos seus precisos termos, o artigo 27º, nº 1, a), do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, ou seja, “satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente”.
A isto acresce que o alcance do artigo 8º, nº 2, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, ou, actualmente, do artigo 27º, nº 1, a), do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, na parte que aqui interessa considerar, ficaria esvaziado do seu conteúdo se fossem de excluir da sua previsão os acidentes que, envolvendo a circulação de veículos, constituam a prática de crimes, reduzido, então, às hipóteses legais em que ocorresse o dano meramente culposo, que deixou de existir, no ordenamento jurídico, como ilícito penal típico(5), desde o início da vigência do Código Penal de 1982.
Finalmente, adite-se um argumento, de carácter sistemático, em favor da tese da inclusão dos danos, intencionalmente, causados, no âmbito do contrato de seguro, e que consiste na exclusão do seu espaço dos “danos causados por um veículo terrestre a motor”, com base no disposto pelo artigo 1º, nº 5, do DL 423/91, de 30 de Outubro, que consagra o regime jurídico da protecção às vítimas de crimes violentos, só se explicando o afastamento se o dano, dolosamente, causado, por um veículo terrestre a motor, já se mostrar acautelado, por outra disposição legal, como acontece no caso do artigo 8º, nº 2, do DL 522/85, de 31 de Dezembro (6).
II. DA CULPA PELA PRODUÇÃO DO ACIDENTE
Sustenta, finalmente, a ré “Companhia de ........, SA” que os factos provados apenas permitem que se impute a culpa concorrente, em partes iguais, a ambos os condutores dos veículos intervenientes no embate, por violação do previsto no artigo 13°, do Código da Estrada, devendo sempre, pelo menos, alterar-se o decidido nesse sentido.
Estipula o artigo 13º, nº 1, do Código da Estrada, que “o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes”.
Por seu turno, dispõe o artigo 570º, do CC, que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
Para que o Tribunal goze da faculdade de conceder, totalmente, reduzir ou excluir a indemnização reclamada pelo lesado, importa que a conduta deste tenha sido uma das causas do dano, de acordo com a doutrina da causalidade adequada, consagrada pelo artigo 563º, do CC, e que, além do mais, tenha contribuído com culpa para a produção do dano, atento o preceituado pelo artigo 487º, nº 2, do CC.
A graduação da culpa interessa quando se suscita a questão da responsabilidade partilhada, como acontece com a hipótese do artigo 570º, do CC.
E, no campo da responsabilidade partilhada, o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual traduzem graus de culpa de intensidade decrescente, no que respeita à posição do agente face aos fins do direito, em termos de ilicitude, imediatamente, seguidos pela negligência consciente e pela negligência inconsciente.
Existe dolo directo quando o agente representa no seu espírito determinado efeito da sua conduta e quer esse efeito como fim da sua actuação e negligência consciente quando o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação, e só, por isso, não toma as providências necessárias para o evitar (7).
Retornando à matéria de facto que ficou demonstrada, no que concerne à determinação da culpa dos condutores intervenientes, importa reter que, no dia 19 de Junho de 2006, pelas 18,30 horas, na Rua Prof. ........., no Porto, o condutor do veículo, de matrícula 00-00-00, BB, que o havia subtraído, na véspera, prendendo fugir à abordagem policial que lhe foi feita, no sentido de parar a sua marcha, arrancou com o mesmo, seguindo em frente e, logo de seguida, inverteu o sentido de trânsito, direccionando o veículo que conduzia contra a viatura policial, conduzida pelo autor, descaracterizada, mas dotada do sinal luminoso de emergência, denominado “pirilampo”, pela metade direita da sua faixa de rodagem, que tentava impedir aquela fuga, embatendo nesta, apesar do autor ainda ter travado, ocorrendo a colisão entre a parte frontal esquerda do furtado e a esquerda do policial.
O autor conduzia o veículo da PSP, no sentido Poente/Nascente, perto do eixo da via, e o embate ocorreu junto deste eixo, ficando as viaturas, após o mesmo, a ocupar parte das hemi-faixas de rodagem de cada um dos respectivos sentidos de marcha.
Assim sendo, dirigindo o autor o veículo policial, perto do eixo da via, o condutor do veículo furtado direccionou esta viatura de encontro aquele, com o propósito deliberado de o atingir, embatendo com a parte frontal esquerda do mesmo na frente esquerda do veículo conduzido pelo autor, junto ao eixo da via.
Deste modo, invadiu a faixa de rodagem contrária, por onde circulava o autor, e fê-lo com intenção manifesta de atingir a viatura por este tripulada, a fim de prosseguir a fuga que empreendera, com vista a não ser interceptado pelas forças policiais que o pretendiam deter pela posse ilegítima da viatura, relativamente à qual viria a ser condenado, como autor material de um crime de furto e de um crime de condução perigosa, causadora do acidente ajuizado.
E, sendo o dolo directo a expressão mais grave da culpa, «lato sensu», quando o resultado danoso querido acaba por coincidir com aquele que resulta do próprio acidente, como seu processo causal, esse nexo de imputação do facto danoso à conduta do tripulante BB excluiria, necessariamente, a mera culpa, idealmente, imputável à condução do autor.
De todo o modo, ficou provado que o embate ocorreu, junto ao eixo da via, na faixa de rodagem correspondente ao sentido de marcha prosseguido pelo autor, que o condutor BB invadiu, independentemente do posicionamento posterior dos dois veículos na sequência da colisão.
A isto acresce, por fim, que, tendo o condutor BB sido condenado, com trânsito em julgado, além do mais, pela prática de um crime de condução perigosa, por, em 19 de Junho 2006, ter causado o acidente controvertido, e não tendo sido ilidida a presunção «tantum iuris» de culpa que sobre si incidia, deve ter-se como verificada a sua culpa, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 342º, nº 2, do CC, e 674º-A, do CPC.
Não se demonstraram, enfim, os pressupostos da concorrência de culpas na produção do acidente e de todas as suas consequências, que são de imputar, em exclusivo, à condução dolosa do tripulante BB.
CONCLUSÕES:
I - A expressão «acidente de viação» não é utilizada, no ordenamento jurídico nacional, no sentido tradicional, mas antes na acepção mais geral de fenómeno ou acontecimento estradal, anormal, fortuito e casual, decorrente da circulação de um veículo, que, manifestamente, comporta o acidente, dolosamente, provocado, porquanto, em ambos os casos, é idêntico o interesse que a lei quer tutelar, isto é, o interesse do lesado na indemnização pelos danos sofridos.
II - O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, face ao condicionamento imposto pela Lei do Seguro Obrigatório, reveste a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, directamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização.
III - A exclusão da previsão dos acidentes que, envolvendo a circulação de veículos, constituam a prática de crimes, esvaziaria o conteúdo da norma do artigo 8º, nº 2, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, ou, actualmente, do artigo 27º, nº 1, a), do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, reduzindo-a às situações factuais em que ocorresse o dano meramente culposo.
IV - A exclusão da cobertura legal, no âmbito do contrato de seguro obrigatório, quanto ao dano, dolosamente, causado, por um veículo terrestre a motor, só se compreende se o mesmo já se encontrar acautelado, por outra disposição legal.
V - Sendo o dolo directo a expressão mais grave da culpa, «lato sensu», quando o resultado danoso querido acaba por coincidir com aquele que resulta do próprio acidente, como seu processo causal, esse nexo de imputação do facto danoso à condução do agente excluiria, necessariamente, a mera culpa, idealmente, imputável à condução do lesado.
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando, inteiramente, o douto acórdão recorrido.
Custas, a cargo da ré “Companhia de ........, SA”.
Notifique.
Lisboa, 06 de Julho de 2011
Helder Roque (Relator)
Gregório Silva Jesus
Martins de Sousa
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(1) Não se afasta desta noção a definição de acidente de viação fornecida pelo Instituto Nacional de Estatística, como “acontecimento fortuito, súbito e anormal ocorrido na via pública em consequência da circulação rodoviária, de que resultem vítimas ou danos materiais, quer o veículo se encontre ou não em movimento”, www.google.pt
(2) STJ, de 18-12-2008, Pº 08P3852; STJ, de 17-10-2007, Pº 3395/07, www.dgsi.pt; STJ, de 18-12-1996, BMJ nº 462, 223; STJ, de 1-4-1993, BMJ nº 426, 132; em sentido contrário, considerando que a situação actual, devido à utilização desviada do veículo do fim a que se destinava, fora dos riscos que, em princípio, o seguro considerou aquando da celebração do contrato, não caracteriza um acidente de viação e que, consequentemente, se está fora do âmbito de garantia do seguro obrigatório, encontra-se o acórdão do STJ, de 13-7-2007, CJ (STJ), Ano XV, T1, 108.
(3)Afonso Moreira Correia, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel – Direito de Regresso da Seguradora, “III Congresso Nacional de Direito de Seguros – Memórias”, coordenação de António Moreira e Manuel da Costa Martins, Almedina, 2003, 199.
(4) Moitinho de Almeida, Seguro Obrigatório Automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, 17, www.stj.pt
(5) Como acontecia com o artigo 482º, do Código Penal de 1886.
(6) STJ, de 7-5-2009, Pº 9A0512, www.dgsi.pt
(7) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 391 e 394.